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O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb

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Ele estendeu sobre mim um cobertor grosso que cheirava a cavalo. Na baia vizinha, um cavalo

cinzento muito grande agitou-se subitamente, batendo com um casco pesado contra a parede de

madeira que separava os compartimentos, e enfiando a cabeça por cima desta para espreitar a

razão de toda aquela animação noturna. Bronco acalmou-o distraidamente com um afago.

– A acomodação é desconfortável para todos neste posto fronteiriço. Você vai descobrir

que Torre do Cervo é um lugar muito mais hospitaleiro, mas esta noite você estará seguro e

aquecido aqui. – E permaneceu ali algum tempo, olhando para nós. – Cavalo, cão e falcão,

Cavalaria. Tomei conta de todos para você durante muitos anos e o fiz bem. Mas este seu

bastardo... Bem, o que fazer com ele está fora do meu alcance.

Sabia que ele não estava falando comigo. Observei-o por cima da extremidade do cobertor

enquanto ele tirava a lanterna do gancho e saía andando, falando baixo consigo mesmo.

Lembro-me bem dessa primeira noite, do calor dos cães, da comichão da palha, e mesmo do

sono que finalmente veio, enquanto o cachorro se aninhava ao meu lado. Entrei na mente dele

e partilhei dos seus sonhos confusos de uma caçada interminável, perseguindo uma presa que

não conseguia ver, mas cujo cheiro quente me impelia a seguir em frente, em meio a urtigas,

silvas e pedregulhos.

Com o sonho do cãozinho, a precisão da memória vacila como as cores intensas e contornos

nítidos de um sonho entorpecente. O certo é que os dias que se seguiram a esse primeiro não

são muito claros na minha memória.

Lembro-me dos dias úmidos do final de inverno em que aprendi o caminho entre o estábulo

e a cozinha. Tinha a liberdade de ir e vir sempre que eu quisesse. Às vezes havia uma

cozinheira em serviço, enfiando carne nos espetos sobre a lareira, ou sovando o pão, ou

abrindo um tonel de alguma bebida. Na maior parte das vezes não havia ninguém, e eu me

servia do que quer que tivesse sido deixado sobre a mesa e partilhava a minha refeição

generosamente com o cachorrinho, que depressa se tornou meu companheiro constante.

Homens iam e vinham, comendo, bebendo e olhando-me, com aquela curiosidade especulativa

que eu acabei por aceitar como normal. Eram homens todos parecidos, vestindo grosseiras

capas de lã e calças, de corpos robustos e de movimentos fáceis, usando sobre o coração a

insígnia de um cervo saltitante. A minha presença fazia alguns se sentirem pouco confortáveis.

Fui me habituando ao murmúrio de vozes que começava sempre que eu deixava a cozinha.

Bronco era uma constante nesses dias, dispensando-me os mesmos cuidados que dispensava

aos animais de Cavalaria; eu era alimentado, penteado e exercitado, o exercício consistia

normalmente em trotar, colado aos calcanhares, enquanto ele executava outras tarefas. Mas

essas memórias são desfocadas, e os detalhes, tais como o lavar ou mudar de roupas,

provavelmente se desvaneceram devido às calmas suposições que uma criança de seis anos

faz acerca da normalidade dessas coisas. Certo é que me lembro do cãozinho, o Narigudo. O

seu pelo era avermelhado, lustroso, curto e eriçado, de tal forma que me pinicava através das

minhas roupas, quando partilhávamos o cobertor de cavalo à noite. Tinha os olhos verdes

como minério de cobre, o nariz da cor de fígado cozido, e o interior da boca e a língua

sarapintados de rosa e negro. Quando não estávamos comendo na cozinha, lutávamos um com

o outro no pátio ou na palha da baia. Assim foi o meu mundo, por seja lá quanto tempo que

estive ali. Creio que não muito, pois não me lembro de o tempo mudar. Todas as minhas

memórias dessa época são de dias frios e úmidos, de rajadas de vento e de neve e gelo que

parcialmente derretiam de dia, mas que eram restaurados pelas geadas noturnas.

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