Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Ele estendeu sobre mim um cobertor grosso que cheirava a cavalo. Na baia vizinha, um cavalo
cinzento muito grande agitou-se subitamente, batendo com um casco pesado contra a parede de
madeira que separava os compartimentos, e enfiando a cabeça por cima desta para espreitar a
razão de toda aquela animação noturna. Bronco acalmou-o distraidamente com um afago.
– A acomodação é desconfortável para todos neste posto fronteiriço. Você vai descobrir
que Torre do Cervo é um lugar muito mais hospitaleiro, mas esta noite você estará seguro e
aquecido aqui. – E permaneceu ali algum tempo, olhando para nós. – Cavalo, cão e falcão,
Cavalaria. Tomei conta de todos para você durante muitos anos e o fiz bem. Mas este seu
bastardo... Bem, o que fazer com ele está fora do meu alcance.
Sabia que ele não estava falando comigo. Observei-o por cima da extremidade do cobertor
enquanto ele tirava a lanterna do gancho e saía andando, falando baixo consigo mesmo.
Lembro-me bem dessa primeira noite, do calor dos cães, da comichão da palha, e mesmo do
sono que finalmente veio, enquanto o cachorro se aninhava ao meu lado. Entrei na mente dele
e partilhei dos seus sonhos confusos de uma caçada interminável, perseguindo uma presa que
não conseguia ver, mas cujo cheiro quente me impelia a seguir em frente, em meio a urtigas,
silvas e pedregulhos.
Com o sonho do cãozinho, a precisão da memória vacila como as cores intensas e contornos
nítidos de um sonho entorpecente. O certo é que os dias que se seguiram a esse primeiro não
são muito claros na minha memória.
Lembro-me dos dias úmidos do final de inverno em que aprendi o caminho entre o estábulo
e a cozinha. Tinha a liberdade de ir e vir sempre que eu quisesse. Às vezes havia uma
cozinheira em serviço, enfiando carne nos espetos sobre a lareira, ou sovando o pão, ou
abrindo um tonel de alguma bebida. Na maior parte das vezes não havia ninguém, e eu me
servia do que quer que tivesse sido deixado sobre a mesa e partilhava a minha refeição
generosamente com o cachorrinho, que depressa se tornou meu companheiro constante.
Homens iam e vinham, comendo, bebendo e olhando-me, com aquela curiosidade especulativa
que eu acabei por aceitar como normal. Eram homens todos parecidos, vestindo grosseiras
capas de lã e calças, de corpos robustos e de movimentos fáceis, usando sobre o coração a
insígnia de um cervo saltitante. A minha presença fazia alguns se sentirem pouco confortáveis.
Fui me habituando ao murmúrio de vozes que começava sempre que eu deixava a cozinha.
Bronco era uma constante nesses dias, dispensando-me os mesmos cuidados que dispensava
aos animais de Cavalaria; eu era alimentado, penteado e exercitado, o exercício consistia
normalmente em trotar, colado aos calcanhares, enquanto ele executava outras tarefas. Mas
essas memórias são desfocadas, e os detalhes, tais como o lavar ou mudar de roupas,
provavelmente se desvaneceram devido às calmas suposições que uma criança de seis anos
faz acerca da normalidade dessas coisas. Certo é que me lembro do cãozinho, o Narigudo. O
seu pelo era avermelhado, lustroso, curto e eriçado, de tal forma que me pinicava através das
minhas roupas, quando partilhávamos o cobertor de cavalo à noite. Tinha os olhos verdes
como minério de cobre, o nariz da cor de fígado cozido, e o interior da boca e a língua
sarapintados de rosa e negro. Quando não estávamos comendo na cozinha, lutávamos um com
o outro no pátio ou na palha da baia. Assim foi o meu mundo, por seja lá quanto tempo que
estive ali. Creio que não muito, pois não me lembro de o tempo mudar. Todas as minhas
memórias dessa época são de dias frios e úmidos, de rajadas de vento e de neve e gelo que
parcialmente derretiam de dia, mas que eram restaurados pelas geadas noturnas.