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– Bem, você está quase tão a salvo quanto o próprio rei, vivendo aqui em Cidade de Torre
do Cervo.
Moli encarou os meus olhos:
– Eu tinha um primo trabalhando como aprendiz em Forja – fez uma pausa e disse
cuidadosamente: – você vai me achar cruel se eu te disser que ficamos aliviados ao ouvir
dizer que ele tinha apenas morrido? Ficamos sem saber por uma semana, mas finalmente
recebemos a notícia de alguém que o viu morrer. E meu pai e eu ficamos ambos aliviados.
Podíamos chorar por ele, sabendo que a sua vida tinha simplesmente acabado e que teríamos
saudades dele. Não tínhamos que ficar imaginando se ele ainda estaria vivo e se comportando
como um bicho, levando miséria aos outros e vergonha a si mesmo.
Fiquei em silêncio por algum tempo. E então disse:
– Lamento muito.
Tive a impressão de que foi pouco, e então eu me estiquei para dar uma palmada amigável
na sua mão imóvel. Por um segundo, foi quase como se eu não pudesse senti-la ali, como se a
dor a tivesse colocado em estado de choque, num entorpecimento emocional comparável ao de
um Forjado. Mas então ela suspirou e senti a sua presença outra vez a meu lado.
– Sabe – eu arrisquei –, talvez o próprio rei não saiba o que fazer. Talvez esteja tão
desesperado atrás de uma solução como nós.
– Ele é o rei! – protestou Moli. – E se chama Sagaz para ser sagaz. Dizem por aí que ele
continua sem fazer nada para poder manter bem apertados os cordões da sua bolsa de moedas.
Por que ele pagaria com o seu tesouro quando mercadores desesperados contratam
mercenários dos próprios bolsos? Mas chega disso... – e levantou a mão para interromper as
minhas palavras. – Não foi para isso que viemos até este lugar de paz e frescor, para falar de
política e medo. Conte para mim o que você tem feito. A cadela malhada já deu cria?
E assim falamos de outras coisas, dos cachorrinhos de Pintalgada e do garanhão errado que
conseguiu emprenhar uma égua no cio, embora estivesse destinada a outro, e ela me contou
que andava juntando pinhas para perfumar as velas e colhendo amoras-pretas, e de como
estaria ocupada durante a semana seguinte, tentando fazer conservas de amoras para o inverno
enquanto tomava conta da loja e fazia velas.
Falamos, comemos, bebemos e observamos o sol tardio de verão enquanto se enfraquecia,
baixo no horizonte, quase na iminência de se pôr. Sentia a tensão entre nós como uma coisa
agradável, um maravilhoso estado de suspensão. Era como uma extensão do meu estranho
novo sentido, e me surpreendia por Moli parecer ser também capaz de senti-lo e de reagir a
ele. Queria falar com ela sobre isso, perguntar se ela percebia as outras pessoas da mesma
maneira que eu. Mas temia que, se lhe perguntasse aquilo, eu me revelasse a ela como tinha
feito a Breu, ou que ela ficasse enojada como Bronco. Portanto, sorri e conversamos, e
guardei os meus pensamentos para mim mesmo.
Acompanhei-a até sua casa pelas ruas tranquilas e lhe desejei boa-noite à porta da casa de
velas. Ela ficou imóvel por um momento, como se pensasse em outra coisa que queria me
dizer, e então me lançou um olhar interrogativo e murmurou suavemente:
– Boa noite, Novato.
Voltei para casa sob um céu profundamente azul, perfurado de estrelas brilhantes, passei
pelas sentinelas ocupadas num eterno jogo de dados e subi para o estábulo. Fiz uma rápida
ronda pelas baias, mas tudo ali estava calmo e bem, mesmo com os novos cachorrinhos. Notei