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casca de queijo. Grasnavam, batiam e injuriavam uma à outra enquanto puxavam a chaleira
cada uma por uma alça. Os outros não prestavam atenção nelas, mas continuavam ocupados
com o próprio saque.
Esse comportamento era muito estranho para aldeões. Eu sempre tinha ouvido falar de
como, depois de um ataque, o povo da aldeia se juntava, limpando e tornando habitáveis os
edifícios que tivessem sido deixados em pé, e ajudando uns aos outros a resgatar os bens mais
valiosos, repartindo o que fosse necessário até que as cabanas pudessem ser reconstruídas e
as lojas reocupadas, mas essas pessoas pareciam completamente despreocupadas com o fato
de todos terem perdido quase tudo o que tinham, e de que família e amigos haviam morrido
durante o ataque. Em vez disso, tinham se aglomerado para lutar uns contra os outros pelo
pouco que restava.
Perceber isso era suficientemente aterrorizante.
Mas eu também não conseguia senti-los.
Não os tinha visto ou ouvido até Breu chamar a minha atenção para a sua presença. Poderia
ter passado a cavalo ao lado deles sem notá-los. E a outra coisa que aconteceu naquele
momento foi ter percebido que eu era diferente de todas as pessoas que conhecia. Imagine uma
criança que enxerga e que cresce numa aldeia de cegos, onde ninguém sequer suspeita da
possibilidade de tal sentido. A criança não teria palavras para as cores, ou para gradações de
luz. Os outros não teriam nenhuma ideia da maneira como essa criança compreendia o mundo.
Assim era naquele instante, enquanto permanecíamos sentados nos nossos cavalos e fitávamos
aquele povo. Pois Breu pensava em voz alta, num tom cheio de tristeza:
– Qual é o problema deles? O que eles têm?
Eu sabia.
Todos os vínculos que vão e vêm entre as pessoas, que entrelaçam mãe e filho, homem e
mulher, todas as relações que se estendem a familiares e vizinhos, a bichos de estimação e
criação, mesmo aos peixes do mar e aos pássaros no céu, todos tinham desaparecido.
Toda a vida, sem ser notada, tinha dependido desses vínculos emocionais para saber
quando outras coisas vivas estavam por perto. Cães, cavalos, mesmo galinhas os tinham,
assim como os humanos. E por isso eu olhava para a porta antes de Bronco entrar por ela, ou
sabia que havia mais um cãozinho recém-nascido nos estábulos, quase enterrado debaixo da
palha. Assim eu acordava quando Breu abria a escadaria. Porque podia sentir as pessoas. E
esse sentimento era o que me alertava sempre primeiro, e me dizia para utilizar os olhos e os
ouvidos e o nariz para determinar o que faziam.
Mas essas pessoas não transmitiam quaisquer sentimentos.
Imagine água sem peso nem umidade. Assim eram aquelas pessoas para mim. Desprovidas
do que as fazia não só humanas, mas também vivas. Para mim, era como se observasse pedras
se levantando da terra e lutando e resmungando umas com as outras. Uma menina pequena
encontrou um frasco de compota e enfiou o punho inteiro nele, puxando para fora um punhado
do doce com o intuito de lambê-lo. Um homem virou as costas à pilha de tecido queimado que
estava vasculhando e moveu-se em direção à garota. Pegou o frasco e empurrou a criança para
o lado, ignorando os gritos raivosos dela.
Ninguém interferiu.
Inclinei-me para a frente e tomei as rédeas de Breu quando ele se preparava para descer do
cavalo. Gritei sem palavras a Fuligem e, embora ela estivesse cansada, o medo na minha voz a