O Aprendiz De Assassino - Saga - Robin Hobb
insanamente enquanto ajustávamos os arreios e montávamos. Breu olhou para as estrelas e emvolta da ladeira que se inclinava para baixo diante de nós. Com uma altivez despreocupada,atirou a lanterna para o lado.– Até o fim! – anunciou à noite, e bateu com o pé no baio, que saltou em frente.Fuligem não ficou para trás, e assim arrisquei como nunca tinha ousado antes, galopandopor um terreno desconhecido à noite. É um milagre que não tenhamos quebrado nossospescoços. Mas aí está: às vezes a sorte protege as crianças e os loucos. E nessa noite senti queéramos as duas coisas.Breu liderou e eu o segui. Nessa noite juntei outra peça do quebra-cabeça que Broncosempre tinha sido para mim. Pois há uma paz muito estranha em submeter a nossa capacidadede tomar decisões a outra pessoa, em dizer “Você vai liderar, e eu vou te seguir e confiarcegamente que você não me vai me guiar em direção à morte ou ao perigo”. Naquela noite,enquanto forçávamos os cavalos a um duro esforço, e Breu nos guiava unicamente em funçãodo céu noturno, não pensei no que poderia acontecer conosco se nos enganássemos, ou se umdos cavalos se ferisse ao tropeçar inesperadamente. Não me sentia responsável pelos meusatos. Subitamente, tudo era fácil e claro. Fazia simplesmente o que Breu me dizia para fazer, etinha plena confiança de que ele faria tudo acontecer como devia. A minha alma seguia nacrista dessa onda de fé, e em dado momento da noite ocorreu-me que era assim que Broncotinha agido com Cavalaria, e era disso que sentia falta tão desesperadamente.Cavalgamos a noite inteira. Breu deixava os cavalos recuperarem o fôlego, mas não comtanta frequência quanto Bronco teria deixado. E parou mais do que uma vez para inspecionar océu noturno e o horizonte para se certificar de que o curso estava certo.– Está vendo aquele monte ali, junto às estrelas? Você não pode vê-lo muito bem, mas eu oconheço. De dia, tem a forma de um boné de manteigueiro; Quifexó, é assim que é chamado.Temos de mantê-lo a oeste da nossa posição. Vamos.Outra vez, parou no topo de um morro. Fiz o cavalo ficar imóvel ao lado do dele. Breuficou sentado, quieto e ereto. Parecia uma estátua de pedra. Levantou um braço e apontou. Suamão tremia ligeiramente.– Está vendo aquela ravina ali embaixo? Andamos um pouco demais para leste.A ravina era invisível para mim, um vulto mais escuro na penumbra da paisagem iluminadapelas estrelas. Comecei a pensar como Breu podia saber que ela estava ali. Foi talvez meiahora mais tarde que ele apontou para a nossa esquerda onde, numa elevação do terreno,tremeluzia uma luz solitária.– Alguém está acordado em Cama-de-Lã – comentou. – Provavelmente o padeiro, pondo opão da manhã para fermentar.Deu meia-volta na sela e senti, mais do que vi, o seu sorriso.– Nasci a menos de dois quilômetros deste lugar. Vamos, rapaz, vamos cavalgar. Não gostode pensar nos Salteadores tão perto de Cama-de-Lã.E continuou, por uma ladeira abaixo, tão íngreme que senti os músculos de Fuligem seavolumarem à medida que ela se sustentava nas coxas e deslizava mais de metade da descida.A madrugada acinzentou o céu antes que eu sentisse o cheiro do mar outra vez. Ainda eracedo quando alcançamos um pico e olhamos para baixo e vimos o pequeno povoado de Forja.Em alguns aspectos, era um lugar pobre; o ancoradouro só podia ser usado em certas marés.Fora isso, os navios tinham de ancorar mais longe e usar pequenas embarcações para ir até a
margem. Praticamente tudo o que Forja tinha para se manter no mapa era a mina de ferro. Nãotinha esperado ver uma cidade cheia de atividade, mas também não estava preparado para ostentáculos de fumo que se erguiam dos telhados abertos dos edifícios escurecidos. Em umlugar qualquer, uma vaca que não tinha sido ordenhada mugia. Uns poucos barcos com o cascofurado repousavam mesmo perto da margem, os mastros destacando-se como árvores mortas.A madrugada abateu-se nas ruas vazias.– Onde estão as pessoas? – eu me perguntei em voz alta.– Mortas, feitas reféns, ou ainda escondidas na floresta.Havia uma contenção na voz de Breu que atraiu os meus olhos para o seu rosto. Fiqueiimpressionado com a dor que vi. Ele percebeu que eu o olhava e encolheu os ombros emsilêncio.– A sensação de que este povo te pertence, que a sua ruína é fracasso seu... você vai sentirisso quando crescer. Vem com o sangue.Ele me deixou refletindo sobre essas palavras enquanto punha o cavalo para andar. Fizemoso caminho monte abaixo, em direção ao povoado.Ir mais devagar parecia ser a única cautela que Breu tinha. Éramos apenas dois, sem armas,em cavalos cansados, cavalgando em direção a um povoa-do onde...– O navio já partiu, garoto. Um navio pirata não se move sem um suplemento completo deremadores. Não com a corrente desta parte da costa. O que é outra surpresa. Como sabiam dasnossas marés e correntes suficientemente bem para atacarem aqui? E por que afinal atacaraqui? Para roubar minério de ferro? É muito mais fácil assaltar um navio mercante. Não fazsentido, garoto. Não faz sentido nenhum.O orvalho tinha se acumulado pesadamente durante a noite. Havia um fedor de casasqueimadas e úmidas que emanava do povoado. Aqui e ali ainda ardiam umas poucasmoradias. Em frente a algumas, os bens jaziam espalhados pela rua, mas não conseguiadeterminar se os habitantes tinham tentado salvar parte das suas posses, ou se os salteadorestinham começado a carregar as coisas e depois mudado de ideia. Uma caixa de sal sem tampa,vários metros de tecidos de lã verde, um sapato, uma cadeira partida; os destroços falavammudos, mas eloquentes sobre tudo o que antes tinha sido confortável e seguro ali e que estavaagora quebrado e atolado na lama para sempre. Um terror austero tomou conta de mim.– Chegamos tarde demais – disse Breu suavemente.Puxou as rédeas do cavalo e Fuligem parou ao lado dele.– O quê? – perguntei estupidamente, acordado de repente dos meus pensamentos.– Os reféns. Eles nos devolveram.– Onde?Breu olhou para mim, incrédulo, como se eu fosse louco ou muito estúpido.– Ali. Nas ruínas daquele edifício.É difícil explicar o que aconteceu comigo no momento seguinte. Tantas coisas ocorreram, etodas ao mesmo tempo. Levantei os olhos e vi um grupo de pessoas, de todas as idades esexos, no interior dos restos queimados de uma loja. Murmuravam entre si enquanto faziamuma busca no lugar. Estavam molhados e sujos, mas não pareciam incomodados com isso.Enquanto eu os observava, duas mulheres pegaram na mesma chaleira ao mesmo tempo ecomeçaram a se esbofetear, cada uma tentando forçar a rival a se afastar para poderreivindicar o objeto como seu. Elas me faziam lembrar um par de corvos lutando por uma
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margem. Praticamente tudo o que Forja tinha para se manter no mapa era a mina de ferro. Não
tinha esperado ver uma cidade cheia de atividade, mas também não estava preparado para os
tentáculos de fumo que se erguiam dos telhados abertos dos edifícios escurecidos. Em um
lugar qualquer, uma vaca que não tinha sido ordenhada mugia. Uns poucos barcos com o casco
furado repousavam mesmo perto da margem, os mastros destacando-se como árvores mortas.
A madrugada abateu-se nas ruas vazias.
– Onde estão as pessoas? – eu me perguntei em voz alta.
– Mortas, feitas reféns, ou ainda escondidas na floresta.
Havia uma contenção na voz de Breu que atraiu os meus olhos para o seu rosto. Fiquei
impressionado com a dor que vi. Ele percebeu que eu o olhava e encolheu os ombros em
silêncio.
– A sensação de que este povo te pertence, que a sua ruína é fracasso seu... você vai sentir
isso quando crescer. Vem com o sangue.
Ele me deixou refletindo sobre essas palavras enquanto punha o cavalo para andar. Fizemos
o caminho monte abaixo, em direção ao povoado.
Ir mais devagar parecia ser a única cautela que Breu tinha. Éramos apenas dois, sem armas,
em cavalos cansados, cavalgando em direção a um povoa-do onde...
– O navio já partiu, garoto. Um navio pirata não se move sem um suplemento completo de
remadores. Não com a corrente desta parte da costa. O que é outra surpresa. Como sabiam das
nossas marés e correntes suficientemente bem para atacarem aqui? E por que afinal atacar
aqui? Para roubar minério de ferro? É muito mais fácil assaltar um navio mercante. Não faz
sentido, garoto. Não faz sentido nenhum.
O orvalho tinha se acumulado pesadamente durante a noite. Havia um fedor de casas
queimadas e úmidas que emanava do povoado. Aqui e ali ainda ardiam umas poucas
moradias. Em frente a algumas, os bens jaziam espalhados pela rua, mas não conseguia
determinar se os habitantes tinham tentado salvar parte das suas posses, ou se os salteadores
tinham começado a carregar as coisas e depois mudado de ideia. Uma caixa de sal sem tampa,
vários metros de tecidos de lã verde, um sapato, uma cadeira partida; os destroços falavam
mudos, mas eloquentes sobre tudo o que antes tinha sido confortável e seguro ali e que estava
agora quebrado e atolado na lama para sempre. Um terror austero tomou conta de mim.
– Chegamos tarde demais – disse Breu suavemente.
Puxou as rédeas do cavalo e Fuligem parou ao lado dele.
– O quê? – perguntei estupidamente, acordado de repente dos meus pensamentos.
– Os reféns. Eles nos devolveram.
– Onde?
Breu olhou para mim, incrédulo, como se eu fosse louco ou muito estúpido.
– Ali. Nas ruínas daquele edifício.
É difícil explicar o que aconteceu comigo no momento seguinte. Tantas coisas ocorreram, e
todas ao mesmo tempo. Levantei os olhos e vi um grupo de pessoas, de todas as idades e
sexos, no interior dos restos queimados de uma loja. Murmuravam entre si enquanto faziam
uma busca no lugar. Estavam molhados e sujos, mas não pareciam incomodados com isso.
Enquanto eu os observava, duas mulheres pegaram na mesma chaleira ao mesmo tempo e
começaram a se esbofetear, cada uma tentando forçar a rival a se afastar para poder
reivindicar o objeto como seu. Elas me faziam lembrar um par de corvos lutando por uma