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condimentada demais. Senão ele não vai viver mais do que um ano ou dois.
Ela olhou para cima, assustada. Levou a mão à boca. E algo no movimento, tão semelhante à
forma autoconsciente como tinha tocado nas joias durante o jantar, me fez perceber quem é que
eu estava repreendendo. Dama Graça. E eu tinha feito o cão urinar em cima da camisola dela.
Algo no meu rosto deve ter me denunciado. Sorriu, deliciada, e segurou o cãozinho mais
perto de si.
– Farei como sugere, garoto dos cães. Mas, e para você? Não há nada que queira me pedir
como recompensa?
Ela pensava que eu iria lhe pedir uma moeda, ou um anel, ou mesmo um emprego na sua
casa. Em vez disso, com tanta firmeza quanto pude, olhei para ela e disse:
– Por favor, Dama Graça. Peço a você que interceda com o seu senhor para que guarde a
torre da Ilha de Vigia com os seus melhores homens, para pôr fim à disputa entre os ducados
de Rasgão e Razos.
– Como?
Aquela pergunta de uma só palavra revelou-me muito sobre ela. O sotaque e a inflexão não
tinham sido aprendidos enquanto Dama Graça.
– Peça ao seu senhor que guarde bem as torres. Por favor.
– Por que é que um garoto dos cães se preocupa com esse tipo de coisa?
A pergunta dela foi muito direta. Onde quer que Calvar a tivesse encontrado, não era de
nascimento nobre, ou de grandes posses. O prazer que demonstrou quando a reconheci, a
forma como havia trazido o cão para o conforto familiar da cozinha ela mesma, envolto no
cobertor, revelava uma moça do povo, elevada depressa demais e acima demais da sua
condição prévia. Estava sozinha e insegura, e ninguém tinha lhe ensinado o que era esperado
dela. Pior, sabia que era ignorante, e esse fato a consumia por dentro e amargava seus
prazeres com medo. Se não aprendesse como ser uma duquesa antes que a juventude e a beleza
entrassem em declínio, apenas longos anos de solidão e ridicularização a esperavam.
Necessitava de um mentor, alguém secreto, como Breu. Precisava dos conselhos que eu
pudesse lhe dar, imediatamente. Mas eu tinha de ser cuidadoso, pois ela não aceitaria
conselhos de um garoto dos cães. Apenas uma moça do povo podia fazer isso, e a única coisa
que ela sabia sobre si mesma neste momento era o fato de que já não era uma moça do povo,
mas uma duquesa.
– Tive um sonho – disse a ela, subitamente inspirado. – Tão claro. Como uma visão. Ou um
aviso. Isso me acordou e me fez vir à cozinha.
Deixei os meus olhos desfocados. Os olhos dela se arregalaram. Eu a tinha em meu poder.
– Sonhei que uma mulher tinha proferido palavras sábias e transformado três homens
poderosos numa muralha unida que os Salteadores dos Navios Vermelhos não podiam
transpor. Ela os encarou, com joias nas mãos, e lhes disse: “Que as torres de vigia brilhem
mais intensamente de que as joias destes anéis. Que os soldados vigilantes que as guardam
orlem a nossa costa como estas pérolas costumavam orlar o meu pescoço. Que as fortalezas
sejam reforçadas outra vez contra os que ameaçam a nossa gente. Porque eu andaria
alegremente despojada diante do rei e do homem do povo se as defesas que guardam a nossa
gente se tornassem as joias da nossa terra.” E o rei e os seus duques ficaram maravilhados
com o coração sábio e os modos nobres dessa mulher. E o povo a amou mais que a todos, pois
sabia que ela o amava mais que ao ouro e à prata.