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Humano-Demasiado-Humano

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problemas da sociedade atual reduzidos às formas mais simples,

despojados de suas qualidades excitantes, palpitantes, patológicas,

tornados ineficazes em qualquer outro sentido que não o artístico;

nada de temas e caracteres novos, mas sim os velhos e há muito

habituais, numa sempre contínua reanimação e reformulação: isso é

a arte, tal como depois Goethe a compreendeu, tal como os gregos

e também os franceses a praticaram.

222. O que resta da arte. — É verdade que, existindo certos

pressupostos metafísicos, a arte tem valor muito maior; por

exemplo, quando vigora a crença de que o caráter é imutável e de

que a essência do mundo se exprime continuamente em todos os

caracteres e ações: a obra do artista se torna então a imagem do

que subsiste eternamente, enquanto em nossa concepção o artista

pode conferir validade à sua imagem somente por um período,

porque o ser humano, como um todo, mudou e é mutável, e

tampouco o indivíduo é algo fixo e constante. — O mesmo sucede

com outra pressuposição metafísica: supondo que nosso mundo

visível fosse apenas aparência, como pensam os metafísicos, a arte

estaria situada bem próxima do mundo real: pois entre o mundo das

aparências e o mundo de sonho do artista haveria muita

semelhança; e a diferença que restasse colocaria até mesmo a

importância94 da arte acima daquela da natureza, porque a arte

representaria o uniforme, os tipos e modelos da natureza. — Mas

esses pressupostos são errados: que lugar ainda tem a arte, após

esse conhecimento? Antes de tudo, durante milênios ela nos

ensinou a olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer,

e a levar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos: "Seja

como for, é boa a vida". 95 Esta lição da arte, de ter prazer na

existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza,

sem excessivo envolvimento, como objeto de uma evolução regida

por leis — esta lição se arraigou em nós, ela agora vem novamente

à luz como necessidade todo-poderosa de conhecimento.

Poderíamos renunciar à arte, mas não perderíamos a capacidade

que com ela aprendemos: assim como pudemos renunciar à

religião, mas não às intensidades e elevações do ânimo adquiridas

por meio dela. Tal como as artes plásticas e a música são a medida

da riqueza de sentimentos realmente adquirida e aumentada através

da religião, depois que a arte desaparecesse a intensidade e

multiplicidade da alegria de vida que ela semeou continuaria a exigir

satisfação. O homem científico é a continuação do homem

artístico.

223. Crepúsculo da arte. — Assim como na velhice

recordamos a juventude e celebramos festas comemorativas,

também a humanidade logo se relacionará com a arte como uma

lembrança comovente das alegrias da juventude. Talvez nunca se

tenha visto a arte com tanta alma e profundidade como agora,

quando o sortilégio da morte parece brincar à sua volta. Pensemos

naquela cidade grega da Itália meridional, que num dia do ano ainda

celebrava sua festa helênica, com lágrimas de tristeza pelo fato de

cada vez mais a barbárie estrangeira triunfar sobre os seus

costumes; jamais se fruiu tanto a coisa helênica,96 em nenhum

lugar se sorveu com tal volúpia esse néctar dourado, como entre

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