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pressuposto. — O que é para nós, hoje em dia, a beleza de uma
construção? O mesmo que o belo rosto de uma mulher sem
espírito: algo como uma máscara.
219. Origem religiosa da música moderna. — A música cheia
de alma surge no catolicismo restaurado após o Concílio de Trento,
com Palestrina, que providenciou sonoridades para o espírito
recém-desperto e profundamente movido; depois com Bach, no
protestantismo, na medida em que este foi aprofundado e despojado
de seu dogmatismo original pelos pietistas.92 Um pré-requisito e
estágio preliminar necessário, nas duas origens, foi ocupar-se da
música tal como se fazia na época do Renascimento e Pré-
Renascimento, isto é, de maneira douta, com aquele prazer, no
fundo científico, pelos artifícios da harmonia e do contraponto. E
também foi necessário o precedente da ópera: na qual o leigo
manifestava seu protesto contra uma música que se tornara fria,
excessivamente douta, e pretendia devolver a Polímnia93 sua alma.
— Sem essa mudança profundamente religiosa, sem o ressoar de
um ânimo intimamente tocado, a música teria permanecido douta
ou operística; o espírito da Contra-Reforma é o espírito da música
moderna (pois o pietismo da música de Bach é também uma
espécie de Contra-Reforma). Tão profunda é a nossa dívida para
com a vida religiosa. — A música foi a Contra-Renascença no
domínio da arte; a ela se relaciona a pintura da última fase de
Murillo, e talvez também o estilo barroco; em todo o caso, mais
que a arquitetura da Renascença ou da Antigüidade. E agora
podemos perguntar: se nossa música moderna pudesse mover as
pedras, chegaria a juntá-las numa arquitetura antiga? Duvido
bastante. Pois aquilo que reina nessa música, o afeto, o prazer em
disposições elevadas e exaltadas, o querer a vitalidade a todo preço,
a brusca mudança de sentimento, o intenso relevo em luz e sombra,
a justaposição do extático e do ingênuo — tudo isso já reinou nas
artes plásticas e criou novas leis de estilo: — mas não na
Antigüidade, nem na época da Renascença.
220. O Além na arte. — Não é sem profundo pesar que
admitiremos que os artistas de todos os tempos, em seus mais altos
vôos, levaram a uma transfiguração celestial exatamente as
concepções que hoje reconhecemos como falsas: eles glorificam os
erros religiosos e filosóficos da humanidade, e não poderiam fazê-lo
sem acreditar na verdade absoluta desses erros. Se a crença em tal
verdade diminui, empalidecem as cores do arco-íris nos extremos
do conhecer e do imaginar humanos: então nunca mais poderá
florescer o gênero de arte que, como a Divina comédia, os quadros
de Rafael, os afrescos de Michelangelo, as catedrais góticas,
pressupõe um significado não apenas cósmico, mas também
metafísico nos objetos da arte. Um dia, uma lenda comovente
contará que existiu certa vez uma tal arte, uma tal crença de artista.
221. A revolução na poesia. — A severa coerção que se
impuseram os dramaturgos franceses, com respeito à unidade de
ação, de tempo e lugar, ao estilo, à construção do verso e da frase,
à escolha de palavras e pensamentos, foi uma escola tão importante
como a do contraponto e da fuga na evolução da música moderna,