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208. O livro quase tornado gente. — Para todo escritor é
sempre uma surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria,
quando se desprende dele; é como se parte de um inseto se
destacasse e tomasse um caminho próprio. Talvez ele se esqueça
do livro quase totalmente, talvez se eleve acima das opiniões que
nele registrou, talvez até não o compreenda mais, e tenha perdido
as asas em que voava ao concebê-lo: enquanto isso o livro busca
seus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, engendra novas obras,
torna-se a alma de projetos e ações — em suma: vive como um ser
dotado de espírito e alma, e contudo não é humano. — A sorte
maior será a do autor que, na velhice, puder dizer que tudo o que
nele eram pensamentos e sentimentos fecundantes, animadores,
edificantes, esclarecedores, continua a viver em seus escritos, e
que ele próprio já não representa senão a cinza, enquanto o fogo se
salvou e em toda parte é levado adiante. — Se considerarmos que
toda ação de um homem, não apenas um livro, de alguma maneira
vai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que tudo o que
ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer, perceberemos a
verdadeira imortalidade, que é a do movimento: o que uma vez se
moveu está encerrado e eternizado na cadeia total do que existe,
como um inseto no âmbar.
209. Alegria na velhice. — O pensador ou artista que guardou
o melhor de si em suas obras sente uma alegria quase maldosa, ao
olhar seu corpo e seu espírito sendo alquebrados e destruídos pelo
tempo, como se de um canto observasse um ladrão a arrombar seu
cofre, sabendo que ele está vazio e que os tesouros estão salvos.
210. Serena fecundidade. — Os aristocratas natos do espírito
não são muito zelosos; suas criações aparecem e caem da árvore
numa tranqüila tarde de outono, sem que sejam impacientemente
desejadas, encorajadas, pressionadas pelo novo. O desejo
incessante de criar é vulgar, demonstra fervor, inveja, ambição.
Quando se é alguma coisa, não é preciso fazer nada — e contudo
se faz muito. Acima do homem "produtivo" há uma espécie mais
elevada.
211. Aquiles e Homero. — É sempre como foi com Aquiles e
Homero: um tem a vivência, a sensação, o outro as descreve. Um
verdadeiro escritor dá somente palavras aos afetos e à experiência
dos outros, ele é artista o suficiente para, a partir do pouco que
sentiu, adivinhar bastante. Os artistas não são de modo algum
homens de grandes paixões, mas freqüentemente fingem sê-lo,
com a percepção inconsciente de que as paixões por eles pintadas
receberão maior crédito, se suas próprias vidas indicarem
experiência nesse campo. Basta apenas se deixar levar, não se
dominar, conceder livre jogo a sua ira e seu desejo, e logo o mundo
inteiro gritará: como ele é apaixonado! Mas a paixão que revolve,
que consome e freqüentemente devora o indivíduo, tem seu peso:
quem a vivencia não a descreve em peças teatrais, sons ou
romances. Com freqüência os artistas são indivíduos desenfreados,
justamente na medida em que não são artistas: mas isso é outra
coisa.