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Humano-Demasiado-Humano

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enriquecimento traz para o saber. Essas duas espécies de leitura e

de consideração se chocam, está claro. Mesmo a conversa com um

amigo só produzirá bons frutos de conhecimento quando ambos

pensarem apenas na questão e esquecerem que são amigos.

198. Sacrifício do ritmo. — Bons escritores mudam o ritmo de

alguns períodos, apenas por não reconhecerem no leitor comum a

capacidade de apreender a cadência do período na sua primeira

versão: por isso facilitam as coisas para ele, dando preferência a

ritmos mais conhecidos. — Essa consideração pela incapacidade

rítmica dos leitores atuais já arrancou alguns suspiros, pois muito já

lhe foi sacrificado. Não acontece algo semelhante com os bons

músicos?

199. O incompleto como estimulante artístico. — O que é

incompleto produz, com freqüência, mais efeito que o completo,

sobretudo no panegírico: este requer precisamente a instigante

incompletude, como um elemento irracional que mostra à

imaginação do ouvinte um mar e, semelhante a uma névoa, esconde

a margem oposta, isto é, os limites do objeto a ser louvado. Quando

mencionamos os méritos conhecidos de uma pessoa, e o fazemos

de maneira larga e minuciosa, pode ocorrer a suspeita de que

seriam os únicos méritos. Quem louva de maneira completa se põe

acima do elogiado, parece perdê-lo de vista.86 Por isso o que é

completo tem um efeito debilitante.

200. Cautela no escrever e no ensinar. — Quem já escreveu, e

sente em si a paixão de escrever, quase que só aprende, de tudo o

que faz e vive, aquilo que é literariamente comunicável. Já não

pensa em si, mas no escritor e seu público; ele quer

compreender,87 mas não para uso próprio. Quem é professor,

geralmente é incapaz de ainda fazer algo para o próprio bem, está

sempre pensando no bem de seus alunos, e cada conhecimento só

o alegra na medida em que pode ensiná-lo. Acaba por considerar-se

uma via de passagem para o saber, um simples meio, de modo que

perde a seriedade para consigo.

201. Necessidade de maus escritores. — Sempre deverão existir

maus escritores, pois eles atendem ao gosto das faixas de idade não

desenvolvidas, imaturas; estas têm suas necessidades, tanto como

as maduras. Se a vida humana fosse mais longa, o número de

indivíduos amadurecidos seria maior ou, no mínimo, tão grande

quanto o de imaturos; ocorre que a imensa maioria morre cedo

demais, isto é, há sempre bem mais intelectos não desenvolvidos e

com mau gosto. Além disso eles desejam, com a enorme

veemência da juventude, a satisfação daquilo de que necessitam, e

forçam o surgimento de maus autores.

202. Perto demais e longe demais. — É freqüente o leitor e o

autor não se entenderem porque o autor conhece bem demais o seu

tema e o acha quase enfadonho, dispensando os exemplos que

conhece às dúzias; mas o leitor é estranho à matéria, e a considera

mal fundamentada se os exemplos lhe são negados.

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