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estreitos para a arte, ao exigir que apenas as almas regradas,
moralmente equilibradas, possam nela se exprimir. Assim como nas
artes plásticas, também na música e na literatura existe uma arte da
alma feia, juntamente com a arte da alma bela; e os efeitos mais
poderosos da arte — dobrar almas, mover pedras, humanizar
animais — talvez tenha sido justamente aquela que os obteve
melhor.
153. A arte torna pesado o coração do pensador. — Podemos
ver como é forte a necessidade metafísica, e como é difícil para a
natureza livrar-se dela enfim, pelo fato de mesmo no livrepensador,
após ele ter se despojado de toda metafísica, os mais
altos efeitos da arte produzirem facilmente uma ressonância na
corda metafísica, por muito tempo emudecida ou mesmo partida;
quando, em certa passagem da Nona sinfonia de Beethoven, por
exemplo, ele se sente pairando acima da Terra numa cúpula de
estrelas, tendo o sonho da imortalidade no coração: as estrelas
todas parecem cintilar em torno dele, e a Terra se afastar cada vez
mais. — Tornando-se consciente desse estado, ele talvez sinta uma
funda pontada no coração e suspire pela pessoa que lhe trará de
volta a amada perdida, chame-se ela religião ou metafísica. Em tais
momentos será posto à prova o seu caráter intelectual.
154. Brincando com a vida. — A facilidade e frivolidade da
imaginação homérica era necessária, para suavizar e
temporariamente suprimir o ânimo desmedidamente apaixonado e o
intelecto extremamente agudo dos gregos. Como a vida parece
amarga e cruel, quando fala esse intelecto! Eles não se iludem, mas
deliberadamente cercam e embelezam a vida com mentiras.
Simônides aconselhava seus patrícios a tomarem a vida como um
jogo; a seriedade lhes era bem conhecida na forma de dor (pois a
miséria humana é o tema que os deuses mais gostam de ver
cantado) e sabiam que apenas através da arte a própria miséria pode
se tornar deleite. Mas, como castigo por tal percepção,68 foram tão
atormentados pelo prazer de fabular, que na vida cotidiana tornouse
difícil para eles livrar-se da mentira e da ilusão, como todos os
povos poetas, que têm igual prazer na mentira e não experimentam
nisso nenhuma culpa. Provavelmente isso levava ao desespero os
povos vizinhos.
155. A crença na inspiração. — Os artistas têm interesse em
que se creia nas intuições repentinas,69 nas chamadas inspirações;
como se a idéia da obra de arte, do poema, o pensamento
fundamental de uma filosofia, caísse do céu como um raio de
graça. Na verdade, a fantasia do bom artista ou pensador produz
continuamente, sejam coisas boas, medíocres ou ruins, mas o seu
julgamento, altamente aguçado e exercitado, rejeita, seleciona,
combina; como vemos hoje nas anotações de Beethoven, que aos
poucos juntou as mais esplêndidas melodias e de certo modo as
retirou de múltiplos esboços.70 Quem separa menos rigorosamente
e confia de bom grado na memória imitativa pode se tornar, em
certas condições, um grande improvisador; mas a improvisação
artística se encontra muito abaixo do pensamento artístico
selecionado com seriedade e empenho. Todos os grandes foram