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Capítulo quarto
DA ALMA DOS ARTISTAS E ESCRITORES
145. O que é perfeito não teria vindo a ser.66 — Diante de
tudo o que é perfeito, estamos acostumados a omitir a questão do
vir a ser e desfrutar sua presença como se aquilo tivesse brotado
magicamente do chão. É provável que nisso ainda estejamos sob o
efeito de um sentimento mitológico arcaico. Quase sentimos ainda
(num templo grego como o de Paestum, por exemplo) que certa
manhã um deus, por brincadeira, construiu sua morada com
aqueles blocos imensos; ou que subitamente uma alma entrou por
encanto numa pedra, e agora deseja falar por meio dela. O artista
sabe que a sua obra só tem efeito pleno quando suscita a crença
numa improvisação, numa miraculosa instantaneidade da gênese; e
assim ele ajuda essa ilusão e introduz na arte, no começo da
criação, os elementos de inquietação entusiástica, de desordem que
tateia às cegas, de sonho atento, como artifícios enganosos para
dispor a alma do espectador ou ouvinte de forma que ela creia no
brotar repentino do perfeito. — Está fora de dúvida que a ciência
da arte deve se opor firmemente a essa ilusão e apontar as falsas
conclusões e maus costumes do intelecto, que o fazem cair nas
malhas do artista.
146. O senso da verdade no artista. — No que toca ao
conhecimento das verdades, o artista tem uma moralidade mais
fraca do que o pensador; ele não quer absolutamente ser privado
das brilhantes e significativas interpretações da vida, e se guarda
contra métodos e resultados sóbrios e simples. Aparentemente luta
pela superior dignidade e importância do ser humano; na verdade,
não deseja abrir mão dos pressupostos mais eficazes para a sua
arte, ou seja, o fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido para
o simbólico, a superestimação da pessoa, a crença em algo
miraculoso no gênio: considera o prosseguimento de seu modo de
criar mais importante que a devoção científica à verdade em
qualquer forma, por mais simplesmente que ela se manifeste.
147. A arte conjurando os mortos. — A arte exerce
secundariamente a função de conservar, e mesmo recolorir um
pouco, representações apagadas, empalidecidas; ao cumprir essa
tarefa, tece um vínculo entre épocas diversas e faz os seus
espíritos retornarem. Sem dúvida é apenas uma vida aparente que
surge desse modo, como aquela sobre os túmulos, ou como o
retorno de mortos queridos no sonho; mas ao menos por instantes
o antigo sentimento é de novo animado, e o coração bate num ritmo
que fora esquecido. Por causa desse benefício geral da arte
devemos perdoar o próprio artista, se ele não figura nas primeiras
filas da ilustração67 e da progressiva virilização da humanidade:
toda a sua vida ele permaneceu um menino ou um adolescente, e
parou no ponto em que foi tomado por seu impulso artístico; mas
sentimentos dos primeiros estágios da vida estão reconhecidamente
mais próximos dos de épocas passadas que daqueles do século