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de viver mediante cultos festivos, no tempo do cristianismo um
incomensurável montante de espírito foi sacrificado em outra
aspiração: de toda maneira o homem deveria se sentir pecador e
com isso ser estimulado, vivificado, animado. Estimular, vivificar,
animar a qualquer preço — não é esta a divisa de uma época
amolecida, demasiado madura e cultivada? O ciclo de todas as
sensações naturais fora percorrido uma centena de vezes, a alma se
fatigara com isso; então o santo e o asceta inventaram um novo
gênero de estímulos para a vida. Expunham-se ao olhar de todos,
não propriamente para que muitos os imitassem, mas como um
espetáculo terrível e ao mesmo tempo encantador, representado
nos limites entre o mundo e o supramundo, onde cada pessoa
acreditava vislumbrar ora raios de luz celestiais ora sinistras línguas
de fogo a brotar da profundeza. O olhar do santo, dirigido ao
significado, terrível em todo aspecto, da breve existência terrena, à
proximidade da decisão final sobre infinitos espaços de novas vidas,
esse olhar em brasa, num corpo semi-aniquilado, fazia tremer os
homens antigos em todas as profundezas; olhar, desviar o olhar
com horror, de novo sentir o encanto do espetáculo, abandonar-se
a ele, saciar-se com ele até a alma estremecer em ardor e calafrio
— este foi o último prazer que a Antigüidade inventou, após ter se
tornado insensível até mesmo à visão das lutas entre homens e
animais.
142. Para resumir o que foi dito: aquele estado de alma de que
goza o santo ou o aspirante à santidade compõe-se de elementos
que nós todos conhecemos muito bem, mas que sob a influência de
idéias não religiosas se mostram em cores diversas e costumam
experimentar a censura dos homens, tanto quanto podem contar,
adornados de religião e de sentido último da existência, com
admiração e mesmo adoração — ao menos podiam contar com isso
em tempos passados. Num momento o santo pratica o desafio de si
mesmo, que é um parente próximo da ânsia de domínio e que
mesmo ao homem mais solitário dá a sensação do poder; noutro,
seu sentimento inflado salta do desejo de dar rédea livre a suas
paixões para o desejo de fazê-las sucumbir como cavalos
selvagens, sob a pressão potente de uma alma orgulhosa; ora deseja
uma cessação completa de todos os sentimentos que o perturbam,
torturam e excitam, um sono desperto, um descansar duradouro no
seio de uma pesada indolência de animal e planta; ora procura a luta
e a desperta em si mesmo, porque o tédio lhe mostra o seu rosto
bocejante: ele flagela seu auto-endeusamento com autodesprezo e
crueldade, se alegra com o selvagem tumulto de seus apetites, com
a dor aguda do pecado e mesmo com a idéia da perdição, sabe
armar ciladas para o seu afeto, para o extremo anseio de domínio,
por exemplo, de modo que ele passe a extrema humilhação, e sua
alma atiçada é subvertida por esse contraste; por fim, quando
anseia por visões, diálogos com os mortos ou seres divinos, o que
no fundo deseja é uma espécie rara de volúpia, talvez aquela volúpia
na qual todas as outras se acham atadas como num feixe. Novalis,
uma autoridade em questões de santidade, por experiência e por
instinto, expressou todo o segredo com ingênua alegria: "É
espantoso que a associação de volúpia, religião e crueldade já não
tenha há muito chamado a atenção dos homens para seu íntimo