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Humano-Demasiado-Humano

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a maior culpa do homem

é a de ter nascido64

Em todas as religiões pessimistas, o ato da procriação é

experimentado como ruim em si, mas esse não é de modo algum

um sentimento universal humano, e nem o juízo de todos os

pessimistas é igual neste ponto. Empédocles, por exemplo, nada

conhece de vergonhoso, diabólico ou pecaminoso nas coisas

eróticas; ele vê, no grande prado do infortúnio, uma única aparição

que traz salvação e esperança: Afrodite; esta é, para ele, a garantia

de que a discórdia não dominará eternamente, mas um dia entregará

o cetro a um demônio mais suave. Os pessimistas cristãos

praticantes tinham, como afirmei, interesse em que outra opinião

predominasse; para a solidão e o deserto espiritual de suas vidas

precisavam de um inimigo sempre vivo; e também reconhecido por

todos, de modo que, combatendo e vencendo-o, eles

continuamente se apresentassem aos não-santos como seres um

tanto incompreensíveis, sobrenaturais. Quando afinal, em

conseqüência de seu modo de vida e de sua saúde destruída, esse

inimigo fugiu para sempre, eles imediatamente souberam ver seu

íntimo povoado por novos demônios. A subida e a descida dos

pratos da balança, Orgulho e Humildade, entretinha suas cabeças

ruminadoras tanto quanto a alternância de desejo e serenidade.

Naquele tempo a psicologia servia não só para tornar suspeito tudo

o que é humano, mas também para difamá-lo, açoitá-lo, crucificálo;

as pessoas queriam se achar tão más e perversas quanto

possível, procuravam o temor pela salvação da alma, o desespero

em relação à própria força. Toda coisa natural a que o homem

associa a idéia de mau, de pecaminoso (como até hoje costuma

fazer em relação ao erótico, por exemplo), incomoda, obscurece a

imaginação, dá um olhar medroso, faz o homem brigar consigo

mesmo e o torna inseguro e desconfiado; até os seus sonhos

adquirem um ressaibo de consciência atormentada. No entanto,

esse sofrimento pelo que é natural é, na realidade das coisas,

totalmente infundado: é apenas conseqüência de opiniões acerca

das coisas. É fácil ver como os homens se tornam piores por

qualificarem de mau o que é inevitavelmente natural e depois o

sentirem sempre como tal. É artifício da religião, e dos metafísicos

que querem o homem mau e pecador por natureza, suspeitar-lhe a

natureza e assim torná-lo ele mesmo ruim: pois assim ele aprende a

se perceber como ruim, já que não pode se despir do hábito da

natureza. Aos poucos, no curso de uma longa vida no interior do

natural, ele se sente tão oprimido por esse fardo de pecados, que

são necessários poderes sobrenaturais para lhe tirar esse fardo; e

com isto surge em cena a já referida necessidade de redenção, que

não corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, e sim a

uma imaginária. Examinando uma a uma as teses morais dos

documentos do cristianismo, veremos que os requisitos são

exagerados, de modo que o homem não possa satisfazê-los; a

intenção não é que ele se torne mais moral, mas que se sinta o mais

possível pecador. Se este sentimento não tivesse sido agradável ao

homem — para que teria produzido ele tal noção e aderido a ela por

tanto tempo? Assim como no mundo antigo foi empregada uma

incomensurável força de espírito e engenho para aumentar a alegria

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