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De uma vez por todas se renunciou à própria vontade, e isso é mais
fácil do que renunciar ocasionalmente; assim como é mais fácil
renunciar de todo a um desejo do que mantê-lo moderado. Se nos
lembrarmos da posição atual do homem em relação ao Estado,
achamos aí também que a obediência incondicional é mais cômoda
que a condicionada. Logo, o santo facilita a própria vida pelo
completo abandono da personalidade, e é um engano admirar nesse
fenômeno o supremo heroísmo da moralidade. Em todo caso, é
mais difícil afirmar a personalidade sem hesitação e sem
obscuridade do que dela se libertar de tal modo; além disso, requer
muito mais espírito e reflexão.
140. Depois que encontrei, em muitas das ações mais difíceis
de explicar, expressões daquele prazer na emoção em si, gostaria de
reconhecer também no autodesprezo, que se inclui entre as
características da santidade, e igualmente nos atos de tortura de si
mesmo (jejum e açoitamento, deslocação dos membros, simulação
da loucura), um meio pelo qual essas naturezas lutam contra a
fadiga geral de sua vontade de viver (de seus nervos): elas se
servem dos estímulos e crueldades mais dolorosos, para ao menos
temporariamente emergir do torpor e do tédio em que sua grande
indolência espiritual e a mencionada subordinação a uma vontade
alheia as fazem cair com tanta freqüência.
141. O meio mais comumente empregado pelo santo e asceta,
para tornar a própria vida ainda suportável e interessante, consiste
na guerra ocasional e na alternância de vitória e derrota. Para isso
precisa de um adversário, e o encontra no chamado "inimigo
interior". Pois ele utiliza sua própria tendência à vaidade, a sede de
glória e domínio, e também seus apetites sensuais, para poder
considerar sua vida uma contínua batalha e a si mesmo um campo
de batalha, no qual lutam, com êxito variado, bons e maus
espíritos. Sabe-se que a fantasia sensual é moderada ou quase
suprimida pela regularidade das relações sexuais, e inversamente se
torna desenfreada e dissoluta com a abstinência ou a desordem
nessas relações. A fantasia de muitos santos cristãos foi
incomumente obscena; graças à teoria de que esses apetites eram
verdadeiros demônios que lhes assolavam o íntimo, não se sentiam
muito responsáveis por eles; a este sentimento devemos a
franqueza tão instrutiva de suas confissões. Era de seu interesse
que tal luta sempre fosse entretida em algum nível, pois era ela,
como disse, que entretinha suas vidas desoladas. Mas, a fim de que
a luta parecesse importante o bastante para suscitar nos não-santos
uma simpatia e uma admiração permanentes, a sensualidade teve de
ser cada vez mais difamada e estigmatizada, e mesmo o perigo de
uma danação eterna foi ligado tão estreitamente a essas coisas, que
é bem provável que durante épocas inteiras os cristãos tenham
gerado filhos de má consciência; o que certamente fez um grande
mal à humanidade. E, no entanto, aqui a verdade está de cabeça
para baixo: o que para ela é especialmente indecoroso. Sem dúvida
o cristianismo afirmou que todo homem é concebido e gerado em
pecado, e no insuportável cristianismo superlativo de Calderón essa
idéia foi mais uma vez atada e entrançada, de modo que ele ousou o
mais estapafúrdio paradoxo nestes versos conhecidos: