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falsamente suas ações, agora faz isso com suas vivências; apreende
o seu consolo como o efeito de uma força externa; o amor, com
que no fundo ama a si mesmo, aparece como amor divino; aquilo
que chama de graça e prelúdio da redenção é, na verdade, graça
para consigo e redenção de si mesmo.
135. Portanto: determinada psicologia falsa, certa espécie de
fantasia na interpretação dos motivos e vivências são o pressuposto
necessário para que alguém se torne cristão e sinta necessidade de
redenção. Percebendo a aberração do raciocínio e da imaginação,
deixa-se de ser cristão.
136. Ascetismo e santidade cristãos. — Quanto mais certos
pensadores se empenharam em ver nesses raros fenômenos da
moralidade que se costuma chamar de ascetismo e santidade uma
coisa milagrosa, ante a qual seria quase sacrilégio e profanação
manter o lume de uma explicação racional, tanto mais forte é a
tentação desse sacrilégio. Em todos os tempos, um poderoso
impulso da natureza levou a protestar contra esses fenômenos; a
ciência, na medida em que é, como foi dito, imitação da natureza,
permite-se ao menos levantar objeção à pretendida inexplicabilidade
e mesmo inacessibilidade desses fenômenos. Sem dúvida, até agora
ela não teve sucesso: eles permanecem inexplicados, para grande
prazer dos mencionados adoradores do moralmente milagroso.
Pois, expresso em termos gerais: o inexplicado deve ser totalmente
inexplicável; o inexplicável, totalmente antinatural, sobrenatural,
miraculoso — assim reza a exigência da alma de todos os religiosos
e metafísicos (dos artistas também, quando são ao mesmo tempo
pensadores); enquanto o homem científico vê nessa exigência o
"mau princípio". — A primeira probabilidade geral a que se chega,
ao examinar a santidade e a ascese, é a de que sua natureza é
complexa: pois em quase toda parte, tanto no mundo físico como
no moral, houve sucesso em reduzir o pretensamente miraculoso
ao complexo e multiplamente condicionado. Ousemos, portanto,
isolar inicialmente alguns impulsos da alma dos santos e ascetas, e
por fim imaginá-los intimamente entrelaçados.
137. Existe um desafio de si mesmo, cujas expressões mais
sublimadas incluem várias formas de ascese. Alguns homens têm
uma necessidade tão grande de exercer seu poder e sua ânsia de
domínio que, na falta de outros objetos, ou porque de outro modo
sempre falharam, recorrem afinal à tiranização de partes de seu
próprio ser, como que segmentos ou estágios de si mesmos.
Assim, alguns pensadores defendem pontos de vista que claramente
não servem para aumentar ou melhorar sua reputação; alguns
chamam expressamente para si o desprezo alheio, quando lhes seria
mais fácil, guardando o silêncio, permanecerem respeitados; outros
renegam suas antigas opiniões e não temem ser chamados de
inconseqüentes; ao contrário, empenham-se nisso e comportam-se
como animosos cavaleiros, que amam o cavalo sobretudo quando
ele se torna bravo, arisco e está coberto de suor. É assim que o
homem escala por vias perigosas as mais altas cordilheiras, para rir
de seu próprio medo e de seus joelhos trêmulos; é assim que o
filósofo defende idéias de ascese, humildade e santidade, cujo brilho