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Rochefoucauld: Si on croit aimer sa maîtresse pour l'amour d'elle,
on est bien trompé [Se cremos amar nossa amante por amor a ela,
estamos bem iludidos].61 Quanto à razão por que atos de amor são
mais estimados que os outros, não devido à sua essência, mas à sua
utilidade, lembremos as investigações "sobre a origem dos
sentimentos morais", já mencionadas. Se um homem desejasse ser
todo amor como aquele Deus, fazer e querer tudo para os outros e
nada para si, tal já seria impossível porque ele teria de fazer
muitíssimo para si mesmo, a fim de poder fazer algo pelos outros.
Depois isto pressupõe que o outro seja egoísta o bastante para
sempre aceitar esse sacrifício, esse viver para ele: de modo que os
homens do amor e do sacrifício têm interesse em que continuem
existindo os egoístas sem amor e incapazes de sacrifício, e a
suprema moralidade, para poder subsistir, teria de requerer a
existência da imoralidade (com o que, então, suprimiria a si
mesma). — Mais ainda: a idéia de um Deus inquieta e humilha,
enquanto nela se crê, mas no estágio atual da ciência etnológica não
há mais dúvida quanto à sua gênese; e, quando a percebemos,
aquela crença se desfaz. Ao cristão que compara a sua natureza
com a de Deus sucede o mesmo que ao Dom Quixote, que
subestima sua valentia porque tem na cabeça os feitos maravilhosos
dos heróis de romances de cavalaria: o metro com que em ambos
os casos se mede pertence ao reino das fábulas. Acabando a idéia
de Deus, acaba também o sentimento do "pecado", da violação de
preceitos divinos, da mácula numa criatura consagrada a Deus. E
provavelmente restará ainda aquele pesar que é aparentado e se
acha misturado ao medo das punições da justiça profana ou do
desprezo dos homens; ao menos o pesar dos remorsos, o aguilhão
mais agudo do sentimento de culpa, é atenuado, quando
percebemos que com nossos atos violamos a tradição humana, as
leis e ordenações humanas, mas ainda não colocamos em perigo "a
eterna salvação da alma" e sua relação com a divindade. Se, por
fim, a pessoa conquistar e incorporar totalmente a convicção
filosófica da necessidade incondicional de todas as ações e de sua
completa irresponsabilidade, desaparecerá também esse resíduo de
remorso.
134. Se o cristão, como disse, foi levado ao sentimento de
autodesprezo por alguns erros, isto é, por uma interpretação falsa,
não científica, de suas ações e sentimentos, deverá perceber com
assombro que esse estado de desprezo, de remorso, de desprazer,
não persiste, e que ocasionalmente tudo isso é afastado de sua alma
e ele se sente livre e corajoso novamente. O prazer consigo mesmo,
o bem-estar com a própria força, aliados ao enfraquecimento
necessário de toda emoção profunda, levaram a melhor; o homem
sente que de novo ama a si mesmo — mas justamente esse amor,
essa nova auto-estima lhe parecem inacreditáveis, neles só pode ver
o totalmente imerecido descenso de um raio de graça. Se antes ele
acreditava distinguir em todos os acontecimentos avisos, ameaças,
castigos e toda espécie de sinais da ira divina, agora interpreta suas
experiências de modo a lhes introduzir a bondade divina: tal evento
lhe parece pleno de amor; aquele outro, uma indicação benfazeja;
um terceiro, e a sua própria disposição alegre, demonstração de que
Deus é piedoso. Se antes, no estado de pesar, interpretava