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cristãos; os quais deveriam ganhar, na análise psicológica dos
"fatos" religiosos, um novo ancoradouro e sobretudo uma nova
ocupação. Sem nos deixar perturbar por tais antecessores,
ousamos a seguinte interpretação do fenômeno. O ser humano está
consciente de certas ações que, na hierarquia corrente das ações,
acham-se num nível bastante baixo, e descobre em si mesmo um
pendor para essas ações, que lhe parece quase tão imutável quanto
o seu ser. Como gostaria de experimentar aquela outra espécie de
ações que no conceito geral são reconhecidas como as mais
elevadas e sublimes, como gostaria de se sentir pleno da boa
consciência que deve acompanhar um modo de pensar
desinteressado! Mas infelizmente permanece no desejo: o
descontentamento por não satisfazê-lo se soma a todos os outros
tipos de descontentamento que nele despertaram a sua sina ou as
conseqüências daquelas ações chamadas más; de forma que nasce
um profundo mal-estar, juntamente com a busca por um médico
que possa suprimir este e suas causas. — Esse estado não seria
sentido com tanta amargura se o homem apenas se comparasse a
outros com imparcialidade; pois então não teria razão de ficar
especialmente descontente consigo mesmo, carregaria apenas uma
parte do fardo geral da insatisfação e imperfeição humana. Mas ele
se compara com um ser que sozinho é capaz de todas as ações
chamadas altruístas, e que vive na contínua consciência de um
modo de pensar desinteressado: Deus; é porque olha nesse espelho
claro que o seu ser lhe parece tão turvo, tão incomumente
deformado. Depois o angustia o pensamento do mesmo ser, na
medida em que este paira ante sua imaginação como a justiça
punidora: em todas as vivências possíveis, grandes ou pequenas,
acredita reconhecer a cólera e as ameaças dele, e mesmo pressentir
os golpes de açoite de seu juiz e carrasco. Quem o ajudará nesse
perigo, que, em vista de uma duração imensurável da pena, supera
em atrocidade todos os outros terrores da imaginação?
133. Antes de expormos as outras conseqüências desse estado,
confessemos a nós mesmos que o homem não caiu nele por sua
"culpa" ou "pecado", mas por uma série de erros da razão; que foi
uma falha do espelho, se sua natureza lhe pareceu obscura e odiável
a esse ponto, e que esse espelho foi obra sua, a obra muito
imperfeita da imaginação e do juízo humanos. Em primeiro lugar,
um ser que fosse capaz apenas de ações altruístas é mais fabuloso
do que o pássaro Fênix; não seria sequer imaginável, porque num
exame rigoroso o conceito de "ação altruísta" se pulveriza no ar.
Jamais um homem fez algo apenas para outros e sem qualquer
motivo pessoal; e como poderia mesmo fazer algo que fosse sem
referência a ele, ou seja, sem uma necessidade interna (que sempre
teria seu fundamento numa necessidade pessoal)? Como poderia o
ego agir sem ego?60 — Por outro lado, um Deus que é todo amor,
como às vezes se supõe, não seria capaz de uma única ação
altruísta; nisso devemos lembrar um pensamento de Lichtenberg, o
qual certamente foi tomado de uma esfera um pouco mais modesta:
"É impossível sentir pelos outros, como se costuma dizer; sentimos
apenas por nós mesmos. A frase soa dura, mas não o é, se for
corretamente entendida. Não amamos pai, mãe, esposa ou filho,
mas os sentimentos agradáveis que nos causam", ou, como diz La