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Humano-Demasiado-Humano

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um sonho pesado e angustiante, mas ao abrir os olhos está sempre

de volta ao Paraíso.

125. Irreligiosidade dos artistas. — Homero está tão à vontade

entre seus deuses, e tem, como poeta, tamanha satisfação com

eles, que deve ter sido profundamente irreligioso; com o que a

crença popular lhe oferecia — uma superstição mesquinha,

grosseira e às vezes terrível —, ele lidava tão livremente quanto o

escultor com sua argila, ou seja, com a mesma desenvoltura que

possuíam Ésquilo e Aristófanes, e mediante a qual, nos tempos

modernos, distinguiram-se os grandes artistas do Renascimento,

assim como Shakespeare e Goethe.

126. Arte e força da falsa interpretação. — Todas as visões,

terrores, esgotamentos e êxtases do santo são estados patológicos

conhecidos, que ele, a partir de arraigados erros religiosos e

psicológicos, apenas interpreta de modo totalmente diverso, isto é,

não como doença. — Assim o demônio de Sócrates talvez seja

também uma doença do ouvido, que ele apenas explica conforme

seu pensamento moral dominante, de maneira diversa de como se

faria hoje. Não acontece de outro modo com as loucuras e os

delírios dos profetas e sacerdotes oraculares; foi sempre o grau de

saber, fantasia, empenho, moralidade na cabeça e no coração dos

intérpretes que tanto fez a partir dessas coisas. Entre as maiores

realizações daqueles que chamamos de gênios e santos se inclui a

de conquistar intérpretes que os compreendem mal para o bem da

humanidade.

127. Veneração da loucura . — Tendo-se notado que

freqüentemente uma emoção tornava a mente mais clara e

provocava idéias felizes, pensou-se que através das emoções mais

intensas participaríamos das mais felizes idéias e inspirações: e

assim se veneraram os loucos como sábios e oráculos. Na base

disso está um raciocínio errado.

128. Promessas da ciência. — A ciência moderna tem por meta

o mínimo de dor possível e a vida mais longa possível — ou seja,

uma espécie de eterna beatitude, sem dúvida bastante modesta, se

comparada às promessas religiosas.

129. Liberalidade proibida. — Não há no mundo amor e

bondade bastantes, para que ainda possamos dá-los a seres

imaginários.

130. Sobrevivência do culto religioso no coração . — A Igreja

católica, e antes dela todos os cultos antigos, dominava todos os

meios pelos quais o homem é colocado em inusitados estados de

espírito e subtraído ao frio cálculo do interesse ou ao puro

pensamento racional. Uma igreja que treme com profundos sons;

apelos surdos, regulares, contidos, de uma hoste de padres que

involuntariamente transmite à comunidade sua própria tensão e a

mantém numa escuta quase angustiante, como se um milagre

estivesse a ponto de ocorrer; a atmosfera de uma arquitetura que,

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