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cerimônias; por fim, quando sua confusão se tornou muito grande
houve esforços para ordená-las, sistematizá-las, de modo que se
acreditou garantir o desenrolar favorável de todo o curso da
natureza, isto é, do grande ciclo anual das estações, mediante o
correspondente desenrolar de um sistema de procedimentos. O
sentido do culto religioso é influenciar e esconjurar a natureza em
benefício do homem, ou seja, imprimir-lhe uma regularidade54 que
a princípio ela não tem; enquanto na época atual queremos
conhecer as regras da natureza para nos adaptarmos a elas. Em
suma, o culto religioso baseia-se nas idéias de feitiço entre um
homem e outro; e o feiticeiro é mais antigo que o sacerdote. Mas
igualmente se baseia em concepções outras, mais nobres;
pressupõe um laço de simpatia entre os homens, a existência de boa
vontade, gratidão, atendimento aos suplicantes, acordos entre
inimigos, concessão de garantias, direito à proteção da propriedade.
Mesmo em baixos níveis de cultura o homem não se acha frente à
natureza como um escravo impotente, não é necessariamente o seu
servo desprovido de vontade: no nível religioso dos gregos,
sobretudo na relação com os deuses olímpicos, deve-se mesmo
pensar na convivência de duas castas, uma mais nobre, mais
poderosa, e outra menos nobre; mas por sua origem elas de algum
modo estão ligadas e são de uma única espécie; não precisam se
envergonhar uma da outra. Eis o que há de nobre na religiosidade
grega.
112. À vista de certos instrumentos de sacrifício antigos. — Na
união da farsa ou mesmo da obscenidade com o senso religioso,
por exemplo, podemos ver como alguns sentimentos se perderam
para nós: desaparece o sentimento da possibilidade dessa mistura,
não apreendemos senão historicamente que ela tenha existido nas
festas de Deméter e Dionísio, nos mistérios e peças pascais dos
cristãos; mas ainda conhecemos a união do sublime ao burlesco e
coisas afins, o comovente associado ao ridículo: o que talvez uma
época futura não mais compreenda.
113. O cristianismo como antigüidade. — Quando, numa
manhã de domingo, ouvimos repicarem os velhos sinos,
perguntamos a nós mesmos: mas será possível? isto se faz por um
judeu crucificado há dois mil anos, que se dizia filho de Deus. Não
existe prova para tal afirmação. — Em nossos tempos, a religião
cristã é certamente uma antigüidade que irrompe de um passado
remoto, e o fato de crermos nessa afirmação — quando
normalmente somos tão rigorosos no exame de qualquer pretensão
— é talvez a parte mais antiga dessa herança. Um deus que gera
filhos com uma mortal; um sábio que exorta a que não se trabalhe,
que não mais se julgue, mas que se atente aos sinais do iminente
fim do mundo; uma justiça que aceita o inocente como vítima
substituta; alguém que manda seus discípulos beberem seu sangue;
preces por intervenções miraculosas; pecados cometidos contra um
deus expiados por um deus; medo de um Além cuja porta de
entrada é a morte; a forma da cruz como símbolo, num tempo que
já não conhece a destinação e a ignomínia da cruz — que
estremecimento nos causa tudo isso, como o odor vindo de um
sepulcro antiqüíssimo! Deveríamos crer que ainda se crê nessas