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Humano-Demasiado-Humano

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Capítulo terceiro

A VIDA RELIGIOSA

108. A dupla luta contra o infortúnio. — Quando um

infortúnio nos atinge, podemos superá-lo de dois modos:

eliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz em

nossa sensibilidade; ou seja, reinterpretando o infortúnio como um

bem, cuja utilidade talvez se torne visível depois. A religião e a arte

(e também a filosofia metafísica) se esforçam em produzir a

mudança da sensibilidade, em parte alterando nosso juízo sobre os

acontecimentos (por exemplo, com ajuda da frase: "Deus castiga a

quem ama"), em parte despertando prazer na dor, na emoção

mesma (ponto de partida da arte trágica). Quanto mais alguém se

inclina a reinterpretar e ajustar, tanto menos pode perceber e

suprimir as causas do infortúnio; o alívio e a anestesia

momentâneos, tal como se faz na dor de dente, por exemplo,

bastam-lhe mesmo nos sofrimentos mais graves. Quanto mais

diminuir o império das religiões e de todas as artes da narcose,

tanto mais os homens se preocuparão em realmente eliminar os

males: o que, sem dúvida, é mau para os poetas trágicos — pois há

cada vez menos matéria para a tragédia, já que o reino do destino

inexorável e invencível cada vez mais se estreita, — mas é ainda

pior para os sacerdotes: pois até hoje eles viveram da anestesia dos

males humanos.

109. Sofrimento é conhecimento. — Como gostaríamos de

trocar essas falsas afirmações dos sacerdotes, segundo as quais

existe um Deus que de nós exige o bem, que é guardião e

testemunha de toda ação, todo momento, todo pensamento, que

nos ama, que em toda desgraça deseja o melhor para nós — como

gostaríamos de trocá-las por verdades que fossem tão salutares,

calmantes e benfazejas como esses erros! Mas tais verdades não

existem; a filosofia pode lhes opor, no máximo, aparências

metafísicas (também inverdades, no fundo). A tragédia é que não

podemos acreditar nesses dogmas da religião e da metafísica,

quando trazemos no coração e na cabeça o rigoroso método da

verdade, e que por outro lado, graças à evolução da humanidade,

tornamo-nos tão delicados, suscetíveis e sofredores a ponto de

precisar de meios de cura e de consolo da mais alta espécie; daí

surge o perigo de o homem se esvair em sangue ao conhecer a

verdade. Byron exprimiu isso em versos imortais:

Sorrow is knowledge: they who know the most

Must mourn the deepest o'er the fatal truth,

The tree of knowledge is not that of life.

[Sofrimento é conhecimento: aqueles que mais sabem

Devem prantear mais profundamente a verdade fatal,

A árvore do conhecimento não é a da vida.]49

Para tais preocupações não há melhor remédio que evocar a

solene frivolidade de Horácio, ao menos para os piores instantes e

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