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Humano-Demasiado-Humano

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baixo, na hierarquia dos sentimentos morais; e com razão.

104. Legítima defesa. — Se admitimos a legítima defesa como

moral, devemos também admitir todas as expressões do chamado

egoísmo imoral: causamos a dor, roubamos ou matamos a fim de

nos conservar ou nos proteger, a fim de prevenir uma desgraça

pessoal; mentimos, quando a astúcia e o fingimento são meios

corretos para a autoconservação. Causar dano intencionalmente,

quando está em jogo nossa existência ou segurança (conservação

de nosso bem-estar), é admitido como sendo moral; desse ponto de

vista o próprio Estado causa danos, ao decretar penas. Na causação

involuntária de danos não pode, naturalmente, haver o imoral; nela

governa o acaso. Há então uma espécie de dano intencional em que

não esteja em jogo a nossa existência, a conservação de nosso

bem-estar? Existe um comportamento danoso por pura maldade,

na crueldade, por exemplo? Quando não sabemos o mal que faz

uma ação, ela não é uma ação maldosa; a criança não é maligna

nem perversa com os animais: ela os investiga e os destrói como

um brinquedo. Mas alguma vez se sabe inteiramente quanto mal faz

uma ação a um outro ser? Até onde se estende o nosso sistema

nervoso, nós nos protegemos contra a dor: se o seu alcance fosse

maior, isto é, se incluísse nossos semelhantes, não faríamos mal a

ninguém (a não ser nos casos em que o fazemos a nós mesmos,

isto é, quando nos cortamos para nos curar, nos esforçamos e nos

fatigamos em prol da saúde). Nós inferimos por analogia que uma

coisa faz mal a alguém, e por meio da lembrança e da força da

imaginação podemos nós mesmos passar mal com aquilo. Mas que

diferença persiste entre uma dor de dente e a dor (compaixão)

provocada pela visão de uma dor de dente? Ou seja: no

comportamento danoso por aquilo que se chama maldade, o grau

da dor produzida é para nós desconhecido, em todo caso; mas na

medida em que há um prazer na ação (sentimento do próprio poder,

da intensidade da própria excitação), a ação ocorre para conservar

o bem-estar do indivíduo, sob um ponto de vista similar ao da

legítima defesa, ao da mentira por necessidade. Sem prazer não há

vida; a luta pelo prazer é a luta pela vida. Se o indivíduo trava essa

luta de maneira que o chamem de bom ou de maneira que o

chamem de mau, é algo determinado pela medida e a natureza de

seu intelecto.

105. A justiça premiadora. — Quem compreendeu plenamente

a teoria da completa irresponsabilidade já não pode incluir a

chamada justiça punitiva e premiadora no conceito de justiça; se

esta consiste em dar a cada um o que é seu. Pois aquele que é

punido não merece a punição: é apenas usado como meio para

desencorajar futuramente certas ações; também aquele que é

premiado não merece o prêmio: ele não podia agir de outro modo.

O prêmio tem apenas o sentido, portanto, de um encorajamento

para ele e para outros, a fim de proporcionar um motivo para ações

futuras; o louvor é dirigido àquele que corre na pista, não àquele

que atingiu a meta. Nem o castigo nem o prêmio são algo devido a

uma pessoa como seu; são-lhe dados por razões de utilidade, sem

que ela possa reivindicá-los justamente. Deve-se dizer que "o sábio

não premia porque se agiu bem", tal como já se disse que "o sábio

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