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talvez tenha herdado muita coisa dos animais, que visivelmente
sentem prazer ao brincar uns com os outros, sobretudo uma mãe
com seus filhotes. E lembremos as relações sexuais, que fazem
quase toda fêmea parecer interessante a todo macho e vice-versa,
tendo em vista o prazer. Em geral, a sensação de prazer com base
nas relações humanas torna o homem melhor; a alegria comum, o
prazer desfrutado em conjunto a aumenta, dá segurança ao
indivíduo, torna-o mais afável, dissolve a desconfiança e a inveja:
pois ele se sente bem e vê que o mesmo sucede ao outro. As
manifestações de prazer semelhantes despertam a fantasia da
empatia, o sentimento de ser igual: o mesmo fazem os sofrimentos
comuns, as mesmas tormentas, os mesmos perigos e inimigos.
Com base nisso se constrói depois a mais antiga aliança: cujo
sentido é defender-se e eliminar conjuntamente um desprazer
ameaçador, em proveito de cada indivíduo. E assim o instinto social
nasce do prazer.
99. O que há de inocente nas chamadas más ações. — Todas
as "más" ações são motivadas pelo impulso de conservação ou,
mais exatamente, pelo propósito individual de buscar o prazer e
evitar o desprazer; são, assim, motivadas, mas não são más.
"Causar dor em si" não existe, salvo no cérebro dos filósofos, e
tampouco "causar prazer em si" (compaixão no sentido
schopenhaueriano). Na condição anterior ao Estado, matamos o
ser, homem ou macaco, que queira antes de nós apanhar uma fruta
da árvore, quando temos fome e corremos para a árvore: como
ainda hoje faríamos com um animal, ao andar por regiões inóspitas.
— As más ações que atualmente mais nos indignam baseiam-se no
erro de [imaginar] que o homem que as comete tem livre-arbítrio,
ou seja, de que dependeria do seu bel-prazer não nos fazer esse
mal. Esta crença no bel-prazer suscita o ódio, o desejo de vingança,
a perfídia, toda a deterioração da fantasia, ao passo que nos
irritamos muito menos com um animal, por considerá-lo
irresponsável. Causar sofrimento não pelo impulso de conservação,
mas por represália — é conseqüência de um juízo errado, e por
isso também inocente. O indivíduo pode, na condição que precede
o Estado, tratar outros seres de maneira dura e cruel, visando
intimidá-los: para garantir sua existência, através de provas
intimidantes de seu poder. Assim age o homem violento, o
poderoso, o fundador original do Estado, que subjuga os mais
fracos. Tem o direito de fazê-lo, como ainda hoje o Estado o
possui; ou melhor: não há direito que possa impedir que o faça. Só
então pode ser preparado o terreno para toda moralidade, quando
um indivíduo maior ou um indivíduo coletivo, como a sociedade, o
Estado, submete os indivíduos, retirando-os de seu isolamento e os
reunindo em associação. A moralidade é antecedida pela coerção, e
ela mesma é ainda por algum tempo coerção, à qual a pessoa se
acomoda para evitar o desprazer. Depois ela se torna costume,
mais tarde obediência livre, e finalmente quase instinto: então, como
tudo o que há muito tempo é habitual e natural, acha-se ligada ao
prazer — e se chama virtude.
100. Pudor. — O pudor existe em toda parte onde há um
"mistério"; e este é um conceito religioso, que tinha grande alcance