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Humano-Demasiado-Humano

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estado pode ser visto; tenhamos contato com doentes e pessoas

mentalmente afligidas, e perguntemos a nós mesmos se os

eloqüentes gemidos e queixumes, se a ostentação da infelicidade

não tem o objetivo, no fundo, de causar dor nos espectadores: a

compaixão que eles então expressam é um consolo para os fracos e

sofredores, na medida em que estes percebem ter ao menos um

poder ainda, apesar de toda a sua fraqueza: o poder de causar dor.

O infeliz obtém uma espécie de prazer com o sentimento de

superioridade que a demonstração de compaixão lhe traz à

consciência; sua imaginação se exalta, ele é ainda importante o

suficiente para causar dores ao mundo. De modo que a sede de

compaixão é uma sede de gozo de si mesmo, e isso à custa do

próximo; ela mostra o homem na total desconsideração de seu

querido Eu, não exatamente em sua "tolice", como quer La

Rochefoucauld. — Na conversa em sociedade, a maioria das

perguntas é feita e a maioria das respostas é dada com o objetivo de

causar um pequeno mal ao interlocutor; por isso tantos têm sede de

sociedade: ela lhes dá o sentimento de sua força. Nessas doses

incontáveis, mas muito pequenas, em que a maldade se faz valer,

ela é um poderoso estimulante da vida: assim como a benevolência,

que, de igual forma disseminada no mundo dos homens, é um

remédio sempre disponível. — Mas haverá muitos indivíduos

honestos que admitam ser prazeroso causar dor? que não raro nos

distraímos — nos distraímos bem — criando desgosto para outros

homens, ao menos em pensamento, e disparando contra eles os

grãozinhos de chumbo da pequena maldade? A maioria é desonesta

demais, e alguns são bons demais, para saber algo sobre esse

pudendum [parte vergonhosa]; portanto, eles sempre negarão que

Prosper Mérimée esteja certo ao dizer: Sachez aussi qu'il n'y a rien

de plus commun que de faire le mal pour le plaisir de le faire

[Saibam também que não há nada mais comum do que fazer o mal

pelo prazer de fazê-lo].35

51. Como o parecer vira ser. — Mesmo na dor mais profunda

o ator não pode deixar de pensar na impressão produzida por sua

pessoa e por todo o efeito cênico, até no enterro de seu filho, por

exemplo: ele chorará por sua própria dor e as manifestações dela,

como sua própria platéia. O hipócrita que representa sempre o

mesmo papel deixa enfim de ser hipócrita; por exemplo, padres que

quando jovens costumam ser hipócritas, consciente ou

inconscientemente, tornam-se enfim naturais e são, sem nenhuma

afetação, padres realmente; ou, se o pai não vai tão longe, talvez

então o filho, aproveitando os passos do pai, venha a lhe herdar o

costume. Se alguém quer parecer algo, por muito tempo e

obstinadamente, afinal lhe será difícil ser outra coisa. A profissão

de quase todas as pessoas, mesmo a do artista, começa com

hipocrisia, com uma imitação do exterior, com uma cópia daquilo

que produz efeito. Aquele que sempre usa a máscara do rosto

amável terá enfim poder sobre os ânimos benévolos, sem os quais

não pode ser obtida a expressão da amabilidade — e estes por fim

adquirem poder sobre ele, ele é benévolo.

52. A marca da honestidade no embuste. — Em todos os

grandes embusteiros é digno de nota um fato a que devem seu

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