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hipocondríacos por empatia e preocupação com outra pessoa; a
espécie de compaixão que daí nasce não é outra coisa que uma
doença. De modo que há também uma hipocondria cristã, que ataca
as pessoas solitárias e movidas pela religião, que continuamente têm
diante dos olhos a paixão e a morte de Cristo.
48. Economia da bondade. — A bondade e o amor, as ervas e
forças mais salutares no trato com seres humanos, são achados tão
preciosos que bem desejaríamos que se procedesse o mais
economicamente possível, na aplicação desses meios balsâmicos:
mas isto é impossível. A economia da bondade é o sonho dos mais
arrojados utopistas.
49. Benevolência. — Entre as coisas pequenas, mas bastante
freqüentes, e por isso muito eficazes, às quais a ciência deve
atentar mais do que às coisas grandes e raras, deve-se incluir
também a benevolência; refiro-me às expressões de ânimo amigável
nas relações, ao sorriso dos olhos, aos apertos de mão, à satisfação
que habitualmente envolve quase toda ação humana. Não há
professor, não há funcionário que não junte esse ingrediente àquilo
que é seu dever; é a atividade contínua da humanidade, como que
as ondas de sua luz, nas quais tudo cresce; sobretudo no círculo
mais estreito, no interior da família, a vida só verdeja e floresce
mediante essa benevolência. A boa índole, a amabilidade, a cortesia
do coração são permanentes emanações do impulso altruísta, e
contribuíram mais poderosamente para a cultura do que as
expressões mais famosas do mesmo impulso, chamadas de
compaixão, misericórdia e sacrifício. Mas costumamos
menosprezá-las, e realmente: nelas não há muito de altruísta. A
soma dessas doses mínimas é no entanto formidável, sua força total
é das mais potentes. — De modo semelhante, no mundo se acha
muito mais felicidade do que vêem os olhos turvos: isto é, se
calculamos direito e não esquecemos todos os momentos de
satisfação de que todo dia humano, mesmo na vida mais
atormentada, é rico.
50. O desejo de suscitar compaixão. — La Rochefoucauld
acerta no alvo quando, na passagem mais notável de seu autoretrato
(impresso pela primeira vez em 1658), previne contra a
compaixão todos os que possuem razão, quando aconselha a deixála
para as pessoas do povo, que necessitam das paixões (não sendo
guiadas pela razão) para chegarem ao ponto de ajudar os que
sofrem e de intervir energicamente em caso de infortúnio; enquanto
a compaixão, no seu julgamento (e no de Platão), enfraquece a
alma. Deveríamos, sem dúvida, manifestar compaixão, mas
guardarmo-nos de tê-la: pois, sendo os infelizes tão tolos,
demonstrar compaixão é para eles o maior bem do mundo. —
Talvez possamos alertar mais ainda contra a compaixão, se
entendermos tal necessidade dos infelizes não exatamente como
tolice e deficiência intelectual, como uma espécie de perturbação
mental que a infelicidade ocasiona (assim parece entendê-la La
Rochefoucauld), mas como algo totalmente diverso e mais digno de
reflexão. Observemos as crianças que choram e gritam a fim de
inspirar compaixão, e por isso aguardam o momento em que seu