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Humano-Demasiado-Humano

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tornou menos desconfiados. Quando imitamos com entusiasmo os

heróis de Plutarco e relutamos em indagar suspeitosamente sobre

as motivações de seu agir, não é a verdade, mas o bem-estar da

sociedade humana que lucra com isso: o erro psicológico e a

insensibilidade nesse campo ajudam a humanidade a avançar,

enquanto o conhecimento da verdade talvez ganhe mais com a

força estimulante de uma hipótese como a que La Rochefoucauld

antepôs à primeira edição das suas Sentences et maximes morales:

Ce que le monde nomme vertu n'est d'ordinaire qu'un fantôme

formé par nos passions, à qui on donne un nom honnête pour faire

impunément ce qu'on veut [Aquilo que o mundo chama de virtude

não é, via de regra, senão um fantasma formado por nossas

paixões, ao qual damos um nome honesto para impunemente fazer

o que quisermos]. La Rochefoucauld e outros mestres franceses do

estudo da alma (aos quais recentemente se juntou um alemão, o

autor das Observações psicológicas)27 parecem atiradores de boa

mira que acertam sempre no ponto escuro — mas no escuro da

natureza humana. Sua destreza provoca admiração, mas afinal um

espectador que seja conduzido não pelo espírito da ciência, mas

pelo espírito humanitário, amaldiçoará uma arte que parece plantar

na alma humana o gosto pela diminuição e pela suspeita.

37. Não obstante. — Seja qual for o resultado dos prós e dos

contras: no presente estado de uma determinada ciência, o

ressurgimento da observação moral se tornou necessário, e não

pode ser poupada à humanidade a visão cruel da mesa de

dissecação psicológica e de suas pinças e bisturis. Pois aí comanda

a ciência que indaga a origem e a história dos chamados

sentimentos morais, e que, ao progredir, tem de expor e resolver os

emaranhados problemas sociológicos: — a velha filosofia não

conhece em absoluto estes últimos, e com precárias evasivas

sempre escapou à investigação sobre a origem e a história dos

sentimentos morais. As conseqüências podem hoje ser vistas

claramente, depois que muitos exemplos provaram que em geral os

erros dos maiores filósofos têm seu ponto de partida numa falsa

explicação de determinados atos e sentimentos humanos; que, com

base numa análise errônea, por exemplo, das ações ditas altruístas,

constrói-se uma ética falsa; que depois, em favor desta, recorre-se

de novo à religião e à barafunda mitológica e que, por fim, as

sombras desses turvos espíritos se projetam até mesmo na física e

em toda a nossa consideração do mundo. Mas se é certo que a

superficialidade da observação psicológica estendeu e continua a

estender ao julgamento e ao raciocínio humanos as mais perigosas

armadilhas, então é necessária agora a persistência que não cansa

de amontoar pedra sobre pedra, pedrinha sobre pedrinha, é

necessária uma austera valentia, para não nos envergonharmos de

trabalho tão modesto e afrontarmos todo desdém de que for objeto.

É verdade: numerosas observações particulares sobre o humano e o

demasiado humano foram primeiramente descobertas e enunciadas

em círculos sociais habituados a oferecer toda espécie de sacrifício

não ao conhecimento científico, mas a uma espirituosa coqueteria;

e o aroma deste velho berço da sentença moral — um aroma muito

sedutor — aderiu quase que inseparavelmente a todo o gênero: de

modo que por causa dele o homem de ciência manifesta

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