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Humano-Demasiado-Humano

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que as necessidades que a religião satisfez e que a filosofia deve

agora satisfazer não são imutáveis; podem ser enfraquecidas e

eliminadas. Pensemos, por exemplo, na miséria cristã da alma, no

lamento sobre a corrupção interior, na preocupação com a salvação

— conceitos oriundos apenas de erros da razão, merecedores não

de satisfação, mas de destruição. Uma filosofia pode ser útil

satisfazendo também essas necessidades, ou descartando-as; pois

são necessidades aprendidas, temporalmente limitadas, que

repousam em pressupostos contrários aos da ciência. É melhor

recorrer à arte para fazer uma transição, a fim de aliviar o ânimo

sobrecarregado de sentimentos;21 pois aquelas concepções são

bem menos alimentadas pela arte do que por uma filosofia

metafísica. Partindo da arte, pode-se passar mais facilmente para

uma ciência filosófica realmente libertadora.

28. Palavras de má reputação. — Fora com as palavras

"otimismo" e "pessimismo", utilizadas até à saciedade! Pois cada

vez mais faltam motivos para empregá-las: apenas os tagarelas

ainda têm inevitável necessidade delas. Pois por que desejaria

alguém no mundo ser otimista, se não tiver que defender um deus

que deve ter criado o melhor dos mundos, caso ele mesmo seja o

bem e a perfeição — mas que ser pensante ainda necessita da

hipótese de um deus? — No entanto, falta igualmente qualquer

motivo para uma profissão de fé pessimista, se não houver

interesse em irritar os advogados de Deus, os teólogos ou os

filósofos teologizantes, afirmando vigorosamente o contrário: que o

mal governa, que o desprazer é maior que o prazer, que o mundo é

uma obra malfeita, a manifestação de uma perversa vontade de

vida.22 Mas quem se importa ainda com os teólogos — excetuando

os teólogos? — Deixando de lado a teologia e o combate que se faz

a ela, fica evidente que o mundo não é nem bom nem mau, e

tampouco o melhor ou o pior, e os conceitos "bom" e "mau" só têm

sentido em relação aos homens, e mesmo aí talvez não se

justifiquem, do modo como são habitualmente empregados: em

todo caso, devemos nos livrar tanto da concepção do mundo que o

invectiva como daquela que o glorifica.

29. Embriagado pelo aroma das flores. — A barca da

humanidade, pensamos, tem um calado cada vez maior, à medida

que é mais carregada; acredita-se que quanto mais profundo o

pensamento do homem, quanto mais delicado seu sentimento,

quanto mais elevada sua auto-estima, quanto maior sua distância

dos outros animais — quanto mais ele aparece como gênio entre os

animais —, tanto mais perto chega da real essência do mundo e de

seu conhecimento: isso ele realmente faz com a ciência, mas pensa

fazê-lo mais ainda com suas religiões e suas artes. Estas são, é

verdade, uma floração do mundo, mas não se acham mais próximas

da raiz do mundo do que a haste: a partir delas não se pode em

absoluto entender melhor a essência das coisas, embora quase

todos o creiam. O erro tornou o homem profundo, delicado e

inventivo a ponto de fazer brotar as religiões e as artes. O puro

conhecimento teria sido incapaz disso. Quem nos desvendasse a

essência do mundo, nos causaria a todos a mais incômoda

desilusão. Não é o mundo como coisa em si, mas o mundo como

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