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A comparação entre essas passagens dos livros mostra que
Nietzsche ia refinando a análise, à medida que radicalizava a atitude.
Tal radicalização abrangeria inevitavelmente o estilo: o prólogo de
Humano, demasiado humano, acrescentado à segunda edição, em
1886, exibe a mesma prosa arrebatadora dos livros dessa época.
Não é preciso pesquisar muito para encontrar mais passagens
antecipadoras de idéias e atitudes da época madura. A noção de
perspectivismo, a ênfase na impossibilidade de um puro conhecer,
é prenunciada nos §§ 32, 33 e 34. Indícios de uma visão da
psicologia como “o caminho para os problemas fundamentais”, tal
como seria apresentada no § 23 de Além do bem e do mal, já estão
nas primeiras seções do segundo capítulo (que originalmente seria o
primeiro). O escrutínio psicológico da natureza artística, que
culminaria no célebre § 269 de ABM, aparece em seções como a de
número 164.
A idealização dos heróis e seres superiores transparece no § 81,
no qual a distância entre um príncipe e um plebeu é considerada tão
grande quanto aquela entre um ser humano e um inseto. Ele,
Nietzsche, “põe-se no lugar” (os termos originais são mais
expressivos: sich in die Seele versetzen, “pôr-se na alma”) do
poderoso. Deparamos com o modo de pensar antiigualitário por
excelência. A glorificação da força, já presente no adolescente
Nietzsche (no fascínio pelas sagas nórdicas, que o levou a esboçar
um longo “poema sinfônico” sobre o rei Ermanarique),
permaneceria em toda a sua obra — de modo que não foi
inteiramente descabido o uso que os nazistas fizeram de suas
teorias. Thomas Mann, um grande admirador e herdeiro espiritual
de Nietzsche, seria um dos poucos a reconhecer isto, no ensaio “A
filosofia de Nietzsche à luz da nossa experiência”, de 1947.
Algumas seções ou parágrafos que podem igualmente ser
mencionados, agora como exemplos da originalidade e seriedade da
reflexão de Nietzsche, são: o § 13, sobre o mecanismo e o sentido
dos sonhos; o 376, sobre as vicissitudes da amizade; o 379, sobre a
formação do caráter na infância; o 406, sobre o requisito para um
casamento; o profético § 473, sobre o socialismo e o terrorismo de
Estado; e o 475, em que ele se revela um arauto da unificação
européia e que inclui uma bela página sobre o povo judeu. Esses
aforismos, entre muitos outros, contribuirão para um
enriquecimento da imagem que o leitor tem de Nietzsche.
Iluminismo e trevas, dureza e compaixão, ardor e frieza coexistem
na alma do nosso filósofo.
Este livro “para espíritos livres”, escrito há mais de cem anos,
permanece bastante atual, portanto. Mas, afinal, diferentemente do
que significaram em termos de progresso tecnológico, no último
século, cem anos representam muito pouco, no âmbito das coisas
que realmente interessam — que são as coisas “primeiras e
últimas”.
Paulo César de Souza