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Voltaire: era dedicado à memória do “grande liberador do espírito”,
na ocasião do centenário de sua morte. Nietzsche tinha 33 anos
então. O novo livro era uma declaração de independência,
representava a sua maioridade intelectual. Também a atitude em
relação a Schopenhauer, o pensador venerado conjuntamente por
ele e Wagner, experimentou mudança: em várias seções ele é
explicitamente criticado.
Para o leitor que conhece as obras da última fase do autor —
de Além do bem e do mal em diante —, a impressão inicial é de
surpresa: não só o estilo é classicamente contido, como não
aparecem os termos geralmente associados ao nome de Nietzsche:
super-homem, eterno retorno, vontade de poder, etc. Mas o leitor
também percebe que, como os livros posteriores, este é dividido
em seções numeradas. Foi nele que Nietzsche utilizou pela primeira
vez a forma do aforismo. Fez dela uma utilização pessoal, pois
tradicionalmente o aforismo era uma sentença breve e incisiva,
sintetizando um conceito ou julgamento. Assim o encontramos nos
moralistas franceses mencionados e no alemão Georg Christoph
Lichtenberg (também nos românticos Schlegel e Novalis, mas com
outro espírito). Os “aforismos” de Nietzsche cobrem de uma ou
duas linhas a várias páginas. Nisso é clara a influência do
Schopenhauer de Parerga e paralipomena , que traz, segundo o
próprio autor, “pensamentos ordenados sistematicamente, sobre
temas diversos”. Nietzsche reuniu as tradições francesa e alemã
neste ponto.
Em Humano, demasiado humano, a divisão em capítulos já é
temática, e no interior deles há grupos de aforismos com maior
ligação entre si. Às vezes há seqüências rigorosamente encadeadas,
verdadeiros ensaios incrustados no conjunto. A forma adotada
permitiu — e ao mesmo tempo refletiu — uma bem maior
flexibilidade do pensamento, implicou uma enorme expansão do
olhar.
Mas se este livro representou uma guinada, foi uma guinada
dentro de um percurso próprio. É possível destacar temas e
inquietações que o ligam às primeiras obras, e é evidente a
continuidade entre ele e as obras posteriores. Abrindo Além do bem
e do mal, publicado oito anos depois, verifica-se a mesma divisão
em nove capítulos, e já nos títulos se revelam as afinidades dos
seus conteúdos: metafísica, moral, religião e arte são os principais
objetos da crítica nietzscheana, secundados por observações sobre
política, sociedade, personalidades, afetos, comportamentos,
relações entre os indivíduos e entre os sexos.
No prólogo do livro seguinte, Genealogia da moral (1887), o
autor explicita a relação com o livro de 1878, remetendo o leitor
para várias seções deste: as de número 45, que trata da “dupla préhistória
do bem e do mal”, já contrapondo de maneira incipiente a
moral escrava à moral nobre; as de números 96 e 99, sobre a
“moralidade do costume”; e a 136, sobre o ascetismo cristão. Ele
poderia ter citado várias outras relacionadas a estas, como as que
vêm após a 136, que antecipam claramente a terceira dissertação da
Genealogia da moral; ou as que precedem a 45, nas quais também
já se evidencia a abordagem histórico-genealógica dos fenômenos.
Sem dúvida, o conhecimento dessas formulações iniciais permite
entender melhor a trajetória nietzscheana.