21.02.2021 Views

Humano-Demasiado-Humano

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

POSFÁCIO

UM LIVRO SOBERANO

“Este livro é obra minha. Nele trouxe à luz minha mais íntima

percepção dos homens e das coisas e pela primeira vez delimitei os

contornos de meu próprio pensamento.” Assim se manifestou

Nietzsche a respeito de Humano, demasiado humano, no esboço de

uma carta endereçada a Richard Wagner e sua mulher, Cosima, no

início de 1878.

Não sabemos se a carta foi concluída e enviada. Nietzsche

imaginava o quanto o novo livro poderia afetar sua relação com os

Wagner, uma relação que chegou a ser de intensa comunhão de

idéias e intimidade pessoal. Em suas publicações anteriores, O

nascimento da tragédia (1872) e Considerações extemporâneas

(1872-76), Wagner era louvado como o grande renovador da

cultura alemã, o gênio alemão era o possível herdeiro do grego e à

arte cabia o papel supremo na condução e justificação da vida. Essa

atitude romântica, ardente-esperançosa, dava lugar, na nova

publicação redigida em segredo, a um questionamento de matiz

iluminista, num tom sóbrio e cético. O nome de Wagner não

aparece absolutamente, os franceses são tidos como mais próximos

dos gregos e a estima da ciência é “marca de uma cultura

superior”. Nas palavras de um amigo de Nietzsche, o filólogo

Erwin Rohde, foi como se, num banho romano, alguém passasse

do caldarium (a sala quente) para o frigidarium.

Não apenas os Wagner, a maioria dos amigos teve uma reação

negativa. A recepção do público leitor não foi diferente: um ano

depois, apenas 120 exemplares — de uma tiragem de mil — tinham

achado compradores. Mas entre os amigos houve pelo menos duas

exceções notáveis: o historiador Jacob Burckhardt e o filósofo Paul

Rée. O primeiro, que já não via com bons olhos o wagnerianismo

de Nietzsche, qualificou o livro de “soberano”. O segundo foi o

principal interlocutor de Nietzsche no período de gestação de

Humano, demasiado humano.

De outubro de 1876 a setembro de 77, Nietzsche obteve licença

médica da Universidade da Basiléia. Ele sofria de sintomas que às

vezes o incapacitavam totalmente para o trabalho: enxaquecas,

dores nos olhos, náuseas, vômitos. Convidado por uma amiga, a

aristocrata e feminista Malwida von Meysenbug, ele passou uma

temporada em Sorrento, na Itália, juntamente com Rée e um jovem

discípulo. Os quatro formaram uma pequena família de pensadores.

As leituras do grupo, em geral escolhidas e feitas em voz alta por

Rée, viriam a ter ressonância nas páginas de Humano, demasiado

humano: entre os autores lidos e discutidos estavam Montaigne, La

Rochefoucauld, Vauvernagues e Stendhal. O próprio Rée era autor

de ensaios filosófico-psicológicos de viés materialista (Nietzsche se

refere a eles nas seções 36 e 37). Não surpreende, portanto, que o

casal Wagner atribuísse a “lamentável” obra do amigo à influência

de Paul Rée — cuja ascendência judaica foi registrada e censurada

por Cosima em seu diário.

Além de tudo, quando foi publicado, em abril de 1878,

Humano, demasiado humano trazia na capa uma homenagem a

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!