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tivesse vivido em outros tempos, e que teria recorrido a todos os
meios da Inquisição, se tivesse vivido como adversário da Reforma.
Essa Inquisição era razoável na época, pois não significava outra
coisa senão o estado de sítio que teve de ser proclamado em todo o
domínio da Igreja, que, como todo estado de sítio, autorizava os
meios mais extremos, com base no pressuposto (que já não
partilhamos com aqueles homens) de que a Igreja tinha a verdade,
e de que era preciso conservá-la para a salvação da humanidade, a
todo custo e com todo sacrifício. Hoje em dia, porém, já não
admitimos tão facilmente que alguém possua a verdade: os
rigorosos métodos de investigação propagaram desconfiança e
cautela bastantes, de modo que todo aquele que defende opiniões
com palavras e atos violentos é visto como um inimigo de nossa
presente cultura ou, no mínimo, como um atrasado. Realmente: o
pathos de possuir a verdade vale hoje bem pouco em relação àquele
outro, mais suave e nada altissonante, da busca da verdade, que
nunca se cansa de reaprender e reexaminar.
634. Além disso, a própria busca metódica da verdade é
resultado das épocas em que as convicções se achavam em
conflito. Se o indivíduo não tivesse se preocupado com sua
"verdade", isto é, com a razão que lhe cabia, não haveria nenhum
método de investigação; mas, na eterna luta entre as reivindicações
de diferentes indivíduos pela verdade absoluta, avançou-se pouco a
pouco até achar princípios irrefutáveis, segundo os quais o direito
dessas reivindicações podia ser examinado e a disputa apaziguada.
Inicialmente se decidia conforme as autoridades, depois os
indivíduos criticavam mutuamente os meios e caminhos pelos quais
a suposta verdade fora encontrada; entrementes houve um período
em que tiravam as conseqüências da tese adversária e as viam
talvez como prejudiciais e causadoras de infelicidade: do que então
devia resultar, no juízo de cada um, que a convicção do adversário
continha um erro. A luta pessoal dos pensadores, enfim, aguçou de
tal maneira os métodos, que verdades puderam realmente ser
descobertas e os erros de métodos passados ficaram expostos
diante de todos.
635. No conjunto, os métodos científicos são um produto da
pesquisa ao menos tão importante quanto qualquer outro resultado:
pois o espírito científico repousa na compreensão do método, e os
resultados todos da ciência não poderiam impedir um novo triunfo
da superstição e do contra-senso, caso esses métodos se
perdessem. Pessoas de espírito podem aprender o quanto quiserem
sobre os resultados da ciência: em suas conversas, particularmente
nas hipóteses que nelas surgem, nota-se que lhes falta o espírito
científico: elas não possuem a instintiva desconfiança em relação
aos descaminhos do pensar, que após prolongado exercício deitou
raízes na alma de todo homem científico. Basta-lhes encontrar uma
hipótese qualquer acerca de algo, e então se tornam fogo e flama
no que diz respeito a ela, achando que com isso tudo está resolvido.
Para essas pessoas, ter uma opinião significa ser fanático por ela e
abrigá-la no peito como convicção. Diante de algo inexplicado,
exaltam-se com a primeira idéia de sua mente que pareça uma
explicação: do que sempre resultam as piores conseqüências,