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Humano-Demasiado-Humano

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a investigar com que direito se apegavam a esta ou àquela

convicção, por que caminho tinham a ela chegado: como se

mostraria pacífica a história da humanidade! Quanto mais

conhecimento não haveria! Todas as cruéis cenas, na perseguição

aos hereges de toda espécie, nos teriam sido poupadas por duas

razões: primeiro, porque os inquisidores teriam inquirido antes de

tudo dentro de si mesmos, superando a pretensão de defender a

verdade absoluta; segundo, porque os próprios hereges não teriam

demonstrado maior interesse por teses tão mal fundamentadas

como as dos sectários e "ortodoxos" religiosos, após tê-las

examinado.

631. Dos tempos em que os homens estavam habituados a crer

na posse da verdade absoluta deriva um profundo mal-estar com

todas as posições céticas e relativistas ante alguma questão do

conhecimento; em geral preferimos nos entregar

incondicionalmente a uma convicção tida por pessoas de autoridade

(pais, amigos, professores, príncipes), e sentimos uma espécie de

remorso quando não o fazemos. Tal inclinação é perfeitamente

compreensível, e suas conseqüências não nos dão direito a

censuras violentas ao desenvolvimento da razão humana. Aos

poucos, no entanto, o espírito científico deve amadurecer no

homem a virtude da cautelosa abstenção, o sábio comedimento que

é mais conhecido no âmbito da vida prática que no da vida teórica,

e que Goethe, por exemplo, apresentou em Antonio como alvo de

irritação para todos os Tassos, ou seja, para as naturezas não

científicas e também passivas.167 O homem de convicção tem o

direito de não entender o homem do pensamento cauteloso, o

teórico Antonio; o homem científico, por sua vez, não tem o direito

de criticá-lo por isso, é indulgente para com o outro e sabe que em

determinado caso este ainda se apegará a ele, como Tasso fez afinal

com Antonio.

632. Quem não passou por diversas convicções, mas ficou

preso à fé em cuja rede se emaranhou primeiro, é em todas as

circunstâncias, justamente por causa dessa imutabilidade, um

representante de culturas atrasadas;168 em conformidade com esta

ausência de educação (que sempre pressupõe educabilidade), ele é

duro, irrazoável, incorrigível, sem brandura, um eterno

desconfiado, um inescrupuloso, que emprega todos os meios para

impor sua opinião, por ser incapaz de compreender que têm de

existir outras opiniões; assim considerado, ele é talvez uma fonte de

força, e em culturas que se tornaram demasiado livres e frouxas é

até mesmo salutar, mas apenas porque incita fortemente à

oposição; pois a delicada estrutura da nova cultura que é obrigada a

lutar contra ele se tornará forte ela mesma.

633. Ainda somos, no essencial, os mesmos homens da época

da Reforma: como poderia ser diferente? Mas o fato de já não nos

permitirmos certos meios de contribuir para a vitória de nossas

opiniões nos diferencia daquele tempo, e prova que pertencemos a

uma cultura superior. Quem ainda hoje combate e derruba opiniões

com suspeitas, com acessos de raiva, como se fazia durante a

Reforma, revela claramente que teria queimado os seus rivais, se

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