You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
ser fiéis aos nossos erros, ainda percebendo que com essa
fidelidade causamos prejuízo ao nosso eu superior? — Não, não
existe nenhuma lei, nenhuma obrigação dessa espécie; temos de nos
tornar traidores, praticar a infidelidade, sempre abandonar nossos
ideais. Não passamos de um período a outro da vida sem causar
essas dores da traição e sem sofrê-las também. Não seria
necessário, para evitar essas dores, nos guardarmos dos fervores
de nossos sentimentos? O mundo não se tornaria ermo demais,
espectral demais para nós? Perguntemo-nos antes se tais dores por
uma mudança de convicção são necessárias, e se não dependem de
uma opinião e avaliação errada. Por que admiramos aquele que
permanece fiel às suas convicções e desprezamos aquele que as
muda? Receio que a resposta tenha de ser: porque todos
pressupõem que apenas motivos de baixo interesse ou de medo
pessoal provocam tal mudança. Ou seja: no fundo acreditamos que
ninguém muda sua opinião enquanto ela lhe traz vantagem ou, pelo
menos, enquanto não lhe causa prejuízo. Se for assim, porém, eis
aí um péssimo atestado da significação intelectual das convicções.
Examinemos como se formam as convicções, e observemos se não
são grandemente superestimadas: com isto se verificará que
também a mudança de convicção é sempre medida conforme um
critério errado, e que até hoje tivemos o costume de sofrer demais
com tais mudanças.
630. Convicção é a crença de estar, em algum ponto do
conhecimento, de posse da verdade absoluta. Esta crença
pressupõe, então, que existam verdades absolutas; e, igualmente,
que tenham sido achados os métodos perfeitos para alcançá-las;
por fim, que todo aquele que tem convicções se utilize desses
métodos perfeitos. Todas as três asserções demonstram de
imediato que o homem das convicções não é o do pensamento
científico; ele se encontra na idade da inocência teórica e é uma
criança, por mais adulto que seja em outros aspectos. Milênios
inteiros, no entanto, viveram com essas pressuposições pueris, e
delas brotaram as mais poderosas fontes de energia da humanidade.
Os homens inumeráveis que se sacrificaram por suas convicções
acreditavam fazê-lo pela verdade absoluta. Nisso estavam todos
errados: provavelmente nenhum homem se sacrificou jamais pela
verdade; ao menos a expressão dogmática de sua crença terá sido
não científica ou semicientífica. Mas realmente queriam ter razão,
porque achavam que deviam ter razão. Permitir que lhes fosse
arrancada a sua crença talvez significasse pôr em dúvida a sua
própria beatitude eterna. Num assunto de tal extrema importância, a
"vontade" era perceptivelmente a instigadora do intelecto.166 A
pressuposição de todo crente de qualquer tendência era não poder
ser refutado; se os contra-argumentos se mostrassem muito fortes,
sempre lhe restava ainda a possibilidade de difamar a razão e até
mesmo levantar o credo quia absurdum est [creio porque é
absurdo] como bandeira do extremado fanatismo. Não foi o
conflito de opiniões que tornou a história tão violenta, mas o
conflito da fé nas opiniões, ou seja, das convicções. Se todos
aqueles que tiveram em tão alta conta a sua convicção, que lhe
fizeram sacrifícios de toda espécie e não pouparam honra, corpo e
vida para servi-la, tivessem dedicado apenas metade de sua energia