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Humano-Demasiado-Humano

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inusitada: para que melodia, afinal? Por que não nos basta que a

vida se espelhe quietamente num lago profundo? — A Idade Média

era mais rica em tais naturezas do que o nosso tempo. Como é raro

ainda encontrarmos alguém capaz de seguir vivendo de maneira

pacífica e alegre consigo também no torvelinho, dizendo a si

mesmo as palavras de Goethe: "O melhor é a calma profunda em

que diante do mundo eu vivo e cresço, e adquiro o que não me

podem tirar com o fogo e com a espada".163

627. Vida e vivência. — Se observamos como alguns

indivíduos sabem lidar com suas vivências — suas insignificantes

vivências diárias —, de modo a elas se tornarem uma terra arável

que produz três vezes por ano; enquanto outros — muitos outros!

— são impelidos através das ondas dos destinos mais agitados, das

multifárias correntes de tempos e povos, e no entanto continuam

leves, sempre em cima, como cortiça: então ficamos tentados a

dividir a humanidade numa minoria ("minimaria")164 que sabe

transformar o pouco em muito e numa maioria que sabe

transformar muito em pouco; sim, deparamos com esses bruxos ao

avesso, que, em vez de criar o mundo a partir do nada, criam o

nada a partir do mundo.

628. A seriedade no jogo. — Em Gênova, à hora do

crepúsculo, ouvi o prolongado repicar dos sinos de uma torre: algo

que não queria parar e, como que insaciável de si mesmo, ressoava

por sobre o ruído das ruas, pelo céu vespertino e o ar marinho, tão

sinistro e ao mesmo tempo tão pueril, tão melancólico. Então me

recordei das palavras de Platão, e de imediato as senti no coração:

Nada humano é digno de grande seriedade; no entanto...165

629. Da convicção e da justiça. — Aquilo que um homem diz,

promete e decide na paixão deve depois sustentar na frieza e na

sobriedade — tal exigência é um dos fardos que mais pesam sobre

a humanidade. Ter de reconhecer, por todo o tempo futuro, as

conseqüências da ira, da vingança inflamada, da devoção

entusiasmada — isto pode suscitar, contra esses sentimentos, uma

irritação tanto maior por eles serem objeto de idolatria, em toda

parte e sobretudo pelos artistas. Estes cultivam largamente a estima

das paixões, e sempre o fizeram; é certo que também exaltam as

terríveis reparações pela paixão que o indivíduo obtém de si

mesmo, as erupções de vingança acompanhadas de morte,

mutilação, exílio voluntário, e a resignação do coração partido. Em

todo caso, mantêm desperta a curiosidade pelas paixões; é como se

quisessem dizer: "Sem paixões, vocês nada viveram". — Por

termos jurado fidelidade, talvez até a um ser apenas fictício como

um deus, por termos entregado o coração a um príncipe, a um

partido, a uma mulher, a uma ordem sacerdotal, a um artista, a um

pensador, num estado de cega ilusão que nos pôs encantados e os

fez parecerem dignos de toda veneração, todo sacrifício —

estamos agora inescapavelmente comprometidos? Não teríamos

enganado a nós mesmos naquela época? Não teria sido uma

promessa hipotética, feita sob o pressuposto (tácito, sem dúvida)

de que os seres aos quais nos consagramos eram realmente os

mesmos que apareciam em nossa imaginação? Estamos obrigados a

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