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609. Idade e verdade. — Os jovens amam o que é interessante
e peculiar, não importa até onde seja verdadeiro ou falso. Espíritos
mais maduros amam na verdade aquilo que nela é interessante e
peculiar. Por fim, cabeças totalmente amadurecidas amam a
verdade também onde ela parece ingênua e simples e é enfadonha
para o homem comum, porque notaram que a verdade costuma
dizer com ar de simplicidade o que tem de mais alto em espírito.
610. Os seres humanos como maus poetas. — Assim como, na
segunda metade do verso, os maus poetas buscam o pensamento
que se ajuste à rima, na segunda metade da vida, tendo se tornado
mais receosas, as pessoas buscam as ações, atitudes e situações
que combinem com as de sua vida anterior, de modo que
exteriormente tudo seja harmonioso: mas sua vida já não é
dominada e repetidamente orientada por um pensamento forte; no
lugar deste surge a intenção de encontrar uma rima.
611. O tédio e o jogo. — A necessidade nos obriga ao trabalho,
e com o produto deste a necessidade é satisfeita; o contínuo
redespertar das necessidades nos acostuma ao trabalho. Mas nos
intervalos em que as necessidades estão satisfeitas e dormem, por
assim dizer, somos assaltados pelo tédio. O que é o tédio? É o
hábito do trabalho mesmo, que se faz valer como uma necessidade
nova e adicional; será tanto mais forte quanto mais estivermos
habituados a trabalhar, e talvez quanto mais tivermos sofrido
necessidades. Para escapar ao tédio, ou o homem trabalha além da
medida de suas necessidades normais ou inventa o jogo, isto é, o
trabalho que não deve satisfazer nenhuma outra necessidade a não
ser a de trabalho. Quem se fartou do jogo, e não tem novas
necessidades que lhe dêem motivo para trabalhar, é às vezes
tomado pelo desejo de uma terceira condição, que está para o jogo
assim como o pairar para o dançar, e o dançar para o caminhar,
uma movimentação jubilosa e serena: é a visão da felicidade que
têm os artistas e filósofos.
612. A lição dos retratos. — Observando uma série de retratos
de nós mesmos, do final da infância à idade adulta, somos
agradavelmente surpreendidos pela descoberta de que o homem se
parece mais com a criança do que com o jovem: e que,
provavelmente em consonância com esse fato, sobreveio nesse
ínterim uma temporária alienação do caráter básico, à qual
novamente se impôs a força acumulada e concentrada do homem
adulto. A esta percepção corresponde outra, a de que todas as
fortes influências das paixões, dos mestres, dos acontecimentos
políticos, que nos arrastam na juventude, aparecem depois
novamente reduzidas a uma medida fixa: sem dúvida, continuam a
viver e a atuar em nós, mas a sensibilidade e as opiniões básicas
predominam e as usam como fontes de energia, não mais como
reguladores, porém, como ocorre aos vinte anos. De modo que
também o pensar e sentir do homem adulto parece novamente mais
conforme ao de sua infância — e esse fato interior se expressa
naquele exterior, mencionado acima.