Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Pode-se imaginar uma divertida conversa entre dois espertalhões
que querem dispor favoravelmente um ao outro, e por isso lançam
as melhores oportunidades para lá e para cá, sem que nenhum deles
as aproveite: de modo que a conversa transcorre geralmente sem
espírito e sem amabilidade, pois cada um deixou para o outro a
oportunidade de ser espirituoso e amável.
370. Descarga do mau humor. — O homem que não consegue
algo prefere atribuir este insucesso à má vontade de outro homem,
em vez de ao acaso. Sua irritação é aliviada se ele pensa numa
pessoa, e não numa coisa, como razão para o seu insucesso; pois
de uma pessoa podemos nos vingar, mas as intempéries do acaso
têm de ser engolidas. Quando um príncipe fracassa em algo, os que
o rodeiam costumam indicar-lhe um homem como suposta causa
daquilo, sacrificando-o no interesse de todos os cortesãos; pois do
contrário o mau humor do príncipe se descarregaria sobre todos
eles, não podendo ele vingar-se contra a deusa da Fortuna.
371. Assumindo a cor do ambiente. — Por que são tão
contagiosas a simpatia e a aversão, de maneira que não podemos
viver próximos a alguém de sentimentos fortes sem sermos
preenchidos, como um receptáculo, por seus prós e seus contras?
Em primeiro lugar, a total abstenção do julgamento é muito difícil,
às vezes francamente intolerável para a nossa vaidade; ela possui as
mesmas cores da pobreza de idéias e de sentimentos, ou do receio
e da pouca virilidade: e assim somos levados a pelo menos tomar
partido, talvez em oposição aos que nos rodeiam, se essa postura
dá mais prazer ao nosso orgulho. Mas em geral — este é o segundo
ponto — não nos tornamos de fato conscientes da passagem da
indiferença à simpatia ou aversão, e sim nos habituamos pouco a
pouco à maneira de sentir de nosso ambiente; e, sendo a
concordância simpática e o entendimento recíproco tão agradáveis,
logo adotamos os seus signos e cores partidárias.
372. Ironia. — A ironia só é adequada como instrumento
pedagógico, usada por um mestre na relação com alunos de
qualquer espécie: seu objetivo é a humilhação, a vergonha, mas do
tipo saudável que faz despertar bons propósitos, e que inspira
respeito e gratidão a quem assim nos tratou, como a um médico. O
irônico se faz de ignorante, e tão bem que os discípulos que com
ele dialogam são enganados e ficam arrojados ao crer que têm um
conhecimento melhor, expondo-se de todas as maneiras; eles
perdem o cuidado e se mostram como são, — até que, num dado
momento, a luz que sustentavam ante o rosto do mestre manda de
volta os raios sobre eles, de modo bem humilhante. — Quando não
há uma relação como essa entre o mestre e os discípulos, a ironia é
um mau comportamento, um afeto vulgar. Todos os escritores
irônicos contam com a espécie tola de homens que gostam de se
sentir superiores a todos os demais, ao lado do autor, que
consideram o porta-voz de sua presunção. — O hábito da ironia,
assim como o do sarcasmo, corrompe também o caráter; confere
aos poucos a característica de uma superioridade alegremente
maldosa: por fim nos tornamos iguais a um cão mordaz que
aprendeu a rir, além de morder.