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Humano-Demasiado-Humano

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dores mais numerosas e mais fortes do homem superiormente

cultivado e a profusão de suas necessidades; ele compreende,

portanto, que a pletora de opiniões sobre o belo, o conveniente,

decoroso, prazeroso, deveria fazer brotarem ricas fontes de gozo,

mas também de desprazer. Em conformidade com tal percepção ele

regride no desenvolvimento, ao renunciar a muitas dessas opiniões

e furtar-se a determinadas exigências da cultura; com isso ganha

um sentimento de liberdade e de fortalecimento; e aos poucos,

quando o hábito lhe torna suportável o modo de vida, passa

realmente a ter sensações de desprazer mais raras e mais fracas que

os homens cultivados, e se aproxima da condição do animal

doméstico; além do mais, sente tudo com o fascínio do contraste

— e pode igualmente xingar a seu bel-prazer: de modo a novamente

se erguer muito acima do mundo de sensações do animal. — O

epicúrio tem o mesmo ponto de vista do cínico; entre os dois

existe, em geral, apenas uma diferença de temperamento. O

epicúrio utiliza sua cultura superior para se tornar independente das

opiniões dominantes; eleva-se acima destas, enquanto o cínico fica

apenas na negação. Aquele anda, digamos assim, por caminhos sem

vento, bem protegidos, penumbrosos, enquanto acima dele as

copas das árvores bramem ao vento, denunciando-lhe a veemência

com que o mundo lá fora se move. O cínico, por outro lado,

vagueia nu na ventania, por assim dizer, e se endurece até perder a

sensibilidade.

276. Microcosmo e macrocosmo da cultura . — As melhores

descobertas acerca da cultura o homem faz em si mesmo, ao

encontrar em si dois poderes heterogêneos que governam. Supondo

que alguém viva no amor das artes plásticas ou da música e

também seja tomado pelo espírito da ciência, e que considere

impossível eliminar essa contradição pela destruição de um e a total

liberação do outro poder: então só lhe resta fazer de si mesmo um

edifício da cultura tão grande que esses dois poderes, ainda que em

extremos opostos, possam nele habitar, enquanto entre eles se

abrigam poderes intermediários conciliadores com força bastante

para, se necessário, aplainar um conflito que surja. Mas esse

edifício da cultura num indivíduo terá enorme semelhança com a

construção da cultura em épocas inteiras e, por analogia, instruirá

continuamente a respeito dela. Pois em toda parte onde se

desenvolveu a arquitetura da cultura, foi sua tarefa obrigar à

harmonia os poderes conflitantes, através da possante união dos

outros poderes menos incompatíveis, sem no entanto oprimi-los ou

acorrentá-los.

277. Felicidade e cultura. — A visão do ambiente de nossa

infância nos comove: a casa com jardim, a igreja com túmulos, o

lago e o bosque — essas coisas sempre revemos como sofredores.

A compaixão para conosco nos assalta, pois o quanto sofremos

desde então! E ali tudo permanece tão sereno, tão eterno: apenas

nós somos tão diferentes, tão agitados; e reencontramos algumas

pessoas em que o tempo não cravou seus dentes mais do que num

carvalho: camponeses, pescadores, moradores da floresta — são

os mesmos. — Comoção, autocompaixão face à cultura inferior é a

marca da cultura superior; o que mostra que a felicidade, em todo o

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