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pouca satisfação desaparece: assim como há tempos deixamos de
nos divertir ao aprender a formidável tabuada. Ora, se a ciência
proporciona cada vez menos alegria e, lançando suspeita sobre a
metafísica, a religião e a arte consoladoras, subtrai cada vez mais
alegria, então se empobrece a maior fonte de prazer, a que o
homem deve quase toda a sua humanidade. Por isso uma cultura
superior deve dar ao homem um cérebro duplo, como que duas
câmaras cerebrais, uma para perceber a ciência, outra para o que
não é ciência; uma ao lado da outra, sem se confundirem,
separáveis, estanques; isto é uma exigência da saúde. Num domínio
a fonte de energia, no outro o regulador: as ilusões, parcialidades,
paixões devem ser usadas para aquecer, e mediante o
conhecimento científico deve-se evitar as conseqüências malignas e
perigosas de um superaquecimento. — Se esta exigência de uma
cultura superior não for atendida, o curso posterior do
desenvolvimento humano pode ser previsto quase com certeza: o
interesse pela verdade vai acabar, à medida que garanta menos
prazer; a ilusão, o erro, a fantasia conquistarão passo a passo,
estando associados ao prazer, o território que antes ocupavam: a
ruína das ciências, a recaída na barbárie, é a conseqüência
seguinte; novamente a humanidade voltará a tecer sua tela, após
havê-la desfeito durante a noite, como Penélope. Mas quem garante
que ela sempre terá forças para isso?
252. Prazer no conhecimento. — Por que o conhecimento, o
elemento do pesquisador e do filósofo, está associado ao prazer?
Primeiro, e sobretudo, porque com ele nos tornamos conscientes
da nossa força, isto é, pela mesma razão por que os exercícios de
ginástica são prazerosos mesmo sem espectadores. Em segundo
lugar, porque adquirindo conhecimento ultrapassamos antigas
concepções e seus representantes, tornamo-nos vitoriosos, ou pelo
menos acreditamos sê-lo. Em terceiro lugar, porque um novo
conhecimento, por menor que seja, faz com que nos sintamos
acima de todos e os únicos a saber corretamente a questão. Esses
três motivos para o prazer são os mais importantes; mas existem
muitas razões secundárias, conforme a natureza da pessoa
cognoscente. — Um catálogo não desprezível dessas razões se
acha num lugar onde não seria procurado, no meu escrito
parenético sobre Schopenhauer:109 aquela enumeração pode
contentar todo experiente servidor do conhecimento, ainda que
desejasse expungir o laivo de ironia que parece haver naquelas
páginas. Pois se é verdade que, para que surja o erudito, "deve ser
reunida uma porção de instintos e instintozinhos muito humanos",
que ele é um metal muito nobre, mas pouco puro, que "consiste
num complexo emaranhado de impulsos e estímulos bem diversos",
o mesmo vale para a gênese e a natureza do artista, do filósofo, do
gênio moral — ou qualquer dos grandes nomes glorificados naquele
texto. Tudo o que é humano merece, no que toca à sua gênese, ser
considerado ironicamente: por isso há tal excesso de ironia no
mundo.
253. Fidelidade como prova de solidez. — Um perfeito sinal da
boa qualidade de uma teoria é o seu autor não abrigar, durante
quarenta anos, desconfiança alguma em relação a ela; mas eu