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Humano-Demasiado-Humano

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semelhante ao de quem herdou uma riqueza adquirida ilegalmente,

ou ao do príncipe que governa graças às violências de seus

antepassados. Pensa com tristeza em sua origem, e com freqüência

tem vergonha e fica irritado. Todo o montante de energia, vontade

de viver e alegria que dedica ao que possui é muitas vezes

contrabalançado por uma enorme fadiga: ele não consegue esquecer

sua origem. Olha o futuro com melancolia; os seus descendentes,

ele já sabe, sofrerão do passado assim como ele.

250. Maneiras. — As boas maneiras desaparecem à medida

que se reduz a influência da corte e de uma aristocracia fechada;

pode-se observar nitidamente essa diminuição a cada década, desde

que se tenha olhos para os atos públicos: eles se tornam cada vez

mais plebeus. Já não se sabe homenagear ou lisonjear com espírito;

disso resulta o fato ridículo de que, nos casos em que se tem de

render homenagem (a um grande estadista ou artista, por exemplo),

toma-se emprestada a linguagem do profundo sentimento, da

sincera e digna decência — por embaraço e falta de espírito e

graça. De modo que os encontros públicos e solenes parecem cada

vez mais desajeitados, porém mais sensíveis e corretos, sem sê-lo,

afinal. — Mas as maneiras decairão sempre? Parece-me, na

realidade, que elas fazem uma profunda curva e que nos

aproximamos de seu nadir. Quando a sociedade se tornar mais

segura de seus propósitos e princípios, de modo que eles tenham

uma ação formadora (enquanto hoje as maneiras adquiridas de

condições formadoras do passado são cada vez mais debilmente

transmitidas e adquiridas), haverá maneiras nas relações, gestos e

expressões no convívio, que parecerão tão necessárias, simples e

naturais como esses propósitos e princípios. Melhor divisão de

tempo e trabalho, os exercícios de ginástica transformados em

acompanhamento de todo agradável ócio, a reflexão incrementada e

tornada mais rigorosa, dando inteligência e elasticidade também ao

corpo, acarretarão tudo isso. — Aqui certamente podemos, não

sem alguma zombaria, lembrar de nossos eruditos, perguntando se

eles, que se querem precursores dessa nova cultura, realmente se

distinguem por melhores maneiras. Não parece ser o caso, embora

seu espírito esteja bastante disposto a isso: mas sua carne é

fraca.108 O passado é ainda muito poderoso em seus músculos:

eles se encontram ainda em situação cativa, são em parte religiosos

seculares e em parte educadores dependentes das pessoas e classes

nobres, e além do mais o pedantismo da ciência, métodos

envelhecidos e insípidos os atrofiaram e desvitalizaram. De maneira

que ainda são, certamente no corpo, e muitas vezes em três quartos

do espírito, cortesãos de uma velha, senil cultura, e como tais

também senis; o novo espírito que ocasionalmente se agita nesses

velhos invólucros pode servir apenas, por ora, para torná-los mais

inseguros e medrosos. Neles circulam tanto os fantasmas do

passado como os do futuro: como admirar se não fazem uma cara

melhor, se não têm atitude mais amável?

251. O futuro da ciência. — A ciência dá muita satisfação a

quem nela trabalha e pesquisa, e muito pouca a quem aprende seus

resultados. Mas, como aos poucos todas as verdades importantes

da ciência têm de se tornar cotidianas e comuns, mesmo essa

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