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indivíduo ao contraponto de cultura privada e pública, como pode
ele ser simultaneamente a melodia e seu acompanhamento?
243. O futuro do médico. — Não há, hoje, profissão que
admita um tal avanço como a do médico; sobretudo depois que os
médicos do espírito, os chamados "pastores de alma",105 não
podem mais exercer com aprovação pública suas artes de
conjuração, e que são evitados pelos homens cultos. Um médico
não alcançou ainda a alta formação intelectual, quando conhece e
pratica os melhores métodos atuais e sabe fazer essas rápidas
deduções das causas pelos efeitos, que tornam famosos os
diagnosticadores: ele deve, além disso, ter uma eloqüência que se
adapte a cada indivíduo e que lhe atinja o coração; uma virilidade
cuja simples visão afugente a pusilanimidade (a carcoma de todos
os doentes); uma flexibilidade diplomática ao mediar entre os que
necessitam de alegria para a cura e os que, por razões de saúde,
devem (e podem) dar alegria; a sutileza de um agente policial ou
advogado, que entende os segredos de uma alma sem delatá-los —
em suma, um bom médico requer atualmente os artifícios e
privilégios de todas as outras classes profissionais: assim
aparelhado, estará em condição de tornar-se um benfeitor de toda a
sociedade, fomentando as boas obras, a alegria e fecundidade do
espírito, desestimulando maus pensamentos, más intenções e
velhacarias (cuja fonte asquerosa é com freqüência o baixo-ventre),
instaurando uma aristocracia de corpo e de espírito (ao promover
ou impedir matrimônios), eliminando com benevolência todos os
tormentos espirituais e remorsos de consciência: apenas assim o
"curandeiro" se transforma em salvador, sem precisar fazer
milagres nem se deixar crucificar.
244. Na vizinhança da loucura. — A soma dos sentimentos,
conhecimentos, experiências, ou seja, todo o fardo da cultura,
tornou-se tão grande que há o perigo geral de uma superexcitação
das forças nervosas e intelectuais; as classes cultas dos países
europeus estão mesmo cabalmente neuróticas, e em quase todas as
suas grandes famílias há alguém próximo da loucura. Sem dúvida,
há muitos meios de encontrar a saúde atualmente; mas é
necessário, antes de tudo, reduzir essa tensão do sentir, esse fardo
opressor da cultura, algo que, mesmo sendo obtido com grandes
perdas, nos permitirá ter a grande esperança de um novo
Renascimento. Ao cristianismo, aos filósofos, escritores e músicos
devemos uma abundância de sentimentos profundamente excitados:
para que eles não nos sufoquem devemos invocar o espírito da
ciência, que em geral nos faz um tanto mais frios e céticos, e
arrefece a torrente inflamada da fé em verdades finais e definitivas;
ela se tornou tão impetuosa graças ao cristianismo, sobretudo.
245. Fundição da cultura. — A cultura se originou como um
sino, no interior de uma camisa de material grosseiro e vulgar:
falsidade, violência, expansão ilimitada de todos os Eus singulares,
de todos os diferentes povos, formavam essa camisa. Será o
momento de retirá-la? Solidificou-se o que era líquido, os impulsos
bons e úteis, os hábitos do coração nobre tornaram-se tão seguros
e universais que já não é preciso apoiar-se na metafísica e nos erros