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Publicação Mensal<br />
Vol. XXIII - Nº <strong>272</strong> Novembro de 2020<br />
Reino de Cristo nas almas<br />
conformes ao Imaculado<br />
Coração de Maria
Minúcia didática<br />
Tiago Pereira Farias (CC3.0)<br />
da Providência<br />
O<br />
tucano, de si, é um pássaro completa-<br />
mente ridículo. Dir-se-ia que ele teve<br />
uma doença no bico, o qual, por isso,<br />
adquiriu aquele tamanho. Ora, impressio-<br />
nei-me quando me contaram que, reluzindo<br />
ao Sol, o bico do tucano fica lindíssimo. Ade-<br />
mais, sabe-se que certas penas dessa ave são<br />
muito bonitas.<br />
Por que Deus coloca um aspecto sublime nu-<br />
ma coisa tão grotesca como é o bico do tucano?<br />
Trata-se da enternecedora minúcia didática<br />
da Providência. Não se alcança o alcandorado<br />
nesta Terra apenas imaginando, mas tam-<br />
bém observando. Porém, como esta é um lugar<br />
de exílio, o que há de alcândor vem fugidio e<br />
exigindo de nossa atenção um grande esforço,<br />
uma enorme capacidade de distinguir, e pode,<br />
portanto, reluzir até em algo ridículo. Assim se<br />
exercita o nosso seletivo e nos lembramos de que<br />
estamos numa terra de exílio.<br />
(Extraído de conferência de 4/5/1978)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXIII - Nº <strong>272</strong> Novembro de 2020<br />
Vol. XXIII - Nº <strong>272</strong> Novembro de 2020<br />
Reino de Cristo nas almas<br />
conformes ao Imaculado<br />
Coração de Maria<br />
Na capa, Cristo Rei<br />
Igreja da Santíssima<br />
Trindade, Cracóvia,<br />
Polônia.<br />
Foto: Gabriel K.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Impressão e acabamento:<br />
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Tel: (11) 3932-1955<br />
Editorial<br />
4 Céu maravilhoso cujo Astro central<br />
é o Imaculado Coração de Maria<br />
Piedade pliniana<br />
5 “Cheguei, afinal,<br />
à minha Pátria!”<br />
Dona Lucilia<br />
6 Consonâncias profundas<br />
em torno de um unum<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
10 Imperatriz muito querida<br />
pelo povo brasileiro<br />
Reflexões teológicas<br />
15 Maravilhas da corte celeste<br />
Denúncia profética<br />
20 Não tratemos os lobos<br />
como ovelhas perdidas<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Novembro<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum............... R$ 200,00<br />
Colaborador........... R$ 300,00<br />
Propulsor.............. R$ 500,00<br />
Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />
Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Hagiografia<br />
26 Cantou com Nossa<br />
Senhora e os Anjos<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
30 Contrários harmônicos na<br />
arquitetura oriental<br />
Última página<br />
36 Oceano de graças<br />
3
Editorial<br />
Céu maravilhoso cujo Astro central<br />
é o Imaculado Coração de Maria<br />
Arespeito da Festa de Cristo Rei é preciso considerar que esse Reinado se baseia em três títulos,<br />
cada qual marcando essa realeza com uma qualidade especial. Primeiramente, Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo é Rei por ser Deus; em segundo lugar, encarnou-Se e, como Homem-Deus, é o<br />
Chefe natural de toda a humanidade; por fim, porque é o nosso Redentor que morrendo na Cruz conquistou<br />
para nós a salvação eterna, o que Lhe confere sobre nós um direito pleno, tornando-O, em verdade,<br />
o nosso Rei.<br />
Entretanto, o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo se estabelece sobre pessoas e não territórios. É<br />
um reino de almas onde cada família, nação, Ordem religiosa constitui como que uma província. Na<br />
harmonia de todos esses grupos humanos e famílias de alma, como também dos indivíduos, encontramos<br />
a realidade e a beleza do Reinado de Cristo.<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, como Rei, defende cada alma contra o ataque do adversário com um<br />
amor, um conhecimento do valor daquela alma e do que ela significa para a unidade do seu Reino muito<br />
maiores do que o Rei da França, por exemplo, defenderia a Auvergne, a Lorena ou a Alsácia.<br />
Trata-se de um valor de caráter moral e espiritual, e isso nos leva a considerar que cada vez que Cristo<br />
Rei perde ou vê diminuído o exercício efetivo de sua realeza sobre uma alma, tem uma tristeza parecida<br />
com a do rei que perde uma de suas províncias e, junto com ela, toda uma ordem de beleza ideal.<br />
Mas também, cada vez que uma alma retorna a Ele, é uma volta com todas as alegrias dessa restituição.<br />
Essas alegrias e tristezas repercutiram n’Ele em sua vida terrena e devem ser objeto de nossa consideração<br />
na Festa de Cristo Rei, pondo-nos a seguinte questão: O Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
está se realizando em nós como deseja o Divino Redentor?<br />
Por mais desfigurada e conspurcada que se encontre, em nossos dias, a Santa Igreja Católica é um<br />
jardim onde continuamente desabrocham flores para Nosso Senhor. Quiçá só no dia do Juízo Final poderemos<br />
saber quantos santos florescem isolados e odiados, aqui, lá e acolá, na ignorância e no abandono,<br />
dando a Deus uma glória completa e magnífica.<br />
Tudo isso, em seu conjunto, constitui o Reinado de Nosso Senhor sobre os homens; realeza todavia<br />
incompleta, mas marchando para ser completa e, por isso mesmo, uma razão contínua de alegria para<br />
Ele.<br />
Peçamos, pois, a Cristo Rei, por meio de sua Mãe Santíssima, que nos dê a compreensão de todos<br />
os esplendores da Igreja Católica e do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre essas almas que<br />
Lhe são fiéis, as quais, à maneira de um céu maravilhoso, têm como Astro central o Imaculado Coração<br />
de Maria. Estrela mais preciosa não poderia haver. Então, compreenderemos tantas graças recebidas<br />
e quantos motivos temos para esperar o perdão e a misericórdia, e para pedirmos muitos favores<br />
com plena confiança. *<br />
* Cf. Conferências de 21/10/1964 e 29/10/1966.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Imaculado Coração de<br />
Maria - Igreja de São<br />
Francisco, Porto de<br />
Santa Maria, Espanha<br />
Flávio Lourenço<br />
“Cheguei, afinal, à<br />
minha Pátria!”<br />
Considerando meu feitio de alma, eu poderia imaginar como seria o Céu para mim, se<br />
até lá me conduzir a misericórdia de Nossa Senhora.<br />
Veria a Santíssima Trindade, Nosso Senhor Jesus Cristo – Segunda Pessoa humanada<br />
– e depois Nossa Senhora numa altura prodigiosa, de tal maneira superiores a mim que<br />
me sentisse um grão de poeira em comparação com Eles, mas encantado por me sentir assim.<br />
Entretanto, por uma perfeição que não seria uma contradição, estando tão perto d’Eles<br />
que considerasse e amasse tudo exatamente como Eles.<br />
Entre Deus, Maria Santíssima e mim haveria uma hierarquia esplendorosa e harmônica<br />
de pessoas sucessivamente superiores, formando uma verdadeira corte com a participação<br />
de perfeições harmônicas que iriam aumentando e através das quais eu conheceria melhor a<br />
Deus, pela disposição gradativa e ordenada de todas as criaturas.<br />
Eu estaria encantado e me sentindo pequeno dentro dessa hierarquia, mas enlevadíssimo,<br />
tendo a impressão de que tudo isso se refletiria em mim.<br />
Uma atmosfera gravíssima, seríssima, majestosíssima e, ao mesmo tempo – sem nenhum<br />
paradoxo –, afabilíssima, cheia de sorriso e de condescendência para comigo. De maneira<br />
que eu pudesse exclamar: “Cheguei, afinal, à minha Pátria!”<br />
Essa ideia não estaria completa sem a noção de uma relação especial com Nossa Senhora<br />
pela qual, mesmo sendo um grão de poeira, eu me encontrasse tão junto a Ela que, se não<br />
fosse demasiada audácia de minha parte, desejaria estar em seu Imaculado Coração. Esse<br />
seria o Céu para mim.<br />
(Extraído de conferência de 11/5/1974)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Consonâncias<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
profundas<br />
em torno de<br />
um unum<br />
A ideia de qual é o ponto de equilíbrio da mente<br />
humana a partir do qual todos os movimentos são<br />
equilibrados, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> adquiriu ao analisar a alma<br />
de Dona Lucilia, que era eminentemente estável,<br />
tranquila, serena, compreensiva, carregada de bênçãos,<br />
mas ao mesmo tempo firme, disposta à luta.<br />
Ofilho abre os olhos para a vida<br />
no regaço materno e por<br />
isso o papel da mãe é aquele<br />
que a maior das universidades não<br />
tem: a de acondicionar dentro da<br />
perspectiva dela uma porção de noções<br />
gerais – com conteúdo metafísico<br />
e religioso, se bem que ela mesma<br />
não saiba isso senão vaga ou difusamente<br />
– que se projetará depois sobre<br />
toda a vida do filho.<br />
Circuito perfeito<br />
Depois que o filho recebeu da<br />
mãe as influências – que são naturalmente<br />
as que o preparam com avidez<br />
para acolher a Igreja Católica<br />
–, quando ele chega ao fim da vida,<br />
percebe conferir com o que ele recebera<br />
no começo.<br />
Por isso São Tomás de Aquino diz<br />
que o movimento perfeito é o círculo.<br />
A volta ao ponto de partida é<br />
a perfeição e a excelência do movimento,<br />
e nessa relação entre mãe e<br />
filho se verifica também isso.<br />
Posto o assunto como deve ser,<br />
em tese, entre filho e mãe, posso<br />
aplicar no que dizia respeito de mamãe<br />
comigo.<br />
Se é verdade que em parte era por<br />
movimento da graça em minha alma<br />
de batizado que eu tendia para<br />
6
uma porção de coisas na ordem da<br />
inocência, no relacionamento entre<br />
mãe e filho estaria longe de ser verdade<br />
dizer que o único batizado era<br />
eu. Batizada era ela também e me<br />
transmitia o que havia na sua alma<br />
de mãe católica, receptiva ela mesma<br />
a essas coisas orientadas à inocência<br />
ao longo da vida, e vendo isso<br />
nas gerações que a antecederam.<br />
Assim, eu encontrava consonâncias<br />
tão profundas entre aquilo que<br />
hoje percebo ser a graça que não vinha<br />
de mamãe e aquela que eu recebia<br />
por meio dela, que diríamos tratarem-se<br />
de dois instrumentos tocando<br />
a mesma música, encontrando-se<br />
perfeita e inteiramente.<br />
Pode-se dizer que ora a graça produzia<br />
em mim apetência por coisas<br />
que minha mãe me daria, ora mamãe<br />
– ou seja, a graça por meio dela<br />
– fazia-me desejar aquilo que a própria<br />
graça me concederia. Isso formava<br />
um círculo, um circuito só.<br />
mais ou menos como pegar um lindo<br />
copo de cristal, deixar bater nele<br />
uma luz intensa de um dia claro.<br />
Vejo aquilo como um unum, é uma<br />
luz de cristal, branca. Sei que ali estão<br />
todas as cores do arco-íris, mas<br />
não vou estar esgravatando aquela<br />
cor para procurar vislumbres das tonalidades<br />
do arco-íris. Nem seria capaz<br />
de fazer isso a olho nu; exigiria<br />
um prisma, uma adaptação. Eu olho,<br />
é luz de cristal.<br />
Assim também uma alma equilibrada<br />
dotada de muitas virtudes que<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
O unum do qual partem<br />
todas as virtudes<br />
Por exemplo, a ideia de que o<br />
ponto de equilíbrio da mente humana<br />
a partir do qual todos os movimentos<br />
são equilibrados e fora<br />
do qual tudo é desequilíbrio, onde<br />
impera uma gravidade séria, voltada<br />
para o eterno e para o combativo,<br />
mas também para o afável e o<br />
ameno, veio-me muito de conhecer<br />
o ponto de partida da alma de Dona<br />
Lucilia, que era eminentemente assim:<br />
estável, tranquila, serena, compreensiva,<br />
carregada de bênçãos,<br />
mas ao mesmo tempo firme como<br />
tudo, disposta à luta; a tal ponto<br />
que ninguém, ao longo de noventa<br />
e dois anos de existência, a fez sair<br />
do caminho que tinha traçado para<br />
si mesma.<br />
Isto tudo forma um unum que teoricamente<br />
se pode decompor em<br />
várias luzes, em vários coloridos,<br />
conceitos ou virtudes distintas. Seria<br />
7
Dona Lucilia<br />
se completam, nós não ficamos esquadrinhando<br />
para distinguir esta<br />
daquela, nem sequer pensamos tanto<br />
em virtudes, mas no todo chamado<br />
virtude. Isso era eminentemente<br />
o que eu notava em mamãe.<br />
A síntese e o equilíbrio<br />
das virtudes<br />
O homem está equilibrado quando,<br />
por exemplo, consegue se manter<br />
em pé. Todo movimento que ele<br />
faça pode agravar o desequilíbrio.<br />
Aqueles movimentos<br />
que seriam normais num homem<br />
equilibrado, num homem<br />
torto são desequilibrados<br />
porque o ponto de partida<br />
é errado; então ele cai no<br />
chão.<br />
Da mesma forma, há na vida<br />
várias atitudes que, se examinamos<br />
separadamente, consideramos<br />
equilibradas, mas<br />
quando vamos ver, o sujeito<br />
caiu no chão. Por quê? Porque<br />
o ponto de partida foi desequilibrado.<br />
Faltou aquela síntese<br />
estável e central da virtude a<br />
partir da qual se movem as virtudes.<br />
Eu aprendi a amar esse<br />
ponto estável eminentemente<br />
em mamãe, tomando desde<br />
logo o gosto disso e o mau<br />
sabor do oposto. Aliás, essa<br />
postura me defendeu de<br />
achar monótono o equilíbrio.<br />
Há muita gente, hoje em dia,<br />
que considera essa posição<br />
monótona; praticamente todo<br />
o mundo. Entretanto, eu<br />
não considero assim; pelo<br />
contrário, é a delícia de minha<br />
vida. É a posição de equilíbrio<br />
a partir da qual mover-<br />
-se e, mais ainda, lutar, sobretudo<br />
a serviço de Nossa<br />
Senhora, é um gáudio. Mas<br />
é a partir de um ponto central<br />
que não muda nunca. Es-<br />
J.P.Ramos<br />
da divisa com Minas Gerais, chamada<br />
Prata. Nós íamos muito a Águas<br />
da Prata porque essas águas eram<br />
apropriadas para pessoas que sofriam<br />
do fígado e faziam bem a ela.<br />
Certa vez tive uma doencinha<br />
qualquer de criança, estando com<br />
ela em Águas da Prata. Segundo<br />
os critérios médicos daquele tempo,<br />
qualquer sintoma que se sentia,<br />
a primeira providência era horizontalizar<br />
o doente. Portanto, com vivo<br />
desagrado da criança, a prescrição<br />
era ir para a cama. E nesse<br />
ponto minha mãe era intransigente:<br />
“O Doutor mandou,<br />
cama!”<br />
Entretanto – e nisso estava<br />
Dona Lucilia inteira –, ela me<br />
mandava deitar, mas depois<br />
ia fazer-me companhia. Então<br />
sentava-se aos pés da cama<br />
ou punha uma cadeira ao<br />
lado e começava a ler a Bécassine,<br />
por exemplo. Eu entendia<br />
francês, portanto, ela<br />
não traduzia para mim, mas<br />
ia comentando e ouvindo<br />
meus comentários a respeito<br />
dos fatos, personagens, desenhos,<br />
etc.<br />
Outra coisa da qual me<br />
lembro com umas saudades<br />
enormes: as mãos dela! Não<br />
eram compridas, com dedos<br />
longos e afilados, mas muito<br />
bem feitas. As articulações<br />
dos dedos eram muito<br />
proporcionadas e graciosas.<br />
Eram mãos muito alvas, e a<br />
pele simbolizava, por assim<br />
dizer, o contato com o temperamento<br />
dela: era de cetim…<br />
Mamãe tinha um modo de<br />
mexer a mão por onde os dedos<br />
se moviam lentamente.<br />
Por exemplo, ela dizia: “Filhão,<br />
vamos então passar para<br />
a outra página.” E folheava<br />
o livro com tanta dignidade,<br />
estabilidade, beleza, elese<br />
ponto eu eminentemente aprendi<br />
com ela. Como?<br />
Aprendizado feito através de<br />
um olhar, de uma carícia…<br />
Era um olhar, uma inflexão de<br />
voz, uma carícia, enfim, estar juntos.<br />
Por exemplo, ela me mostrando as<br />
historietas da Bécassine, e eu sentado<br />
perto dela.<br />
Lembro-me dela numa estação de<br />
água existente em São Paulo, perto<br />
8
gância que eu, ao vê-la virar a página,<br />
ficava prestando atenção na mão<br />
e pensava: “Que alma! Que coração!”<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
...e de uma inflexão de voz<br />
O tom de voz, a afabilidade também.<br />
Ainda em Águas da Prata, eu<br />
me lembro de que, como parte do<br />
tratamento, era necessário o repouso.<br />
Por isso, terminado o almoço, ela<br />
ia fazer sesta.<br />
A certa hora, minha irmã e eu éramos<br />
autorizados a entrar no quarto<br />
dela e a encontrávamos de robe de<br />
chambre, deitada, mas acordada, calma,<br />
rezando, raras vezes lendo, ou<br />
olhando para um ponto indefinido<br />
e pensando, com esta particularidade:<br />
as venezianas sempre fechadas e<br />
o vidro aberto.<br />
Nós viajávamos para lá nas férias<br />
do meio do ano, quando os dias são<br />
muito claros nessa região do Brasil.<br />
De maneira que entrava uma luz<br />
abundante pelas venezianas cujas varetas<br />
ficavam muito escuras em confronto<br />
com os raios que filtravam<br />
por elas, deixando o quarto envolto<br />
em uma espécie de penumbra com<br />
uma luminosidade matizada.<br />
Eu olhava aquilo e pensava:<br />
“Curioso, essa penumbra é tão deleitável,<br />
mas há uma analogia entre<br />
ela e uma certa penumbra existente<br />
na alma de mamãe, tão feita de verdades<br />
e de recolhimento que se diria<br />
que ela é para Deus uma veneziana.”<br />
Não preciso dizer que eu chegava<br />
antes da hora marcada. Ao ver-me,<br />
gesto não sistemático, mas frequente,<br />
ela abria as duas mãos e exclamava<br />
com afeto: “Filhão!”, como quem<br />
diz: “Pode aproximar-se, estou acordada.”<br />
Eu entrava e imediatamente<br />
lhe fazia agrados que ela retribuía.<br />
Depois eu dizia qualquer coisa<br />
e saía pensando o seguinte: “Que pena<br />
que as regras e as convenções me<br />
obriguem a sair, porque eu gostaria<br />
de ficar aqui sentado ao lado dela,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 13/5/1980<br />
ela quieta e eu também. Fazendo o<br />
quê? Contemplando as duas penumbras…”<br />
Eis uma espécie de exercício teórico-prático<br />
de como Dona Lucilia<br />
me ajudava a ver o unum da alma<br />
dela.<br />
Quando depois ia à Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus, que também<br />
tem uma penumbra especial, eu<br />
chegava lá e dizia: “Curioso, parece<br />
com mamãe.” Mas quando estava<br />
com mamãe, eu dizia: “Curioso, parece<br />
com a Igreja do Coração de Jesus”,<br />
e formava um todo só. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
12/5/1980)<br />
9
Perspectiva pliniana da História<br />
Imperatriz<br />
Brasiliana Iconográfica (CC3.0)<br />
muito querida<br />
pelo povo<br />
Tereza Cristina Maria de Bourbon,<br />
Imperatriz do Brasil, em 1861<br />
Pinacoteca do Estado de São Paulo<br />
brasileiro<br />
Esposa de Dom Pedro II, filha do Rei das Duas Sicílias, a<br />
Imperatriz Tereza Cristina pertencia à Casa de Bourbon e<br />
descendia, portanto, de Luís XIV. O Imperador causou-lhe<br />
muitos desgostos, fazendo com que sua vida fosse de grandes<br />
sofrimentos, que ela suportou com muita dignidade. Ela<br />
possuía o ar de uma mãe dos brasileiros; muito bondosa,<br />
condescendente, afável, era verdadeiramente querida pelo povo.<br />
Durante um largo período da<br />
História do Ocidente, que poderíamos<br />
situar mais ou menos<br />
da queda de Napoleão, em 1815,<br />
até 1835, formou-se a ideia de que a<br />
pureza era uma virtude adequada à<br />
mulher, mas supérflua e até contraditória<br />
para o homem, o que é verdadeiro<br />
em relação à mulher e inteiramente<br />
falso no que diz respeito ao homem.<br />
A Imperatriz Tereza<br />
Cristina, símbolo da<br />
dama sofredora<br />
Essa perniciosa concepção fazia<br />
com que a mulher aguentasse todo o<br />
fardo da situação dentro de casa e fosse,<br />
em geral, uma vítima da infidelidade<br />
conjugal do marido, o qual em sua<br />
vida de solteiro já fora desonrado.<br />
Conheci uma senhora de uma boa<br />
família antiga, a quem uma vez a filha<br />
recém-casada disse:<br />
— Mamãe, imagine que horror!<br />
Eu desconfio que meu marido está<br />
sendo infiel a mim…<br />
A senhora, sexagenária, asseverou<br />
com uma voz pausada:<br />
— Olhe, não procure porque encontra.<br />
É melhor fazer como eu:<br />
10
nunca procurei, por isso me senti feliz<br />
com o seu pai.<br />
Era um horror. Quem suportava<br />
esse fardo era sempre a boa senhora<br />
de família, sendo, por isso, a sofredora<br />
da casa, símbolo da seriedade,<br />
da virtude e da Fé dentro do lar. Por<br />
causa disso ela era, em geral, venerada<br />
pelos filhos como uma espécie<br />
de mártir, e respeitada pelo marido,<br />
embora esse respeito fosse incoerente,<br />
porque se ele a respeitasse verdadeiramente<br />
não cometeria adultério.<br />
Isso caracterizava, até certo ponto,<br />
mesmo as senhoras de importantes<br />
famílias ricas, dispondo de uma<br />
prestigiosa situação social.<br />
A Imperatriz Dona Tereza Cristina<br />
representava o símbolo da dama<br />
sofredora segundo o modelo<br />
desses tempos, pois embora Dom<br />
Pedro II não fosse propriamente<br />
um marido estroina – como Dom<br />
Pedro I tinha sido –, ele teve lá suas<br />
infidelidades.<br />
Pertencente à Casa de Bourbon,<br />
ela descendia de Luís XIV, de quem<br />
um dos descendentes foi Rei da Espanha.<br />
Desse ramo espanhol Bourbon<br />
desprendeu-se, por sucessão hereditária,<br />
um outro que passou a reinar<br />
nas Duas Sicílias.<br />
Esse reino existente no Sul da Itália<br />
recebeu esse nome por causa da<br />
Ilha de Sicília, ou seja, Sicília insular<br />
e o território continental correspondente<br />
à parte baixa da “bota italiana”<br />
que se chamava Sicília também,<br />
denominação oriunda dos sículos, um<br />
antigo povo que habitara ali. Assim,<br />
a terra dos sículos chamava-se Sicília.<br />
Casamento por procuração<br />
Dom Pedro II estava à procura de<br />
um casamento e mandou um nobre<br />
de sua corte fazer uma viagem à Europa<br />
para escolher uma princesa que<br />
correspondesse às conveniências políticas,<br />
antes de tudo, mas também<br />
de dote e genealógicas que um casamento<br />
como esse supunha.<br />
Como a técnica fotográfica ainda<br />
não estava suficientemente desenvolvida,<br />
o enviado imperial partia com as<br />
instruções sobre qual o tipo humano<br />
que deveria ter a futura Imperatriz para<br />
satisfazer as aspirações legítimas do<br />
Monarca, e quando encontrasse uma<br />
princesa que correspondesse a essas aspirações,<br />
ele deveria mandar pintar um<br />
retrato dela e enviá-lo por mala diplomática<br />
para o Imperador tomar conhecimento<br />
e decidir sobre o casamento.<br />
As negociações não foram breves.<br />
O mandatário imperial andou rodando<br />
pelas cortes europeias sem muito<br />
êxito, o que se compreende porque a<br />
recordação deixada por Dom Pedro I<br />
como marido não era nada boa; ademais,<br />
o Brasil era um cafundó do mundo.<br />
Uma princesa precisava ter coragem<br />
para vir morar aqui, casada a vida<br />
inteira com um Imperador cuja psicologia<br />
e mentalidade não conhecia.<br />
Afinal, Dom Pedro II recebeu uma<br />
miniatura linda que o agradou inteiramente,<br />
retratando a Princesa Maria<br />
José Correia de Lima (CC3.0)<br />
Princesa Tereza Cristina, por<br />
José Correia de Lima, c. 1843.<br />
Este retrato atraiu Dom Pedro II,<br />
levando-o a aceitar o casamento.<br />
Eduardo de Martino (CC3.0)<br />
Chegada da Imperatriz Tereza Cristina na fragata Constituição em 1843<br />
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro<br />
11
Perspectiva pliniana da História<br />
Alejandro Cicarelli (CC3.0)<br />
Tereza de Bourbon-Sicília, e concordou<br />
em realizar o casamento por procuração,<br />
que se deu em Nápoles, bela<br />
capital das Duas Sicílias.<br />
Algum tempo depois, desembarcava<br />
no Brasil Dona Tereza Cristina. Avisado<br />
com a necessária antecedência da<br />
chegada do navio, Dom Pedro II foi recebê-la<br />
a bordo. Segundo o protocolo,<br />
ao encontrar-se com o Imperador,<br />
a Princesa deveria ajoelhar-se, mas ele,<br />
por sua vez, precisaria segurá-la pela<br />
mão e não o permitir, depois oscular as<br />
mãos dela, dar-lhe o braço e descerem<br />
para a terra, onde receberiam as manifestações<br />
populares.<br />
O brasileiro quer ver<br />
no seu Chefe de Estado<br />
principalmente um pai<br />
Contudo, quando ele a viu aproximar-se<br />
caminhando com o seu séquito,<br />
do outro lado do tombadilho do<br />
navio, teve uma surpresa porque reconheceu<br />
ser a pessoa da miniatura,<br />
mas não tinha nem um pouco a beleza<br />
ali retratada. Além do mais, ela<br />
era pronunciadamente manca. Dom<br />
Pedro II ficou tão perturbado que<br />
se esqueceu de impedir que a Princesa<br />
se ajoelhasse. Afinal, ele percebeu<br />
que era fato consumado, levan-<br />
tou-a, deu-lhe o braço e desceram<br />
do navio.<br />
Aquilo constituiu um choque<br />
que lotou a existência inteira<br />
dele. Sua vida matrimonial<br />
foi tristonha, nem um pouco<br />
aquela que a atmosfera romântica<br />
um tanto estúpida daquele<br />
tempo pedia: os dois pombinhos<br />
que se encontram e passam<br />
a vida felizes.<br />
Também no que diz respeito<br />
à prole o casal foi infeliz.<br />
Tiveram quatro filhos, duas<br />
meninas e dois meninos,<br />
mas estes morreram ainda na<br />
infância, restando apenas as<br />
duas filhas. Esse véu de tristeza<br />
que cobriu sua vida nupcial,<br />
Dom Pedro II pareceu<br />
carregá-lo com muita dignidade durante<br />
toda a sua existência.<br />
A Imperatriz percebia tudo isso<br />
também e tinha o todo de uma dama<br />
digna, sem ilusões de se enfeitar<br />
e parecer bonita; era uma dona de casa<br />
com uma grande dignidade moral,<br />
uma pessoa muito boa que fazia um<br />
bom par com ele aos olhos do povo<br />
brasileiro, porque o Brasil queria ver<br />
no seu monarca, sobretudo, um pai.<br />
No espírito do brasileiro a concepção<br />
patriarcal do poder é muito ancorada,<br />
Imperatriz Teresa Cristina e seus<br />
três filhos Isabel, Leopoldina e<br />
Pedro Afonso em 1849 - Museu<br />
Imperial, Petrópolis, Brasil<br />
muito forte e profunda. Do Prata ao<br />
Amazonas, do mar às cordilheiras, o<br />
que o brasileiro quer ver no seu Chefe<br />
de Estado é principalmente um pai.<br />
Dom Pedro II adaptou-se a essa<br />
função paterna muito bem. Era de fato<br />
um patriarca, com sua barba que não<br />
tardou a se tornar branca. Dona Tereza<br />
Cristina tinha todo o ar de uma mãe<br />
dos brasileiros: muito bondosa, condescendente,<br />
afável; ela era verdadeiramente<br />
querida pelo povo brasileiro.<br />
As pessoas notavam esse desacerto<br />
entre os dois, e isso a favorecia<br />
ainda mais, porque ficavam<br />
com pena e gostando<br />
dela de modo especial.<br />
Dom Pedro II era<br />
liberal com seus<br />
inimigos e despótico<br />
com seus amigos<br />
Ferdinand Krumholz (CC3.0)<br />
Casamento por procuração da Imperatriz Tereza<br />
Cristina - Museu Imperial, Petrópolis, Brasil<br />
Como os monarcas liberais<br />
estavam em moda no tempo,<br />
Dom Pedro II era liberal e dava<br />
à oposição política muita<br />
liberdade. Mas não era essa<br />
sua política no que diz respeito<br />
àqueles que eram os aliados<br />
naturais do trono. Com<br />
12
efeito, ele era liberal com os seus inimigos<br />
e despótico com os seus amigos.<br />
Cito dois exemplos concretos.<br />
Quando era bem moço, ele fez um<br />
giro pela Europa e esteve com o Papa<br />
Pio IX, antes de este ser aprisionado<br />
no Vaticano pelas tropas de Garibaldi.<br />
Tendo sido recebido em audiência<br />
pelo Sumo Pontífice, numa visita extraoficial,<br />
Dom Pedro II disse:<br />
— Eu, como Chefe do Império católico<br />
de maior extensão territorial<br />
do mundo, devo aconselhar Vossa<br />
Santidade de abrir as portas de Roma<br />
e deixar que ela seja anexada. Renuncie<br />
a seu poder temporal.<br />
Pio IX respondeu:<br />
— Se quiser, falemos de outra coisa,<br />
mas dos assuntos da Igreja quem<br />
entende sou eu.<br />
Mais tarde Dom Pedro II voltou à<br />
Itália, desta vez em caráter oficial e já<br />
casado com a Imperatriz Tereza Cristina.<br />
Os acontecimentos tinham ocorrido<br />
e o Piemonte, que era um dos Estados<br />
em que se dividia a Itália, conquistara<br />
e anexara toda a península italiana<br />
para formar um reino só, chamado<br />
Reino da Itália, e tinha anexado a este<br />
os Estados dos quais o Papa era Rei.<br />
De maneira que o Pontífice ficara no<br />
Vaticano como prisioneiro.<br />
O Reino das Duas Sicílias também<br />
tinha sido anexado e a família da Imperatriz<br />
Tereza Cristina precisou fugir<br />
da Itália. Sendo, pois, uma viagem oficial,<br />
Dona Tereza Cristina teria que tomar<br />
contato com a corte do rei usurpador<br />
do reino do pai dela, participar<br />
de banquetes e bailes na corte com os<br />
arruinadores de sua própria família.<br />
cerimônia muito pomposa nas monarquias,<br />
e no Reino da Itália fez-se<br />
também com solenidade.<br />
O Imperador compareceu a essa<br />
abertura e obrigou sua esposa<br />
a acompanhá-lo, dando assim um<br />
apoio político. A Imperatriz passou<br />
o tempo inteiro procurando disfarçar<br />
as lágrimas de compaixão e de tristeza<br />
que lhe corriam pela face, pensando<br />
na situação do pai.<br />
No dia seguinte, os jornais anticlericais<br />
e republicanos da Itália, sabendo<br />
que a Imperatriz era muito católica<br />
e vendo que ela representava uma<br />
causa oposta à deles, caíram em cima<br />
dela, caçoando por ser manca, filha<br />
de um rei destronado, por ter comparecido<br />
a essa sessão, não porque soubesse<br />
perdoar as ofensas, mas por ter<br />
sido obrigada por seu marido. Enfim,<br />
tripudiaram sobre ela. Dom Pedro II<br />
fingiu que não notou nada.<br />
Esse foi um fato que se comentou<br />
no Brasil porque os jornais publicaram,<br />
o que aumentava a compaixão<br />
das pessoas pela Imperatriz.<br />
Ao partir para o exílio, após a proclamação<br />
da República em 1889, a Imperatriz<br />
Tereza Cristina foi cercada da<br />
compaixão e do respeito geral, tanto<br />
mais que se notou como ela ficara profundamente<br />
triste com o infortúnio do<br />
marido, e o perdoava, participava desse<br />
infortúnio inteiramente.<br />
No meu ambiente doméstico ela<br />
era, portanto, profundamente venerada.<br />
Inclusive, e naturalmente, pela<br />
minha mãe. Na minha infância, desde<br />
que pude conhecer e compreen-<br />
Carneiro & Gaspar (CC3.0)<br />
Jornais republicanos<br />
da Itália tripudiaram<br />
sobre a Imperatriz<br />
Aconteceu ainda o pior. Durante<br />
a presença de Dom Pedro II na Itália,<br />
houve a inauguração da sessão<br />
legislativa e abertura dos trabalhos<br />
da Câmara e do Senado, depois das<br />
férias de fim de ano. Essa era uma<br />
Imperatriz Teresa Cristina por volta de 1870<br />
Museu Imperial, Petrópolis, Brasil<br />
13
Perspectiva pliniana da História<br />
der fatos desses, fui ambientado para<br />
narrações como essa. Não se falava<br />
da infidelidade conjugal de Dom<br />
Pedro II, que mamãe só veio a saber<br />
depois de idosa – antes ela julgava o<br />
Imperador um modelo de fidelidade<br />
–, mas sim quanto às outras atitudes<br />
dele, como por exemplo, sua frieza<br />
em relação à Imperatriz.<br />
Um baile na Quinta<br />
da Boa Vista<br />
Édouard Riou (CC3.0)<br />
Dona Lucilia me contava este fato<br />
ocorrido na visita que o Imperador<br />
fez a Pirassununga. Dom Pedro II<br />
desceu do trem e se dirigiu à casa do<br />
meu avô para receber homenagens.<br />
Depois foi a uma fazenda, famosa pelas<br />
jabuticabas que produzia,<br />
e pôs-se a chupar essas<br />
frutas pelas quais ele tinha<br />
um entusiasmo único.<br />
Entretanto, ele tinha deixado<br />
a Imperatriz no trem.<br />
Como ela possuía certa dificuldade<br />
de locomoção, não<br />
podia acompanhá-lo e ficara<br />
no vagão. Ao notarem<br />
que Dona Tereza Cristina<br />
não tinha descido, as senhoras<br />
perguntaram sobre ela<br />
ao Imperador, que respondeu:<br />
— Ah, ela ficou no vagão...<br />
Então algumas senhoras,<br />
entre as quais minha avó,<br />
foram depressa para fazer<br />
sala à Imperatriz. Esta as<br />
recebeu com muita bondade,<br />
fingindo não ter notado<br />
o que havia de desairoso<br />
para ela no que se passara.<br />
Minha mãe costumava<br />
narrar também outro episódio<br />
da Imperatriz, o qual<br />
não pertence à História<br />
porque só circulava na minha<br />
família.<br />
Num baile na Quinta<br />
da Boa Vista, um bisavô<br />
meu, que era deputado, compareceu<br />
e, passando por uma sala, notou a<br />
Imperatriz com um número muito reduzido<br />
de pessoas em torno de si, enquanto<br />
se dançava na outra sala. Meu<br />
bisavô aproximou-se dela, beijou-lhe<br />
a mão, cumprimentaram-se, e ela o<br />
convidou para sentar-se. Começada<br />
a conversa, as senhoras que estavam<br />
lá dirigiram-se ao salão principal para<br />
dançar também, porque já havia uma<br />
companhia para a Imperatriz.<br />
Ele disse que a notava tão triste e<br />
perguntou-lhe o motivo. Essa é uma<br />
típica relação brasileira entre uma<br />
imperatriz e um súdito. A Rainha da<br />
Inglaterra não faria uma confidência<br />
dessa, mas no Brasil essas coisas saem<br />
assim...<br />
Imperatriz Tereza Cristina em 1861<br />
Dona Tereza Cristina lamentou-<br />
-se, então, de sua situação, por notar<br />
que se estivesse presente no salão de<br />
baile impediria o Imperador de dançar,<br />
porque ele teria que ficar ao lado<br />
dela o tempo inteiro, pois sendo<br />
manca ela não conseguia bailar.<br />
Meu bisavô disse à Imperatriz que<br />
analisara seu modo de claudicar e tinha<br />
a impressão de que havia um<br />
meio de ela equilibrar-se e dançar. E<br />
acrescentou:<br />
— Se Vossa Majestade quiser,<br />
apoie-se em meu braço e vamos tomar<br />
a posição de dança para experimentar<br />
um pouco.<br />
Ela concordou, ensaiou com ele<br />
algumas vezes e viu que dava certo.<br />
Então ela lhe disse:<br />
— Que tal se entrarmos<br />
no salão dançando os<br />
dois?<br />
Entraram, e o fato causou<br />
sensação na corte.<br />
Isso se contava na minha<br />
família. Não haverá um<br />
pouco de exagero, de lenda<br />
em tudo isso? Não tenho<br />
certeza. Minha mãe narrava<br />
o que ela tinha ouvido.<br />
Mas meu bisavô morreu,<br />
deixando os filhos muito<br />
pequenos. Até que ponto<br />
isso tinha fontes seguras?<br />
Certeza não se tem.<br />
Entretanto, o fato me<br />
parece perfeitamente provável<br />
e muito gracioso, interessante:<br />
a pobre Imperatriz<br />
valetudinária, claudicante,<br />
ter esse dia de<br />
alegria ao entrar dançando<br />
na sala, pregando uma<br />
surpresa ao Imperador e<br />
a toda a corte, e causando<br />
sensação nos meios sociais<br />
da pequena Rio de<br />
outrora. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 21/12/1985)<br />
14
Reflexões teológicas<br />
Wolfgang Moroder (CC3.0)<br />
Coroação de Maria - Paróquia de São Jorge, Varna, Itália<br />
Maravilhas<br />
da corte celeste<br />
O Céu pode ser comparado a uma corte maravilhosa, na<br />
qual todos os cortesãos, embora desiguais, são príncipes<br />
que, ao se encontrarem, reverenciam-se mutuamente,<br />
com todo amor. Esse convívio apraz a Deus e atrai d’Ele,<br />
durante toda a eternidade, galardões sempre novos.<br />
fá mais ou menos cômodo e um Anjo<br />
tocando violino.<br />
Compreendo que seja mais agradável<br />
do que este vale de lágrimas,<br />
mas se eu tivesse que passar uma<br />
eternidade sentado numa nuvem<br />
branca, diante de um céu azul, tocando<br />
um violino, confesso que não<br />
me sentiria atraído por esse tipo de<br />
Céu. Embora ali não se tenha abor-<br />
Sempre tive a respeito do Céu<br />
uma impressão singular. Pela<br />
Fé eu sabia ser um lugar<br />
de todas as delícias, mas quando me<br />
descreviam os deleites celestes tinha<br />
a impressão de que era uma coisa<br />
deliciosa para outro, não para mim,<br />
e que se fosse para o Céu não o sentiria<br />
delicioso como aquilo que me<br />
descreviam.<br />
Ideias que desfiguram<br />
a imagem do Céu<br />
Era um pouco a ideia apresentada<br />
por certos quadros muito legítimos,<br />
mas que, à força de se apresentar só<br />
um tipo de quadro, desfiguram um<br />
pouco a noção do Céu. Por exemplo,<br />
um céu uniformemente azul, uma<br />
nuvem branca sob a forma de um so-<br />
15
Reflexões teológicas<br />
Gabriel K.<br />
O Céu (detalhe), por Giotto<br />
Cappella degli Scrovegni, Pádua<br />
recimento nem se adoeça, não sinto<br />
que um Paraíso assim seja a pátria<br />
de minha alma.<br />
Outra noção que também me causava<br />
certa estranheza quando se falava<br />
do Céu era uma espécie de imobilidade.<br />
Porque a Doutrina Católica<br />
nos ensina que no Paraíso o homem<br />
não pode crescer em amor de Deus,<br />
e é a pura verdade. O grau de caridade<br />
com que morreu, a pessoa conserva<br />
por toda a eternidade.<br />
Há uma bonita expressão da Escritura:<br />
“Onde a árvore cair, ali ficará”<br />
(Ecl 11, 3). Assim também o homem:<br />
naquele grau de amor de Deus<br />
em que morre, ele permanece. Se falece<br />
sem amor de Deus, sabemos para<br />
onde vai... e fica ali também por<br />
toda a eternidade, no grau de maldade<br />
no qual morreu.<br />
Outra noção que também me causava<br />
certa estranheza quando se falava<br />
do Céu era uma espécie de imobilidade,<br />
onde a pessoa desfruta de<br />
toda a felicidade possível. Um lugar<br />
onde tudo e todos estão eternamente<br />
parados, olhando também imóveis<br />
para Deus. Ora, está no nosso modo<br />
de ser o movimento, a comunicação.<br />
Por isso temos certa dificuldade em<br />
compreender como possa ser atraente<br />
um Céu tão parado.<br />
Essas são algumas das vivências<br />
do Paraíso que nos levam a ter pouca<br />
esperança dos bens celestes e a sermos,<br />
portanto, pouco atraídos para<br />
o Céu.<br />
Entretanto a Escritura diz: “Medita<br />
nos teus novíssimos e não pecarás<br />
eternamente” (Eclo 7, 40). Os<br />
novíssimos são: Morte, Juízo, Céu<br />
e Inferno, ou seja, as últimas coisas<br />
que vão nos acontecer. Nós morreremos,<br />
seremos julgados, vamos para<br />
o Céu ou para o Inferno. Portanto,<br />
se não quero pecar, devo meditar<br />
nesses quatro pontos, um dos quais é<br />
o Céu. Mas ao fazê-lo deparava-me<br />
com essa e outras vivências.<br />
Então comecei a fazer um trabalho<br />
de reflexão, de análise, aproveitando<br />
trechos de livros de Santos<br />
que falavam sobre o Céu, para construir<br />
para mim mesmo uma verdadeira<br />
imagem do Paraíso celeste, vê-<br />
-lo conforme à natureza humana, a<br />
fim de que fosse mais apetecível e eu<br />
pudesse me sentir inteiramente bem<br />
nele.<br />
O gáudio de uma alma<br />
no Paraíso pode crescer<br />
Passo a tratar mais especialmente<br />
daquilo que se poderia chamar<br />
a “imobilidade no Céu”. É verdade<br />
que a felicidade de uma alma bem-<br />
-aventurada não pode ser aumentada<br />
em nenhum grau? Em sentido<br />
contrário, é verdade que a desgraça<br />
de uma alma no Inferno não pode<br />
ser acrescida em nada? Nesses destinos<br />
eternos estará tudo tão parado<br />
quanto imaginamos, ou há aumentos<br />
de intensidade de felicidade no Céu<br />
e de desgraças no Inferno?<br />
Para termos ideia e irmos construindo<br />
mentalmente essa verdadeira<br />
imagem do Céu ou do Inferno, tomo<br />
um dado indiscutível ensinado<br />
pela Doutrina Católica. Quando alguém<br />
faz um determinado ato bom<br />
ou mau, e depois de julgado vai para<br />
o Céu ou para o Inferno, conforme<br />
tenha sido esse ato ele continuará<br />
a ter repercussões no decorrer dos<br />
anos, quiçá até o fim do mundo.<br />
À medida que os séculos vão passando,<br />
do alto do Céu estamos vendo<br />
o efeito da boa ação que fizemos<br />
e recebendo um aumento de alegria<br />
por isso. Mesmo que estejamos contemplando<br />
Deus face a face, inundados<br />
de felicidade, olhando na Terra o<br />
efeito do bem que praticamos temos<br />
uma felicidade ainda maior.<br />
Principalmente se, por causa daquela<br />
obra boa, uma outra pessoa<br />
salva a alma e sobe ao Céu também.<br />
Ao vê-la chegar, temos um aumento<br />
de alegria por aquela boa ação ter<br />
atingido o auge. Por toda a eternidade<br />
é um motivo de maior contentamento<br />
olhar para aquela alma inun-<br />
16
Gabriel K.<br />
dada de felicidade e pensar: “Aquele<br />
está aqui porque Nossa Senhora<br />
se serviu de mim para trazê-lo.”<br />
Mais ainda: quem recebeu o benefício,<br />
passando perto de mim, canta:<br />
“Eu te saúdo e te agradeço! A ti devo<br />
esta felicidade.” Inclina-se diante<br />
do benfeitor e o homenageia, ambos<br />
se osculam e percorrem juntos as belezas<br />
perfeitas do Paraíso.<br />
Percebemos, assim, a felicidade<br />
que uma alma tem, a qual pode crescer<br />
pelo fato de ir multiplicando, ao<br />
longo dos tempos, o efeito da boa<br />
obra que praticou.<br />
Dou um exemplo: um livro pode<br />
produzir bons efeitos até o fim do<br />
mundo, porque vai para estantes das<br />
bibliotecas e, quando menos se pensa,<br />
alguém o lê e se beneficia com isso.<br />
Assim, se escrevi um livro e alguém<br />
o comprou, mas não o leu, esqueceu-o<br />
na estante da família, pode<br />
ser que um remoto quinto neto<br />
encontra-o no sótão da casa, lê e se<br />
converte. Por essa forma, um livro<br />
pode fazer bem até o fim do mundo,<br />
e minha alegria na eternidade é<br />
acrescida.<br />
O Paraíso - Museu Metropolitano<br />
de Nova Iorque, EUA<br />
Os precursores de Cristo com os santos e os mártires<br />
Galeria Nacional, Londres<br />
Felicidade essencial e<br />
felicidade acidental<br />
Do mesmo modo, muitos acontecimentos<br />
terrenos podem aumentar<br />
a nossa felicidade celeste. Há uma<br />
relação constante entre a Terra e o<br />
Céu, por onde as celestiais alegrias<br />
se movem de acordo com os movimentos<br />
deste mundo, e mais ou menos<br />
tudo quanto fazemos aqui está<br />
repercutindo em<br />
glória e alegria no<br />
Paraíso.<br />
Podemos nos<br />
perguntar de que<br />
natureza é esse<br />
aumento de alegria<br />
celeste. Como<br />
nos ensina o<br />
Catecismo, no Céu<br />
temos uma felicidade<br />
perfeita, tão<br />
completa quanto<br />
nossa natureza<br />
é capaz. Então,<br />
como haver um<br />
acréscimo de alegria?<br />
É o que se<br />
chama uma alegria<br />
acidental.<br />
Imaginem uma<br />
rainha casada com<br />
um rei poderosíssimo,<br />
boníssimo, junto ao qual ela<br />
goza de toda a felicidade que o estado<br />
de rainha lhe pode dar. No dia<br />
de seu aniversário, vem um grupo<br />
de camponeses dançar diante da janela<br />
de seu palácio para, por amor<br />
a ela, fazer-lhe uma homenagem. Se<br />
os camponeses não viessem, ela não<br />
deixaria de ser feliz, pois o rei é a felicidade<br />
dela. Porém a vinda desses<br />
camponeses constitui um episódio<br />
acidental que a leva a sair para o terraço<br />
e olhar comprazida para aquela<br />
manifestação de benquerença. Depois,<br />
a soberana manda servir-lhes<br />
uma mesa de doces, diz uma palavra<br />
amável para cada um e se retira deixando-os<br />
radiantes.<br />
Isso aumentou a felicidade dela?<br />
A essencial, não. Ela continua a ser<br />
a rainha, esposa do rei em quem está<br />
toda a sua felicidade. Mas acidentalmente<br />
ela teve essa alegria. Assim<br />
também as coisas da Terra repercutem<br />
no Céu.<br />
Além disso, do alto do Céu a Santíssima<br />
Trindade, Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, Nossa Senhora, todos<br />
os Anjos e Santos, especialmente<br />
os nossos protetores, olham para o<br />
mundo e não só assistem ao desenrolar<br />
da História, mas por suas orações<br />
nos ajudam e lutam conosco.<br />
Os bem-aventurados têm um empe-<br />
Sampo Torgo (CC3.0)<br />
17
Reflexões teológicas<br />
nho enorme em acompanhar como<br />
o lumen Christi e as trevas do diabo<br />
progridem ou recuam na Terra.<br />
Isso é muito diferente do homem<br />
com o violino, sentado na nuvem.<br />
Sem dúvida, este símbolo apresenta<br />
um aspecto da realidade, mas não é<br />
toda a realidade. É preciso acrescentar<br />
esse outro lado para se ter uma<br />
noção completa.<br />
Francesco Botticini (CC3.0)<br />
Expansão da Santíssima<br />
Trindade no Coração<br />
de Nossa Senhora<br />
Se soubéssemos ver a corte celeste<br />
assim, com a possibilidade de lutar<br />
pelos que estão na Terra, com essa<br />
militância ativa em nosso favor<br />
através das orações, como sentiríamos<br />
o Céu de um modo diferente!<br />
Santa Teresinha do Menino Jesus<br />
dizia: “Vou passar meu Céu fazendo<br />
o bem na Terra”, e que só descansaria<br />
quando estivesse completo o número<br />
dos que devem ser salvos. Antes<br />
disso, continuaria a lutar e a agir<br />
na eternidade. É uma linda expressão<br />
que mostra bem como há um intercâmbio<br />
entre Céu e Terra.<br />
Entretanto alguém poderia objetar:<br />
“<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, está bem, mas quando<br />
terminar a Terra e todos estiverem<br />
no Céu, acabou-se! Então fica<br />
tudo parado.”<br />
Temos a narração de uma visão<br />
de Santa Gertrudes 1 que nos ajuda a<br />
responder a essa objeção.<br />
Um dia, como se cantava durante o<br />
Ofício de Matinas a Ave-Maria, Santa<br />
Gertrudes viu sair do Coração do Pai<br />
Celeste, do Filho e do Espírito Santo,<br />
três jatos que penetravam no Coração<br />
de Nossa Senhora, para de lá voltar à<br />
fonte que era a Santíssima Trindade.<br />
Após o poder do Pai, a sabedoria<br />
do Filho e a ternura misericordiosa do<br />
Espírito Santo, nada se compara com<br />
a ternura misericordiosa de Maria.<br />
Santa Gertrudes compreendeu na<br />
mesma ocasião que essa expansão do<br />
Coração da Santíssima Trindade no<br />
Assunção de Maria Santíssima aos<br />
Céus - Galeria Nacional, Londres<br />
Coração de Nossa Senhora se reproduz<br />
cada vez que uma alma na Terra<br />
recita devotamente a Ave-Maria.<br />
Vejam o poder de uma única Ave-<br />
-Maria bem recitada na Terra! Cada<br />
vez que num ônibus, no meio da poluição,<br />
da bagunça, dos insultos, um<br />
rapaz recita devotamente a Ave-Maria,<br />
a Santíssima Trindade, para glorificar<br />
Nossa Senhora, emite um jorro<br />
de poder, de sabedoria e de ternura<br />
em seu Imaculado Coração. E<br />
a Santíssima Virgem tem um sobressalto<br />
de alegria.<br />
A fortiori, quando um bem-aventurado<br />
no Céu elogia Nossa Senhora há um<br />
aumento de comunicação d’Ela com a<br />
Santíssima Trindade e um acréscimo<br />
acidental de gáudio, por onde se compreende<br />
como todos os que estão lá, na<br />
medida em que se amam e se relacionam<br />
uns com os outros, aumentam a<br />
comunicação de todos com Deus. Há,<br />
portanto, uma espécie de interação recíproca<br />
à qual as três Pessoas Divinas<br />
Se associam, em que todos estão continuamente<br />
agindo e Deus sem interrupção<br />
coroando essa ação.<br />
Eis a movimentação do Céu, à<br />
maneira de uma imensa, santíssima<br />
e inocentíssima política, em que todos<br />
estão se esforçando sem cansaço,<br />
deliciosamente, para aumentar o<br />
seu próprio gáudio e o dos outros, e<br />
nadam, por assim dizer, nas gentilezas<br />
e na felicidade recíprocas.<br />
18
Cântico eterno<br />
Debaixo desse ponto de vista, o<br />
Paraíso celeste poderia ser comparado<br />
a uma corte esplendidíssima, nobilíssima,<br />
perfeitíssima, onde, quando<br />
os cortesãos se encontram, inclinam-<br />
-se profundamente um diante do outro<br />
com todo o amor e se cumprimentam.<br />
Vendo isso, o rei se alegra e lhes<br />
concede um galardão. Então, eles<br />
agradecem e o monarca lhes dá uma<br />
nova recompensa. E assim se vai, pelas<br />
infinidades, de galardão em galardão,<br />
de acordo com a iniciativa de cada<br />
um, havendo sempre uma novidade<br />
e aumentando algo, sobretudo, no<br />
conhecimento de Deus.<br />
Porque o Criador é infinitamente<br />
interessante, tem uma inteligência<br />
esplendorosa, mas é meigo, afável,<br />
põe-Se de nosso tamanho. Deus tem<br />
charme e aquilo que se poderia chamar<br />
de verve. Algo exposto por Ele<br />
tem uma vida, um encanto, que nós<br />
nem podemos imaginar.<br />
Aliás, Deus não fala, propriamente,<br />
mas mostra na essência d’Ele todas<br />
as coisas. De maneira que no Criador,<br />
ao longo de toda a eternidade, estaremos<br />
vendo aspectos diferentes e nunca<br />
acabaremos de conhecê-Lo.<br />
A Santíssima Trindade é para nós<br />
uma novidade contínua. Os Anjos e<br />
Santos narram uns para os outros o que<br />
viram em Deus, pois nenhum observa<br />
exatamente o mesmo que o outro.<br />
Há, assim, um imenso e ininterrupto<br />
“jornal falado” das contínuas novidades<br />
de Deus, o qual, aliás, não é falado,<br />
mas cantado; e este é o cântico eterno<br />
do Céu que nos induz a um movimento<br />
contínuo, sem cansaço, que não precisa<br />
de repouso porque é ele próprio movimento<br />
e repouso ao mesmo tempo.<br />
Não é verdade que com isso o Céu<br />
se torna mais aprazível para nós?<br />
Então, nós podemos imaginar o<br />
Céu como uma corte, perto da qual<br />
todas as cortes da Terra não são nada.<br />
Quem não gostaria de entrar na<br />
corte de São Luís IX, ser recebido<br />
como um guerreiro vindo das Cruzadas<br />
e trazendo um espinho da coroa<br />
de Nosso Senhor de presente para<br />
o Santo monarca? Entrar a cavalo<br />
no pátio do castelo real, com uma<br />
armadura esplêndida, portando um<br />
relicário de ouro e cristal, apresentá-lo<br />
ao Rei que o recebe benignamente<br />
e ajoelha-se para oscular a relíquia.<br />
Todos os cortesãos aplaudem.<br />
Depois de termos deixado a relíquia<br />
em mãos do monarca, e tendo ele<br />
nos inundado com seu sorriso e sua<br />
grandeza e nos concedido títulos,<br />
passamos pelas filas dos cortesãos<br />
que nos cumprimentam e nos admitem<br />
como um deles. Quem não gostaria<br />
de passar por essa cena? Pois<br />
bem, isto é um exílio cheio de penumbra<br />
em comparação com o Céu!<br />
Por aí podemos ter uma ideia da<br />
corte celeste; é simplesmente toda<br />
maravilhosa, onde todos são desiguais,<br />
mas na qual só há príncipes; e<br />
todos nós somos chamados para um<br />
principado dessa natureza.<br />
Aqui está uma meditação sobre o<br />
Céu, para tentar ajudá-los a desejarem<br />
conquistá-lo. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
11/5/1974)<br />
1) Não dispomos dos dados bibliográficos<br />
desta citação.<br />
19
Denúncia profética<br />
Não tratemos os<br />
lobos como<br />
ovelhas perdidas<br />
A imitação perfeita de Nosso Senhor<br />
não consiste apenas na doçura e na<br />
suavidade, mas na energia contra os que<br />
são maus. O Divino Mestre se mostrou<br />
perfeito e adorável tanto quando acolhia<br />
com perdão inefavelmente doce um<br />
pecador, quanto quando castigava com<br />
linguagem violenta os fariseus. Assim<br />
também procederam os Santos.<br />
Flávio Lourenço<br />
20<br />
ADoutrina de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo está cheia de<br />
verdades aparentemente antagônicas<br />
que, entretanto, examinadas<br />
com atenção, longe de reciprocamente<br />
se desmentirem, reciprocamente se<br />
completam formando uma harmonia<br />
verdadeiramente maravilhosa.<br />
Justiça e bondade divinas<br />
É este o caso, por exemplo, da<br />
aparente contradição entre a justiça<br />
e a bondade divinas. Deus é ao<br />
mesmo tempo infinitamente justo e<br />
infinitamente misericordioso. Sempre<br />
que para compreendermos bem<br />
uma destas perfeições fecharmos<br />
os olhos à outra, teremos caído em<br />
grave erro.<br />
O Bom Pastor<br />
Convento de Santa<br />
Paula, Sevilha, Espanha<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo deu,<br />
em sua vida terrena, admiráveis provas<br />
de sua doçura e de sua severidade.<br />
Não pretendamos “corrigir” a<br />
personalidade de Nosso Senhor segundo<br />
a pequenez de nossas vistas, e<br />
fechar os olhos à suavidade para melhor<br />
nos edificarmos com a justiça<br />
do Salvador; ou, pelo contrário, fazermos<br />
abstração de sua justiça pa-<br />
Chris Muiden (CC3.0)
Flávio Lourenço<br />
Jesus tomando refeição na casa do fariseu Simão - Palácio de Versailles<br />
ra melhor compreendermos sua infinita<br />
compaixão para com os pecadores.<br />
Nosso Senhor se mostrou perfeito<br />
e adorável tanto quando acolhia com<br />
perdão inefavelmente doce Maria<br />
Madalena, quanto quando castigava<br />
com linguagem violenta os fariseus.<br />
Não arranquemos do Santo Evangelho<br />
quaisquer destas páginas. Saibamos<br />
compreender e adorar as perfeições<br />
de Nosso Senhor como elas<br />
se revelam em um e outro episódio.<br />
E compreendamos enfim que a imitação<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
por nós só será perfeita no dia em<br />
que soubermos não apenas perdoar,<br />
consolar e afagar, mas ainda no dia<br />
em que soubermos flagelar, denunciar<br />
e fulminar como Nosso Senhor.<br />
Há muitos católicos que consideram<br />
os episódios do Evangelho, em<br />
que aparece o santo furor do Messias<br />
contra a ignomínia e a perfídia<br />
dos fariseus, como coisas indignas de<br />
imitação. É ao menos o que se depreende<br />
do modo com que eles consideram<br />
o apostolado. Falam sempre<br />
em doçura e procuram sempre imitar<br />
essa virtude de Nosso Senhor.<br />
Que Deus os abençoe por isto. Mas<br />
por que não procuram eles imitar as<br />
outras virtudes de Nosso Senhor?<br />
Consideração unilateral<br />
das parábolas<br />
Muito frequentemente, quando<br />
se propõe em matéria de apostolado<br />
um ato de energia qualquer, a resposta<br />
invariável é de que é preciso<br />
proceder com muita brandura “a fim<br />
de não afastar ainda mais os transviados”.<br />
Poder-se-á sustentar que os<br />
atos de energia têm sempre o invariável<br />
efeito de “afastar ainda mais os<br />
transviados”? Poder-se-ia sustentar<br />
que Nosso Senhor, quando dirigiu<br />
aos fariseus suas invectivas candentes,<br />
fê-lo com a intenção de “afastar<br />
ainda mais aqueles transviados”?<br />
Ou porventura se deveria supor que<br />
Nosso Senhor não sabia ou não se<br />
preocupava com o efeito “catastrófico”<br />
que suas palavras causariam aos<br />
fariseus? Quem ousaria admitir tal<br />
blasfêmia contra a Sabedoria Encarnada,<br />
que foi Nosso Senhor?<br />
Deus nos livre de preconizar o uso<br />
de energia e dos processos violentos<br />
como único remédio para as almas.<br />
Deus nos livre também, entretanto,<br />
de proscrever estes remédios heroicos<br />
de nossos processos de apostolado.<br />
Há circunstâncias em que se deve<br />
ser suave, e circunstâncias em que<br />
se deve ser santamente violento. Ser<br />
suave quando as circunstâncias exigem<br />
violência, ou ser violento quando<br />
as circunstâncias exigem suavidade,<br />
há nisto sempre um grave mal.<br />
Toda esta ordem de ideias unilateral<br />
que vimos denunciando decorre<br />
de uma consideração também unilateral<br />
das parábolas. Há muita gente<br />
que faz da parábola da ovelha perdida<br />
a única do Evangelho. Ora, há<br />
Expulsão dos vendilhões do Templo - Museu<br />
de Belas Artes, Arras, França<br />
Flávio Lourenço<br />
21
Denúncia profética<br />
nisto um erro gravíssimo que não<br />
queremos deixar de denunciar.<br />
Nosso Senhor não nos fala somente<br />
em ovelhas perdidas que o<br />
pastor vai buscar pacientemente no<br />
fundo dos abismos, ensanguentadas<br />
pelos espinhos em que lamentavelmente<br />
se feriram. Nosso Senhor nos<br />
fala também em lobos rapaces, que<br />
circundam constantemente o redil,<br />
à espreita de uma ocasião para nele<br />
se introduzirem disfarçados com peles<br />
de ovelhas. Ora, se é admirável<br />
o pastor que sabe carregar aos ombros<br />
com ternura a ovelha perdida,<br />
o que dizer do pastor que abandona<br />
suas ovelhas fiéis para ir buscar ao<br />
longe um lobo disfarçado de ovelha,<br />
que toma o lobo aos ombros amorosamente,<br />
abre ele próprio as portas<br />
do redil e com suas mãos pastorais<br />
coloca entre as ovelhas o lobo voraz?<br />
Quantos católicos, entretanto, se<br />
dessem aplicação efetiva aos princípios<br />
de apostolado unilateral que<br />
professam, agiriam exatamente assim!<br />
Energia contra os maus<br />
Para que se compreenda melhor<br />
que a imitação perfeita de Nosso Senhor<br />
não consiste apenas na doçura<br />
e na suavidade, mas ainda na energia,<br />
citaremos alguns episódios ou<br />
algumas frases de certos Santos. O<br />
Santo é aquele que a Igreja declarou,<br />
com autoridade infalível, ser um<br />
imitador perfeito de Nosso Senhor.<br />
Como imitaram os Santos a Nosso<br />
Senhor? Vejamos.<br />
Santo Inácio de Antioquia, mártir<br />
do século segundo, escreveu várias<br />
cartas a diversas Igrejas, antes de ser<br />
martirizado. Nelas ocorrem, sobre<br />
os hereges, expressões como estas:<br />
“bestas ferozes” (Efésios 7); “lobos<br />
rapaces” (Filadélfios 2, 2); “cães danados<br />
que atacam traiçoeiramente”<br />
(Efésios 7); “bestas com rosto de homens”<br />
(Esmirnenses 4, 1); “ervas do<br />
diabo” (Efésios 10, 1); “plantas parasitas<br />
que o Pai não plantou” (Tralianos<br />
11); “plantas destinadas ao fogo<br />
eterno” (Efésios 16, 2).<br />
Este modo de tratar os hereges,<br />
como se vê, seguia de perto os<br />
exemplos de São João Batista que<br />
aos escribas e fariseus chamava de<br />
“raça de víboras”, e de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo que aos mesmos<br />
Samuel Holanda<br />
22<br />
Jesus discute com os fariseus - Museu do Prado, Madri
apelidava de “hipócritas” e “sepulcros<br />
caiados”.<br />
Assim também procederam os<br />
apóstolos. Refere Santo Irineu, mártir<br />
do século segundo e discípulo de<br />
São Policarpo, o qual por sua vez fora<br />
discípulo de São João Evangelista,<br />
que certa vez indo o apóstolo aos banhos,<br />
retirou-se sem se lavar, pois aí<br />
vira Corinto, herege que negava a divindade<br />
de Jesus Cristo, com receio,<br />
dizia, de que o prédio viesse abaixo,<br />
pois nele se encontrava um inimigo<br />
da verdade. O mesmo São Policarpo,<br />
encontrando-se um dia com Marcião,<br />
herege docetista, e perguntando-lhe<br />
este se o conhecia, respondeu<br />
o Santo: “Sem dúvida, és o primogênito<br />
de satanás!”<br />
Aliás, nisto seguiam o conselho<br />
de São Paulo: “Ao herege, depois de<br />
uma e duas advertências, evita, pois<br />
que já é perverso e condena-se por si<br />
mesmo” (Tt 3, 10-11).<br />
O mesmo São Policarpo, se casualmente<br />
se encontrasse com um herege,<br />
tapava os ouvidos e exclamava:<br />
“Deus de bondade, porque me conservaste<br />
na Terra a fim de que eu suportasse<br />
tais coisas?” E fugia imediatamente<br />
para evitar semelhante<br />
companhia.<br />
No século IV, narra Santo Atanásio<br />
que Santo Antão eremita chamava<br />
nos discursos os hereges de “venenos<br />
piores do que o das serpentes”.<br />
Artigo da Civiltà Cattolica<br />
E, em geral, este é o modo como<br />
os Santos Padres tratavam os hereges,<br />
como se pode ver em um artigo<br />
publicado na Civiltà Cattolica, periódico<br />
fundado por Sua Santidade Pio<br />
IX, e confiado aos padres jesuítas de<br />
Roma. Nesse artigo citam-se vários<br />
exemplos que transcreverei:<br />
“São Tomás de Aquino, apresentado<br />
às vezes como invariavelmente<br />
pacífico para com seus inimigos,<br />
numa das suas primeiras polêmicas<br />
com Guilherme de Santo Amor,<br />
que ainda não estava condenado pe-<br />
la Igreja, assim o trata<br />
e aos seus sequazes:<br />
‘inimigos de Deus, ministros<br />
do diabo, membros<br />
do Anticristo, inimigos<br />
da salvação do gênero<br />
humano, difamadores,<br />
semeadores de blasfêmias,<br />
réprobos, perversos,<br />
ignorantes, iguais ao<br />
Faraó, piores que Joviniano<br />
e Vigilâncio (hereges<br />
que negavam a virgindade<br />
de Nossa Senhora)’.<br />
São Boaventura a<br />
um seu contemporâneo<br />
Geraldo chamava: ‘protervo,<br />
caluniador, louco,<br />
envenenador, ignorante,<br />
embusteiro, malvado, insensato,<br />
pérfido’.<br />
“O melífluo São Bernardo<br />
a respeito de Arnaldo<br />
de Brescia, que levantou<br />
cisma contra o<br />
clero e os bens eclesiásticos,<br />
disse: ‘desordenado,<br />
vagabundo, impostor, vaso de ignomínia,<br />
escorpião vomitado de Brescia,<br />
visto com horror em Roma, com<br />
abominação na Alemanha, desdenhado<br />
pelo Romano Pontífice, louvado<br />
pelo diabo, obrador de iniquidades,<br />
devorador do povo, boca cheia<br />
de maldição, semeador de discórdias,<br />
fabricador de cismas, lobo feroz’.<br />
“Mais antigamente, São Gregório<br />
Magno, repreendendo a João, Bispo<br />
de Constantinopla, lança-lhe em<br />
rosto seu profano e nefando orgulho,<br />
sua soberba de Lúcifer, suas palavras<br />
néscias, sua vaidade, a escassez<br />
de sua inteligência.<br />
“Nem de outra maneira falaram<br />
os Santos Fulgêncio, Próspero, Jerônimo,<br />
Sirício Papa, João Crisóstomo,<br />
Ambrósio, Gregório Nazianzeno,<br />
Basílio, Hilário, Atanásio, Alexandre,<br />
Bispo de Alexandria, os santos<br />
mártires Cornélio e Cipriano,<br />
Antenágoras, Irineu, Policarpo, Inácio<br />
Mártir, Clemente, enfim todos os<br />
Papa Pio IX em 1878<br />
Padres da Igreja que se distinguiram<br />
por sua heroica virtude.<br />
“Se se quiser saber quais as normas<br />
que dão os Doutores e teólogos<br />
da Igreja para as polêmicas com<br />
os hereges, leia-se o que traz o suave<br />
São Francisco de Sales, na Filotea,<br />
cap. XX da parte II: ‘Os inimigos declarados<br />
de Deus e da Igreja devem<br />
ser difamados tanto quanto se possa<br />
(desde que não se falte à verdade),<br />
sendo obra de caridade gritar: Eis o<br />
lobo! quando está entre o rebanho,<br />
ou em qualquer lugar onde seja encontrado.’”<br />
Até aqui citações do artigo da Civiltà<br />
Cattolica, vol. I, ser. V, p. 27.<br />
Se publicássemos contra os modernos<br />
inimigos da Igreja apenas a<br />
metade do que ficou dito, que protestos,<br />
entretanto, teríamos de ouvir!<br />
v<br />
(Extraído de O Legionário n. 472,<br />
28/9/1941)<br />
Sconosciuto (CC3.0)<br />
23
Flávio Lourenço<br />
C<br />
alendário<br />
1. Solenidade de Todos os Santos.<br />
Beato Rainério de Arezzo, religioso<br />
(†1304). Religioso franciscano, admirável<br />
por sua humildade, pobreza e<br />
paciência. Faleceu em Sansepolcro.<br />
2. Comemoração de Todos os Fiéis<br />
defuntos.<br />
Santo Ambrósio, abade (†c. 520).<br />
Transferido como abade para o mosteiro<br />
de Saint-Maurice-en-Valais, Suíça,<br />
estabeleceu ali a prática do louvor<br />
perpétuo.<br />
3. São Martinho de Porres, religioso<br />
(†1639).<br />
Santa Sílvia (†s. VII). Mãe do Papa<br />
São Gregório Magno, que segundo<br />
o mesmo Pontífice, atingiu o mais alto<br />
grau de oração e penitência.<br />
São Rafael de São José Kalinowski<br />
dos Santos – ––––––<br />
4. São Carlos Borromeu, bispo<br />
(†1584).<br />
São Félix de Valois, religioso<br />
(†1212). Ver página 26.<br />
5. Beato Bernardo Lichtenberg, presbítero<br />
e mártir (†1943). Pároco da Catedral<br />
de Berlim, orava publicamente pelos<br />
judeus torturados e detidos. Por isso<br />
foi enviado ao campo de concentração<br />
de Dachau, Alemanha, e morreu na viagem,<br />
após muito sofrimento.<br />
6. Santo Estêvão, bispo (†1046).<br />
Destacou-se por sua mansidão. Organizou<br />
duas peregrinações a Jerusalém<br />
e reconstruiu a catedral de sua diocese,<br />
Apt, França.<br />
7. Beato Antônio Baldinucci, presbítero<br />
(†1717). Jesuíta que se dedicou<br />
totalmente à pregação das missões<br />
populares na Itália.<br />
8. XXXII Domingo do Tempo Comum.<br />
Beato João Duns Escoto, presbítero<br />
(†1308). Sacerdote franciscano<br />
oriundo da Escócia. Ensinou as disciplinas<br />
filosóficas em Cambridge,<br />
Oxford, Paris e Colônia, onde faleceu.<br />
9. Dedicação da Basílica do Latrão.<br />
Beata Elizabeth da Trindade Catez,<br />
virgem (†1906). Procurou desde<br />
criança, no íntimo do coração, o conhecimento<br />
e a contemplação da Santíssima<br />
Trindade. Faleceu aos 26 anos<br />
no Carmelo de Dijon, França.<br />
10. São Leão Magno, Papa e Doutor<br />
da Igreja (†461).<br />
São Justo de Cantuária, bispo<br />
(†c. 627). Religioso beneditino enviado<br />
por São Gregório Magno à Inglaterra<br />
para ajudar Santo Agostinho na<br />
evangelização.<br />
11. São Martinho de Tours, bispo<br />
(†397).<br />
São Teodoro Estudita, religioso<br />
(†826). Abade do Mosteiro de Studion,<br />
Santo Alberto de Lovaina<br />
Constantinopla, que foi escola de sábios,<br />
santos e mártires das perseguições<br />
dos iconoclastas.<br />
12. São Josafá, bispo e mártir<br />
(†1623).<br />
São Margarito Flores García, presbítero<br />
e mártir (†1927). Por ser sacerdote<br />
foi preso e fuzilado em Tuliman,<br />
México.<br />
13. Beatos Pedro Vicev, Paulo Dzidzov<br />
e Josafat Siskov, presbíteros e<br />
mártires (†1952). Religiosos da Congregação<br />
dos Agostinhos da Assunção,<br />
foram aprisionados e fuzilados em Sófia,<br />
acusados de espionagem por um<br />
regime inumano e hostil à Religião.<br />
Flávio Lourenço<br />
24
–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
14. Santo Estêvão Teodoro Cuénot,<br />
bispo e mártir (†1861). Bispo da Sociedade<br />
das Missões Estrangeiras de<br />
Paris, martirizado em Binh Dinh, Vietnã,<br />
após vinte e cinco anos de trabalho<br />
apostólico.<br />
15. XXXIII Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
Santo Alberto Magno, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†1280).<br />
São Rafael de São José Kalinowski,<br />
presbítero (†1907). Recuperada a liberdade<br />
após muitos anos de trabalhos<br />
forçados na Sibéria, ingressou na Ordem<br />
Carmelita em Wadowice, Polônia.<br />
16. Santa Margarida da Escócia,<br />
rainha (†1093).<br />
Santa Gertrudes, virgem (†1302).<br />
Santa Inês de Assis, virgem<br />
(†1253). Irmã de Santa Clara, foi viver<br />
junto a ela no convento de São<br />
Damião e ajudou-a na consolidação e<br />
expansão da Ordem.<br />
17. Santa Isabel da Hungria, religiosa<br />
(†1231).<br />
Santo Hugo de Novara, abade<br />
(†s. XII). Enviado por São Bernardo<br />
de Claraval, estabeleceu a Ordem<br />
Cisterciense na Sicília e na Calábria,<br />
Itália.<br />
18. Dedicação das Basílicas de São<br />
Pedro e São Paulo, Apóstolos.<br />
Beata Carolina Kózka, virgem e mártir<br />
(†1914). Por defender sua castidade<br />
ameaçada por um soldado, foi atravessada<br />
por uma espada em Wal-Ruda, Polônia,<br />
morrendo ainda adolescente.<br />
19. Santos Roque González, Afonso<br />
Rodríguez e João del Castillo, presbíteros<br />
e mártires (†1628).<br />
Santo Abdias, profeta. Depois do<br />
exílio do povo de Israel, anunciou a ira<br />
do Senhor contra os povos inimigos.<br />
peregrino. Morreu em Constantinopla,<br />
onde lutou pelo culto das imagens<br />
sagradas.<br />
21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />
São Gelásio I, Papa (†496). Ilustre<br />
por sua doutrina e santidade. Morreu<br />
em extrema pobreza, devido à caridade<br />
com que socorreu as carências dos<br />
indigentes.<br />
22. Solenidade de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, Rei do Universo.<br />
Santa Cecília, virgem e mártir<br />
(†s. inc.).<br />
São Filêmon de Colossos (†s. I).<br />
Na carta a ele destinada, o Apóstolo<br />
das Gentes elogia sua fé e seu amor a<br />
Cristo. Junto com ele é venerada sua<br />
esposa Santa Ápia.<br />
23. São Clemente I, Papa e mártir<br />
(†s. I).<br />
São Columbano, abade (†615).<br />
Santa Cecília Yu So-sa, mártir<br />
(†1839). Sendo viúva, foi privada de seus<br />
bens, presa e sujeita doze vezes a interrogatórios.<br />
Exausta pelos suplícios do espancamento,<br />
morreu em Seul, Coreia.<br />
24. Santo André Dung-Lac, presbítero,<br />
e companheiros, mártires (†1625-<br />
1886).<br />
Santo Alberto de Lovaina, bispo e<br />
mártir (†1192). Foi exilado por defender<br />
a Igreja e assassinado em Reims,<br />
França, no mesmo ano em que foi ordenado<br />
Bispo de Liège, atual Bélgica.<br />
25. Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem e mártir (†s. inc.).<br />
26. São Leonardo de Porto Maurício,<br />
presbítero (†1751). Sacerdote franciscano,<br />
empregou quase toda a sua vida<br />
na pregação, na publicação de livros<br />
de piedade e em mais de trezentas<br />
missões pregadas em Roma, na ilha da<br />
Córsega e por toda a Itália setentrional.<br />
lo Rei Pepino, foi nomeado para dirigir<br />
a Igreja de Salzburgo, Áustria.<br />
Construiu a Catedral de São Ruperto.<br />
28. Santa Teodora, abadessa (†980).<br />
Discípula de São Nilo, o Jovem, e mestra<br />
de vida monástica, perto de Rossano,<br />
Itália.<br />
29. I Domingo do Advento.<br />
São Tiago de Sarug, bispo (†521). É<br />
venerado pelos sírios como doutor e coluna<br />
da Igreja, junto com Santo Efrém.<br />
30. Santo André, Apóstolo.<br />
São José Marchand, presbítero e<br />
mártir (†1875). Sacerdote da Sociedade<br />
das Missões Estrangeiras de Paris,<br />
que no tempo do Imperador Minh<br />
Mang, foi condenado ao suplício dos<br />
cem açoites em Hué, Vietnã.<br />
Flávio Lourenço<br />
20. São Gregório Decapolita, monge<br />
(†842). Foi cenobita, anacoreta e<br />
27. São Virgílio, bispo (†784). Irlandês<br />
de grande cultura, apoiado pe-<br />
Santo Afonso Rodríguez<br />
25
Hagiografia<br />
Flávio Lourenço<br />
Cantou com<br />
Nossa Senhora<br />
e os Anjos<br />
São Félix de Valois - Santuário<br />
de Nuestra Señora de la<br />
Fuensanta - Murcia, Espanha<br />
No convento do qual São Félix de<br />
Valois era Superior, certa madrugada<br />
um irmão esqueceu de soar Matinas. O<br />
varão de Deus foi, então, ao coro para<br />
fazer os arranjos necessários e viu Nossa<br />
Senhora sentada num trono magnífico,<br />
e os Anjos nas estalas. Todos trajavam<br />
o hábito de sua Ordem e começaram a<br />
cantar. Com serenidade, ele mesclou o<br />
seu canto com aquelas vozes celestes.<br />
São Félix de Valois, da família<br />
real francesa, fundou com São<br />
João da Matha a Ordem dos<br />
Trinitários para resgate dos cativos.<br />
O modo em que viviam e eram tratados<br />
os cativos nos explica bem porque<br />
uma Ordem religiosa foi fundada especialmente<br />
para essa finalidade.<br />
Libertar os cativos visava<br />
resgatar principalmente<br />
os irmãos na Fé<br />
Um reino maometano não era,<br />
propriamente, um Estado organizado<br />
como nós o concebemos. Quem vê<br />
aqueles palácios, como Alhambra por<br />
exemplo, pensa que moravam ali reis<br />
com um mínimo de decência da praxe<br />
inerente a todo Estado organizado,<br />
com uma sucessão dinástica regular.<br />
Ora, na realidade, tratava-se de<br />
uma espécie de Estado-bandido vivendo,<br />
como os bárbaros, numa luta<br />
habitual de saques e pilhagens contra<br />
quem não fosse eles, e muitas vezes<br />
contra eles mesmos também.<br />
De maneira que cada um daqueles<br />
reinos, como o de Granada, não<br />
possuía uma verdadeira elite e cons-<br />
tituía, até certo ponto, uma espécie<br />
de antro de bandidos que viviam de<br />
pirataria no mar e em terra, roubando<br />
como uma fonte habitual de renda<br />
e apoderando-se de cativos como<br />
um modo costumeiro de conquistar<br />
mão de obra e de incutir terror no<br />
adversário.<br />
Notem o paralelismo: do lado católico<br />
o prisioneiro de guerra era<br />
muito melhor tratado do que do lado<br />
muçulmano. Assim, quando estavam<br />
em guerra, os católicos lutavam<br />
em inferioridade de condições, porque<br />
os mouros tinham menos medo<br />
26
de ser presos do que os cristãos, os<br />
quais, se fossem capturados, seriam<br />
pessimamente tratados ao chegarem<br />
à zona maometana. Por vezes, prisioneiros<br />
importantes eram desfigurados,<br />
horrorosamente maltratados,<br />
mortos e, com muita frequência, corrompidos<br />
moralmente. Era, portanto,<br />
uma situação miserável também<br />
do ponto de vista moral.<br />
Então, a ideia de libertar os cativos<br />
visava resgatar os irmãos na raça,<br />
mas principalmente os irmãos na Fé.<br />
Era muito mais para salvar dos perigos<br />
da alma do que dos tremendos<br />
riscos do corpo. Pairava em toda a<br />
população uma preocupação: a perdição<br />
eterna daqueles que tinham sido<br />
aprisionados pelos maometanos.<br />
Miséria do<br />
mundo atual:<br />
pactuar com<br />
os regimes<br />
perseguidores<br />
dos católicos<br />
Muitas vezes, libertar<br />
os cativos era uma<br />
das razões das expedições<br />
católicas contra os<br />
muçulmanos. Os cristãos<br />
que delas participavam<br />
punham em risco<br />
suas vidas, sua liberdade<br />
e, de algum modo,<br />
sua própria salvação<br />
eterna, porque também<br />
eles podiam ser presos<br />
ao tentarem resgatar<br />
seus irmãos na Fé.<br />
Havia alguns que<br />
não partiam em expedição,<br />
mas pediam esmolas<br />
para pagar o resgate<br />
dos cativos. Enfim, trabalhava-se<br />
constantemente<br />
com essa intenção<br />
de libertar os cristãos<br />
capturados pelos<br />
mouros.<br />
A ideia de que uma parte da Cristandade<br />
estava sujeita ao regime pagão,<br />
a todos os sofrimentos e perigos<br />
do cativeiro entre os pagãos, gerava<br />
nos católicos uma imensa compaixão,<br />
um enorme zelo pela salvação<br />
daquelas almas, um grande senso<br />
de honra cristã.<br />
Como sempre aconteceu na História<br />
da Igreja, quando há uma grande<br />
necessidade da Esposa Mística de<br />
Cristo a Providência suscita uma Ordem<br />
religiosa para socorrê-la, a qual é,<br />
ao mesmo tempo, uma família de almas<br />
e um instrumento de ação novo.<br />
São Félix de Valois surgiu, portanto,<br />
como um dos Santos que encarnaram<br />
esse ideal, que sentia o problema<br />
com toda a energia das graças<br />
Missa da Fundação da Ordem dos Trinitários<br />
Museu do Louvre, Paris<br />
sobrenaturais que ele recebeu para<br />
isso e, por assim dizer, polarizou essa<br />
preocupação disseminada por todo<br />
o corpo social, chamando a si o<br />
encargo da fundação dessa Ordem.<br />
A Ordem da Santíssima Trindade<br />
tornou-se famosa e realizou um trabalho<br />
prodigioso, atuando até o fim<br />
do século XVIII. As nações árabes<br />
do Norte da África perderam qualquer<br />
possibilidade de fazer novos<br />
cativos, e essa Ordem religiosa encheu-se<br />
de glória.<br />
Chamo a atenção para o contraste<br />
entre a atitude dos católicos do tempo<br />
de São Félix de Valois em face<br />
dos cativos, e a indiferença reinante<br />
em nossos dias diante dos milhares<br />
de católicos que sofrem perseguição<br />
– muitas vezes tão brutal<br />
como outrora – por<br />
quererem permanecer<br />
fiéis à sua Fé.<br />
Quase ninguém se<br />
incomoda com isso.<br />
Não se tem zelo nem<br />
vontade de combater.<br />
Pior ainda, há uma espécie<br />
de apetência de<br />
ceder, de pactuar com<br />
os regimes que promovem<br />
essa perseguição.<br />
Compreendemos, então,<br />
a miséria que se<br />
apoderou da Cristandade.<br />
Louvre (CC3.0)<br />
Ressuscitou um<br />
jovem príncipe<br />
A respeito de São<br />
Félix de Valois, temos<br />
os seguintes dados biográficos<br />
extraídos do<br />
livro Vida dos Santos,<br />
do Abbé Daras:<br />
São Félix de Valois<br />
foi grande por seu nascimento<br />
e maior ainda<br />
por suas virtudes. Seu<br />
pai era Conde de Vermandois<br />
e de Valois,<br />
27
Hagiografia<br />
filho do Duque de França e neto de<br />
Henrique I, Rei de França. Sua mãe<br />
era filha de Thibaud III, chamado o<br />
Grande, Conde de Blois e de Champagne.<br />
Quando de sua gestação, sua mãe<br />
fez uma novena a São Hugo, Bispo<br />
de Rouen. No último dia da novena,<br />
estando de joelhos diante do altar do<br />
santo prelado, ela adormeceu e viu<br />
em sonho a Bem-aventurada Virgem<br />
Maria segurando seu Divino Filho em<br />
seus braços. Ao seu lado estava uma<br />
outra criança, bela e graciosa. Nosso<br />
Senhor levava uma cruz nos ombros,<br />
e a outra criança segurava uma coroa<br />
de flores nas mãos. Então fizeram<br />
uma troca: Nosso Senhor deu sua cruz<br />
à criança, que Lhe entregou a coroa.<br />
A princesa procurava entender o<br />
sentido da visão quando São Hugo<br />
apareceu e lhe disse: “Esta criança<br />
que tu não conhecias é teu filho, que<br />
trocará as flores-de-lis de França pela<br />
cruz de Jesus Cristo, e ele a dividirá<br />
contigo para que ambos se assemelhem<br />
a Jesus Crucificado.”<br />
Com efeito, o menino dividiu a cruz<br />
em duas partes, dando uma a sua mãe<br />
e guardando outra consigo.<br />
Após a morte de sua mãe, São Félix<br />
foi chamado à corte onde tomou<br />
a cruz para acompanhar o rei numa<br />
Cruzada. Um dia em que se exercitava<br />
num torneio com o príncipe, este<br />
caiu do cavalo vindo a falecer. O<br />
Santo correu ao local, tomou a mão<br />
do cadáver e lhe disse: “Em nome<br />
da Trindade Santa, levanta-te!” No<br />
mesmo instante, o jovem levantou-se<br />
curado.<br />
União da coragem militar<br />
à modéstia do religioso<br />
Durante a Cruzada, São Félix deu<br />
mostras do seu valor e virtude. Mantinha,<br />
no meio do campo de luta, a vida<br />
austera de Claraval, unindo ao ardor<br />
e coragem militar a modéstia e<br />
discrição do religioso. Distinguiu-se<br />
em todas as batalhas das quais tomou<br />
parte e, quando voltou a Paris, quis se<br />
dar a Deus.<br />
Embora fosse um dos mais próximos<br />
herdeiros do rei, trocou realmente<br />
a flor-de-lis pela cruz e fez-se religioso.<br />
Após a fundação da Ordem dos<br />
Trinitários para a redenção dos cativos,<br />
São Félix foi encarregado da direção<br />
de um convento. Instruídos por<br />
sua palavra e seus exemplos, os religiosos<br />
levavam vida exemplar, de tal<br />
forma que a Santíssima Virgem e os<br />
Anjos dignaram-se honrar com sua<br />
presença esse mosteiro.<br />
Em certa véspera da natividade de<br />
Nossa Senhora, tendo o sacristão esquecido<br />
de soar as Matinas, São Félix<br />
desceu ao coro para preparar o que<br />
era necessário. Mas ele já o encontrou<br />
ocupado pelos Anjos, vestidos com o<br />
hábito de sua Ordem. A Santíssima<br />
Virgem, também de hábito, sentada<br />
sobre um trono, presidia essa assembleia.<br />
Parecia que esperavam o Santo<br />
para começar as Matinas, porque logo<br />
que este entrou a Santíssima Virgem<br />
entoou a antífona, a qual foi continuada<br />
pelos Anjos com uma harmonia<br />
incomparável. E São Félix cantou<br />
com os Anjos. Quando a visão desapareceu,<br />
ficou em sua face extraordinário<br />
esplendor.<br />
A Santíssima Virgem<br />
entoou a antífona<br />
Que cena maravilhosa! Um convento<br />
com tanto fervor, onde se dá<br />
Er Komandante (CC3.0)<br />
Alhambra, Granada<br />
28
tal glória a Deus que, num dia, por<br />
um desígnio divino, um irmão esquece<br />
de soar Matinas e a Providência<br />
faz isso para operar uma maravilha<br />
maior!<br />
Os Anjos vestidos de religiosos<br />
enchem as estalas do coro, Nossa Senhora,<br />
sentada num trono magnífico,<br />
entoa a antífona e todos os espíritos<br />
celestes cantam! São Félix de<br />
Valois chega ali e, em vez de se espantar<br />
e perder a cabeça, mistura o<br />
seu canto com o dos Anjos e da Santíssima<br />
Virgem!<br />
Esse foi um ponto-ápice da vida<br />
desse príncipe, toda ela constante de<br />
uma série de fatos tão bonitos que<br />
davam para se fazer com eles um<br />
verdadeiro colar constituído de placas<br />
de esmalte, em que cada uma reproduzisse<br />
um desses episódios. Teríamos,<br />
assim, um dos mais belos colares<br />
da História, de tal maneira essa<br />
vida é maravilhosa.<br />
Deparamo-nos, nesta narração,<br />
com o mistério da predestinação.<br />
Antes de o príncipe nascer, a Providência<br />
tinha resolvido fazer dele<br />
uma verdadeira maravilha. Donde<br />
aquele sonho admirável que sua<br />
mãe teve, no qual aparece o príncipe,<br />
o Menino Jesus e Nossa Senhora,<br />
e as relações que haveria entre o Divino<br />
Infante e São Félix são explicadas<br />
para a mãe.<br />
Mais tarde vemo-lo como lutador,<br />
como grande guerreiro, e depois<br />
como religioso que renuncia a<br />
todas as coisas da Terra para se ocupar<br />
só com a Ordem religiosa. Afinal<br />
de contas, essa espécie de glorificação<br />
na Terra, que é a entrada de<br />
Maria Santíssima e dos Anjos no seu<br />
convento para junto com ele glorificarem<br />
a Deus.<br />
O Reino de Maria será mil<br />
vezes mais esplendoroso<br />
De cada uma dessas coisas se poderia<br />
fazer uma iluminura ou um esmalte<br />
maravilhoso, constituindo-se<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1964<br />
uma biografia das mais bonitas que<br />
se possa conceber.<br />
Em última análise, essa biografia<br />
significa o seguinte: a Idade Média<br />
dando muita glória a Nossa Senhora<br />
que, contente com essa era histórica,<br />
multiplica os prodígios para manifestar<br />
o quanto Ela estava satisfeita.<br />
Este é um desses gêneros de prodígios<br />
em série, feitos para exprimir<br />
a alegria de Maria Santíssima.<br />
Devemos nos deter embevecidos<br />
na contemplação desses fatos, porque<br />
assim compreendemos o que é<br />
a misericórdia de Deus e de quantos<br />
esplendores a Civilização Cristã<br />
é capaz. Se esses episódios se passaram<br />
na Idade Média, que maravilhas<br />
veremos no Reino de Maria, o qual<br />
vai ser ainda superior àquela era histórica?<br />
Assim, compreendemos que todo<br />
suor, sangue e lágrimas que vertemos<br />
atualmente para instaurar o<br />
Reino de Maria na Terra, estão muito<br />
bem recompensados. Quando<br />
contemplarmos essa época histórica<br />
vindoura e descobrirmos coisas ainda<br />
mais bonitas que as de outrora,<br />
e pensarmos que a Providência quis<br />
servir-Se de nós a fim de fazer cessar<br />
estes horrores contemporâneos<br />
para vir a era dessas maravilhas, então<br />
poderemos dizer, parafraseando<br />
Jó: “Bendito o dia que me viu nascer,<br />
benditas as estrelas que me viram<br />
pequenino, bendito o momento<br />
em que minha mãe disse: nasceu um<br />
homem!”<br />
Realmente, cada um de nós poderá<br />
dizer isso, pois teremos, pela força<br />
de Nossa Senhora, derrubado toda a<br />
cidade da iniquidade e feito nascer o<br />
Reino de Maria, mil vezes mais esplendoroso<br />
do que esses esplendores<br />
que acabamos de considerar. v<br />
(Extraído de conferências de<br />
20/11/1964 e 19/11/1965)<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
29
Apóstolo do pulchrum<br />
Anuragtripathi (CC3.0)<br />
Contrários harmônicos<br />
na arquitetura oriental<br />
Os contrários harmônicos das construções orientais parecem<br />
indicar que não foram pensados de uma só vez. Uma geração<br />
construiu uma torre, mais tarde surgiu o desejo de satisfazer<br />
algo brotado do fundo da alma e acrescentou-se uma cúpula.<br />
O resultado final é algo mítico, próprio ao oriental.<br />
Ao analisar o Taj Mahal, tenho a impressão de<br />
que seria preciso distinguir, nunca separar –<br />
porque ficaria um monstro –, dois elementos<br />
nos quais se realiza um equilíbrio prodigioso: as partes<br />
laterais e a linha constituída pela cúpula e pelo corpo<br />
central, destacado pelas duas torrezinhas. Parece-me in-<br />
dispensável considerar as partes isoladas para compreender<br />
o todo.<br />
Contrários harmônicos do Taj Mahal<br />
Há um aspecto interessantíssimo e muito bonito que<br />
é o seguinte: à primeira vista, na parte central está o pe-<br />
30
so. Entretanto, existe um jogo bivalente pelo qual, ao<br />
mesmo tempo em que, visto de um lado, o conjunto parece<br />
leve, considerado por outro prisma trata-se de um<br />
“cupulão” pesado, de esmagar. Como fazer para um corpo<br />
de edifício carregar essa cúpula pesada não só mantendo<br />
certo ar de leveza, mas até dando a impressão de<br />
que a cúpula suspende e não achata?<br />
A enorme porta, que tem qualquer coisa de ogival e de<br />
vazado – o elemento vazado possui um enorme papel nisso<br />
– sustenta a cúpula num equilíbrio perfeito. De maneira<br />
que não se pode dizer que ela fique propriamente<br />
leve, mas não se percebe o peso. Quando o “balão” remete<br />
para cima, a porta e tudo o mais ficam elevados. Neste<br />
sentido há entre o leve e o pesado uma espécie de jogo<br />
sumamente bem posto e que dá a ideia de harmonia,<br />
a meu ver expressa nos seguintes termos: estabilidade<br />
harmônica perfeita, porque possante e leve.<br />
O conjunto lucra muito em expressão com as torrezinhas<br />
laterais, que constituem uma espécie de analogado<br />
primário em relação à cúpula central, mas têm por<br />
analogados primários os altos dos minaretes laterais, os<br />
quais são muito pequenos em relação às torrezinhas, e<br />
estas, por sua vez, são pequenas em relação à cúpula do<br />
centro. Tal graduação ajuda a dar a ilusão de leveza.<br />
Essa é a simetria dos contrários harmônicos. A genialidade<br />
do artista original consiste em inventar uma forma<br />
de oposição na qual ninguém pensou, mas que não<br />
resulta em nenhum monstro à maneira da arte moderna.<br />
MANISH G. CHAUHAN (CC3.0)<br />
Adithya0376 (CC3.0)<br />
31
Apóstolo do pulchrum<br />
Rameshng (CC3.0)<br />
ser posto num objeto colateral análogo, porque, para o<br />
olhar humano, eles formam um só conjunto.<br />
No Taj Mahal, num primeiro momento, surpreende<br />
um pouco tanto o tamanho da cúpula quanto o da porta.<br />
Seríamos levados quase a dizer: “Exageros harmônicos.”<br />
Entretanto, o que me parece genial é como o arquiteto<br />
conseguiu dar ao retângulo tanta força que, vazando-o,<br />
restabeleceu a leveza. O vazado é muito oriental,<br />
misterioso, quase como um olhar. Está muito bem<br />
feito.<br />
Feudalidade expressa nas torres<br />
das construções russas<br />
É interessante notar a reversibilidade entre os princípios<br />
arquitetônicos e o relacionamento humano.<br />
Na ordem civil monárquica bem<br />
constituída, a aristocracia é um<br />
elemento mais importante<br />
do que a monarquia.<br />
Contudo, na ordem<br />
Sujith Naik (CC3.0)<br />
Sunilbhar (CC3.0)<br />
Tenha gênio, faça<br />
algo que tire desse<br />
mare magnum de possibilidades<br />
dos contrários<br />
harmônicos uma beleza nova, e<br />
não seja cretino.<br />
A unidade artística e o contrário harmônico<br />
Tiramos disso um princípio muito curioso: quando<br />
quisermos dar a um determinado elemento uma expressão<br />
à qual ele não se presta – neste caso, a de leveza –, se<br />
colocarmos ao seu lado algo análogo dotado dessa expressão,<br />
tudo se exprime no espírito humano num todo só.<br />
Nesse sentido, os microminaretes exercem um papel<br />
importante. É um jogo de analogias do menor para<br />
o maior cuja relação se explica no todo, em que cada<br />
elemento torna mais leve o outro, abrindo-se para o infinito.<br />
Ademais, há um princípio de analogia pelo qual, sempre<br />
que numa determinada linha ou unidade artística<br />
não se consegue colocar o contrário harmônico inteiro<br />
como se deseja, algo desse contrário harmônico pode<br />
32
eclesiástica dá-se o contrário: a monarquia é um elemento<br />
mais importante do que a aristocracia.<br />
Não haveria uma contradição nisso? Não, porque a<br />
Igreja tem uma natureza tal que ela abarca o conjunto<br />
de todas as almas batizadas do mundo, e não haverá<br />
nunca um Estado que abranja todas as almas do mundo.<br />
A esfera temporal, como uma ordem mais baixa, pede<br />
uma espécie de federalização que a espiritual não comporta.<br />
Donde um Sacro Império, por exemplo, constituir<br />
uma federação de federações.<br />
Quanto mais penso sobre o feudalismo, mais me convenço<br />
de que a sua debilitação começou a partir do momento<br />
em que os feudos maiores começaram a absorver<br />
os menores. A plenitude de força e de vida do feudo pequeno<br />
é a base viva do sistema feudal. Onde tal senhor<br />
feudal tem dois mil castelos, já se trata de um feudalismo<br />
morto. Ele até pode federar sob sua autoridade dois<br />
mil feudos vivos, mas apenas na medida em que não os<br />
absorver.<br />
Em certas construções russas notamos muito essa<br />
unidade feudal. Cada torre afigura-se estuante de vitalidade<br />
própria e, é curioso, parece ignorar completamente<br />
a outra. Tem-se a impressão de que elas estão cegas uma<br />
para a outra e só se explicam do alto de um cone ou do<br />
fundo de uma distância da qual são vistas juntas. Então<br />
se elucidam fabulosamente e os contrários harmônicos<br />
se afirmam, primeiramente entre a cúpula e a base em<br />
cada uma delas, e depois elas entre si. Cada uma é, até<br />
certo ponto, o contrário harmônico da outra.<br />
Toda a glória e riqueza<br />
encontram-se nas cúpulas<br />
A meu ver, o auge do estilo russo é a Catedral de São<br />
Basílio, onde a tal simetria dos contrários harmônicos<br />
se afirma muito mais ricamente do que em outros edifícios<br />
russos, nos quais, por vezes, há uma igualdade empobrecedora<br />
entre uma torre e outra.<br />
Entretanto, mesmo nessas outras construções, o jogo<br />
dos contrários harmônicos das transcendências aparece<br />
nisto: ora uma torre transcende à outra por analogia,<br />
ora por contrariedade. Esse jogo da analogia e da con-<br />
Uwe Brodrecht (CC3.0)<br />
Alexander Patrikeev (CC3.0)<br />
33
Mario Modesto Mata (CC3.0)<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
trariedade está sempre presente, inclusive quando há<br />
uma torre central mais nobre, com a cúpula dourada,<br />
que supera as circunstantes.<br />
Em muitos desses edifícios toda a glória e riqueza<br />
da construção encontram-se nas cúpulas coloridas, nas<br />
quais se veem estrelas que, embora não estejam jogadas<br />
inteiramente a esmo, também não estão dispostas<br />
em linha reta. Outras cúpulas são elaboradas de tal modo<br />
que se tornam sumamente visíveis quando os raios<br />
do Sol incidem sobre elas, mas que, devido ao seu material<br />
e colorido, em certos momentos parece que a cúpula<br />
se diluiu no céu, formando uma espécie de corpo etéreo<br />
de matéria meio sólida, meio gasosa, encimada por uma<br />
cruz e terminando num sonho.<br />
O oriental não planeja tudo<br />
logo, cria ao acaso<br />
Tem-se a impressão de que uma maravilha dessas não<br />
foi planejada de uma vez, mas aos poucos. O arquiteto<br />
diz: “Que interessante seria fazer uma torre com uma cúpula<br />
verde...” E faz a torre. Depois de tê-la feito, ele mesmo<br />
provê o projeto de um contrário harmônico para satisfazer<br />
uma outra apetência da própria alma. Gerações<br />
depois, um artista, à força de contemplar, pensa: “Seria<br />
interessante tal detalhe assim para equilibrar essa catedral...”<br />
E põe. Cada geração vai enriquecendo e embelezando<br />
aquela obra de arte. A meu ver, se não tivesse caído<br />
o regime czarista e não entrasse aquela fixidez do absolutismo,<br />
haveria outros edifícios que aos<br />
poucos iam sendo assim compostos.<br />
Então, se fosse um arquiteto católico<br />
construiria, por exemplo, uma capelinha<br />
a Nossa Senhora de Fátima que teria um<br />
contrário harmônico inteiramente surpreendente,<br />
com um nicho ali perto. Depois,<br />
começaria uma grande popularidade<br />
em torno dessa capelinha, e outro arquiteto<br />
abriria uma espécie de concavidade<br />
na torre para caber o povo... E, assim,<br />
cada um faria o contrário harmônico ao<br />
que fora elaborado na geração anterior,<br />
de um modo meio surpreendente, à medida<br />
que as almas fossem sentindo necessidade<br />
de pôr contrastes harmônicos. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
2/10/1974)<br />
Julius Silver (CC3.0)<br />
MarinkaGal (CC3.0)<br />
34
Florstein (CC3.0)
LBM1948 (CC3.0)<br />
Luis C.R. Abreu<br />
Oceano de graças<br />
Nossa Senhora é verdadeiramente um oceano de graças.<br />
Como o mar está para as outras águas, assim Se encontra<br />
Maria em relação aos outros homens, pela abundância<br />
e imensidade de dons celestiais com que foi enriquecida por Deus.<br />
Por outro aspecto, assim como todas as águas, em última análise,<br />
correm para o grande oceano, também todas as graças confluem para<br />
a Santíssima Virgem e nos são concedidas por sua intercessão.<br />
(Extraído de conferência de janeiro de 1966)