COLETÂNEA ELAS NAS LETRAS
A «ELAS nas Letras» nasce da iniciativa da Pastoral da Mulher Marginalizada de realizar uma incursão na Literatura, para além de sua militância em prol das mulheres em situação de violência, abandono e prostituição. O modelo da coletânea segue o projeto «Antologias Solidárias», comandado pela escritora Sada Ali, cujos primeiros parceiros foram, em 2015, a Academia Barretense de Cultura (ABC) e a Casa Transitória «André Luiz», beneficiária da venda da 1ª edição das Antologias Solidárias, em 2016. As «Antologias» seguintes foram lançadas em Ribeirão Preto, junto à UGT (Memorial da Classe Operária) e em Barretos, junto ao Fundo Social de Solidariedade, além de mais uma obra em parceria com a ABC. Agora é hora das mulheres assumirem, mais uma vez, o protagonismo e, através das letras, deixarem sua mensagem de empoderamento e luta.
A «ELAS nas Letras» nasce da iniciativa da Pastoral da Mulher Marginalizada de realizar uma incursão na Literatura, para além de sua militância em prol das mulheres em situação de violência, abandono e prostituição.
O modelo da coletânea segue o projeto «Antologias Solidárias», comandado pela escritora
Sada Ali, cujos primeiros parceiros foram, em 2015,
a Academia Barretense de Cultura (ABC) e a Casa Transitória «André Luiz»,
beneficiária da venda
da 1ª edição das Antologias Solidárias, em 2016.
As «Antologias» seguintes foram lançadas em Ribeirão Preto, junto à UGT (Memorial da Classe Operária) e em Barretos, junto ao Fundo Social de Solidariedade, além de mais uma obra em parceria com a ABC.
Agora é hora das mulheres assumirem, mais uma vez, o protagonismo e, através das letras, deixarem sua mensagem de empoderamento e luta.
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Copyright © Editora Pirapora
Coletânea “Elas nas Letras”
Realização: Pastoral da Mulher Marginalizada de Barretos
Apoio: Secretaria de Cultura de Barretos/Prefeitura de Barretos
Coordenação do projeto: Sada Ali
Revisão/Edição: Luiz Felipe Nunes (Pirapora Editora/MaTV)
Composição Eletrônica: Pirapora Editora
Impressão: Ativa Gráfica e Editora
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
AL398
Ali, Sada, Vários Autores
Coletânea “ELAS nas Letras”: 1ª edição
Pastoral da Mulher Marginalizada de Barretos/Prefeitura de Barretos
Pirapora Editora, 2020.
ISBN 978-65-991598-0-0
1. Contos brasileiros - Coletânea 2. Crônicas brasileiras - Coletânea 3. Poesias
brasileiras - Coletânea I Ali, Sada - Vários Autores
Índices para catálogo sistemático:
CDD-B869.8
CDU-82.8
1. Coletânea/Miscelânea de Escritos Brasileiros
B869.8
A responsabilidade pelo conteúdo desta coletânea é reservado à
Pastoral da Mulher Marginalizada de Barretos e aos autores dos textos.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob
quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos autores.
2020
Editora Pirapora
Rua Jeremias de Paula Eduardo, 2006 - Centro
15910-000, Monte Alto, SP
(16) 99709-1146 - monteatv@gmail.com
Pelo fato de ser mulher, suportou seu destino passivamente, parecendo
que lhe roubaram suas possibilidades, que escorregou da juventude
para a maturidade sem ter tomado consciência disso.
Descobre que seu marido, meio e ocupações não eram dignos de si;
sente-se incompreendida.
Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo – Livro 1: Fatos e Mitos”.
4ª Edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
Porque o ideal de mulher branca, sedutora mas não puta, bem casada
nas não nula, que trabalha mas sem tanto sucesso para não esmagar
seu homem, magra mas não neurótica com a comida, que continua
indefinidamente jovem sem se deixar desfigurar por cirurgias
plásticas, uma mamãe realizada que não se deixa monopolizar pelas
fraldas e pelos deveres de casa, boa dona de casa sem virar empregada
doméstica, culta mas não tão culta quanto um homem; essa mulher
branca e feliz, cuja imagem nos é esfregada o tempo todo na cara, essa
mulher com a qual deveríamos nos esforçar para parecer — tirando
o fato de que elas devam ficar de saco cheio com qualquer coisa —,
devo dizer que jamais a conheci, em lugar algum. Acredito até que ela
nem mesmo exista.
Virginie Despentes, “Teoria King Kong”.
1ª Edição. São Paulo: N-1 Edições, 2016.
Sobre a Edição
Sada Ali, Luiz Felipe Nunes 6
Prefácio
Maria Augusta Dib (PMM) 8
Adriana Queiroz
Poemas 23
Fátima França
Fênix 32
Flávia Cunha
A história de Jurema 42
Glaucia Martins Simões
Evolução Histórica da Mulher 53
Luciene Figueiredo
Arquitetura da Paz 71
Maria Queiroz da Cunha
Contos de Maria 84
Maria Augusta Araujo Teles
Poemas 98
Mariana Ducatti
Mulher, Seja! 107
Rosa Carneiro
Quando o amor é mais forte 116
Thaís Mendes Moura Carneiro
Um mergulho em mim 138
77
29
S U M Á R I O
Nota de Apoio
7 João Batista Chicalé
Adalgisa Borsato
13 Jocilene e Rosiclei
e O Perfume das Flores
Ana Paula Geraige
Questão Cultural,
Histórica e Patológica
Fátima Abon Ali Simamura
35 Linda era seu nome
Glaucia Chiarelli
47 Compreensão? Tá tudo bemEm
12 atos
Karla Armani Medeiros
57 A pianista Haydée Menezes:
viagens nas pontas dos dedos
Lucimara Leite
Christine de Pizan: uma escrita pela igualdade
Maria Augusta Dib
92 ELAS no lugar de fala, escrita,
exercício político privado e público
Maria Teresa Vieira
103 IKIGAI
Miriam Leirias
111 Lembranças de cobras e lagartos/
Os tempos eram assim
Sada Ali
126 Lá vem a Teresa Torta...
SOBRE A EDIÇÃO
A Coletânea ELAS nas Letras é a quinta produção literária cooperativa
a ser publicada, desde 2015, dentro do projeto Antologias Solidárias.
Com autores de 17 cidades de Brasil e Portugal, essas edições ocorreram
em parceria e benefício da UGT – Memorial da Classe Operária, de
Ribeirão Preto, e das entidades barretenses: Casa Transitória “André Luiz”,
Academia Barretense de Cultura (ABC) e Fundo Social de Solidariedade, da
Prefeitura de Barretos – em parceria com a Secretaria de Cultura.
E é repetindo essa parceria com o município que chegamos à Pastoral
da Mulher Marginalizada (PMM) de Barretos. A importância e o
impacto desse trabalho surpreenderam a coordenação das Antologias
que, de pronto, pensou em reunir escritoras para contarem histórias, a
partir do lugar da fala feminino.
É a primeira obra do projeto que tem, também, como foco, a questão
de gênero. É uma discussão ampla, que escapa às limitações biológicas e
adentra o complexo emaranhado social e, sobretudo, de identidade humana.
Nesse sentido, 20 mulheres, das mais variadas ocupações, faixas
etárias e, cada uma, com sua identidade e visão de mundo, colaboraram
na construção dessa importante obra, desde o rateio de parte das despesas
– as demais, cobertas com apoio da Secretaria de Cultura de Barretos,
ao compartilhamento de seus universos interiores, através de contos,
crônicas e poesias que compõem esse trabalho.
ELAS nas Letras. Mais um esforço de suporte à PMM e, sobretudo,
instrumento de força, de protagonismo da mulher, em seu árduo caminho
contra as opressões históricas, sociais e mesmo “antropológicas” em tempos
que até a pandemia significa aumento de violência (sobretudo doméstica)
contra a mulher.
Sada Ali – coordenadora
Luiz Felipe Nunes – editor
NOTA DE APOIO
A Secretaria de Cultura de Barretos aceitou, de pronto, esse novo
convite da coordenação do projeto Antologias Solidárias, para apoiar a
Literatura, sobretudo quando se trata de um fazer cultural engajado, com
um foco social importante.
Afinal, o sucesso do projeto de Sada Ali e Luiz Felipe Nunes já se
mostrou patente, à cidade, em outras iniciativas, envolvendo importantes
entidades locais e, mesmo nosso Fundo Social de Solidariedade.
Para além desses aspectos, todo e qualquer esforço para que a leitura
seja (ou volte a ser) hábito é essencial e deve ser suportado e digno
de aplausos.
O fato de serem autoras que residem ou residiram em Barretos faz
com que, até mesmo quem pense em escrever veja, nessas obras, que é
possível produzir e ver seu trabalho publicado.
Estimular novos leitores e, quem sabe, escritores, urge.
Quanto menos se lê, menos exercitamos a mente criativa e mais reféns
de “ideias prontas” nos tornamos. No mundo atual, de tanta circulação
de informação, mas filtros débeis para fatos, refletir, ler o contexto
(mais que o texto) é pré-requisito básico para sermos cidadãos – e pessoas
– que se expressem com ética e valores que devem ser construídos
pela nossa leitura – e não “pré-fabricados”, digeridos e entregues a nós:
não podemos terceirizar o que somos e pensamos.
Nesse momento de pandemia – e após sua superação – a “receita”
para uma sociedade saudável segue a mesma: o ponto de partida é, como
sempre foi, a leitura.
O melhor raciocínio que podemos ter é aquele construído por nós
mesmos. A leitura nos dá os tijolos, o cimento e toda estrutura que precisamos.
A partir dessa obra, leiamos mais!
João Batista Chicalé – secretário de Cultura de Barretos
PREFÁCIO
Os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus (Mt 21,31)
A Pastoral da Mulher Marginalizada cumprimenta e agradece
Sada Ali pela iniciativa da Coletânea ELAS nas Letras, bem como todas as
escritoras que se entregaram à realização desta, que além de contribuir
culturalmente com a sociedade, apoiará financeiramente a Equipe Semear
da PMM de Barretos.
A PMM segue as diretrizes das Pastorais Sociais da CNBB – Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil. Nasceu na década de 60, por iniciativa
de Dom Fragoso nos Estados do Nordeste brasileiro (Maranhão, Piauí
e Ceará) com a missão de ser presença solidária profética e evangélica
junto à mulher, adolescente, jovem e adulta em situação de prostituição,
oferecendo-lhes relações humanas e humanizadoras que lhes fortaleçam
a autoestima, o protagonismo e a cidadania.
Acompanhando as mulheres em situação de prostituição, a PMM
lhes oferece condições de construção de novas relações consigo mesma,
com o outro, com a natureza e com Deus, para que tenham vida em plenitude
(Jó 10,10), enquanto também estabelece redes de parcerias com
organismos governamentais e não-governamentais para a denúncia e
enfrentamento das formas de violência, feminicídio, tráfico de pessoas,
opressão e exploração das mulheres.
A Equipe Semear, da PMM de Barretos, nasceu em 2004 por iniciativa
do casal recém-chegado de Rondonópolis: Nivalda e José Aparecido
Menezes, de amadurecida experiência como agentes pastorais da Equipe
PMM mato-grossense. Em 2006, já visitavam 9 pontos de prostituição, atendiam
mais de 550 mulheres, com apoio da família do casal, da Diocese
e da comunidade, através de profissionais voluntários em Assistência Social,
Psicologia, Direito e Enfermagem.
A Semear cresceu e se efetivou. Ao longo de 15 anos de caminhada,
estiveram à frente de seus projetos: as famílias de Nivalda Menezes e de
Jorge Ityanagui, os bispos Dom Edmilson e Dom Milton, o assistente social
Odário Filho, a delegada Gláucia Simões, a técnica em enfermagem Luciana
Menezes, a psicóloga Regina Baston e a advogada Heloisa Menezes.
A Semear, o secretariado nacional da PMM, contribuições financeiras
de entidades e projetos de fomento e parcerias com a comunidade barretense
tornaram possíveis as ações da missão pastoral junto às mulheres em
situação de prostituição, bem como atividades de prevenção e combate ao
abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes nas escolas.
A Equipe Semear construiu a Casa de Marias – Centro Pastoral da
Mulher Marginalizada na comunidade São Gaspar Bertoni – Paróquia São
Benedito, e realiza, também em outros locais da cidade, palestras, encontros
e seminários; exames preventivos de Saúde para as mulheres.
No dia 18 de maio – Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração
Sexual contra Crianças e Adolescentes, promove Concurso de Redação
sobre o tema; também atua nas datas de 25 de novembro – Dia de
Combate à Violência à Mulher; 8 de março - Dia da Mulher; 30 de julho
– Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas; além de ações especiais no Dia
das Mães; Páscoa e Natal.
Barretos, julho de 2020
Maria Augusta Nogueira Machado Dib
é agente pastoral da PMM - Pastoral da Mulher Marginalizada
Equipe voluntária de agentes pastorais da PMM de Barretos (da esq. para a dir.):
Jorge Ityanagui, Luciane Duarte Menezes, Henrique Menezes Carneiro,
Nivalda Duarte Menezes, Regina Célia Manarini Baston e
Heloísa Chubaci Bezerra de Menezes
UM POUCO DA PASTORAL DA
MULHER MARGINALIZADA
DE BARRETOS
COORDENADORA DA AÇÃO
Jocilene e Rosiclei
e
O Perfume das Flores
Adalgisa Borsato
Adalgisa Borsato nasceu em Barretos.
Tem formação em Ciências Sociais e Teatro.
Exerceu o cargo de Bibliotecária na Prefeitura
Municipal de Barretos.
É membro da Academia Barretense de Cultura
– ABC; ocupa a cadeira de número 32.
Percorreu todas as áreas da Literatura.
É autora de Contos, Crônicas, Poemas,
Literatura Infantil e Juvenil, Romance,
Autobiografia e Teatro. Participa de Antologias.
No teatro, escreveu peças infantis e juvenis,
para fantoches, de formação humana, para
adultos e uma peça histórica.
Livros de destaque: Rodeio, trilha de campeões,
Vida que nos transforma (autobiografia).
Infantis: Os sapos do Vovô Galdino.
Os pássaros do Vovô Galdino.
Peças teatrais de destaque: A Caminhada
(conta a história de Barretos) e Amor em Preto
e Branco (sobre discriminação racial)
Jocilene e Rosiclei - Adalgisa Borsato
Gêmeas, Jocilene e Rosiclei nasceram após o extermínio do bando
de Lampião e Maria Bonita, no Nordeste brasileiro.
Sertão árido; não produzia nada além de cactos e macaxeira para
alimentar as cabras. Carcaças de gado riscavam o agreste de branco.
Mercedes sofria no crescimento das filhas; se esgotou amamentando e
cuidando. A família criava cabras e trabalhava na plantação de feijão,
que esperava chuva.
O pai e a mãe contavam às meninas as histórias do bando de Lampião,
exaltando o papel de Maria Bonita, que acompanhava o companheiro
lutando de igual para igual. Diziam e repetiam que Lampião
havia se transformado num bandido em defesa dos mais humildes, explorados
pelos proprietários de terras.
Falavam para as meninas que no agreste a vida não facilita: tem que
lutar, tem que brigar...
O pai, Severino, havia pego um alqueire de terra para trabalhar à
meia. Os donos levavam quase tudo quando a família conseguia colher
alguma coisa. Cansado da lida, Severino foi embora para a região
Sudeste, onde tudo parecia melhor para viver. Prometeu voltar para
buscar a família.
Jocilene e Rosiclei tiveram a primeira perda: o pai, que julgavam ser
tão herói quanto o Rei do Cangaço das histórias que ouviam.
Mas ainda restava a heroína que as protegia dos males do sertão sem
fim: a mãe.
Moravam numa casinha de adobe. No fogão a lenha, o fogo lerdo
cozinhava alguns grãos de feijão e aquecia um bule com café.
As meninas viviam isoladas de tudo, das vilas e das grandes cidades.
Aprendiam com a mãe coisas domésticas como cozinhar, fazer crochê
e bordar.
A água vinha de um riacho bem distante, sempre ameaçando secar.
Buscar a água e colher macaxeira era necessário.
Jocilene e Rosiclei 15
Mercedes lamuriava; o marido a havia abandonado com duas filhas
que em quase nada poderiam ajudá-la naquele fim de mundo.
Por que nascemos aqui, Senhor?!, indagava Mercedes.
As gêmeas, sem escola, procuravam ouvir o que a mãe contava dos
tempos de outrora: de uma vida vazia e sem sentido, sempre a seca e a
violência em tempos de Lampião; nada mais.
Vocês precisam se casar e obedecer os maridos.
Ordem dada, mas não cumprida.
Dia de buscar água, pois a botija já estava pelo fundo e o cocho das
cabras, vazio.
Jocilene, sorrateira, se arma de faca: era necessário ter cuidado, já
estavam mocinhas. Rosiclei pegou o canivete que o pai esqueceu. Seguiram.
No solo, os rastos ficavam gravados na poeira da estrada.
Passaram pela vila de casinhas enfileiradas. Nas janelas, moços,
crianças e idosos a espiar as meninas passando com cabaças e outras
vasilhas que encheriam com o líquido precioso. Meninos brincando no
quintal comunitário: bolinha de gude, pega-pega e amarelinha.
Poucas vezes haviam passado por lá. Na necessidade do descanso
da mãe, era preciso.
Olhos curiosos vigiando por todo lado, mulheres com suas saias rodadas
em tecidos de chita; rezadeiras e benzedeiras. Malfeitores, remanescentes
do bando de Lampião também habitavam aquela vila aos pés
de Serra Talhada...
Olheiros viam passando duas meninas bonitas; pensavam que eram
tímidas e vulneráveis, como as de antigamente, que foram marcadas
a ferro quente pelo cangaceiro e sua companheira Maria Bonita. O
que não sabiam era das histórias que povoavam suas mentes criativas e
cheias de imaginação, prevenidas pela mãe de todas as maldades existentes.
Maldades que assolaram o sertão com capangas e coiteiros de
Lampião, quando deixavam o chão banhado em sangue.
Rose, te prepara que hoje estou vendo perigo! Joci, trouxe uma espingarda,
vamos aproveitar para praticar o tiro, longe dos olhos de Mainha!
Continuando o caminho, chegaram ao riacho de fino veio d’água.
Aproveitaram para tomar banho antes de voltarem. Alegria sem igual,
ooo
16 Adalgisa Borsato
água, água ... Brincadeira de molhar uma a outra, alertas a tudo.
No entorno do riacho, pequenos arbustos cresciam na esperança de
sobrevivência. Um movimento, um barulho de galho seco quebrando.
Era preciso atenção. Jocilene pulou fora da água, chamou a irmã para
irem embora. Observaram rastos maiores que os delas em volta do
mato. Foram conversando pelo caminho, na proposta de não deixarem
ninguém as maltratar: nunca!, juraram. E juramento era coisa sagrada
para elas.
Começaram entoar cantigas de roda como se inocentes fossem. Disfarçadamente
aproveitaram para treinar tiro ao alvo. Caminharam.
Chegaram, enfim, em casa. Surpresas, encontraram a mãe amordaçada
e amarrada numa cadeira. Toda casa revirada.
Mãe, o que aconteceu?!, perguntou Jocilene, soltando as amarras da
mãe.
O fazendeiro veio com seus capangas. Queriam o combinado com seu pai,
metade da colheita, mas não colhemos nada, faltou chuva, então pediu para
sairmos das terras!
Rosiclei andou de um lado para o outro, cheia de raiva.
Vamos ... nós vamos embora, ninguém vai nos humilhar!
Mas trabalhamos tantos anos aqui, cuidamos da terra!, falou Mercedes.
Não é nossa terra, mãe, entenda: vamos embora sim!, afirmou Jocilene.
O idoso que deixa o lugar onde se acostumou sofre, perde-se parte da sua história,
se emociona e o coração entristece, disse Mercedes, cheia de dor.
Melhor perder a história do que a vida: recomeçar é natural, falou Rosiclei.
As três mulheres, tomadas pela força natural das sertanejas, planejaram
a partida. Venderam as cabras e saíram à noite para ninguém as
perseguir com cobranças do que nada deviam.
Levaram cantis com água, poucas trocas de roupas e todas as ferramentas
que possuíam para trabalhar a terra; foice, enxada, facão, rastelo,
pregos e arame farpado. Colocaram tudo em um carrinho de mão
para facilitar o transporte.
Vestiram-se com gibão, lenços vermelhos nos pescoços, chapéus de
couro. Nas costas e na cintura, levaram todas as indumentárias iguais
às de Lampião: cinto de couro encravado de balas, duas espingardas,
cartucheira, faca, facão, canivete e boleadeiras.
Com um candeeiro seguia, à frente, a mãe.
Jocilene e Rosiclei 17
Quando começou a amanhecer, ouviram o aboio do sertanejo a procura
de alimento para o gado. As três mulheres já estavam longe de
casa. Cansadas, pararam para comer um pouco de farofa de carne seca
e descansar. O sol avermelhado refletia sombras fantasmagóricas de
galhos retorcidos e cactos.
Era verão. O calor castigava todo Nordeste. Mercedes estava exausta.
Sentou-se naquela sombra rala e adormeceu.
O que se via à frente era só espinheira, solo rachado, gado morto e o
mormaço tomando conta de tudo.
Jocilene e Rosiclei perceberam que alguém as seguia. E estava perto.
As gêmeas ficaram de tocaia, pois ensinamentos para se protegerem
tiveram de sobra. Carregaram as espingardas e, deitadas sobre as malas
de roupas, fingiram dormir; com um leve tecido branco de algodão cobriram-se,
escondendo as armas. Com um olho aberto e outro fechado
olhavam, de vez em quando, para o horizonte amarelado pela densa
poeira. Eis que vultos de homens armados surgiram por detrás da moita
de mandacaru e avançaram para o lado das mulheres.
Nem deu tempo de aproximarem; foram alvejados por disparos
impiedosos das gêmeas. Três bandidos, assaltantes, tombaram no solo
arenoso do sertão. Mercedes despertou, aturdida e assustada, constatou
toda trama e a defesa que as filhas tiveram a coragem de fazer.
Sim. Fizeram porque o momento e o contexto exigiam a defesa pessoal
para a sobrevivência.
Ao verificarem as faces dos mortos, surpreenderam-se ao notar que
eram os homens que compraram as cabras e, com certeza, vieram matá-las
para roubar-lhes o dinheiro. Olharam-se, mãe e filhas e, claro, um
só pensamento: voltar e recuperar as cabras, depois seguirem viagem
e pararem à beira do veio de água, alimentar os animais, progredirem
mesmo que em terras emprestadas.
Porque quem é forte resiste à seca e as intempéries do sertão.
Como disse Euclides da Cunha
O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
O Perfume das Flores - Adalgisa Borsato
médico desceu as escadarias apressado, sentou-se no sofá da an-
O tessala, colocou as mãos no rosto e chorou copiosamente.
Eu observava-o de dentro do meu quarto e, sem coragem de me
aproximar, fiquei no mesmo lugar, imóvel. Imaginei logo que Justina
não teria sobrevivido ao parto tão difícil, pois sofria desde o começo
da manhã. Lembrei-me do dia que ela chegou na Casa ainda menina,
tão insegura e meiga. Trazida pelas mãos do pai, que ficara viúvo, ela
se esquivava, relutante, em ficar. A Madre Superiora a acolheu com
alegria. Nos dias que seguiram, pude notar que Justina era obediente e
inteligente, sempre buscando livros na biblioteca.
A Casa era grande e podia abrigar alunas de todas as partes da Europa,
numa época de incertezas políticas e econômicas. Os jardins circundavam
os aposentos, mostrando pequenas árvores cuidadosamente
podadas de forma arredondada. Os canteiros de rosas exalavam o mais
suave perfume que alcançava as janelas de venezianas e vidraças embaçadas.
Os quartos do andar superior eram amplos, mobiliados com
camas, guarda-roupas, escrivaninhas, toucadores e banheiros anexos.
O Colégio Interno era exclusivo para meninas de famílias abastadas e
algumas vagas eram preenchidas por filhas de famílias carentes. Mas
todas recebiam igual tratamento, era o caso de Justina, órfã de mãe.
Procurei fazer de tudo para tratá-la com serenidade; sentia que tinha
uma tristeza escondida, por isso estava sempre tentando agradá-la; ora
colocando flores em seu quarto, ora indicando um livro especial.
A vida na Casa era bem dinâmica: aulas de todas as matérias da grade
curricular e outras extras como bordado, pintura, culinária e bons
modos.
Um dia, a Madre Superiora chegou com a novidade: as meninas
teriam aulas de Como ser boa esposa e dona de casa. Muitas não gostaram
da novidade, pois entendiam que deveriam ser livres em pleno século
vinte, inspiradas nas mudanças de condutas das parisienses. Elas rece-
O Perfume das Flores 19
biam jornais, por intermédio do entregador de cartas, e informações
vindas de familiares distantes através de missivas; assim se atualizavam
com notícias recentes.
Justina falou comigo sobre as aulas impostas pela Madre Superiora.
Também se queixou que o pai tratava mal sua mãe, exigindo que fizesse
serviços pesados e inadequados para uma mulher. Confessou-me que
a mãe morrera em seu terceiro parto, talvez por causa de maus-tratos.
Nesse dia, ela chorou muito; a tarde estava chegando e ela continuou
chorando. Eu a conduzi até seu quarto, consolei-a e a aconselhei que
se conformasse — era a condição feminina até aqueles dias. Disse-lhe
que tudo mudaria com o passar dos tempos. Ela se acalmou e dormiu.
O vento trouxe o perfume das flores e o quarto ficou com ares amenos.
No outro dia, o carteiro chegou com a novidade: uma guerra poderia
eclodir a qualquer momento, colocando toda Europa em perigo. Assustado,
corri para o meu quarto, pensando nos resultados de uma guerra:
mortes e instabilidade social. E o Colégio, como enfrentaria tantos dissabores?
Comecei a reunir meus pertences, minhas correspondências e
economias guardadas com tanto sacrifício. Coloquei algumas roupas
na mala, junto às cartas e a bolsa de moedas, prevenindo uma partida
precoce. Depois fui ver como estavam as alunas, principalmente Justina,
que adormecera tão frágil na noite anterior.
Ela não estava no quarto. Saí, aflito, procurando-a. Olhei através da
janela e vi, no interior do jardim, sob o caramanchão de primaveras,
Justina e um rapaz desconhecido. Preocupei-me, pois não era permitido
a alguém entrar nas dependências da Casa sem autorização da Madre
Superiora. Fui, apressado, ver o que acontecia, encontrando Justina
já sozinha e aparentemente perturbada.
Com dezesseis anos, Justina havia se transformado em jovem rebelde
e, de certa forma, inconformada com a vida sem a mãe. O tempo
vivido ali no Colégio, mesmo com as melhores orientações e muita
leitura, não tirou o amargo que ela trazia do passado.
A vida está apenas começando, disse a ela, na intenção de animá-la. Ela
saiu apressada, me agradecendo pelas palavras de incentivo.
Justina, moça quase formada, de pele alva, cabelos ruivos levemente
ondulados, era uma imagem bonita de se ver.
Na iminência da guerra, o pai de Justina veio ao Colégio saber como
20 Adalgisa Borsato
todos estavam, se ela queria ir com ele passar uns tempos na cidade do
interior, pois teria mais segurança. Justina aceitou e partiu com o pai.
Os dias seguiram cheios de preocupações na Casa. As alunas, com
medo, se retiravam mais cedo aos quartos.
Nas ruas, um barulho estranho de pessoas correndo em busca de
abrigo: era uma guerra insana e sem propósitos, desumana mesmo.
A sirene com o toque de recolher soava estridente aos meus ouvidos.
Deitei e cobri a cabeça num reflexo de proteção. A lembrança de Justina
me intrigava e passei a perguntar se estava apaixonado por ela ou
seria preocupação por alguém que nutria o desejo de proteger.
Da janela, eu via pessoas sendo levadas por caminhões cheios de
soldados armados e me perguntava: por que tanta injustiça e intolerância
com a Humanidade?
Certo dia, esses mesmos soldados haviam entrado no Colégio e se
alimentaram bem, obrigando-nos a fazermos o melhor manjar que, sabiam,
era servido para as alunas.
Ao percebermos a provável invasão, colocamos as meninas no sótão
e fechamos com pesadas correntes e cadeados; era preciso protegê-las.
Dolores chorava muito. Pedimos a todas para ficarem quietas. Alba,
a mais sensata, disse que tomaria conta das demais e as manteria em
silêncio. Ficamos bem pertos do caos, rezando muito. Lembrei-me de
Justina e pensei que estaria protegida junto ao seu pai. Rezei e pedi
proteção às demais alunas, encerradas no sótão.
Tive que assumir a cozinha e servir os soldados, pois as cozinheiras
se retiraram com muito medo. Fiz o trabalho com humildade, como
se cozinheiro fosse. A Madre Superiora se manteve trancada em seu
escritório.
Depois de se fartarem, os soldados se retiraram em algazarra, com
traquinagens e demonstrações de desumanidade ao encontrarem alguém
na rua.
Seis meses depois desse episódio, a guerra terminou. A cidade estava
deserta; muitas famílias foram levadas para lugares distantes, aos
centros de concentração nazistas. O cenário do Colégio ficou diferente:
alunas que perderam seus pais ficariam às expensas da Igreja, num
país de maioria Católica. No entanto, o ambiente era tenso na volta às
aulas. Havia chegado ao Colégio um capelão, dizendo ter sido enviado
O Perfume das Flores 21
para acalmar as alunas que, depois do período de guerra, ficaram traumatizadas
e necessitando de apoio espiritual. O jovem capelão apresentou
documentos que comprovavam sua ligação com a Igreja, mas
tinha pensamentos um tanto contraditórios aos meus. Passei a observá-
-lo com frequência. Não acreditei em suas doces palavras de conforto.
Justina voltou com seu pai, num dia chuvoso. Foi direto para o quarto,
parecia um tanto aborrecida. Tentei falar com ela, mas bateu a porta
do quarto e se trancou. Senti uma sensação horrível, mescla de preocupação
e rejeição, quase uma afirmação de amor impossível: uma perda
para mim.
Um dia, o capelão chamou Justina para uma conversa particular
de assistência espiritual. Após um tempo, ela saiu da sala chorando e
correu para o jardim. Eu a vi através da janela do meu quarto. Segui-a
com o olhar: sentou-se sob o caramanchão e continuou chorando. Fiquei
deveras preocupado: o que estaria acontecendo com Justina? Cada vez
mais sentia que a amava e queria protegê-la de todos os males. Cheguei
a pensar em pedir a ela que fosse para o convento firmar votos de compromisso
com Cristo.
Os dias seguiram tristonhos. Nada me alegrava depois da guerra,
pois, o homem que mata seu irmão não agrada a Deus.
A Madre Superiora fazia de tudo para o bem-estar das alunas, recebendo
verba provincial para manter a Casa com tantas órfãs. O corpo
docente foi ampliado, com professores e professoras especializados em
Literatura e conhecimentos gerais.
Mas, infelizmente, a Superiora foi substituída por um padre com
título de Monsenhor. Novos tempos surgiram no Colégio, com a aceitação
de regras de conduta mais modernas.
Um dia, encontrei o livro de bons modos, da Madre Superiora, jogado
no lixo.
A Casa ficou bastante movimentada naqueles dias de adeus à guerra
e cheios de novidades descontroladas. Monsenhor chamava as alunas,
de vez em quando, para fazer sermões indesejados. As moças saíam de
sua sala desapontadas. Queixavam-se comigo de estranhos tratos para
com elas. Diziam que o capelão assistia às seções de conversas sem
falar nada, nem interferia, conivente.
O tempo seguia sem que alguém tomasse providências diante das
22 Adalgisa Borsato
reclamações das alunas quanto aos abusos do monsenhor.
Até o dia em que o médico desceu as escadas, sentou-se no sofá da
antessala, colocou as mãos no rosto e chorou copiosamente.
Subi correndo as escadas, entrei no quarto de Justina, tomei suas
mãos e percebi que ela ainda vivia. Me aproximei de sua face pálida e
coloquei o ouvido rente a seus lábios e ela murmurou:
O monsenhor não é um homem de Deus.
Depois, ela se calou para sempre.
Meus dias que seguiram na Casa foram para investigar os procedimentos
duvidosos do padre e do capelão. Com muito cuidado, seguia
os passos dos dois e, quando o monsenhor chamava alguma aluna em
sua sala, eu ia para o jardim e ficava espiando pela janela, discretamente.
Assustado, vi condutas reprováveis de assédio às meninas e, sem
pensar, teci um plano. Convidei a polícia e o governador para fazermos
um confronto inesperado na sala do padre.
Após abrirmos a porta com uma chave reserva, encontramos uma
aluna encostada na parede e o capelão tentando pular a janela. O seguramos
e começamos interrogar onde estaria o monsenhor. Ele, pálido,
apontou para a janela que dava para o jardim. Corremos e vimos o
padre já distante, saindo para a rua.
Analisei aquela situação: quando Justina apareceu grávida, tive momentos
de insensatez, maus pensamentos mesmo, imaginando quem
teria abusado dela.
Seria o jardineiro, o jornaleiro, algum soldado daquela guerra infame. Seria
seu próprio pai? Ou os padres? Porque a mulher tem sido desrespeitada há séculos,
por pessoas estranhas ou próximas.
Com as palavras de Justina, tudo ficou claro e evidente. Enquanto a
polícia prendia os padres, fui ao meu quarto para pegar meus pertences
e partir. Não conseguiria ficar na Casa depois do ocorrido com Justina.
Saí apressado e, ao chegar na primeira cidade, sentei-me num bar
para tomar café. Peguei emprestado um jornal. Abri. As fotos dos dois
padres estavam estampadas — eles eram, na verdade, dois carrascos
remanescentes de guerra. Disfarçados de autoridades eclesiásticas, continuaram
cometendo atrocidades desumanas (tal e qual eram).
Poemas
Adriana Queiroz
Adriana Regina Queiroz é pedagoga pós-
-graduada, psicopedagoga, especialista em
Educação Especial e Intelectual. Professora
de nível superior em Pedagogia; professora
estadual efetiva em Sala de Recursos,
professora da APAE de Barretos, coordenadora
do projeto “Mãos na Terra”, escritora e
apaixonada pela Língua Portuguesa.
É natural da cidade de Itapagipe, em Minas
Gerais. Descendente de família tradicional de
músicos e escritores, sempre descreveu em
contos e poesias suas vivências
Adriana Queiroz
VOCÊ
Você, doce ser indecifrável,
Saqueando meus pensamentos.
Você, que em minhas angústias,
É a cura total.
Você, que nas noites de agonia
Vem florescer meus sonhos.
Você, que sem querer arranca-me
Mil declarações.
Você, que ao meu lado chora
Para secar-lhe as lágrimas.
Você me faz superar
Ao seu mais leve toque.
Que me faz ser mil, para ser só de você.
Que me faz te implorar
Apenas com o olhar.
Você, que em mim se procura,
Pleno e feliz.
Que me machucas sem dó,
E com dores, entrego-me a você.
Você, que com um sorriso se vai,
Deixando comigo as lembranças do amor.
Que me deixa só e que, sozinha, estarei.
Você, que por tantas fez-me chorar
E me trouxe alegrias, pois não o esqueci.
E que sozinha fico
Esperando por você.
Poemas 25
ASA PAIXÃO
O olhar penetrante
Todo negro de você
Ainda viaja livre,
Sereno,
No pensamento...
Os lábios finos,
Macios
De um beijo molhado
Ainda deixam umedecida minha boca.
As palavras grandes,
A voz rouca,
Terna, morena
Ao vento
Ainda se faz ouvir
Em profundos ecos.
No silêncio das recordações,
Os momentos tidos
Tão poucos foram.
As incertezas neste amanhã
Tão evidentes que me machucam.
As lembranças, quase que
Tão perdidas,
Vagueiam sem rumo,
Esquecidas...
Na saudade de você
No desejo de te ver
Na esperança de ser feliz
De saber ser amor
E de saber, enfim,
Amar você!
26 Adriana Queiroz
É BOM VIVER CONTIGO
Sonho que se sonha só
Não é sonho que se vive.
Quem sonha, se revolta
Quem se revolta, chora.
Não chores, sorria!
Se penso, relembro...
Foi bom viver contigo.
Se quero tudo,
Às vezes fracasso,
Mas mesmo assim, levanto.
Mudo de rumo.
Amanhece...
Revivo as mesmas coisas,
Os mesmos temores.
Quero a vida...
Se caminho, chego,
Paro no tempo e fico...
Imagino coisas, revivo sonhos.
Sonho que perdi...
E, então, tudo muda
E estou livre.
E os pesadelos, as dores
Caem ao chão.
E canto,
E grito, e espero.
Chegou a hora:
Estou no ar,
Estou voando...
Meu medo se foi;
Não estou só,
Restam lembranças.
Foi bom viver contigo...
Poemas 27
EU, VOCÊ, NÓS
Eu, que sem permissão
Nem sinal entrei na tua vida,
Comecei a fazer parte dela.
Eu, que te fiz meu,
Sem poder te possuir.
Fiz ser tudo, menos homem.
Eu, que gemia, corria, sofria
E por ti tudo fazia.
Eu, que cheguei sorrindo
E saí chorando.
Que deixei de tudo
Para ser só sua.
Anulei a vida
Para viver você.
Fui deixando-me ao tempo
Para viver tormentos.
Você que, sem dó, atirou-me ao destino.
Que me amou uma só vez
E me fez amar sem direção.
Possuiu-me sem dar tempo...
Você, que fervilhou -me os nervos
Ditando intenções.
Joguei-me inteira;
Da mesma forma, fui jogada.
Vivemos o tudo,
Conhecemos o amor fatigado, o nada...
Choramos, sorrimos, vivemos
E nos desprezamos.
Saímos dos limites
Sem regras, nem leis
Lutamos, perdemos, sofremos e esquecemos.
Nós, que ao darmos as mãos
Numa união traiçoeira
Morremos...
Nós...
Nos acabamos.
Eu, você, nós...
28 Adriana Queiroz
APESAR DE TUDO
Era um vazio...
Que foi preenchido,
E vivido de frente.
E foi amado...
É um passado que retorna
E vem mais forte
E dói mais fundo!
No desespero, a procura inútil.
No embalo do vento,
Perdi meu tempo, distraidamente.
Um coração se desfaz em pedaços mínimos
Que caem ao chão.
Eu choro...
Sim, seu amor renovou-me
Eu, que quase destruí-me.
Meu medo retorna,
Medo de tudo, medo do amor,
Medo da vida, medo do medo
De perder você...
Sacudiram-me, esmurraram-me,
Espancaram-me, e eu não desisti.
Vou sozinha,
Sou sozinha,
De um interior forte
E ego prepotente.
Serei superior,
Brilharei seu lado negro,
Deslizarei pelo seu mundo,
Onde serei fogo de ardentes chamas.
Tenho receio, tenho vergonha,
Escondo-me atrás de máscaras
Transparentes demais...
Aos seus olhos
Um dia eu sofri,
Torturei-me e morri...
Fui ingênua, por isso sofri.
Depois do feito,
Eu fui deixada
E magoada.
Reencontrei-me no meu mundo.
E o grito do medo,
Ecoou no tempo
E não mais amei.
Quero ser livre,
Amada do meu jeito
Ser grande aos meus olhos
Para que possa enfim,
Ser novamente,
Uma nova mulher!
Questão Cultural,
Histórica e Patológica
Ana Paula Geraige
Ana Paula Jerônymo Geraige, nascida em
Barretos, é formada em design de interiores
pelo Centro Universitário Barão de Mauá
Ana Paula Geraige
Impossível dissociar atrocidades — como exploração sexual infantil
e tráfico humano — de aspectos culturais, históricos e, também, como
doença, em alguns casos.
Não há dúvidas de que o fator preponderante para tantas aberrações
se situa na má distribuição de renda mundo afora e nas decorrentes péssimas
condições de vida dos mais variados povos, cujas famílias, muitas
vezes, se submetem a essas situações pela absoluta falta de alternativas.
É triste ver mães, não raro, submetendo filhas à prostituição e/ou as
vendendo para pessoas mais abastadas, em busca de um pouco mais de
dignidade humana. Faltam recursos financeiros, culturais e, com toda
a certeza, uma boa dose de religião ou amor em Deus.
Por outro lado, há, também, uma boa dose de patologia nisso tudo,
bastando ver que o turismo sexual é algo mais comum do que se imagina.
Quem nunca assistiu a reportagens sobre ricos europeus e americanos
que vêm ao Brasil com essa finalidade? Ou o contrário, brasileiras
que se mudam para o estrangeiro com tal objetivo?
Existe muita naturalidade e muita hipocrisia nisso tudo, mas não é
fácil modificar comportamentos que vêm desde o Mundo Antigo e se
mantêm firmes até os dias atuais, apenas com variações e adaptações
com a modernidade.
A quantidade de pessoas consideradas normais que têm hábitos frequentes
de acessar sites de pornografia infantil é algo assustador. Será
isso uma patologia? Será isso uma herança comportamental do que
essas pessoas viveram em casa? Enfim, esse assunto tem que ser tratado
de forma multiprofissional, com psicólogos, psiquiatras, sociólogos,
historiadores, profissionais do Direito, etc.
Não bastam criações de leis e tratados, nacionais ou internacionais,
pois sua intenção de coibir tais práticas não é suficiente, já que o problema
é muito mais profundo, muito mais estrutural e a punição não é
capaz de minimizar questões culturais milenares.
Questão Cultural, Histórica e Patológica 31
De forma geral, a atuação do Estado nessa e em outras questões
nunca foi e não é suficiente para trazer respostas efetivas na tentativa
de resolução de tais problemas. Gastam-se bilhões de dólares com programas
ineficientes e grande parte desse dinheiro não tem seu destino
final: perde-se no caminho, com ONGs inescrupulosas ou é mal aplicada,
por incompetência ou má-fé.
Por tais razões, é imprescindível a participação constante e progressiva
de toda a sociedade, de forma engajada, no processo de mudança
de visão sobre essa problemática, através de disciplinas próprias nas
escolas, desde os primeiros anos da idade escolar até as universidades,
para que o tema não se perca e não seja algo temporário e efêmero.
Não há solução mágica!
Fênix
Fátima França
Maria de Fátima Batista França, nasceu em
1954, em Barretos. Filha de Zilda Batista
Simões (de quem herdou a paixão pela
natureza e estudos) e de Sebastião França, de
quem tomou gosto pela política, pois em sua
tenra infância já o acompanhava nos comícios.
Com Álvaro Diniz Linhares aprendeu o gosto
e prazer da leitura, sendo iniciada em Navio
Negreiro de Castro Alves; José Simões Sobrinho
apresentou-lhe o mundo da Justiça.
Foi casada com Luiz Aurélio de Jesus Salles e
tem dois filhos: Thiago Moreno França Salles e
Avana França Salles.
Fátima é graduada em Psicologia pela
Faculdade São Marcos (SP) e mestre em
Comunicação e Semiótica, pela PUC-SP
Trabalhou como psicóloga por 25 anos no
judiciário paulista: em Barretos, Grande SP e
capital .Também foi professora na Faculdade
Educacional de Barretos. Sua trajetória literária
teve início na participação do livro Novos
Talentos da Literatura, lançado na Bienal do
Livro no Rio de Janeiro
Fátima França
Ao adentrar naquele espaço do cotidiano, me deparo com rosas
plantadas em frente ao prédio. São rosas vermelhas, brancas,
amarelas. Maravilhosamente, rosas. Em seguida, percorro entre espaços
cinzas e brancos. Ali, conheço Fênix e sua historia.
Diante de mim há uma mulher gravida, vestida com uma camiseta
que estampa o passarinho Piu-Piu. Nesse corpo que está em minha
frente, existe uma menina e a denúncia de que, forçosamente, se tornou
mulher. Num primeiro momento, ela está assustada, mas paulatinamente
começa a falar:
Os pais se separaram e, com o rompimento da relação conjugal, ela e seus irmãos
ficaram com o pai em uma fazenda, bem afastada do convívio social
Assim que ela começou a desabrochar e entrar na adolescência, abruptamente
foi violentada por Jair, seu pai. O abuso ocorreu inúmeras vezes e ela ficou
grávida.
Nos primeiros meses de sua gestação, ela estava tomada por um caldeirão
de sentimentos: angústia, raiva, ódio e ressentimento.
Logo, ela propôs colocar o bebê para adoção.
Com o passar dos meses, mudou a sua decisão: o seu corpo de mulher
levava em seu ventre não só um bebê, mas sim, Clara, sua filha.
Em seu olhar, palavras e gestos, Fênix trazia consigo a força de uma
guerreira para lutar contra todas as adversidades e, dessa forma, assumir
os cuidados da filha.
No percurso da escuta, também ouvi, por vezes, os relatos de Jair:
ele assumiu o abuso da filha, sob a justificativa de que, com a separação,
ele precisava de uma relação sexual segura: logo, com a própria
filha, ele não corria riscos de contrair Aids.
Após meses de escuta de Fênix, Jair e demais filhos, encaminhei à
Têmis as considerações sobre o caso. Na ocasião, Têmis não só estava
com uma venda em seus olhos, mas demonstrava estar completamente
cega e assim pronunciou o seguinte veredicto: Jair deveria ser absolvi-
34
Fênix
do, pois a relação sexual ocorreu mediante a permissão de Fênix, que
tinha idade suficiente para distinguir o certo do errado.
Fênix seguiu sua vida, trouxe Clara ao mundo que, por sua vez, deu
luz, força e coragem à jovem mãe.
O tempo passou e Têmis foi surpreendida com uma nova denúncia:
Joao e Maria, filhos de Jair, estavam sendo espancados pelo pai. Imediatamente,
Fênix se prontificou a assumir a guarda dos irmãos. Renasce
mulher, mãe, ser humano — vai ter com Têmis e espera que, desta
feita, suas palavras espantem a sonolência com que conduz os destinos
das pessoas.
Não é fácil. Lenta, vacilante, Têmis se levanta. Parece acordar e, até,
enxergar o que lhe está a meio palmo.
Observa, analisa e pensa e decide: Joao e Maria não ficariam mais
correndo riscos e perdidos na floresta; com urgência, eles deixariam de
morar com o pai e passariam a ficar sob os cuidados de Fênix.
Como se houvesse passado uma vida — uma das muitas que Fênix
precisou viver — saímos todos daquelas salas cinzas e brancas e passamos
a percorrer os corredores do prédio.
Os tons tristes dão lugar ao frescor da brisa, às cores e cheiros do
jardim. Ali está a Natureza, que retribui a resiliência de Fênix lhe entregando
louvores — estes, entregues por Cora, Rosa, Simone, Frida e Nice,
em forma de rosas vermelhas, amarelas, brancas...
MA
RA
VI
LHO
SA
MEN
TE
ROSAS!
Linda era seu nome
Fátima Abon
Ali Simamura
Fátima Abon Ali Simamura nasceu em
Barretos e mora em São Bernardo do Campo.
Casada, tem três filhos e um neto. Fez carreira e
atuou na área de Tecnologia; como Analista de
Sistemas, aposentou-se em 2013. Desde então,
tem como hobby tocar piano, além de cantar
com o Grupo Vocal Esperançar. É apaixonada
pela Literatura e escrever é mais um desafio
Fátima Abon Ali Simamura
Linda coloca as mãos sobre seus seios sedutoramente cobertos
pelo vestido de renda branco. Incrédula, não cabe em si de tanta
admiração com o presente de seu pai.
Tal como Narciso, observa sua imagem refletida no espelho do surrado
guarda-roupa da avó. Corpo esbelto, muito por desabrochar, lábios
carnudos e rosados, pela morena clara, olhos castanhos esverdeados,
cabelos negros encaracolados, presos lateralmente por presilhas
coloridas.
Poucas vezes passava o final de semana na Praia Grande desde a separação
de seus pais, quando estava com apenas três anos. Mas aquele
final de semana seria especial: se encantara com Gabriel, o novo funcionário
da barraca de praia de seu pai.
Estranhara a atitude do pai, que telefonara insistindo muito, com
a desculpa de antecipar seus presentes de Natal e até compensar sua
ausência na comemoração do seu aniversário de quinze anos, ocorrida
há três meses.
Às vezes, refletia sobre a vida de Mário, aos olhos de sua mãe e pelo
que percebia.
Chamava sua atenção o fato dele não ter outra mulher, continuar
morando com a mãe, Matilde, mais mandona do que nunca depois da
morte do seu avô. Mas, naquele sábado, não queria penetrar na bolha
que seu pai vivia.
ooo
Mário não participara da criação da filha. Sempre calado, de olhar
taciturno, deixara tudo por conta da mãe, Leila e da avó.
Conhecera Leila num período de férias, quando ela fora pela primeira
vez à praia com os tios e ficara numa casa próxima à barraca de Mario.
Leila logo percebeu o interesse daquele rapaz, de porte franzino,
com dezoito anos (aparentando bem menos) que nunca tivera namorada
para apresentar em casa e, por isso, era sempre cobrado pelos pais.
Linda era seu nome 37
Filho único, sem interesse pelos estudos, abandonara a escola sem
completar o Ensino Médio. Poucos amigos, ocupando-se apenas em
fazer sanduíches e sucos na barraca da praia.
Mas, surpreendentemente, com um discurso decorado, deveras e
sinceramente apaixonado, Mário seduz Leila. Hormônios à flor da
pele, eles aproveitaram todo tempo; entretanto, como o período de férias
terminaria no final de semana e os beijos e carícias deixavam gosto
de quero mais, combinaram de se encontrar na sexta-feira, no quarto
dela, quando todos estivessem dormindo.
Sem nenhum pudor, repetiram o encontro no sábado e domingo,
para tudo acabar na segunda-feira, com o retorno de Leila pra capital.
Lá ela vivia sem irmãos, com um pai aposentado por problemas de saúde
e a uma mãe diarista. Mas aquele romance de verão terminou em
tempestade. No mês seguinte, sentiu falta do seu período menstrual e
não teve como esconder seus terríveis enjoos. Sua mãe, numa conversa
incisiva, rapidamente confirma a imprudência da filha. Imediatamente,
mais preocupados do que severos com Leila, entram em contato
com a mãe de Mário e vão até a Praia Grande. Para surpresa de todos,
Mário, que tentara, sem sucesso, falar com Leila naquele período, sem
pestanejar, assume a responsabilidade e, apesar da pouca idade e decepção
dos pais conservadores, ambos insistem em ficar juntos.
Os pais jamais concordariam com a interrupção da gravidez, em
nenhuma hipótese. Perceberam que o melhor, naquele momento, seria
Leila permanecer na Praia Grande.
No início, tudo era cor-de-rosa: paixão, desejo e planos. Mas Mario
e Leila logo encararam as dificuldades. A magia do conto de fadas se
transformara numa realidade nua e crua, na cama de casal adquirida
em dez pagamentos nas Casas Bahia.
Leila remoía a tristeza de perder sua adolescência, longe dos pais,
fora da escola, longe das amigas e, pior, perdendo a beleza do seu corpo,
antes tão esbelto, numa gravidez não programada.
Apesar disso, os meses se passaram e a gravidez, dentro da normalidade,
com acompanhamento feito no Posto de Saúde, pelos telefonemas
e as poucas sacolas de enxoval trazidas pela mãe.
Na primeira primavera do novo milênio, Leila dá a luz a uma linda
menina. Seu nome não poderia ser outro que não Linda. Sua mãe
38 Fátima Abon Ali Simamura
esteve com ela nas primeiras semanas após o parto; não tanto quanto
desejava. Leila se revelou uma mãe primorosa e, como seria previsível,
não conseguia mais dar atenção a Mario que, nervoso e ciumento,
provocava ansiedade na esposa, fazendo seus batimentos cardíacos se
acelerarem todas as vezes em que se aproximava dela.
Mesmo assim, Linda crescia feliz e graciosa enquanto Leila, a cada
dia, estava mais arrependida da guinada de sua vida. O príncipe se
transformara em sapo há muito tempo e a ansiedade estava próxima a
ataques de pânico.
Como nada acontece por acaso, numa ensolarada manhã de sábado,
Leila, ao levar Linda à praia, é reconhecida por sua antiga professora.
A conversa com Dona Lucia reacendeu sua chama pela a vida.
Precisava de muita coragem para impor-se e encontrar um novo rumo,
longe de Mario e da Praia Grande.
De forma bem triste e inesperada, o destino possibilitou uma saída,
pela porta da frente. Seu pai veio a falecer, vítima de um infarto. Após o
enterro, ela aproveita para ficar com a mãe até a Missa de Sétimo Dia.
Mas foi ficando mais uma semana, um mês e outro mês até que admitiu
a definitiva separação, enfiada goela abaixo de Mário.
Consegue uma creche para Linda e retoma seus estudos, no período
noturno, na sua antiga escola, para tentar encontrar algum emprego.
Enquanto isso, Mário seguia cada dia em replay ao dia anterior, sem
perspectiva, sem emoção. Uma louca vontade de se vingar de Leila
torna-se um câncer dentro do seu peito. De nada adiantava os empurrões
da mãe ou os encontros furtivos com qualquer garota interessada
nele. Nunca aceitou o fato de Leila ter ido embora e, nestes doze anos,
vinha preparando meticulosamente sua vingança, num prato gelado e
recheado de maldades.
Mario, para intranquilidade da mãe, passava as noites no seu quarto,
isolado de todos, vendo fotos antigas. Assim que pôde, comprou um
celular e passou a seguir as duas nas redes sociais. Sabia tudo sobre elas:
desde a confeitaria onde Leila era gerente, sua faculdade de Gastronomia
e onde passavam seus períodos de lazer.
Na sua insignificância e machismo, argumentava, ensimesmado: se
ela gostava tanto de cozinhar, por que não ficara ajudando sua mãe na barraca?
Sem nada deixar transparecer, a cada dia seu coração parecia explodir
Linda era seu nome 39
de tanto ódio e ciúme.
ooo
Mas, naquele final de semana, finalmente concretizaria seu plano de
vingança. Aquela era a hora tão esperada. Mario sabia que Linda experimentaria
o vestido, cuidadosamente escolhido, quando ela confirmou
a vinda para a praia.
E lá estava Linda. Em posição privilegiada, Mario conseguia vê-la
pelo espelho da penteadeira. Aquela imagem sedutora faz aflorar seu
desejo reprimido; seu coração bater descompensado; retesar seu órgão
sexual embaixo da bermuda, toda molhada de suco de maracujá, de
propósito, derrubado.
Linda, despreocupada, apenas encostara a janela e deixara a porta
entreaberta. Não conseguia fechar o zíper do vestido tomara-que-caia,
quando Gabriel bate na porta da frente. Pensando estar sozinha na
casa, se assusta e corre até a porta do quarto, dando de frente com o pai
que, espertamente, se recompõe, fingindo ter chegado naquele momento
no corredor que dava acesso ao quarto.
Como Mario esquecera o celular na barraca, Gabriel o avisa que
o novo vendedor de polpas o aguardava na barraca e sai, fechando o
portão atrás de si.
Linda, sem nada desconfiar do pai, solicita que ele feche o engastalhado
zíper do vestido. Mário diz que vai primeiro lavar as mãos e
trocar de bermuda. Aquele pedido da filha facilitaria demasiadamente
seu dantesco propósito; uma perfeita luva em suas mãos.
Linda, encantada com o novo vestido e com vontade de passear
no calçadão da praia continuava se admirando no espelho e nem se
dá conta que seu pai, discretamente, retornara ao quarto. Apenas de
bermuda, tomou o cuidado de tirar a camiseta, fecha a porta e aproxima-se
de Linda para, supostamente, ajudá-la com o zíper. No exato
momento em que Linda vira-se de costas, Mario a segura fortemente e
tapa sua boca com a mão esquerda enquanto segura seus braços com a
mão direita. Linda sem nada entender, se apavora e tenta, sem sucesso,
se desvencilhar do pai. Para agonia de Linda, o zíper não fora fechado
e o vestido facilmente escorrega para baixo.
Mario arrasta a filha para a velha cama de Matilde e, colocando-a
de costas sobre o edredom cor de mel, amarra o guardanapo de pano
40 Fátima Abon Ali Simamura
que trouxe da cozinha entre os dentes de Linda, impedindo-a de gritar.
Já não enxergava a filha: ali estava sua Leila. Com toda volúpia beija as
costas da filha começando pela nuca e, depois, vai descendo até onde
alcançasse sem correr o risco de que ela se soltasse.
Linda se debate desesperada e, em vão, Mário continua acariciando
as suas costas com seus lábios e os ralos e espinhosos fios do bigode,
enquanto a prende sob suas pernas.
Mario não pensava mais em vingança: simplesmente, voltara no
tempo que tivera Leila pela primeira vez. Coloca Linda de barriga para
cima e extasiado, com toda força, comprime o tórax nos seios da filha
e em seus mamilos descobertos.
Dizendo obscenidades, chamando-a de Leila, com toda força rasga
sua ultima peça deixando-a inteiramente nua. Linda, sufocada pelo
corpo do pai, não tem mais forças para resistir. Desesperado de tanto
desejo, esfregando-se todo no corpo da filha, morde seus seios, suga-lhe
os mamilos como uma criança faminta, até que abaixa sua bermuda
e encosta seu membro entre as coxas da filha pronto para deflorar sua
virginal libido.
Mas Gabriel, como um anjo enviado por Deus, retorna à casa chamando
pelo patrãozinho e, pela porta dos fundos, chega rapidamente
na cozinha.
Mário não se dera conta. Estava com a apavorada Linda, há pelo
menos vinte minutos. Esquecera-se totalmente do vendedor de polpas.
Linda se aproveita do momento de surpresa e distração do pai, que fica
sem resguardo: num reflexo desesperado, acerta-lhe o joelho direito no
seu membro retesado. Mario, contorcendo-se de dor, perde o equilíbrio
e cai da cama — para sorte de Linda, ao lado oposto à porta. Ela, rapidamente,
foge, agarrando apenas a toalha que usara depois do banho,
antes de experimentar o vestido. Vai até a cozinha e pede socorro para
Gabriel. Tem tempo apenas de dizer que o pai estava louco, quando
ouvem um estampido vindo do quarto.
Mario, como que voltando de um transe, se deu conta de que seu
plano falhara. Depois que se deliciasse do corpo de Linda, pretendia
matá-la e, em seguida, se suicidar, numa louca e completa vingança.
Mas o desgraçado daquele maldito moleque, interessado em Linda, colocara
tudo a perder. Rapidamente, foi até o guarda-roupa e procurou a
Linda era seu nome 41
arma que seu pai sempre guardara para defesa da casa. Já havia conferido
se estava carregada e bastava preparar o gatilho. Não se arriscaria
indo para fora do quarto. Linda já estava protegida por Gabriel e, provavelmente,
correria para fora da casa. A vida, para ele, já não tinha
mais nenhum sentido. Na verdade, há doze anos se considerava um
morto-vivo. Colocou o cano da arma na boca e, sem nada mais pensar,
apertou o gatilho. Aquele fora o estampido ouvido por Linda e Gabriel.
O mundo desaba sobre a cabeça de Linda e, amparada por Gabriel,
buscam ajuda até a chegada da Polícia. Não se recorda mais de
como foi levada e por quanto tempo ficou sedada no hospital da Praia
Grande. Lembrava, apenas, que não lhe permitiram ver a triste cena no
quarto da avó. Desperta com a mãe ao seu lado e uma policial, esperando
para ouvir seu triste relato. As lágrimas escorrem copiosamente
pela face de ambas. Abraçadas, não encontram palavras para descrever
tamanha monstruosidade daquele pai, distante no dia-a-dia, mas que
nunca demonstrara ter uma mente tão marcada pelo ódio. Leila jamais
poderia imaginar que Mario teria guardado tanto rancor e acaba por
ter sentimentos contraditórios de compaixão e revolta. Se não tivesse se
separado de Mario, isso teria acontecido? O preço da sua liberdade fora
muito alto para o coração partido de Mario? Como não percebera sua
fraqueza? Em tudo, uma única certeza: nada justificaria tanta maldade.
Onde e como buscariam forças para se superarem do trauma vivido?
Quanto tempo seria necessário para Linda e Leila acordarem daquele
pesadelo? Um, dois, três, quatro anos... uma vida inteira?
ooo
Muito esforço. Anos seguem e, mesmo com ajuda de terapia, Linda
ainda não consegue ter um relacionamento amoroso.
Mas, sim, há esperança: ao reencontrar Gabriel, aquele anjo que a
salvara naquele dia fatídico, tudo vem à tona novamente.
Depois de tanto tempo, seus olhares se cruzam. Um abraço cheio de
afeto e silêncio sela aquele momento de paz. Sentem-se envolvidos por
uma luz divina em plena Estação Sé do metrô.
Quem sabe, o prenúncio de um novo caminho.
A história de Jurema
Flávia Cunha
Flavia Cunha é professora aposentada e
pedagoga. Sempre gostou muito de ler e
escrever. Prefere escrever poesias, mas
também tem muitos textos em prosa, incluídos
em várias antologias da Editora InHouse.
Faz parte da ABC (Academia Barretense de
Cultura), ocupando a cadeira n° 39.
Publicou 6 livros de poesia e, muitas vezes,
coloca poemas de sua autoria em sua página
do Facebook.
Também pertence à Academia Jundiaiense de
Letras, ao Grêmio Cultural “Professor Pedro
Fávaro” e à Academia Feminina de Letras e
Artes de Jundiaí
Flávia Cunha
Já passava de meia-noite quando Jurema ouviu o marido abrindo
o portãozinho de ferro e, depois, caminhando pelo corredor,
dizendo palavrões e chamando por ela, enquanto tentava abrir a porta
da sala.
Angustiada, foi ao quarto das crianças para verificar se estavam dormindo.
Todas ressonavam tranquilamente, seus três amores! Fechou a
porta com cuidado e se dirigiu à sala, pedindo a Deus que seu marido
entrasse e se jogasse na cama, totalmente embriagado, dormindo imediatamente,
como fazia muitas vezes.
Mas, desta vez, Jurema não teve a mesma sorte: ele, extremamente
agressivo, atacou-a com toda violência, dando inúmeros socos em seu
rosto e a jogando no chão. Os chutes, por todo seu corpo, vieram em
seguida, até que ela desmaiou, tais eram as dores que sentia.
Na manhã seguinte, Jurema acordou com o choro das crianças. O
marido já havia saído e o bebê, no berço, exigia seus cuidados.
Levantou-se com dificuldade, enquanto os dois meninos a auxiliavam
a segurar no batente da porta, assustados com seu aspecto. Foi
segurando nas paredes até o banheiro e, ao ver o estado deplorável em
que estava seu rosto, em vários pontos rasgado pelo anel que seu marido
usava, e as manchas roxas em volta dos olhos, quase desmaiou
novamente.
Com a força que Deus dá às mães nas horas difíceis, procurou acalmar
as crianças, dizendo que havia caído e batido o rosto na quina da
mesa. Elas, porém, confessaram ter ouvido toda a agressão do pai contra
ela, mas fingiram estar dormindo, para não sofrerem aquele ataque
também.
Jurema já havia sido vítima do marido por muitas vezes, mas nunca
com tanta violência.
Naquele dia, percebeu que não poderia sair para trabalhar e nem
levar as crianças para a creche. Todos perceberiam o que havia aconte-
44
A história de Jurema
cido.
Fez a mamadeira para o bebê, serviu o café da manhã para as crianças,
ligou para comunicar que seus filhos não iriam à escola e avisou
sua patroa que não iria trabalhar, com a desculpa de que o bebê estava
doente.
Pediu aos filhos que trancassem a porta e ficassem no quarto, enquanto
ela estivesse tomando um banho e vestindo roupas limpas.
Uma grande revolta nasceu dentro dela; o amor que sentia pelo marido
transformou-se em ódio mortal. Pensou no que poderia ter acontecido
com seus filhos e decidiu sair de casa ainda naquela manhã.
Fez rapidamente a mala com algumas roupas para todos, a certidão
de nascimento das crianças, fraldas para o bebê e pão com queijo para
os meninos. Colocou na bolsa o dinheiro que tinha em casa e, antes de
sair, pediu aos meninos que fossem até o portão verificar se o marido
estava por ali.
Ele não estava visível. Saíram, então, da casinha alugada onde moravam,
a última da rua, onde nem tinham vizinhos.
Um ônibus encostou assim que chegaram ao ponto. O destino: um
terminal rodoviário de São Paulo.
Lá chegando, Jurema sentiu-se perdida, sem saber para onde ir. Teria
que ser para uma cidade onde não tivessem parentes e amigos, bem
longe da capital. Cobrindo como podia o próprio rosto, comprou as
passagens para uma cidade bem distante (usando quase todo o pagamento
do mês que havia recebido um dia antes), depois de ouvir algumas
pessoas conversando sobre a possibilidade de encontrarem trabalho
durante uma grande festa que haveria nesse município.
A viagem foi longa, porque o ônibus parava muitas vezes para deixar
e recolher passageiros. O bebê chorava, cansado e nervoso; chegaram
a seu destino tarde da noite.
Dormiram em uma praça deserta, escondidos sob alguns arbustos.
Quando amanheceu, Jurema foi acordada por um senhor de maneiras
distintas, que a ajudou a se levantar e ficou admirado com o estado
de seu rosto, cheio de cortes e hematomas.
Não tenha medo, disse ele.
Vejo que passou por momentos terríveis! Mas, apesar de ferida, você tem um
rosto lindo, que com bons cuidados voltará a ser como era.
Flávia Cunha 45
Estou aqui na cidade com o meu pessoal, para trabalhar em uma grande
festa que começará daqui a quinze dias. Viemos de São Paulo. Venha comigo
e pode levar seus filhos. Estamos em uma chácara alugada, com muito espaço.
Será bom para as crianças.
Jurema, enfraquecida como estava, logo aceitou o convite e entrou
no carro daquele homem, levando seus filhos.
Na chácara, foram muito bem tratados e, dentro de algum tempo,
a jovem mulher já estava mais forte e agradecida a seu benfeitor. Seu
rosto ficara com algumas marcas, mas uma boa maquiagem esconderia
qualquer cicatriz.
Havia, porém, uma condição para que continuassem com o grupo:
ela e as crianças não poderiam sair do interior da casa e nem conversar
com ninguém que não fizesse parte do grupo.
Ela aceitou, agradecida por tudo que faziam por ela e seus filhos.
Alguns dias depois, chegaram algumas moças, todas muito bonitas,
mas com modos vulgares, que nem lhe deram atenção.
Dois dias antes do início da festa, Jurema acordou, procurou pelos
filhos, mas não os encontrou.
Desesperada, saiu pela chácara a chamar por eles, mas logo aquele
senhor distinto puxou-a pelo braço, com força, dizendo:
Seus filhos estão seguros. Não podem ficar aqui porque o ambiente da chácara
não será adequado para eles durante a festa. Você, sim, ficará conosco, porque
chegou a hora de começar a trabalhar.
Levou-a de volta para a casa e, chamando as jovens bonitas, disse-
-lhes:
Expliquem a ela qual será o seu trabalho a partir de hoje à noite. Ela tem
que estar muito bem vestida e maquiada, pois será a nova atração para nossos
convidados.
Jurema soube, então, que elas todas eram prostitutas e que ela também
teria que se prostituir, oferecendo-se aos convidados e satisfazendo
seus desejos, se quisesse ver seus filhos novamente.
A chácara estava cercada por homens armados, de modo que ela
não conseguiria sair dali, pois seria morta e seus filhos também.
A jovem chorou muito, mas foi obrigada a concordar, com a esperança
de rever seus filhos um dia.
Naquela mesma noite, apesar de sua timidez, foi um sucesso para os
46
A história de Jurema
convidados, que, encantados por sua beleza, queriam todos ficar com
ela.
A festa durou quase um mês e Jurema já via suas forças se esgotarem
e, com elas, suas esperanças de reencontrar os filhos.
Sua tristeza era tão grande que nem percebeu que um jovem do grupo
estava apaixonado por ela e resolvido a ajudá-la.
Ficou tão doente que o protetor-algoz decidiu abandoná-la na chácara.
Tinha certeza de que ela morreria em poucos dias, naquele lugar
retirado, sem um tratamento médico.
O grupo todo partiu, ficando ali somente o jovem que a amava, pois
havia sugerido ao chefe que seria importante ter certeza de sua morte.
Depois seguiria o grupo.
Quando já estavam bem longe, o rapaz levou-a para o hospital da
cidade e a deixou na porta de entrada do pronto-socorro.
Por amor, desistiu dela, para depois de alguns dias alcançar o grupo,
declarando que tudo estava resolvido.
Jurema ficou internada no hospital, entre a vida e a morte, mas o
bom tratamento e o desejo de recuperar seus filhos a salvaram.
Contou à polícia tudo o que havia acontecido, mas não tinha nenhuma
referência concreta sobre aquele senhor e seu grupo para lhes dar.
Foi encaminhada para a Pastoral da Mulher Marginalizada, existente
em uma cidade próxima. Ali, aprendeu uma profissão e recebeu todo
apoio material e psicológico de que necessitava.
Até hoje não descobriram o paradeiro de seus filhos. Não levou na
viagem nenhuma fotografia deles, somente as certidões de nascimento.
Na delegacia, fizeram um retrato falado de cada criança. Jurema sente
que estão vivos e não perde a esperança de encontrá-los um dia.
Colabora com a Pastoral alertando adolescentes e jovens sobre os riscos
da prostituição, os sinais de que correm o perigo de sofrerem abusos
sexuais e até mesmo de serem vítimas do tráfico humano.
Jurema respeita suas companheiras que também foram vítimas da
prostituição e da maldade humana, e merece ter sua história contada
na Coletânea “ELAS nas Letras”.
Tá tudo bem
Glaucia Chiarelli
Formada em Comunicação Social, com
ênfase em jornalismo e especialização em
Produção de Conteúdo Audiovisual para
Multiplataformas.
Jornalista. Apresentadora, diretora e roteirista
do programa #Juntos e de casa, em exibição
pela Vale TV.
Realiza também assessoria de comunicação da
Secretaria Municipal de Cultura de Barretos
Trabalhou na REDEVIDA como repórter,
produtora e editora de matérias jornalísticas,
documentários e reportagens especiais, e
como apresentadora interina.
Experiência na coordenação de
radiojornalismo; por mais de 19 anos atuou
na apresentação e produção de programas em
diferentes emissoras de rádio, como: O Diário
FM, Colina FM e Independente AM e afiliada da
Jovem Pan FM e Band FM.
Por mais de 10 anos desenvolveu oficinas de
jogo dramático infantil em diversas secretarias
da Prefeitura de Barretos
Glaucia Chiarelli
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
segunda, 3 de fev, às 3h
Oi Aline, bom dia.
Hoje acordei mais cedo e aproveitei pra te responder. Está tudo bem
sim, só a correria aqui em casa. A semana passada foi difícil, mas agora
já passou.
Entrei mesmo só pra falar que tá tudo bem.
Beijos
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
terça, 4 de fev, às 5h
Oi Aline, bom dia de novo.
Tudo bem? Por aqui também. Hoje tá tranquilo e deu pra falar de
novo. Então, tô com uma saudade de conversar pessoalmente. Você
podia vir aqui em casa na quinta à tarde, o que acha?
Tá tudo tranquilo, mas faz tempo que a gente não conversa mais.
Já não podemos falar por Whats, então seria legal pessoalmente. Te
espero.
Mas tá tudo bem, viu?
Beijos
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
quarta, 5 de fev, às 8h
Oi Aline, voltei.
Ai, amiga, quero tanto falar com você. Hoje tô te chamando toda
hora né? Mas é que faz tempo que a gente não se vê. Tá tudo certo
Tá tudo bem 49
pra amanhã? Aquele dia da mesinha foi um acidente. O Roberto me
empurrou, mas errou na força. Ele não queria que machucasse. Você
tinha dito que não ia mais falar comigo se eu continuasse com ele, mas
tá tudo bem! Eu queria te falar isso.
Bjus
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
quarta, 5 de fev, às 21h
Oi Aline,
Nossa, amiga, você nem viu nenhuma mensagem ainda e eu já voltei
aqui! Tá tudo bem, viu! Mas é que eu queria falar com alguém. Você
vem mesmo amanhã? Sabe, eu tava pensando tanto na vida... queria
tanto falar com uma amiga, pedir uns conselhos seus (de novo rsrsr).
Mas tá tudo bem, viu? Não se preocupe!
Bjus
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
quinta, 6 de fev, às 2h
Oi Aline! Quando puder me responda, tá? Queria saber como você
tá, conversar...
Beijos
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
quinta, 6 de fev, às 11h
Aline,
Oi amiga, tudo bem? Por aqui também tá tudo bem. Olha, melhor
você não vir hoje não. O Roberto vai chegar mais cedo e aí você sabe
né? Ele gosta de ficar só a gente. Depois te explico melhor. Mas tá tudo
bem, viu?
Bj
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
sexta, 7 de fev, às 4h
50
Glaucia Chiarelli
Aline,
Oi amiga! Desculpa o sumiço!
A semana foi muito corrida. Tá tudo bem, mas é que não deu pra
falar de novo por aqui. Eu machuquei o olho e tava nervosa. Menina,
você não acredita o quanto eu sou estabanada: tava descendo do ônibus,
daí eu caí, bati o olho na lixeira, escorreguei, fui pro chão e machuquei
bem esse dedo do meio.
Mas tá tudo bem, viu? Nossa, fiquei tão nervosa. Tô te contando
isso pra quando você vir aqui não achar que foi o Roberto. Ele não faz
mais isso. Eu que não sei como me machuco tanto, rsrs.
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
quinta, 6 de fev, às 9h
Aline,
Amiga, quando puder liga aqui! Tô sozinha em casa. Eu tô com
muito sono, não dormi direito esta noite, mas queria muito falar com
você.
Mas olha: não se preocupe, viu? Tá tudo bem.
Beijos
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
quinta, 6 de fev, às 20h
Aline,
Ai amiga, eu tô desesperada! Tava tudo bem esses dias. Eu machuquei
descendo do ônibus, mas fora isso tudo tranquilo. Aqui em casa
eu tava fazendo tudo direitinho. Eu pensei bastante e resolvi fazer a
minha parte. Tudo. Sem dar motivo nenhum pra falar, porque aí, se
acontecesse algo, não seria mais minha culpa. Mas eu acabei fazendo
tudo errado de novo!
Eu fiz tudo na hora que ele não tava em casa. Eu fiz os meninos ficarem
quietos (assim, sabe como é criança: tinha hora que eles gritavam
mesmo, mas eu dei uma controlada). Eu fiz a janta certinho pra não
dar motivo, mas Aline... não teve jeito! Eu falei de novo da minha mãe.
Eu esqueci que ele tava nervoso com o trabalho e perguntei da minha
Tá tudo bem 51
mãe, se ela podia ficar aqui em casa na próxima semana, quando vem
pro retorno no hospital. A culpa foi minha, eu devia saber que ele tava
nervoso. Ai, por que eu fui perguntar de novo? Eu sei que ele não gosta
que a gente fica perguntando a mesma coisa mil vezes! E ele tava muito
nervoso.
Coitado, ele esqueceu de fechar o portão de trás da firma antes das
16h ontem e o encarregado dele deu um esporro nele, na frente de todo
mundo! Ele tava muito nervoso e eu fui perguntar isso mais uma vez.
Eu sabia que ele não gostava: então, por que eu perguntei de novo?
Aí ele me empurrou de novo e eu bati o dente. Foi um acidente. Eu
juro!
Ai Aline, eu tô com tanta vergonha! Como eu vou sair de casa na segunda?
É o primeiro dia de aula dos meninos e eu tenho que levar eles
na escola; só que a Vera, aquela coordenadora de quem te falei, veio
com umas conversas estranhas comigo aquela vez, por causa do roxo
no meu braço, e agora ela vai querer saber do meu dente, porque tá
muito inchado. Eu sou muito estabanada. Ele não empurrou forte, mas
eu me desequilibrei. Aí ela vai ver o dedo e o olho também, certeza! Ai,
Aline, vai acabar dando problema pro Roberto e a culpa vai ser minha!
Eu sei que você falou que não queria mais saber disso, que não ia
mais se meter, que você acaba ficando com raiva dele e minha também...
mas pode me dar esse apoio só mais essa vez? Pelos meninos.
Pode levá-los na escola segunda?
Aguardo sua resposta urgente.
Beijos
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
quinta, 6 de fev, às 22h
Aline,
Cadê você? Ai amiga, eu tô te perguntando de novo porque eu tô
com medo. O Roberto disse que não quer saber de ninguém cuidando
da nossa vida amanhã, que a gente não deve contar nada pra ninguém
do que acontece dentro da casa da gente, que ele aprendeu isso com o
pai dele, que aprendeu com o pai dele também. Minha mãe também
me ensinava isso, mas eu liguei ela pra desabafar (pra minha mãe, por-
52
Glaucia Chiarelli
que não tô conseguindo falar com você e o seu número eu tive que apagar
do meu telefone pra não dar confusão; por isso, a gente só conversa
por email)... mas Aline, ele jogou meu celular na parede. Despedaçou.
Ainda nem acabei de pagar, mas ele falou que não era pra falar nada
pra ninguém.
Aline, ele falou que se tiver uma reclamação por causa da escola, ele
disse que aí sim eu vou ver. Eu sei que ele fala da boca pra fora, mas
tô com medo, amiga! E o pior é que os meninos estão ficando revoltados.
O Luiz Henrique disse que vai bater no pai dele. Onde já se viu,
filho batendo em pai? A culpa é minha, Aline, eu devia ter feito alguma
coisa. Eu não tô sendo boa mãe! Por minha culpa, os meninos estão
assim, com raiva do pai. Pai é pai.
Ai, Aline, por favor, amiga, me responda assim que puder.
Beijo
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
segunda, 10 de fev, às 3h
Oi Aline, tudo bem?
Bom dia. Acordei mais cedo de novo só pra confirmar: você vai poder
ir na escola com os meninos?
Beijos.
De: <anamaria2001@gnet.com.br>
Para: <alinegsilva.@gnet.com.br>
segunda, 10 de fev, às 19h
Oi Aline, tudo bem com você?
Espero que sim. Quero me desculpar por esse monte de e-mails que
te enviei esses dias. Encontrei sua irmã na escola ontem e ela disse que
você está viajando.
Olha, não se preocupe com nada, tá? Está tudo bem. Eu só me apavorei
um pouco, você me conhece. Não devia ter te mandado esse monte
de e-mail. Espero que compreenda.
Por favor, não diga nada pro Paulo.
Tá tudo bem.
Evolução Histórica
da Mulher
Glaucia Martins Simões
Possui graduação em Direito pela Universidade
de Ribeirão Preto (1992) e mestrado em
Direito pela Universidade de Franca (2003).
É professora vinculada ao Centro Universitário
da Fundação Educacional de Barretos.
Delegada de Polícia de 1994 a 2019.
Atualmente, presta serviços voluntários junto
à sociedade com palestras e também em um
projeto de mulheres vítimas de violência
Glaucia Martins Simões
Ao fazer uma breve análise histórica, podemos verificar que era
comum a mulher ser tratada de forma discriminatória e subordinada
em relação ao homem. Na Era Primitiva, a coleta de frutos
e raízes comestíveis eram atividades desenvolvidas pelas mulheres. A
caça era atividade masculina. Já havia, portanto, uma divisão natural
do trabalho; no entanto, a mulher era valorizada no grupo.
Com o aparecimento da propriedade privada dos rebanhos, depois
da terra a linha de descendência passou a se fazer pelo pai, a fim de se
garantir os direitos dos filhos à herança. Da mulher passou a se exigir a
virgindade antes do casamento e a fidelidade conjugal.
No extenso período Medieval, as mulheres são dinâmicas como as
manifestações do tempo em que viveram; o casamento tinha como objetivo
a procriação.
A mulher sempre era submissa: primeiro ao pai e, quando se casava,
ao marido. A ela cabia as responsabilidades domésticas. A mulher, na
condição de prostituta, era discriminada; no entanto, considerada um
mal necessário, pois servia aos jovens rapazes.
Um grande marco da história da mulher medieval foi a Inquisição:
durante mais de 300 anos, a mesma Europa que viu nascer a Idade
Moderna e presenciou feitos como a conquista do Novo Mundo, a
ascensão da burguesia comercial e o fim do domínio feudal, fez das
fogueiras um instrumento de repressão, tortura e morte para milhares
de mulheres condenadas em praças públicas, consideradas bruxas, por
terem o domínio no uso de plantas medicinais, entre outros.
É importante destacar que as contribuições das mulheres para as
culturas humanas foram inúmeras e nunca tiveram o devido crédito e
valor: elas desenvolveram vários idiomas, a agricultura, o artesanato, a
culinária e a cerâmica, entre outros saberes.
A partir da Revolução Francesa, em 1789, a mulher deixou de ser
Evolução Histórica da Mulher 55
considerada importante apenas para a procriação e execução de tarefas
domésticas. A Revolução Francesa influenciou muito a organização
futura da mulher, em busca de seus direitos.
A Revolução Industrial incorporou o trabalho feminino nas fábricas.
Foi o começo da mudança do status feminino: de dona de casa, a
mulher passou a trabalhar arduamente nas fábricas de fiar, onde recebia
pouco, trabalhava excessivamente e, muitas vezes, era abusada pelos
patrões.
No Brasil, seguindo um cronograma de marcos, podemos destacar
algumas conquistas na área da educação e do trabalho.
Em 1917, o serviço público passa a admitir mulheres no quadro de
funcionários. Em 1932, as mulheres conquistam legalmente o direito
ao voto, sacramentado pela constituição de 1946.
Os anos 80 são marcados pela luta contra a violência às mulheres
e pelo princípio de que os gêneros são diferentes, mas não desiguais.
Foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, com o propósito
de acabar com a discriminação da mulher e aumentar a participação
feminina nas atividades políticas, econômicas e culturais.
A Constituição Federal de 1988 foi um marco na história da emancipação
da mulher: homens e mulheres passaram a ser iguais em direitos
e obrigações — ambos são iguais e podem opinar sobre todas as
questões da família, acabando com a chefia da sociedade conjugal.
As conquistas sociais femininas foram muitas. No entanto, ainda se
está longe do ideal. A maioria das mulheres ainda ocupa menos cargos
de poder e prestígio, seu salário ainda é menor que o dos homens nas
mesmas funções e elas continuam a serem vistas como as principais
responsáveis pela casa e pela família, cumprindo muitas vezes uma tripla
jornada.
Outro marco referente a nossa evolução, principalmente com relação
ao combate à violência contra a mulher é a Lei Maria da Penha (Lei
11.340, de 2006). Surgiu como resultado dos esforços do movimento
de mulheres e poderes públicos no enfrentamento à violência doméstica
e familiar, e ao alto índice de morte de mulheres no país.
Na prevenção à violência, a Lei Maria da Penha prevê políticas públicas
integradas entre órgãos responsáveis (Poder Judiciário, Ministério
Público, Defensoria Pública, com as áreas de segurança pública, assis-
56
Glaucia Martins Simões
tência social, saúde, educação, trabalho e habitação).
Concluindo: nossa caminhada ainda exige muitas batalhas, pois temos
algo que nos é peculiar: a Dádiva da Maternidade; dom Divino que
nos move.
A pianista Haydée
Menezes: viagens nas
pontas dos dedos
Karla Armani Medeiros
É historiadora e autora da obra “De onde
cantam as cigarras”. É articulista do jornal
“O Diário” e professora de História, com
ênfase nas áreas de História do Brasil,
Museologia, Patrimônio e História Regional.
Graduada em História e pós-graduada em
“História, Sociedade e Cultura”, tem trabalhos
publicados sobre temas históricos de Barretos.
É barretense, ex-Secretária Municipal de
Cultura (2013-2015) e titular da cadeira 7
da Academia Barretense de Cultura (ABC).
Apaixonada pela história da cidade e pelo
Museu! Agora, também divulga seus estudos
no canal do Youtube “Profa Karla Armani”
Karla Armani Medeiros
“Essa viagem foi o fato cultural culminante da história barretense, em 1938. Não é só de admiração
e entusiasmo, mas sobretudo de gratidão, o preito que te devem os 11.999 habitantes de Barretos do
último censo, e mais os que chegaram depois. Sim, de gratidão principalmente. Porque os críticos
de todas as cidades que visitaste espalhando nas almas inesquecíveis emoções da Beleza suprema,
naturalmente quizeram saber donde lhes ia aquela artista invulgar, onde surgira á vida, onde
nascera, e por certo haverão registrado em seus apontamentos, com surpresa, que és filha de Barretos,
cidade de que não há notícias nas folhas, mas da qual se boqueja, quiçá justamente, uma fama
duvidosa, por aí além. -Oh! Será possível? Pois então há gente civilizada naquele rincão esquecido
da província bandeirante? Não é aquilo apenas um núcleo de negócios e couto de valentões? E é por
isso que tudo, patrícia cara, [...], foste por toda a parte, com a fidalguia do teu trato, com a cortezia
das tuas atitudes, com a tua beleza despretenciosa, e em particular com a magia dos teus dedos
a deslizar sobre o marfim sonoro, foste desmentindo a bisbilhotice e os aleives dos inconscientes e
tornando assim conhecido e elevado o nome da tua terra natal. Sê bemvinda!”
Crônica “Esboços” de Caá-Ubi, Jornal “A Semana”, Barretos (SP), 30/07/1938 (grafia
original; grifos meus) 1
Apresentava-se como Haydée Menezes, a “artista invulgar”, a
“filha de Barretos”, a “patrícia cara” descrita pelo jornalista Osório
Rocha sob seu pseudônimo Cáa Ubi. Era pianista, barretense e
personalidade constante nas páginas de jornais da cidade nas
décadas de 1930 e 1940. As palavras rebuscadas e adjetivadas de
Osório têm a intenção de destacar o ofício musical da pianista,
e, simultaneamente, sublinhá-la como expoente de cultura e arte
- único meio capaz de elevar o nome da cidade como local de
boa convivência, desmentindo (ou desfazendo) a fama de cidade
incivilizada, violenta, isolada e conservadora. Barretos, naqueles
anos 1930, já era uma cidade cuja urbanidade se revelava por
casarões imperiosos no centro, bons comércios, teatros, clubes, sede
de estação ferroviária e instituições sólidas; porém, em suas tradições
ruralistas, o conservadorismo e a criminalidade (a “lei do revólver”)
ainda entreameavam certos momentos daquele tempo presente. A
presença de Haydée e seu piano valorizavam a figuração da cidade
como culta, conforme veiculava “A Semana” de 31/01/1932:
“Barretos não é mais uma cidade sertaneja, pois o conforto de suas casas, o
A pianista Haydée Menezes: viagens nas pontas dos dedos 59
amor pelas artes, que se manifesta eloquentemente em ocasiões como a que
nos proporcionou a senhorita Haydée Menezes, testemunham o progresso
intelectual [da cidade]”.
Assentada por tamanha receptividade, no supracitado ano
de 1938, a pianista retornava à sua terra natal, depois de longa
excursão pelo Norte e Nordeste do Brasil, onde realizou séries
de concertos pela Instrução Artística do Brasil (IAB). Por esta
associação, Haydée viajou por sete estados brasileiros, tornando-se
hóspede oficial de governantes e interventores; frequentou espaços
de arte, foi aplaudida por plateias diversas em teatros históricos
e conheceu artistas modernos, eruditos e populares. Somando os
concertos, audições e recitais pela IAB aos seus particulares, são
pelo menos 98 apresentações e 49 cidades visitadas entre os anos de
1930 e 1947. Números que refletem uma carreira importante, a qual
pode ser estudada pela perspectiva da História sob vários temas: a
condição feminina no ofício da música; a formação como pianista;
suas referências na arte; a atuação como difusora da cultura paulista
e brasileira; e a vivência na Instrução Artística do Brasil — objetos
de estudo deste artigo.
Mas pode-se lançar um olhar micro à obra e vivência dessa pianista
que, apesar de nascida no interior, formou-se nas salas nobres do
tradicional Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e,
de lá, tornou-se concertista da IAB e personalidade de destaque na
crítica jornalística do país. Não nos é possível mais ouvir os toques
de seus dedos; resta-nos, portanto, conhecer um pouco de sua obra,
deslizando-se por entre essas páginas.
Fim do prelúdio, princípio da História.
--xxx--
O toque do piano era apreciado nas famílias de vida burguesa no
Brasil desde o século XIX: “era o instrumento por excelência da música
do amor socializado com casamento e bênção divina tão necessário à família
como o leito nupcial e a mesa de jantar” 2 . Sabe-se que, por instrução ou
ocupação, nas famílias ditas “tradicionais”, abastadas, nos grandes
centros e no interior, era comum o estudo do piano às moças. Fora do
habitual era a continuação destes estudos em salas conservatorianas
e a transformação do piano em instrumento de trabalho, isto é,
60 Karla Armani Medeiros
ser pianista. Fato que ocorreu com Haydée. Ela, nascida em 20
de novembro de 1915, em Barretos, era filha da sra. Amélia Júlia
de Oliveira Menezes e do Major Elyseu Ferreira de Menezes. Sua
mãe era filha de José Eduardo de Oliveira, comerciante conhecido
como Zeca Vigilato, originário de Caconde (SP), líder político local
desde os fins do século XIX e proprietário de um dos palacetes mais
ornamentados da cidade, onde se realizavam reuniões e bailes. Seu
pai, Elyseu, também político influente local, além de participante
de diversas instituições culturais da cidade, foi músico, professor
e escrevente de cartório 3 . O pai de Elyseu era José de Menezes
Ferreira, conhecido pela alcunha de Ferreirinha: vindo de Frutal para
Barretos, em 1876 já possuía uma botica no arraial, onde também
exercia atividade de “professor” 4 . Elyseu e Amélia casaram-se em
Barretos em 1895 5 e, em 1912, construíram sua residência defronte a
de Zeca Vigilato, tão imponente quanto. Dotado de uma arquitetura
que mesclava elementos neoclássicos, art nouveau à exaltação de
arcos e ogivas na entrada, “sendo de admirar o seu interior decorado pelos
famosos Moriscalchi, pintores de Jaboticabal” 6 , o casarão da família de
Haydée, junto ao de seu avô, compunha o cenário ideal de “cartãopostal”
de uma Barretos que se enamorava pelos ares da Belle Époque.
Demonstrando sensibilidade, a menina Haydée tão cedo iniciou
aulas de piano com o maestro Carlos Guimarães, que há anos era o
pianista oficial do Grêmio Literário e Recreativo de Barretos. Graças
à condição familiar e ao incentivo do maestro, que logo notou o
talento da jovem, Haydée foi aprovada nos exames e ingressou, em
1927, no 4º ano do curso de piano 7 do Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo. Aos 12 anos, mudou-se para São Paulo com
sua mãe, estudando nos colégios Minerva e Santa Inês e dedicandose
ao piano no clássico Conservatório. Este, instituição fundada em
1906, no auge da economia paulista cafeeira, era um dos maiores
representantes de ensino musical no país; e, mais, “corresponde à
democratização do ensino de música em São Paulo” 8 . Tradicional pelo
tempo, mas contemporâneo no ensino, era dotado de professores de
alto gabarito, os quais acompanharam Haydée em vários momentos
de sua carreira, tais como Zacarias Autuori, Julieta Reischert,
Ruth Barros, Carlos Cardim, Chagas Júnior, Furio Franceschini,
A pianista Haydée Menezes: viagens nas pontas dos dedos 61
Mozart Camargo Guarnieri, Samuel Arcanjo dos Santos e Mário de
Andrade. Este último, célebre literato modernista, era catedrático
de História da Música e foi paraninfo na formatura de Haydée, em 3
de abril de 1934, onde, no Teatro Municipal, junto a 230 formandas,
sendo somente 15 como “pianista concertista”, aos 19 anos de
idade formava-se no grau máximo com “distinção e louvor”. Dali
em diante, a recente “pianista concertista” se apresentaria nos mais
tradicionais teatros do país, incluindo o mesmo Teatro Municipal
de São Paulo 9 , onde se formara.
O olhar atento do público e as expectativas diante das críticas
já faziam parte do universo de Haydée antes mesmo de se formar,
pois a pianista já havia realizado concertos e audições desde 1930
no Grêmio Literário e Recreativo de Barretos e em cidades da
região como Olímpia, Jaboticabal, Jaú e São Paulo 10 . Um destes
concertos ocorreu em 1931, quando, no Teatro Santo Antônio, em
Barretos, Haydée se apresentou no festival de Heitor Villa-Lobos
com a pianista Antonieta Rudge, esboçando seu talento de artista
junto a estes nomes já consagrados nacionalmente 11 . Ainda antes
de sua formatura, Haydée já tinha sido contratada pela Instrução
Artística do Brasil e se esforçava para criar, em Barretos, um
núcleo da IAB. Esta, fundada em 1931 pela concertista Helena
de Magalhães Castro 12 , possuía sede central no edifício Glória, na
capital paulista 13 , e tinha por finalidade básica a criação de uma rede
de apresentações culturais no interior paulista e em outras cidades
por todo o Brasil, permitindo a formação do público brasileiro
através do conhecimento e apreciação da arte erudita e popular,
de modo que esse público tivesse a chance de conhecer os próprios
artistas nacionais, e, estes, formados em instituições de Música e
Arte, tivessem acesso ao emprego e elevação na carreira artística.
Durante sua existência, a IAB manteve núcleos em dezenas de
cidades, contando com subvenções financeiras de prefeituras e
clubes recreativos, além do apoio de hotéis e grandes instituições
artísticas e educativas que patrocinavam os saraus, conferências,
recitais, concertos e audições oferecidos a módicos preços. Para
essa rede funcionar, artistas contratados eram também designados
a atuarem na fundação destas sedes nas cidades, como foi o caso de
62 Karla Armani Medeiros
Haydée, que inaugurou e reinaugurou a IAB em Barretos, em 1935
e 1940, além da recente capital Goiânia (GO) e Araguari (MG) em
1938 e em Assis (SP) em 1941 14 . Em Barretos, a IAB funcionou
com subvenção da Prefeitura e do Grêmio Literário e Recreativo
de Barretos, clube tradicional e local de recepção e apresentação
de artistas importantes trazidos por Haydée pela IAB, tais como:
Dinorá de Carvalho, Helena de Magalhães Castro, Maria do Carmo
Botelho e Cândido de Arruda Botelho, Corrêa Júnior, Tito Schippa
e outros tantos.
A introspecção e a concentração da pianista em seus concertos
puderam ser vivenciadas pelos barretenses em vários momentos,
pois Haydée executou recitais e audições diversas vezes no Grêmio
Literário e Recreativo de Barretos, inclusive sob o patrocínio da IAB.
Entre os anos de 1935 a 1937, Haydée foi professora particular de
piano em Barretos, realizando recitais com suas alunas, expondo-as
em apresentações em homenagem à Santa Cecília 15 – a padroeira
da Música. Neste ínterim, foi homenageada em variadas ocasiões
na cidade, não só pelo Grêmio, mas por outras instituições, como
o Rotary e a ACIRB 16 . Do mesmo modo, Haydée era promotora
de recitais beneficentes em contribuição à igreja, à Vila dos Pobres,
ao Asilo “Anália Franco”, ao Asilo “Dr. Mariano Dias” e à
Santa Casa 17 , além de realizar recitais em benefício e incentivo a
outros colegas, como foi o caso do recital ao violinista barretense
Spartáco Rigonatti, também estudante do Conservatório, em 1934,
no Grêmio, promovido por Haydée e suas parceiras barretenses,
pianistas conservatorianas Adelaide Galati e Antonia Naves Vieira
Machado 18 . Ainda no Grêmio, Haydée realizou concerto com seu
professor de “Música de Câmara” do Conservatório, Zacarias
Autuori, em 1933, sendo uma apresentação que muito agradou ao
público, mais do que a própria vinda de Villa-Lobos dois anos antes:
“Foi mesmo, pelo encanto, pela atração, pela magia que exerceu sobre a
platéia, a maior festa, no genero, realizada em nossa terra, suplantando,
de muito, a da excursão Villa-Lobos. Villa-Lobos é, inegavelmente, uma
formidável compleição de artista, mas não soube fazer-se compreender pelo
nosso público. Autuori, ao contrário, egualmente grande e egualmente
perfeito, tem a seu favor um sentimento iluminado mercê do qual com
A pianista Haydée Menezes: viagens nas pontas dos dedos 63
simplicidade e facilidade acha o caminho dos nossos corações” 19 .
O dedilhar, deslizar e desnudar do piano de Haydée em Barretos
era sinônimo de enriquecimento cultural àquela gente interiorana;
trazia elementos de arte a um lugarejo que tinha de tudo para
ser afastado da música erudita e, mais ainda, das composições
brasileiras. Portanto, cada vez que se apresentava, além dos aplausos
instantâneos, recebia em seguida notas nos jornais, como a seguinte:
“Haydee Menezes provou com a belleza da sua presença a grandeza de sua
arte, dedilhando no seu maravilhoso teclado rosas de harmonias formidáveis,
estylizadas nos sons bárbaros da música africana e na graça deliciosa e
subtil da valsa de Moszkowsky” 20 . A referência à “música africana”
trata-se de “A Dança dos Negros” do mineiro Fructuoso Vianna,
em contraponto ao alemão erudito Moszkowsy. Esse balanço
entre os compositores nacionais e estrangeiros, sendo clássicos ou
modernos 21 , era recorrente nos concertos de Haydée, os quais, às
vezes, era programado por ela mesma ou pela IAB. Ela deslizava
os clássicos Chopin, Liszt e Scarlatti, assim como os modernos
Debussy, Pick Mangiagalli e Cyril Scott, na mesma intensidade em
que dedilhava os brasileiros Alexandre Levy, Camargo Guarnieri,
Alberto Nepomuceno, Souza Lima, Francisco Mignone, Francisco
Casabona, Heitor Villa-Lobos e Marcello Tupynambá — sendo
este compositor, maestro e crítico musical, casado com Irene
Menezes, prima de Haydée. Tupynambá acompanhou Haydée em
vários momentos de sua carreira 22 . A espetacularização do erudito
estrangeiro era importante, pois, muitas vezes, eram as músicas mais
conhecidas, clássicas; porém, a apreciação das canções brasileiras
modernas não só demarcava seus autores (maestros e professores),
como ressignificava o momento de nacionalização da cultura
brasileira, notadamente da Música – fenômeno iniciado a partir de
1914, com a Grande Guerra, e monumentalizado pela Semana de
Arte Moderna em 1922 23 . Haydée vivenciou essa fase nacionalista.
Declamações também faziam parte de suas apresentações,
pois Haydée era formada em Declamação, pelo Conservatório.
Em sua maioria, os concertos eram divididos entre solos de
piano com músicas estrangeiras, solos de canto, declamações de
poesia e, por fim, composições brasileiras em piano e/ou canto.
64 Karla Armani Medeiros
Na parte de declamações, os poemas eram de autores brasileiros,
tais como Guilherme de Almeida, Suzana de Campos, Cassiano
Ricardo, Jonny Doin, Bastos Tigre, Oliveira Ribeiro Netto, Ricardo
Gonçalves, Belmiro Braga, Júlio Tinton e Margarida Lopes de
Almeida. As temáticas desses poemas também revelam o momento
da busca pela brasilidade, pelo florescimento do Brasil regional –
muitas vezes traduzido na (re)construção da identidade paulista,
do bandeirantismo 24 ; afinal, a maioria destes poetas era paulista.
Inclusive, era este o tema recorrente nas críticas de jornais sobre os
concertos de Haydée e das repercussões da IAB. São longas, bem
escritas e até poeticamente relatadas as opiniões sobre Haydée em
suas apresentações, visto que, em praticamente todas as 49 cidades
visitadas por ela, os jornais publicaram algo a seu respeito. Na
generalidade, as críticas se referiam ao aspecto técnico, como a
boa pedalização, seu senso interpretativo, a clareza na execução,
a sonoridade agradável, suas linhas melódicas e a personalidade
como solista. Ademais, eram sempre delicadamente citadas as
características físicas e pessoais de Haydée, como sua beleza, simpatia
e jovialidade. Sendo justamente o fato de ser jovem o aparato usado
nas poucas críticas desfavoráveis que sofreu 25 , como uma pianista
que ainda estava em construção, prevendo seu futuro promissor
e comparando-a, neste futuro, a nomes de pianistas consagradas
como Guiomar Novaes, Magda Tagliaferro e Antonieta Rudge.
Nas reportagens das múltiplas cidades, Haydée era qualificada
e apresentada como “virtuose”, “peregrina artista”, “consagrada
pianista”, “pianista de escol”, “festejada pianista bandeirante” e “grande
embaixatriz” 26 . Vocábulos crônicos.
Palmas dos mais diversos públicos recebeu Haydée durante
as viagens, de Norte a Sul no Brasil, que empreendeu pela IAB,
oportunidade na qual conheceu capitais e cidades do Norte e
Nordeste do Brasil Central e do interior de São Paulo. Destas
viagens, destacam-se três excursões principais, sob a organização
da presidente Helena de Magalhães Castro: a primeira foi a
excursão ao Norte/Nordeste, em 1938, com o violinista Antonio
Ferrer 27 , onde conheceram Manaus, Belém, Ceará, Natal e Recife;
aportaram depois em Vitória (ES) e na capital Rio de Janeiro.
A pianista Haydée Menezes: viagens nas pontas dos dedos 65
Nestas viagens, algumas literalmente sobre as águas de grandes rios,
Haydée relatava com bom vocabulário suas impressões, deixando
transparecer sua apreciação pela cultura brasileira e seus aprazeres
artísticos: “É imenso o Rio Amazonas. É muito pitoresca [a viagem].
Vão-se atravessando canais e avistando ilhas. Nada, porém, empolga
tanto a vista como o encontro dos rios Solimões e Negro. [...]. Manaus, a
‘cidade risonha’, embora pequena, possue mais vida e mais movimento do
que Belém. O Teatro Amazonas é magestoso. Há em seu salão de honra
uma série de telas magníficas sobre motivos indígenas, da flora e da
fauna amazonenses, pintadas todas por De Angelis. [...]. Affirmo, porém,
que estou encantada com o povo nortista. Todo ele é amável, simples e
hospitaleiro” 28 . Depois, vieram os concertos em cidades da região da
Sorocabana, em 1941, com a solista Celina Sampaio 29 ; e, em 1944,
os recitais na região Noroeste de São Paulo junto à cantora Nair
Duarte Nunes 30 e nas localidades da Araraquarense com a cantora
Almerinda Borges e o violoncelista Fausto Borges 31 . Haydée esteve
ladeada por outros importantes solistas e músicos nestes concertos
pela IAB, destacando-se Celina Sampaio, pianista discípula de
Vera Janacopulos. Componente das principais críticas em jornais
da década de 1940, “era autodidata em campos humanísticos, tinha base
filosófica, sensibilidade intensa, intuição reveladora e espírito religioso” 32 . O
contexto da década de 1940 também permite perceber a ascensão
da cultura brasileira, em especial a Música, como emblema para o
projeto do “Estado Novo” do presidente Getúlio Vargas, como se
vê em algumas críticas de jornais que anunciavam os concertos e a
música de Haydée como a personificação para os “novos tempos”,
“novos ritmos da vida” 33 , somando-se aos elementos de patriotismo
e civismo constantes nos atos e nas apresentações. Era o espírito
patriótico da época.
O retorno ao palco era constante nos concertos e recitais de
Haydée, acompanhada de outros músicos ou não, visto que seus
programas eram compostos por música instrumental clássica, erudita
e popular, bem como poesias brasileiras de aflorados sentimentos.
Nestas apresentações e viagens, Haydée era acompanhada pela
irmã Yolanda ou pela mãe Amélia, pessoa que a assistia também
em recitais íntimos e reuniões culturais, tais como aconteciam na
66 Karla Armani Medeiros
“cabana dos Becker” nas noites paulistanas, onde Haydée desfrutava
da companhia e prosa litero-musical de músicos e escritores como
Lígia Fagundes 34 . Os espaços de sociabilidade de Haydée não
se restringiam aos teatros e clubes; além dessas reuniões mais
intimistas, a pianista frequentava redações de jornais e emissoras de
rádio, onde também promovia concertos ao vivo; como foi o caso
da interpretação musical que ofereceu junto ao violinista Antonio
Ferrer ao programa “A Hora do Brasil”, no Rio de Janeiro, em julho
de 1938 35 . Nestas viagens, Haydée se aventurava em conhecer as
cidades, geralmente acompanhada por autoridades (interventores
e prefeitos), comparecendo em festas populares, comemorações,
quermesses, espaços de arte, além dos recantos de belezas naturais
como cachoeiras, rios, pontes, portos etc. Essa experiência, traduzida
em oportunidade de estudos e conhecimentos, elevava a imagem de
Haydée na própria cidade de Barretos, enxergando-a como “uma
artista tão singular que brotou da aspereza sertaneja de Barretos para ir se
entender em grande camaradagem com sujeitos complicados e geniais” 36 .
As impressões que Haydée promovia à plateia eram sonorizadas
não só pelos calorosos aplausos, mas também pelos recortes da
crítica jornalística. A plateia que lhe assistia, geralmente associados
de clubes ou pagantes dos teatros, era sempre adjetivada como
“fina”, “culta” e “seleta”, compondo uma cena tão poética quanto
a descrição desta nota jornalística: “O aparecimento da jovem artista
em cêna domina psicológicamente a plateia: silêncio absoluto, peitos
arfantes, olhos moribundos, êxtase verídico (quantas recordações…) naquela
população ordinariamente rebelde, mas agora curvada ao fascínio da que
tão bem e com acentos tão expressivos sabe falar o idioma do céu” 37 .
O silêncio tomou conta desses aplausos no derradeiro ano de
1947, quando, enquanto Haydée era aplaudida num concerto
beneficente em Guaratinguetá (SP), seu irmão José Eduardo de
Oliveira Menezes sofria um atentado a tiros em Barretos, sua terra
natal. Jornalista, redator do “Correio de Barretos”, José Eduardo
era um irmão querido, que usava do jornal como um estandarte
aos feitos artísticos da irmã. A própria cidade de Guarantinguetá
se sensibilizou com a notícia: “Antegosavamos uma continuação dessa
noitada artística de sexta-feira, no mesmo salão… O destino não quiz!!!
A pianista Haydée Menezes: viagens nas pontas dos dedos 67
[...] Apenas… compartilhamos com todos, com o coração compungido, o
epílogo dessa noite triunfal de Haydée de Oliveira Menezes. Sua triste mãe,
aqui com ela teve duplas lagrimas: as do triunfo inconteste de sua filha… e
as do infortunio de seu filho distante! Haydée! Guaratinguetá inteira sofre
contigo e com os teus!” 38 . Segundo a família, Haydée interrompia a
carreira de concertista após a morte de seu irmão, dedicando-se às
aulas particulares de piano na capital paulista, onde, naquele ano
de 1947, já era professora do mesmo Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo 39 em que se formara treze anos antes. Era o
fim de Haydée como concertista e recitalista da IAB, mas não como
pianista, que foi até sua vida findar em 17 de agosto de 2004. Não
foi mãe; se casou em 1963 com Paulo de Oliveira e teve uma vida
dedicada ao piano como extensão não só de sua mão, mas de toda
a arte e conhecimento fertilizados em sua mente.
À História não cabe ressaltar suas qualidades pessoais, mas sim
conhecer sua concepção artística, contextualizando-a à época;
traçando, portanto, quase uma epopeia cultural dentro da história
local (Barretos) e regional (interior de São Paulo). A aparição dos
nomes dos artistas, bem como suas formações, as composições e
seus autores revelam traços da mentalidade daqueles anos 30 e
40, além de compreender o fenômeno nacionalizante da cultura
brasileira tão estudado pelo escritor Mário de Andrade, morto em
1945 (cujo falecimento foi lamentado em cartão oficial de Haydée 40 ).
Sendo assim, Haydée tornou-se personagem histórica não pela sua
experiência individual, mas pelo quanto essa vivência tem a mostrar
sobre o momento cultural da época, as instituições, pensamentos e a
difusão da música brasileira pelo toque de seu piano; apresentando-a
aos próprios brasileiros em recantos distantes. Trajetória não
captada e nem registrada pelo memorialismo local, que a Haydée
dedica poucas linhas, apesar de numerosas citações em jornais e
fotografias.
Mas a História corrige, anuncia, dá voz e cria possibilidades.
A obra de Haydée foi marcada por suas viagens pelo Brasil,
onde cidades longínquas aplaudiram a sua interpretação da música
erudita e brasileira. No entanto, as viagens em que a pianista elevou
o público no tocante à emoção e erudição, inverteram o olhar
68 Karla Armani Medeiros
ao velho teclado de marfim: de mero e frio instrumento a uma
plataforma de cultura. Pontas dos dedos que viajavam, da Rapsódia
de Liszt, à Alma Brasileira de Villa-Lobos.
HAYDÉE DE OLIVEIRA MENEZES, em recital de reinauguração da Instrução Artística do
Brasil no Grêmio Literário e Recreativo de Barretos, na noite de 10 de dezembro de 1940:
Artigo dedicado à Luzia Menezes Junqueira Netto, sobrinha de Haydée,
pelo inestimável gesto de doar-me o álbum de família da pianista, e a
Clovis de Oliveira Menezes (in memoriam) pela sensibilidade de ter
produzido este álbum, preciosa fonte histórica.
A autora.
A pianista Haydée Menezes: viagens nas pontas dos dedos 69
REFERÊNCIAS E NOTAS:
1 - Recorte de jornal arquivado no álbum “Haydée O. Menezes: sua vida artística”, produzido artesanalmente
por seu irmão Clóvis, e doado pela sobrinha Luzia Menezes à autora deste artigo.
Todas as citações de jornais deste texto, pertencem originalmente a este álbum, que integra 308
recortes de jornais e convites entre os anos de 1928 a 1948.
2 - ANDRADE, Mário. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins, 1965, p. 16.
3 - ROCHA, Osório. Barretos de outrora. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1954, p. 125, 131.
4 - MENEZES, Ruy. Espiral: História do desenvolvimento cultural de Barretos. Barretos: INTEC,
1985, p. 61.
5 - No dia 21/02/1895. Fonte: Cisalhas de Osório Rocha, folha 150 - Acervo do Museu “Ruy
Menezes”.
6 - MENEZES, RUY ...op cit, p. 8.
7 - “Folha de Barretos”, Barretos (SP), 04/04/1934.
8 - FREITAG, Léa Vinocur. Momentos de música brasileira. São Paulo: Nobel, 1985, p. 37.
9 - “Correio de Barretos”, Barretos (SP), 09/12/1943.
10 - “A Semana”, 02/02/1930; “O Popular”, 02/02/1930; “A Semana”, 31/01/1932; “Folha
de Barretos”, 31/08/1933; “Correio de Barretos”, 02/09/1933; “Folha de Barretos”,
15/09/1933; “Folha de Barretos”, 21/09/1933; “Folha de Barretos”, 01/02/1934; “A Notícia”,
31/01/1934; “A Semana”, 04/02/1934 – todos jornais de Barretos. Exceções: “A Cidade
de Olímpia”, Olímpia, 28/01/1934; “O Combate”, Jaboticabal, 04/02/1934.
11 - Jornal “Correio de Barretos”, Barretos (SP), 13/06/1943, ed. 498, p. 1 – Arquivo do Museu
“Ruy Menezes”.
12 - Helena de Magalhães Castro (1902-1995), foi folclorista, concertista, pianista, professora,
declamadora e violonista. Era conhecida, não só por ser a fundadora e presidente da IAB, mas
pelos seus concertos de violão. Visitou Barretos em 1925, 1928, 1931, 1933 e 1944 (Fonte:
ROCHA, Osório. Reminiscências, vol II. Ribeirão Preto: Ed. Cori, s/d).
13 - BISPO, A.A.(Ed.). Ensino musical e difusão cultural em processos sociais de entre-guerras: A Instrucção
Artistica do Brasil e o papel da mulher no centenário de Carlos Gomes em 1936:
Helena de Magalhães Castro (1902-1995). Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira
162/15 (2016:04). (Site: http://revista.brasil-europa.eu/).
14 - “A Semana”, Barretos (SP), 03/06/1934; “O Triângulo”, Araguari (MG), 04/09/1938;
“Correio Oficial”, Goiânia (GO), 25/09/1938; “Correio de Barretos”, Barretos (SP),
15/12/1940; “Jornal de Assis”, Assis (SP), 09/08/1941.
15 - “A Semana”, Barretos (SP), 29/11/1936. Haydée foi quem inseriu essas homenagens à
Santa Cecília na cidade.
16 - “Correio de Barretos”, Barretos (SP), 20/03/1945 e 09/11/1944.
17 - “II Pícolo”, Barretos, 29/01/1930.
18 - “A Notícia”, 31/01/1934; “Folha de Barretos”, 01/02/1934; “A Semana”, 04/02/1934.
Todos jornais de Barretos.
19 - “Folha de Barretos”, Barretos (SP), 21/09/1933.
20 - “A Notícia”, Barretos (SP), 18/07/1935.
21 - Uma reportagem em Assis (SP) elogia a escolha do programa, falando dos clássicos e o
misto com os modernistas internacionais, “sem esquecer o maluco ‘Polichinello’ de Villa Lobos”
(“Jornal de Assis”, Assis, 15/08/1941).
22 - Exemplo em “Correio Paulistano”, São Paulo, 13/07/1938 e “Folha da Noite”, São Paulo,
19/07/1938.
70 Karla Armani Medeiros
23 - ANDRADE, Mário. Pequena História da Música, São Paulo: Livraria Martins Editora, 4ª
ed., Coleção Obras Completas de Mário de Andrade, vol. VIII, 1953, p. 194.
24 - Escreveu Helena de Magalhães Castro à Haydée em seu álbum: “Haydée querida: - Como
bôas paulistas sigamos o lema: ‘Pró Brasilia fiant eximia’ - Parabens a você pelo esforço em sustentar a
‘IAB’ em Barretos. Bandeirante de um alto ideal, tome por lema ‘Pró arte fiant eximia’. Helena de Magalhães
Castro (1936)”. (Fonte: “Correio de Barretos”, 09/12/1943). “Pró Brasilia fiant eximia” era o
lema do brasão do estado de SP, instituído em 1932 com a guerra civil paulista, substituído pelo
Estado Novo varguista e retomado com a redemocratização brasileira em 1946.
25 - “Diário da Manhã”, Ribeirão Preto (SP), 09/11/1938; “Commercio da Franca”, Franca
(SP), 20/11/1938.
26 - Os jornais das cidades interioranas e das capitais em que Haydée visitou teciam críticas e
comentários a seu respeito. Alguns jornais da capital paulista, bem demarcados por assinaturas
de críticos literários reconhecidos, também escreveram sobre Haydée - foram eles: “O Dia”,
“Folha da Noite”, “Folha da Manhã”, “Diário de S. Paulo” (Gracita de Miranda e Caldeira
Filho), “Estado de S. Paulo”, “O Correio de São Paulo”, “A Gazeta” (Corrêa Júnior), “Diário
Popular”, “Correio Paulistano”, “Diário da Noite” e “Jornal da Manhã” .
27 - “A Semana”, Barretos (SP), 05/03/1938.
28 - “Correio de Barretos”, Barretos (SP), 10/07/1938.
29 - “O Progresso”, Lins (SP), 02/09/1941.
30 - “O Dia”, São Paulo (SP), 29/03/1944; “A Voz do Povo”, Ourinhos (SP), 20/09/1941;
“O Jornal”, Araçatuba (SP), 30/10/1941; “Correio de Marília”, Marília (SP), 12/11/1941).
31 - “O Estado de S. Paulo”, São Paulo (SP), 11/10/1944.
32 - FREITAG, Léa V. ....op cit, p. 119.
33 - “O Popular”, Santo Anastácio (SP), 17/08/1941.
34 - “Correio de Barretos”, Barretos (SP), 21/05/1944; “Folha da Manhã”, SP, 20/09/1945.
35 - “Correio da Noite”, Rio de Janeiro (RJ), 07/07/1938.
36 - Crônica e Mário Mazzeo Guimarães em “A Semana”, Barretos (SP), 21/12/1938.
37 - “Jornal de Assis”, Assis (SP), 15/08/1941.
38 - “O Paraíba”, Guaratinguetá (SP), 17/08/1947, nota assinada por “Strabão”.
39 - “Correio de Barretos”, Barretos (SP), 14/08/1947.
40 - Cartão de presença no velório de Mário de Andrade em papel timbrado da Organização
Social de Luto, remetente: Haydée Menezes, 1945 – Acervo Mário de Andrade, pertencente ao
Instituto de Estudos Brasileiros.
Arquitetura da Paz
Luciene Figueiredo
Luciene Figueiredo nasceu em São Paulo,
capital, onde cursou Arquitetura e Urbanismo
na Universidade Mackenzie e pós-graduação
na UNESP/UMAPAZ, no curso Ecologia,
Arte e Sustentabilidade. Além de arquiteta, é
paisagista, professora, fotógrafa, pesquisadora
e mãe. Teve oportunidade de viajar para
mais de 30 países, onde estuda e garimpa
materiais para contribuir com inovações aos
que solicitam sugestões ou projetos, sempre
oferecendo sustentabilidade, estabilidade e
adequação
Luciene Figueiredo
Um lugar para abrigar não só o corpo, mas a alma. Onde se possa
ficar em paz com o mundo e consigo mesmo. Um lugar para se
encontrar e, talvez... achar a felicidade.
Fiz uma reflexão fundamental nessa época de conflitos: a inter-relação
entre Arquitetura e Paz. A primeira tiragem de meu livro foi de 300
exemplares, pela editora Scortecci. Também fiz publicação por e-book.
Foram vendidos aproximadamente 270 até a presente data.
O homem é um animal territorialista: se apega ao lugar que habita,
procura conforto, aconchego, paz e segurança.
O espaço habitado, privado, a arquitetura que abriga e acolhe são
sempre lembrados com carinho e respeito. O espaço público, muitas vezes,
não é valorizado e reconhecido por falta de informação e cultura.
Frequentemente associada à religião, ou a um estado diferenciado
de percepção, a Paz deve ser uma preocupação na hora de construir,
pois faz parte da sensação de conforto e bem-estar que a maioria das
pessoas almeja.
A arquitetura sustentável e a bioclimática são exemplos de métodos
construtivos que minimizam o impacto ambiental e podem ser consideradas
como Arquitetura da Paz.
A intenção é fazer arquitetura para pessoas, no nosso planeta, com
necessidade urgente de sustentabilidade, reconhecendo a dimensão humana,
incluindo os sentidos e os aspectos psicológicos e cognitivos.
É fundamental acolher os sonhos e necessidades de todos, independentemente
das diferenças de credos, valores e idades.
Paz é se harmonizar com o movimento da Natureza e deixar a vida
fluir. Com isso, retomo nossa condição animal, cuja gênese é a Natureza.
Essa retomada é importante pois, talvez, nos últimos tempos,
tenhamos ficado presos demais somente ao nosso lado racional e tecnológico,
com resultados duvidosos.
É preciso aprender a contemplar para se ter paz. Facilita essa con-
Arquitetura da Paz 73
templação quando temos lugares cuidadosamente criados para isso.
Profissionais importantes, desde o nosso emblemático Severiano
Porto, com suas propostas arquitetônicas brasileiríssimas, até Alain de
Botton, que teve a ousadia de unir Arquitetura com Felicidade, devem ser
estudados. José Miguel Aroztegui, destacado arquiteto uruguaio, Jean
Omer Marie Gabriel Monnet, político francês, visto por muitos como o
arquiteto da unidade europeia; profissionais que se preocuparam com
a Paz.
Nasci em São Paulo, capital, onde cursei Arquitetura e Urbanismo
na Universidade Mackenzie. Sou pós graduada pela UNESP/UMA-
PAZ e tive como Trabalho de Conclusão de Curso a pesquisa Arquitetura
da paz, percepções provocadas pelo espaço, que originou um livro.
A idéia de Arquitetura da Paz surgiu quando trabalhei na Secretaria
do Verde e do Meio Ambiente, na Prefeitura de São Paulo e uma colega
comentou que faria do espaço público existente ao lado do Viveiro
Manequinho Lopes, um local de estudos a UMAPAZ (Universidade
Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz). A concepção foi feita de
forma participativa. UMAPAZ considerou experiências de Universidades
Abertas em vários países e no Brasil, como a Unilivre - Universidade
Livre do Meio Ambiente, em Curitiba (PR), a Universidad Libre
del Ambiente, em Córdoba - Argentina; a U-Peace da Costa Rica, a
Universidad Libre de Cataluña, na Espanha e o Schumacher College,
na Inglaterra.
A construção da paz se preocupa não apenas com a construção, mas
também com a desconstrução. Para analisar e transformar conflitos,
mais atenção deve ser dada aos fatores políticos e psicológicos variáveis.
Devem ser feitos esforços para identificar e desmantelar paredes
sentimentais. Este termo refere-se a conceitos, teorias, dogmas, atitudes,
hábitos, emoções e inclinações que inibem a transição democrática e a
transformação construtiva dos conflitos.
Construímos o ambiente utilizando valores objetivos como forma,
função, cor, textura, aeração, temperatura, iluminação, sonoridade e simbologia.
Cada um desses valores resulta no espaço dimensionado, funcional,
que resulta no espaço arquitetônico.
O estudo das cores contribui com a adequação do seu uso, não só para
a segurança (codificação de perigos pelo uso da cor), ordenação e auxí-
74 Luciene Figueiredo
lio de orientação organizacional (princípio de organização pela aplicação
da cor), mas também para a saúde e bem-estar dos usuários (devido
a sua influência psicológica). Tema amplo e interessante.
Arquitetura sustentável preconiza que uma construção deve alterar
minimamente o meio ambiente em que está inserida. Deve utilizar a
maior quantidade possível de elementos de origem natural e garantir
um aproveitamento racional dos recursos necessários para iluminar e
ventilar os ambientes, de forma a reduzir os desperdícios nessas áreas.
As técnicas de construção com terra crua são muito antigas, existem
a mais ou menos 9.000 anos. Todas as culturas antigas utilizaram a terra
nas construções de suas casas, fortalezas e espaços religiosos. Ainda
hoje, um terço da humanidade vive em casas de terra; em países em
desenvolvimento, este número aumenta para mais da metade da população.
A terra é o material de construção mais importante e abundante
na maioria das regiões do mundo.
Realizei entrevistas com pessoas de diversas nacionalidades, idades
e profissões diversas, para verificar como arquitetura da paz pode ser
compreendida e vivenciada.
Iniciei entrevistas em fevereiro de 2011, concluindo em setembro de
2015 perguntando a diversas pessoas:
O que é Arquitetura da Paz? O que, numa edificação, te faz sentir mais paz?
Você sente mais paz num ambiente construído ou ao ar livre (praça, praia, montanha)?
Tive respostas variadas, como as culturas:
“É Arquitetura em sintonia com o entorno. É a função primordial da arquitetura:
prover abrigo. A sensação de proteção, e dependendo da paisagem, a de
contemplação. Segurança, mesmo que subjetiva e conforto. Amplidão, espaço
verde, janelões, pé direito alto. Eu me sinto mais em paz em ambientes construídos:
o velho e tradicional “aconchego do lar”. O ambiente construído, o abrigo,
é o que me protege das interferências externas”.
Nos países que visitei, estudei e garimpei materiais sustentáveis,
para contribuir com inovação e atenção, que despendo aos que solicitam
sugestões.
Estive em lugares que me remeteram à valiosa Paz:
1. Machu Picchu (Peru) está situado no alto de uma montanha, a
Arquitetura da Paz 75
2.400 metros de altitude, cercada por outras montanhas e circundada
pelo rio Urubamba.
2. Cemitérios. Cemitério deriva de palavras greco-latinas que podem
ser traduzidas como “por a jazer” podendo ser lugares de práticas religiosas.
Existem vários cemitérios denominados Cemitério da Paz.
3. Ambientes próximo ao mar, lagos ou rios sempre são convidativos
para contemplação. Rio e lagos são espaços de paz, onde o usuário
usufrui os prazeres proporcionados pela natureza da água. Por isso é
tão comum construção de laguinhos, cascatas num jardim ornamental.
4. Áreas verdes, parques ou praças são convites à admiração e contemplação
da Natureza. As áreas verdes são componentes que propiciam
alto nível de qualidade de vida e desenvolvimento humano à cidade.
Jardim funcional, varanda, terraço, jardim vertical, jardim drenante,
jardim sensorial e telhado verde podem ser instalados, desde que se
planeje uma manutenção adequada. Cada planta tem um nome, uma
necessidade e um efeito estético único. Muito estudo é necessário para
saber a melhor localização da vegetação, para contemplar o belo, com
manutenção adequada.
Todas as atividades humanas sofrem a influência de três aspectos:
físico, cognitivo e psíquico. A conjugação adequada destes fatores (a análise
de um domínio levando em consideração o outro) permite projetar
ambientes seguros, confortáveis e eficientes.
A natureza proporciona integração e paz em pessoas que usufruem
de área verde, seja contemplando ou interagindo no espaço.
Em meu livro há detalhamento de Certificações para construções
sustentáveis (o Leadership in Energy and Environmental Design (LEED)),
e a Certificação da Construção Sustentável – Processo AQUA® (Alta Qualidade
Ambiental).
Pilares da Arquitetura da Paz:
1. Estabilidade - É importante reconhecer o solo, usar a fundação adequada,
para que a construção seja estável. O edifício deve sobreviver às
intempéries. Deve ser seguro.
2. Sustentabilidade - Tem três componentes: Ambiental, econômico e social.
Arquitetura utilizando os recursos ambientais existentes no local.
76 Luciene Figueiredo
Economicamente viável. Socialmente justa. Sustentabilidade é tema
extenso e requer constante aprendizado.
3. Adequação - Refletir, considerando o momento sócio-histórico que
estamos vivendo e projetar a edificação apropriada ao entorno, considerando
fatores como cultura, religiosidade, enfim, harmonia na implantação.
Além de arquiteta, urbanista, paisagista, sou mãe, esposa, professora,
fotógrafa, pesquisadora, garimpeira e, agora, escritora.
Sou fiel às minhas convicções. Meu TCC se transformou em livro
com apresentação escrita por Ruth Cassab Brólio, contra-capa de Benedito
Abbud.
Recortei o presente texto desta obra e o incluí nesta coletânea, com
propósito de Bem Viver, que une diversas mulheres de importantes saberes.
Isto é um convite à reflexão, e que as boas energias abençoem seu
lar.
Christine de Pizan:
uma escrita pela
igualdade
Lucimara Leite
Professora universitária por mais de 20 anos.
Pós-doutora em Letras Clássicas e Vernáculas,
pela USP e Universidade Aberta de Lisboa;
doutora em Literatura Francesa pela USP
e Sorbonne; mestre em Comunicação e
Semiótica (PUC) e graduada em Filosofia (PUC)
Lucimara Leite
Christine de Pizan nasceu em Veneza, em 1364. Seu pai, Thomas
de Pizan, era professor da Universidade de Bolonha; sobre sua
mãe, quase nada se sabe. Com 4 anos de idade, a pequena Christine
muda-se com a família para Paris, pois seu pai havia sido convidado
para trabalhar na corte do rei Charles V.
Em Paris, sob a orientação de seu pai, Christine inicia-se no mundo
das Letras. Graças à sua inclinação para o conhecimento e a posição
exercida por seu pai, teve acesso à grande biblioteca do rei, considerada
uma das melhores na época. Quando completou 15 anos, seu pai escolheu
para ela, como marido, Etienne Castel. Seu pai morreu em 1386 e,
três anos depois, seu marido, após dez anos de casamento feliz, como
ela mesma escreveu. A partir desse momento, sua posição muda. De
filha e esposa, agora dela depende o provimento da família: sua mãe e
seus três filhos.
Nesse momento de desamparo, ela encontrou refúgio nos estudos
para suas aflições. O conhecimento tornou-se também o modo de ganhar
o seu sustento e o da família.
A partir da boa recepção de seus textos, Christine começa a escrever
publicamente e adota o nome Pizan, para homenagear seu pai. Escritora
prolífica, em pouco tempo (1399-1405), produz uma obra com aproximadamente
quinze livros: poemas, tratados de Educação, morais e
políticos, entre outros. Destaca-se a temática do feminino, a apresentação
da ideia de que as diferenças entre homens e mulheres são de
origem social.
O interesse pela temática da igualdade da mulher apresentada por
Christine nos textos Cité des dames (1405) e Trois vertus (1406), nos quais
procura traçar o perfil de uma mulher medieval atuante, ativa, companheira
do marido, aconselhando-o e trabalhando a seu lado ou mesmo
na falta deste, quando assume a administração do reino, ou da fazenda,
ou da empresa de manufatura, do grande ou pequeno comércio, con-
Christine de Pizan: uma escrita pela igualdade 79
forme sua posição social, levou-nos a buscar mais informações sobre
essas obras e o contexto em que foram produzidas. Saber como era a
vida das mulheres do final do século XIV e início do XV, perceber na
obra da autora como ela registra as marcas de um período que foi de
avanço, no que tange às prerrogativas femininas, e nos obriga a rever
nossas ideias sobre ele.
O primeiro, Cité des dames, foi sua tentativa inaugural de escrever
uma história das mulheres, usando, como forma de argumentação, o
exemplo de vida de mais de cento e vinte mulheres, em sua maioria
personagens mitológicas. Tenta, assim, resgatar a honra das mulheres,
pois os exemplos atestavam as virtudes e a força que elas naturalmente
possuem. A história das mulheres, assim como de outras minorias excluídas,
não necessita de heroínas, pois o que chega até nós são biografias
em que as mulheres se identificam pelos atributos de mãe e esposa
de homens famosos e nunca por seus próprios feitos.
Christine, nesse ponto, não inovou, pois ela corroborava com o sistema
no qual estava inserida; porém, tem como objetivo claro restabelecer
a honra das mulheres. Tal procedimento atesta duas características
da autora: sua erudição, sem dúvida, mas também sua angústia diante
do sentimento de misoginia que afetava o julgamento das mulheres.
No capítulo I do Livro I, descreve um momento de insanidade, em
que “culpa” a Deus por tê-la feito nascer num corpo de mulher:
... en lamentations envers Dieu, disant cela et encore davantage,
tristement affligée, car en ma folie je me désespérais que Dieu m’ait
fait naître dans un corps féminin. 1
Ao buscar as causas desse sentimento auto-depreciativo, vai encontrá-las
nas autoridades, clérigos e homens de Letras, que pelo poder da
escrita e da palavra denegriam as virtudes femininas.
A sua argumentação para provar a inocência da mulher fundamenta-se
na bondade de Deus (como Deus, em sua infinita sabedoria e perfeita
bondade, criaria um ser tão mau?), pois acredita que haja algo de errado
no fato de tantos condenarem não a uma, mas a todas as criaturas feitas
por Deus, só que do sexo feminino.
1 - PIZAN, C. La cité des dames. p. 38. Tradução nossa: “... lamentando para Deus, dizendo isso e
ainda mais, tristemente afligida, pois em minha loucura me desesperava porque Deus me fez nascer
num corpo feminino”.
80 Lucimara Leite
Não aceita a opinião de que as mulheres sejam criaturas frágeis, que
facilmente se deixam levar pelos vícios. E vai rebater esse pensamento
equivocado dos homens no próprio terreno deles. Tanto é assim que
ousa lançar mão de uma arma masculina, a escrita, ocupando um lugar
até então restrito aos homens, com raras exceções, como era o caso de
Marie de France.
É dessa mulher ativa, responsável pela educação dos filhos, conhecedora
das leis, das artes, da Literatura, dominadora da eloquência e
produtora de conhecimento que a autora nos fala. Seu objetivo era fazer
com que os homens saíssem de sua ignorância em relação às mulheres
e, também, que os exemplos e conselhos apresentados em suas
obras pudessem servir de espelho para outras mulheres.
A educação privilegiada que Christine teve, sua inclinação para os
estudos e a forte influência de seu pai e, depois, de seu marido, homens
ligados ao conhecimento e à política, marcaram-na profundamente,
fazendo com que não se abandonasse ao acaso, mas procurasse, justamente
nesse ambiente das Letras, o consolo para a perda de seus entes
queridos e a maneira de vencer suas dificuldades financeiras.
Christine foi escritora numa época em que, para nós, é difícil imaginar
que existissem mulheres capazes de ter outra função além daquela
determinada para seu sexo: gerar. Além disso, viveu da profissão de
escritora. Foi uma escritora-mulher que ousou afirmar, no início do século
XV, que a origem da desigualdade entre homens e mulheres é de
fundo social, devido ao fato de as mulheres terem tido seu acesso à
Educação negado e possuírem apenas experiências domésticas. Para
ela, esse não-acesso à Educação e a falta de exercício na esfera pública
é que determinavam a exclusão da mulher na sociedade.
De modo geral, há uma grande dificuldade em se obter informações
sobre a Idade Média, problema que se agrava quando se trata de conhecer
a função e o lugar da mulher medieval, sua relação com o marido,
com os filhos, a maneira de educá-los, o transcorrer do seu dia-a-dia,
seu trabalho, etc. É importante, enfim, conhecer melhor o cotidiano
dessas mulheres para compreender que tipo de influências dessa época
ainda se fazem presentes entre as mulheres de hoje. Por isso, conhecer
Christine de Pizan enquanto escritora engajada no movimento social
de restabelecimento da moral feminina é de alta relevância, pois ela
Christine de Pizan: uma escrita pela igualdade 81
escreveu sobre assuntos políticos, sociais, econômicos, educacionais e
morais, e sua erudição é clara no notável conjunto de sua obra.
A mulher medieval já tinha sua identidade determinada pelo olhar
do homem: ela era a figura frágil, inconstante e sedutora, que precisava
ter sempre um homem para guiá-la, para ser a “cabeça”. Esse modo
de olhar para ela foi transformado a partir do século XII, com o amor
cortês e o culto à Virgem Maria. O signo mulher passa, então, a oscilar
entre o papel de santa e o de sedutora, que corrompe o homem. Ela
é idolatrada, principalmente, na função de mãe, como o demonstra a
literatura da época. Nela, surgem biografias de várias mulheres com
destaque para o seu papel de mãe e esposa.
Uma contribuição para essa mudança de pensamento em relação
à mulher foi o ressurgimento das cidades, pois ali elas tiveram uma
presença mais importante e significativa. Chegaram mesmo a dividir
com os homens desde as tarefas domésticas até os papéis e ações de
trabalho no cotidiano dessas comunidades. Exerceram o ofício de pedreiras,
comerciantes, sapateiras, etc. e, algumas vezes, mesmo sem a
tutela masculina. Essas trabalhadoras, juntamente com as religiosas,
foram as primeiras mulheres a ocupar, efetivamente, uma posição mais
ativa na sociedade medieval. O convento representava uma alternativa
de vida mais autônoma para as mulheres, pois eram elas que os geriam
e administravam.
Foi entre esse público que Christine de Pizan encontrou seu “leitor”.
A sociedade do final da Idade Média começava a abrir-se economicamente.
Nela, existia espaço para as mulheres, para além do fiar e gerar
filhos. A autora teve a perspicácia de atender ao chamado de sua missão:
restabelecer a dignidade feminina, principalmente se fazendo ouvir
pelos poderosos da época. Ela, certamente, acreditava que, se esses
homens apoiassem a sua causa em favor das mulheres, eles serviriam
de exemplos para os outros e mesmo os mais humildes se espelhariam
neles.
Um dos grandes méritos de seus textos é o argumento que as mulheres
só são inferiores aos homens porque elas não tem acesso à Educação.
Com esta tese, Christine insere o primeiro debate feminista,
Querelle des femmes. Ela ousa assinar suas obras, defender as mulheres,
escrever para elas e também para os homens, fazer uma primeira histó-
82 Lucimara Leite
ria das mulheres e um manual de educação feminino:
Minha senhora, se a mente delas é tão capaz de aprender e conceber
quanto a dos homens, por que elas não aprendem ainda mais?
Ela me respondeu: ‘Minha querida criança, porque não é necessário
à sociedade que elas se ocupem dos afazeres dos homens...’ 2
As retaliações de aproveitadores sofridas pelas viúvas por sua inexperiência
na esfera pública dirigiram a escritora para outro tema: a educação.
Mostrava que era preciso que se preparassem as meninas para
a vida, que elas tivessem uma educação nivelada à dos meninos, e que
esse atendimento se estendesse a todos os estamentos sociais.
Tal abordagem era extremamente inovadora para a época, pois ela
afirmava que a diferença entre os sexos era de cunho social, argumentando
que as mulheres possuíam a mesma capacidade intelectual que
os homens, mas que, devido a seu isolamento social, eram consideradas
menos capacitadas. Portanto, além da reivindicação por uma educação
participativa das mulheres, Christine postulava a necessidade de
Educação para todos. Para ela, a principal virtude a se ensinar para as
meninas deveria ser a prudência, para que, quando mulheres, pudessem,
com discrição, se defender das injustiças sofridas.
As discussões que ela trouxe à baila são importantes por terem provocado
uma reflexão e, consequentemente, uma nova percepção: a das
mulheres enquanto indivíduos que começam a emergir na sociedade.
Também, enquanto testemunha de um tempo, ela escreveu sobre os
problemas das mulheres da época, mostrando sua difícil sobrevivência
em condições econômicas e políticas adversas.
Dessa forma, Christine trouxe para a Literatura dados completamente
novos. E o mais relevante é que a realidade, ali, é vista sob a
perspectiva de uma mulher que sofreu a angústia de ficar viúva e de ter
de sustentar uma família.
Portanto, a partir de um enfoque particular, foram passadas informações
históricas e sociais sobre a mulher em geral, que perante à sociedade
era um ser marginalizado.
2 - PIZAN, Christine. La cité des dames. Paris: Éditions Stock, 1986. p. 92. Tradução nossa.
Christine de Pizan: uma escrita pela igualdade 83
Em 1430, Christine morre. Deixa textos que, além de serem um registro
de sua época, propõem algo de revolucionário para ser colocado
em prática: o direito das mulheres, de qualquer estamento social, à
Educação.
Se pensarmos que Christine de Pizan escreveu há mais de 600 anos,
perceberemos a modernidade e relevância de seus textos e de sua vida.
E além disso: da relevância dos exemplos do modo de vida das mulheres
do início do século XV, observações essas advindas do cotidiano
de mulheres de várias camadas sociais.
Crônicas de Maria
Maria Queiroz da Cunha
Nascida na Fazenda Cachoeira, em Itapagipe,
Minas Gerais. Foi professora efetiva estadual,
graduada em Letras e pós-graduada em
Alfabetização. Atuou como docente no ensino
Fundamental e Médio. É também compositora
do Hino a Itapagipe e o da Escola Estadual
Santo Antônio, onde efetivou sua docência por
longos anos, passando a fazer parte da vida
educacional de praticamente todos os jovens
da cidade.
Descendente de família tradicional da
região, ainda muito jovem encantou-se
pelo vasto conhecimento que os livros lhe
proporcionavam; neles, encontra incentivo e
inspiração para expressar em contos e poemas
suas lembranças e emoções
Maria Queiroz da Cunha
A PRIMEIRA MUDANÇA
Ali pelos três anos de idades, tivemos que nos mudar do nosso pedaço
de terra, porque meu pai precisou vendê-la.
Assim, fomos para uma fazenda que não era nossa, chamada Queixado.
Ali vivemos pouco tempo.
Lembro-me da casa, que era um grande rancho coberto de capim
sapé... tinha quintal, como toda casa de fazenda.
No fundo havia um canavial: as canas eram doces, muito saborosas.
Esse canavial se encerrava à beira de um pequeno riacho. Atravessado
sobre ele havia um grosso tronco de madeira (uma pinguela) dando
acesso ao seu outro lado.
Ali moravam nossos vizinhos, uma família de três pessoas: a mãe,
um filho (rapaz com um tanto de surdez) e uma moça de lindos olhos
azuis.
Seus parentes eram da cidade de Uberaba e, sempre que os visitavam,
levavam chocolate em pó para misturar ao leite.
Ficamos amigos. A moça sempre me pegava no colo e me levava
até a casa deles. Sempre preparavam o leite com o chocolate e, se eu
não estivesse lá, ela ou a mãe gritavam: Maria! Vem beber chocolate! Eu
saía correndo pela trilha entre o canavial, atravessava o córrego pela
pinguela e, do outro lado, o cachorro deles, marrom com grandes manchas
brancas, de nome Tupi, já me esperava de cara alegre, abanando o
rabo. E já vinha a mãe, segurando uma caneca esmaltada, de cor azul,
decorada com delicadas florzinhas amarelas; vinha assoprando o leite
para esfriar.
Eu adorava essa cena! Ainda continua entre as tantas memórias minhas.
Lembro-me, ainda, neste mesmo lugar, do dia em que, distraída,
desapareci de perto dos meus irmãos. Acordei com uma gritaria: Mariaaa!!!
Levantei a cabeça, ainda sonolenta, olhei, e minha irmã mais
86
Crônicas de Maria
velha, que sempre cuidava de mim, gritou: Aqui, ela! Achei!
Eu estava dormindo no batedor — tábua usada para bater, lavar as
roupas. E todos diziam, ao mesmo tempo: A onça vai te comer! A sucuri
também! Não me lembro de sentir medo.
A SEGUNDA MUDANÇA
Assim o tempo ia passando, até que nos mudamos para outra fazenda
ainda mais distante, de nome Suturno. Nunca entendi o significado
desse nome; talvez uma forma equivocada de dizer o nome do planeta
Saturno.
Essa fazenda ficava quase na pontinha do Triângulo Mineiro, onde
dois rios se encontravam: o Paranaíba, que separa Minas de Mato
Grosso e o Rio Grande, que separa Minas do Estado de São Paulo.
A fazenda ficava próxima do Rio Grande; a cidadezinha mais perto
de nós era Santa Clara — ainda está lá, no estado de São Paulo.
Meu pai atravessava o rio de canoa e lá fazia compras das coisas
que a gente não produzia, como alguns remédios, tecidos mais finos,
ferramentas e outros.
Nossa roça de arroz, feijão e milho, ficava à beirinha do rio. Meu pai
sempre deixava na água, abaixo de uma corredeira do rio, um anzol
com isca: a ponta da cordinha ele amarrava em um galho da árvore que
se debruçava sobre o grande poço de águas calmas.
Isso era feito à tardezinha e aquilo quase não falhava: bem cedinho,
lá estava meu pai puxando a linha com um grande peixe preso
ao anzol. Ora dourado, ora pintado. Era uma alegria vê-lo chegando
montado em nosso cavalo, com aquele peixão: a cabeça presa ao arreio
e arrastando o rabo no chão.
A CASA
A casa desta fazenda também era grande, de pau-a-pique, só que
coberta com telhas tão antigas e cheias de lodo que mal se via a tradicional
cor marrom.
Antes da casa, para se chegar até ela, havia uma estrada por onde
quase não passava ninguém, pois a redondeza era bem pouco povoada.
No terreiro da sala ficava o curral, onde se ordenhavam nossas queridas
vaquinhas.
Maria Queiroz da Cunha 87
Tínhamos nosso quintal com algumas plantações e animais domésticos:
porcos, galinhas.
Bem abaixo do quintal passava um córrego de águas muito cristalinas,
o fundo dele era forrado por pedregulhos de formas arredondadas
e cor beje bem clarinha salpicado por pedrinhas bem pretinhas e redondinhas.
Utilizávamos a água desse córrego para todas as nossas necessidades.
Era tão limpinha, deslizando tão serena que mal se percebia a água
correndo ali.
O POÇO
Um pouco acima de onde pegávamos água — em latas e baldes —
para lavar até a casa, havia um poço, de bom tamanho, com algumas
plantas aquáticas do tipo Santa Luzia, típicas de águas calmas.
Ali tomávamos banho, brincávamos, engolíamos peixinhos vivos
acreditando que isso ajudaria a aprender nadar... era só felicidade! E
gostávamos muito de catar umas pedrinhas tão brilhantes, tão atraentes,
que pereciam prender nossa visão e nosso interesse por elas! Não
conseguíamos parar de juntá-las e havia muitas delas por toda margem
do poço.
Só depois de muito tempo entendi que pedrinhas eram aquelas; posso
dizer que brincávamos com um tesouro e, como não conhecíamos o
valor de tais pedrinhas, ao cessar as brincadeiras, acabávamos abandonando-as
por ali mesmo!
Um aviso aos leitores que se, por acaso, passarem os olhos sobre
estas páginas: não se aventurem na esperança de irem até lá em busca
das preciosas pedrinhas: por lá, agora, é só canavial para produção de
combustível.
A PINDAÍBA
Do outro lado desse córrego formou-se um brejo, meio pantanoso,
coberto por árvores altíssimas e vegetação mais baixa. Ali se abrigavam
vários animais selvagens daquela região, inclusive diversos tipos de cobras
— e a temida Sucuri.
Supunha-se que nenhum ser humano civilizado estivera por aquele
lugar de tão difícil acesso e perigoso que era.
88
Crônicas de Maria
No alto das árvores cantavam pássaros de cantos alegres como os
periquitos, as maritacas, araras e muitos outros; também triste o Urutau,
camuflado nos galhos secos, e a coruja, piando naquelas noites silenciosas
como um aviso macabro de que coisas ruins iriam acontecer;
por outro lado, o magnetismo daquele lugar transmitia, ao mesmo tempo,
a sensação de curiosidade, medo, respeito e admiração por aquela
magnífica paisagem virgem, intocada.
NOSSAS BRINCADEIRAS
Nossas brincadeiras daquela época seriam hoje consideradas perigosas.
Como não havia muito que fazer, antes da construção de uma escola
na vila próxima, passávamos grande parte do tempo brincando e
inventando novas brincadeiras.
Não havia vizinhos perto de nós; então brincávamos nós, irmãos,
grandes e pequenos.
Uma das brincadeiras que gostávamos bastante era na palha de arroz.
Como a roça ficava meio longe de casa, papai transportava os feixes
de arroz para serem batidos no terreiro de casa, que era limpinho.
Esse trabalho consistia em bater os feixes em tábuas suspensas para
separar os grãos da palha. Os grãos eram guardados em uma grande
caixa de madeira chamada tulha e seriam usados no decorrer do tempo,
até a próxima colheita.
Com as palhas, brincávamos fazendo grandes montes perto de árvores
ou paus bem altos, onde subíamos e saltávamos sobre as palhas.
Era muito divertido!
Brincávamos também de esconde-esconde, cobrindo-nos com as palhas
e, quando meu irmão mais velho não ia para a roça com nosso pai,
as brincadeiras focavam bem mais agitadas, pois ele era muito criativo
com elas e “incrementava” tudo.
Sempre que era a vez dele procurar nos montes de palha onde havia
(ou não) crianças escondidas, ele vinha com uma vara enorme surrando
os montes... só se ouvia Ai! Ai! Ai!
Outras vezes, com um isqueiro que ele guardava “a sete chaves”, ia
colocando fogo nos montes de palha: era criança saltando e correndo...
ninguém esperava pelo fogo! E ele dando risadas. Imagine uma brinca-
Maria Queiroz da Cunha 89
deira dessas nos dias de hoje?
Sempre que vejo, nos Jogos Olímpicos de hoje, o salto com varas, o
salto à distância, a corrida de percurso, fico pensando que tudo isso já
praticávamos sem nunca ter tido acesso a informação nenhuma, pois
não existiam meios de comunicação naquele lugar tão isolado.
Para o salto com varas, meu irmão as cortava perto da pindaíba:
eram bem compridas e de uma madeira que curvava mas não quebrava.
E saltávamos moitas de ramos ou qualquer outro obstáculo, inclusive
alguém deitado no chão, que se levantava na hora do salto, fazendo
“sacanagem”.
Ele era sempre o campeão nesta modalidade de altura do salto, pois
era maior e pegava a vara mais comprida.
No salto à distância, o mérito ficava sempre com minha irmã mais
velha, por ser a mais alta de todos. Já na corrida, imagina só quem vencia
sempre? O tiquinho de gente que era eu, a Maria! Agilidade e rapidez
não faltavam àquelas perninhas que até hoje caminham, digamos,
com a firmeza que ainda lhes permitem tantos novembros passados.
NOSSO CAVALO
Tínhamos um cavalo branco de nome Matungo, já com certa idade,
e isso o tornava bem mansinho e camarada.
No pasto onde ficava, havia vários cupinzeiros; nem precisava chamá-lo:
ele já vinha trotando e encostava ali para montarmos nele. E,
assim, íamos montando enquanto coubesse... dávamos várias voltas
pelo pasto: de repente, todos despencávamos ao chão — ele parava,
montávamos de novo, ele cansava e, a cada cupinzeiro por que ele passava
perto, dava uma paradinha para ver se alguém descia.
As brincadeiras eram o melhor de nossas vidas! Quase sempre nos
esfolávamos no chão duro, sofríamos cortes nos pés e outros acidentes.
E o remédio? Salmoura, água com sal... alguns gritavam: Ai! Ai! Ai! E
mamãe, com todo bom humor característico dela, achava graça. Longe
de ser um sentimento de vingança por nossas peraltices; ela curava nossos
ferimentos repetindo uma antiga frase:
O que arde, cura. O que aperta, segura.
Doía muito, mas não era empecilho para repetirmos tudo nos pró-
90
Crônicas de Maria
ximos dias.
A TAPERA
Seguindo a estrada que passava em frente nossa casa, havia uma
tapera (restos de antiga moradia). O que comprovava isso eram os grandes
troncos de madeira meio cobertos de terra, formando quadrados e
desenhando os cômodos da casa.
Via-se que eram Aroeira, porque a madeira era escura e bem lisinha
com fendas bem profundas, trabalhadas cuidadosamente pelo tempo.
Outros troncos de pé, com alguns meio caídos, escorados neles, davam
uma sinistra impressão de um tempo muito antigo e desconhecido. Diziam
que ali viviam almas penadas, que o lugar era assombrado.
Contavam histórias de acontecimentos inexplicáveis ali.
Uma velha goiabeira de troncos e galhos retorcidos, que resistia ao
passar dos anos, contribuía também com aquele prenúncio de coisa
má, apesar dos frutos docinhos que ela produzia, às vezes colhidos pelos
que desafiavam os assombrosos relatos feitos por pessoas do lugar.
Ali, a estrada passava entre dois morros pedregosos e de cor esbranquiçada.
Sempre passávamos ali correndo.
Certa tarde, pedimos a nossa mãe para irmos à casa de uma família
amiga. A casa ficava meio longe, para lá dos dois morros.
Não me recordo o que fomos fazer lá. Só me lembro de que anoiteceu
e tivemos que voltar para casa morrendo de medo por ter que
passar, já de noite, bem em frente à tapera.
Íamos todos juntos, bem pertinho um do outro. A alguns metros
daquele lugar, quando olhamos para o mato, ali pertinho de nós, vimos
uma luz, meio prateada, sem nada que lhe servisse de suporte: era só
a luz mesmo e ela se mexia — ia para um lado, para outro, subia, descia...
ficamos aterrorizados! Parecia que nossas pernas tinham virado
pedras, não conseguíamos nos mexer nem sair do lugar.
Em um momento, a luz se movimentou em nossa direção: aí sim,
adeus pernas pesadas! Foi aquela gritaria e correria estrada afora.
De repente, minha irmã, que estava sempre cuidando de mim, parou
e gritou:
Maria, cadê a Maria? Mariaaaa!
Maria Queiroz da Cunha 91
Eu era a menor dos que estavam lá e respondi, já bem à frente do
caminho:
Estou aqui! - comprovando, assim, a minha grande habilidade nas
corridas.
Chegamos em casa de pernas bambas e com o coração “a sair pela
boca”. Contamos para nossa mãe, todos falando ao mesmo tempo, e
ela disse:
Aquela luz é a Mãe do Ouro. Ela aparece nos lugares onde tem ouro enterrado,
assombrando os que passam para não pegarem o ouro.
Ficamos meio confusos. Mas, naquele tempo, acreditamos: muitos
destemidos se atreviam a cavar o chão onde a luz aparecia, mas nunca
se ouviu histórias de encontrarem ouro não.
Hoje, já existe explicação para este fenômeno. Vazamento de gás
metano, formado no solo por decomposição de materiais inflamáveis
em contato com a atmosfera.
ELAS no lugar de fala,
escrita, exercício político
privado e público
Maria Augusta Dib
Maria Augusta Nogueira Machado Dib - Guti
- apelido de infância, vivida em Barretos onde
nasceu em 1955.
Filha de Maria Flávia Nogueira e Antonio
Ribeiro Machado, casada com Jorge Moysés
Dib Filho, mãe de Jorge Neto/Joca, Antonio
José/Tom e Luis Felipe/Lipe, avó de Lucas,
Vinicius, Marina, Mariana e Isabel.
Graduada em Psicologia, com especialização
em Psicanálise, mestrado em Comunicação e
Semiótica e doutorado em Filosofia.
Psicoterapeuta e professora de Psicologia e
Filosofia.
Diretora do Apropriarte - Espaço de Arte,
Educação e Cultura, em São Paulo.
Participa da Pastoral da Mulher Marginalizada
desde 1993, iniciando em Fortaleza/Ceará
com projetos de atendimento às adolescentes
prostituídas grávidas que se drogavam
Maria Augusta Dib
Jornada de qualquer mulher supera o privado e o psicológico e
“A atinge o público e o cultural” (Allan Chinen).
Viventes humanos, de todos os gêneros, são seres políticos exercendo
esta arte bem ou mal nos espaços privados e fora deles.
A cada vez que eu acabava de dar à luz um menino (tenho três filhos
já adultos), minha avó materna me dizia
Que bom minha neta! uma mulher a menos no mundo para sofrer.
Eu, que experimentava satisfação em ser mulher e me sentia importante
por sê-la, não entendia como aquela mulher forte, guerreira, mãe
de 5 mulheres e 5 homens, avó e bisavó — politizada de tal monta que
me ensinara ser apaixonada por política — pensava daquela forma.
A faculdade de Psicologia, a vida doméstica de dona de casa, esposa,
mãe, junto à vida pública de psicóloga — sempre estudando, trabalhando
em escolas e clínicas, e agente na Pastoral da Mulher Marginalizada
me explicaram o que minha avó me falava. Também passei a entender
um poema de Coelho Neto (1864-1934) que, menina, eu declamava
no Colégio Auxiliadora, achando-o lindo e triste, mesmo sem entendê-lo.
Mulheres somos de muitas etnias, diferentes culturas, variadas crenças
religiosas, filosóficas, científicas. Nós, mulheres ocidentais, recebemos
inicialmente mais influências das culturas grega e bíblica. Em ambas,
a mulher surge depois do homem, e com uma espécie de curiosidade
acentuada e de maldição. Pandora e Eva foram responsabilizadas pelos
erros dos homens, por doenças e até pela morte; por causa dela, ele
perdeu o paraíso da felicidade e da imortalidade.
A evidência histórica factual aponta para as indispensáveis participações
da mulher na construção da sociedade humana em todo o
planeta Terra e o lugar que lhe foi atribuído nesta História dentro do
jogo de forças que a compõe: Escravidão e Liberdade, Colonialismo,
94 ELAS no lugar de fala, escrita, exercício político privado e público
Matriarcado, Patriarcado, Luta de Classes.
Tal jogo de forças, ao longo dos tempos, reservou à mulher um lugar
de proibição, submissão, fragilidade, vulnerabilidade, desvalorização,
negação e ataque à sua importância originária: sua força e poder, inteligência,
habilidades muitas, corpo sexualizado e sensual, para além de
um corpo a serviço da maternidade.
Mãe – relação primordial: o corpo da fertilidade que concebe, gesta,
pare, alimenta, educa, apresenta o pai – este é seu pai. Hoje temos o exame
de DNA para comprovar a paternidade, mas sempre quem deteve
este saber foi a mãe. Ela detém a prioridade do saber sobre o novo ser
que está a caminho e quem é seu pai. Mãe — primeiro espaço morfogenético
do ser vivente. Até Jesus Cristo o teve.
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.
Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormindo! É ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!
Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
O poema acima, de Coelho Neto, aponta, por um lado, a idealização
da mulher no lugar da mãe e, por outro, os legítimos sentimentos
maternos da ambivalente experiência. O corpo da mulher, sempre sob
vigilância social, é liberado quando para ser mãe. O homem-pai aborta
infinitamente mais vezes seus filhos, mas apenas a mãe é acusada de
aborto, condenada, punida.
Madonas eternas, donas da vida e da morte, já que não há vida sem
morte. Lugar simbólico que vai se desdobrando de, geradoras a serviço
da vida, a serviçais, escravas, propriedade dos pais, irmãos, maridos,
filhos, homens até estranhos, muitas vezes elas sendo objetos sexuais,
Maria Augusta Dib 95
sem voz e sem vez por escolha própria.
Mesmo na Bíblia, encontramos histórias de mulheres que foram oferecidas
pelo pai e irmão a outros homens; oferecidas ao que se chamava
incesto, adultério, prostituição. Como Betsabéia foi usada por Davi,
como o incesto das filhas de Ló.
Forte é estar no lugar da mulher: da onipotência materna à impotência,
até sua anulação: oferecidas, vendidas, doadas, violentadas, estupradas,
assassinadas.
Mulher, tua cor é o vermelho, porque vermelho é a cor do seu coração;
mulher, tua cor é o vermelho, porque vermelho é a cor de seu
sangue de vida e de morte.
Mulher, tua cor é o vermelho, porque é a cor da vergonha, o atributo
que lhe deram desde seu nascimento. A vergonha de ser mulher e trazer
a vergonha em seu corpo, corpo de honra e desonra, de desejo, poucos
direitos e muitos deveres, de humilhação e marginalidade.
Passo a passo, lugar de afirmação, prazer e orgulho.
Encontramos, nos registros arqueológicos da Idade da Pedra e do
Bronze, as primeiras representações da mulher — sempre associadas ao
corpo da fertilidade, gravidez, maternidade. De forma geral, até o meio
do século XX se esperava da mulher e de seu corpo que estivessem em
função da maternidade, dos cuidados da família e da educação.
Historicamente, depois da agricultura familiar, os primeiros trabalhos
da mulher fora do âmbito doméstico deram-se nos espaços de
prostituição e nos espaços escolares, levando a mulher a adentrar a
Academia, dado que estava autorizada a ser professora. As mulheres
eram extremamente ameaçadoras se elas não estivessem restritas aos
espaços domésticos.
Sair de casa sozinha, não se casar, aprender a ler, escrever, falar em
público, ter pensamentos próprios e os declarar, não seguir as regras da
Côrte e da Igreja já foram motivo de heresia e condenação à fogueira.
Alguns poucos nomes de mulheres que conseguiram ultrapassar as
barreiras sociais sem serem punidas foram registrados no passado da
História. Uma história relatada pelos homens.
Na contemporaneidade, as fogueiras foram substituídas. O feminicídio
vem aumentando, especialmente no Brasil. Direitos e benefícios
sociais, antes conquistados para as mulheres, estão sendo retirados des-
96 ELAS no lugar de fala, escrita, exercício político privado e público
de o golpe de Estado em 2016 — destacadamente às empregadas domésticas.
Até mesmo políticas públicas e a Secretaria, direcionadas às mulheres,
foram desprezadas. O mapeamento da violência às mulheres no
Brasil e as casas de atendimento às mulheres violentadas, que estavam
funcionando regularmente até 2015, após 2016 cessaram.
Dados de 2019 apontam, no primeiro trimestre, mais de 200 mulheres
assassinadas no Brasil. Uma mulher morta a cada 2 horas, vítima
de violência. Uma em cada 4 mulheres já sofreu violência. 21 casos de
feminicídio registrados na primeira semana de janeiro de 2019; até o
final daquele mês, foram 119 mortes e 60 atentados.
Em 2020, estes números aumentaram.
Já está sendo considerado inevitável o termo epidemia de feminicídio
no Brasil. Os próprios parceiros são os maiores suspeitos das agressões,
atentados, assassinatos. Desde 1° de janeiro de 2019, no Brasil, o representante
maior do Poder Executivo considera a mulher uma fraquejada
que merece até ser estuprada ou eliminada.
Quantas Marias da Penha mais serão atacadas pelos seus maridos...
Quantas Marielles mais serão executadas?
Dignidade e Direitos da Pessoa Humana são princípios fundamentais da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) desde 10 de dezembro
de 1948, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU)
– e o Brasil é signatário. Então, se concordou e assinou, deveria seguir.
A dignidade da pessoa humana, qualquer que seja seu gênero, é um
princípio fundamental do Brasil, e significa que é um objetivo a ser
cumprido pelo Estado através da ação dos seus governos. O respeito
aos direitos fundamentais é essencial para garantir o exercício da dignidade
humana.
Findando a Ditadura Militar (1964-1985), buscou-se dar espaço à
democracia e ao protagonismo da mulher. Em 1984, a Secretaria do
Planejamento do Município de São Paulo fez o Manual Direitos da Mulher
a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e conforme as
leis brasileiras.
A paraibana Luiza Erundina foi a primeira mulher a ser prefeita da
tradicional e conservadora cidade de São Paulo, eleita legitimamente
em 1989.
Maria Augusta Dib 97
A mineira Dilma Vana Rousseff foi a primeira mulher a ser presidenta
do Brasil — eleita e reeleita, legitimamente, em 2010 e 2014.
Excelentíssima Dilma, A Senhora da Democracia, mãe de Paula e avó
de Gabriel e Guilherme, sabe que
o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem (Guimarães
Rosa em Grande Sertão: Veredas).
(O presente texto foi escrito a partir de palestras proferidas pela autora
em encontros da Pastoral da Mulher Marginalizada, para ser publicado
nesta Coletânea “ELAS nas Letras”).
Maria Augusta Nogueira
Machado Dib, agente pastoral
da PMM - Pastoral da Mulher
Marginalizada
Poemas
Maria Augusta
Araujo Teles
Maria Augusta Araujo Teles nasceu
em Barretos, em 1975. É bacharel em
Contabilidade e Administração de Empresas.
Escreve poemas e poesias como hobby,
herança de família. Já escreveu e publicou
diversos poemas a serem lidos em sua página
social no Instagram: @mariah_particular.
Maria Augusta Araujo Teles
E QUANDO ESTOU COM VOCÊ
E quando estou com você
Eu simplesmente me encontro.
Eu já não sei mais onde é o ponto
E nem onde foi que me perdi.
Procuro em mim,
A todo momento,
O que fez mudar
Esse meu sentimento.
Não é tão fácil
Deixar pra trás
O que vivi;
Já nem me lembro mais
Do quanto fui capaz
Pra ter você aqui.
Tamanha coragem
Jamais me bastou
Pra esquecer de tudo,
Fingir que não mudou.
O telefone ficou mudo
E, quando estou com você,
Essa paixão me abraça.
Eu sei aonde quero ir:
Meu mundo se enche de graça!
Deliro quando sorri!
100 Poemas
CONQUISTA EM SILÊNCIO
Eu falo com você
Através do meu silêncio
Pois tem coisas
Que nem é preciso dizer
Você me entende
Você me compreende
Mesmo sem me ouvir
Você me faz sentir
Olhe nos meus olhos
E escute meu coração
Ele pulsa feito um louco
E transborda essa paixão
Serena eu me mantenho
Ainda fixo meu olhar
Eu entro na sua alma
E com toda minha calma
Continuo a te esperar
Você sabe o que eu sinto
E, verdade: eu não minto
Pensamentos tomam conta
Será que vai rolar?
Vou te dar felicidade
Vou explodir essa cidade
Quando eu me declarar
Esse sorriso me fascina
Me deixe ser sua menina
Vou me entregar...
Maria Augusta Araujo Teles 101
Quero te mostrar o meu amor
O silêncio tenta te explicar
Me deixe sentir o teu sabor
O teu beijo quer o meu encontrar.
SE VOCÊ QUISER, POSSO TE MOSTRAR O PARAÍSO
Se você quiser, posso te mostrar o Paraíso.
Você tem o dom de despertar o prazer,
Tem o brilho do desejo nesse lindo sorriso.
Posso te perguntar o que eu tenho que fazer?
Quero ir além dos sonhos,
Quero ir além do que é real.
Quero ir muito longe com você.
Seu olhar me dá vontade,
Seu corpo me faz enlouquecer.
Posso eu estar maluca?
Posso eu então desejar que os seus lábios digam o meu nome?
Desejo insaciável que penetra o meu corpo,
Que deixa minha boca molhada,
Mãos geladas
Que querem tocar você.
Podemos, então, a qualquer tempo,
Descobrir o que é felicidade unida ao prazer.
102 Poemas
EU MENTI
Eu menti,
Quando disse que você
Jamais seria,
O dono dessa minha alegria
O dono do meu coração.
Eu menti,
Pois jamais sonhei amar alguém assim.
Queria ter você longe de mim
Mas não saberia dessa minha reação.
Eu menti.
Menti pra mim.
Como pude me enganar assim?
E me arrependo,
Pois durante todo o tempo
Não tive você aqui.
Demorei pra abrir meu coração:
Hoje ele explode de paixão.
Jamais vou esquecer
O brilho dos seus olhos quando disse
Que o meu coração estava a fim
De você...
IKIGAI
Maria Teresa Vieira
Nasceu em Nova Friburgo, região serrana do
RJ. É médica pediatra e dermatologista com
doutorado em Ciências Médicas.
Trabalhou durante 25 anos com recémnascidos
prematuros.
Atualmente, mora em São Paulo. A busca
da espiritualidade e do autoconhecimento
são uma constante em sua vida. É espírita
Kardecista além de praticante de Yoga,
Meditação e Ikebana
Maria Teresa Vieira
CÁ ENTRE NÓS....
Já repararam que alguns dias parecem iguais? A mesma rotina,
contas a pagar, situações a resolver, pessoas a contactar...
Apesar de toda pregação de autoajuda de que cada dia é um dia, não
é assim que percebemos esses momentos. Na verdade, acredito que se
não sentirmos profundamente algo como verdadeiro, se não colarmos
na alma, isso nunca fará parte da nossa vida! Pois foi num desses momentos
meio mornos, de água meio parada que recebi em casa o presente
de uma amiga da vida toda – temos o hábito de trocar livros! Ela já
entrou na época dos e-books e eu ainda me sinto uma cidadã do século
passado – amo livros impressos, tocar fisicamente o papel.
O título do livro – “IKIGAI – os segredos dos japoneses para uma vida
longa e feliz”, de Héctor Garcia e Francesc Miralles – me deixou curiosa:
mas, afinal, o que será isso?, pergunto eu, aqui do outro lado do mundo!
IKIGAI – mais que simplesmente uma palavra de origem japonesa,
um conceito, a busca de um significado para a própria vida, para uma
vida longa e feliz! Tarefa difícil, essa! Podemos passar uma vida inteira
sem nem ao menos chegar perto dessa ideia, do sentido da própria
vida. Não é de hoje que os seres humanos buscam um sentido para a
existência na Terra. Afinal, o que viemos fazer nesse planeta?! Será que
os animais já vem com a sua missão impressa no DNA e nós, humanos,
temos que descobrir a nossa?
Quando desmembramos os caracteres da palavra IKIGAI, temos
vida e valer a pena. Sua razão de viver, o que te move, o que te faz levantar
todas as manhãs e seguir em frente, o que te deixa alinhado com sua
vontade interior! O conceito de longevidade pela longevidade talvez não se
justifique. Envelhecer é um dos maiores desafios da vida... não é fácil.
Quando vemos aqueles que amamos envelhecendo, algo dentro de nós
se modifica: a vida fica mais real, perdemos as ilusões e passamos a
vislumbrar a finitude.
IKIGAI 105
Como somos seres contraditórios, não compreendemos bem o envelhecimento:
se, por um lado, não queremos envelhecer, por outro,
sonhamos com uma vida longa e feliz!
Existem cinco lugares no mundo onde o número de centenários é
elevado: a ilha de Okinawa, no Japão, Sardenha, na Itália, Loma Linda,
na Califórnia, a península de Nicoya, na Costa Rica e Icária, na Grécia.
Em comum, seus habitantes centenários têm boas condições de saúde,
o que lhes permite continuar trabalhando ao longo de toda a vida;
alimentação saudável, com o consumo diário de vegetais, frutas e cereais,
azeite, alimentos antioxidantes (tofu, missô, cenoura, batata-doce,
repolho), pouquíssimo açúcar, além da prática de exercícios físicos
regulares como caminhadas, bem distante de práticas exageradas em
academias ultramodernas.
Mas o principal: o sentimento de pertencimento à sua comunidade e
poder contar com uma rede de ajuda mútua, dando sustentação emocional
à vida longa e produtiva! Tudo isso parece tão distante da vida
nas grandes cidades! Vivemos estressados, correndo de um lado para
o outro, reféns de muita tecnologia, de contatos virtuais e ilusórios e,
continuamente, preocupados com o que virá... E o que virá? Nem eu,
nem você e, de verdade, ninguém saberá dizer com certeza!
Entrevistando pessoas centenárias sobre como chegaram a essa altura
da vida, os autores receberam respostas do tipo: coma e durma – é
preciso aprender a relaxar / não coma carne / vejo pouco, escuto mal, não posso
sentir nada, mas está tudo bem / se mantiver sua mente e seu corpo ocupados,
ficará aqui por bastante tempo ou simplesmente, não morri antes.
Há muitos anos, li um artigo cujo foco principal era saber o que permitiu
que algumas pessoas sobrevivessem a campos de concentração.
Viviam em condições sub-humanas, sob estresse emocional e físico extremos,
passavam fome....não tinham com o que sonhar.
Mas uma grande parte dos sobreviventes foram justamente aqueles
que conseguiram vislumbrar alguma vida após o horror da guerra, que
sonharam com um propósito para quando saíssem do campo, que criaram
uma realidade particular como ponto de apoio na luta desesperada
pela sobrevivência. Certamente, as condições físicas e nutricionais influíram.
Mas, sem dúvida, a estrutura emocional foi decisiva na superação
daquela situação desesperadora.
106
Maria Teresa Vieira
Eu pessoalmente, não penso muito no envelhecimento! Vou vivendo,
tentando agregar pessoas e criando atividades que alegrem o meu
dia, que me façam vislumbrar facetas da vida que nunca tinha percebido
ou que não havia me permitido ver! Vou caminhando... tentando
evoluir... tentando me encontrar comigo mesma... sei que, no final das
contas, talvez seja esse o maior dos encontros da vida!
Busquei a meditação... achei a espiritualidade, esse canal maravilhoso
de comunicação com o que transcende o material, com Deus, com
os mentores espirituais, com Buda, com os santos, com o divino!
Parece que, à medida em que a jornada se faz, vamos deixando pelo
caminho algumas bagagens pesadas, questões pelas quais não vale a
pena lutar, futilidades... é como se girássemos sobre o próprio eixo,
como um isômero, e passássemos a enxergar a vida de outra forma!
Passamos a aceitar o que não há jeito de ser mudado, a compreender
que a vida é, na sua essência, impermanente, como dizem os budistas!
Que existem ciclos e que, num dado momento, se dissolvem, se fecham
para que outros se abram!
Aprendi que ficar presa a um ciclo que já terminou é ir contra o
fluxo da vida. São vários e particulares os caminhos: cada um trilha o
seu, da melhor forma que puder. Mas é certo que precisamos de ajuda
nessa longa jornada!
Precisamos de coragem, de disciplina, de força, de fé — seja no que
você acredite; de saúde, de alegria e de leveza para continuar a caminhada!
Teremos momentos alegres, felizes e aqueles muito difíceis de passar...
e é assim: cada um a seu modo, buscando uma forma de caminhar
e evoluir, buscando a sua essência, buscando o seu IKIGAI!
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa
Mulher, Seja!
Mariana Ducatti
É psicóloga (pela Universidade de Ribeirão
Preto), mestre e doutora em Ciências (pela
Universidade de São Paulo). Atua como
Psicóloga Hospitalar e Docente Universitária.
É coordenadora e docente do Curso de
Psicologia da Faculdade Barretos e do Curso
de Especialização em Psicologia da Saúde e
Hospitalar da Faculdade de Ciências da Saúde
de Barretos “Dr. Paulo Prata”. É autora de
artigos científicos na área da Psicologia
Mariana Ducatti
“Dizem que a mulher é o sexo frágil, mas que mentira absurda. 1 ”.
S
abe-se que a mulher ocupa inúmeros papéis sociais e que
cada uma é do jeito que é devido sua história de vida e
personalidade. Como cada mulher é única, a tarefa de defini-la
torna-se difícil. A mulher pode ser estudante, mãe, apaixonada,
cozinheira, firme, dona de casa, professora, empresária, sonhadora
e muitas vezes, tudo isto junto. Apesar de não ser fácil definir aquela
que ocupa muitos lugares na sociedade e representa a maior parte
do povo brasileiro, tentarei, ao mesclar música e ciência, refletir
sobre o ser mulher.
Ser mulher não é ser “XX”; não é carregar dois cromossomos
iguais que são os responsáveis pela formação de órgãos sexuais que
diferenciam biologicamente homens de mulheres e proporciona a
possibilidade de reprodução. Ser mulher não é ser como aquelas
mulheres de Atenas que “vivem pros seus maridos (...) que geram pros seus
maridos os novos filhos (...) que “não tem gosto ou vontade, nem defeito
ou qualidade”². Ser mulher é ter “dom... magia... força... raça.... gana
sempre” 3 .
E realmente é preciso muito gana para ser mulher, pois, segundo
informações e estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) 4 , as mulheres em 2016 realizaram mais atividades
domésticas e cuidaram mais de seus familiares do que os homens
(mesmo sendo estas atividades de homens e mulheres!). Apesar da
mulher não ser (e não dever ser!) como a mulher de Atenas, ela
ainda dedica 73% mais horas do que os homens ao cuidado com as
demandas familiares.
Martins 5 , por exemplo, realizou uma revisão da literatura a
fim de identificar o perfil de cuidadores de idosos com Doença
de Alzheimer e constatou que a maioria dos cuidadores são os
Mulher, Seja! 109
membros da família e que mais de 80% destes são do sexo feminino.
A literatura científica também revela que as mulheres não atuam
apenas como principais cuidadoras junto à idosos adoecidos; elas
também são as principais cuidadoras quando as crianças da família,
seus filhos, adoecem 6,7 .
Mas a mulher que antes se responsabiliza apenas por sua família
e fazia “tudo sempre igual” 8 ... que esperava o marido, no portão, para
o jantar... e falava para ele se cuidar além das outras coisas “que diz
toda mulher” 8 , agora faz mais. Muito mais! E fala o que quiser!
Segundo o IGBE 4 , a participação da mulher no mercado de
trabalho aumentou de modo significativo, assim como o seu tempo
dedicado aos estudos. Os dados do IBGE 4 também evidenciam que
a mulher tem conquistado seu espaço em cargos administrativos de
empresas privadas e no governo. Aquela que até 1934 não podia
votar, agora pode (e deve, quando achar conveniente) assumir cargos
políticos e ser, em qualquer espaço, a mulher que deseja ser!
Assim temos, ao longo da história, uma mudança no ser mulher.
Aquela que antes era apenas a responsável pelos cuidados com a
família e a casa, agora pode ser responsável pelo que quiser, pode
exercer as funções que mais lhe agrada e pode definir-se como
quiser. Neste sentido, Borsa e Feil 9 afirmam que, até meados do
séculos XX, a mulher tinha como atividade principal a maternidade,
que consistia nos cuidados com os filhos e no dever de ser uma
boa mãe; contudo, a partir dos anos sessenta a mulher passou a
questionar o dever da maternidade e consequentemente pode fazer
novas escolhas. Abriu-se a possibilidade do não ser mãe, do finalizar
um casamento, do trabalhar fora de casa, de ser quem quisesse ser.
Abriu-se a possibilidade de ter diversas facetas e não apenas uma.
A mulher que antes foi obrigada por uma sociedade a ser a
“Amélia, que não tinha a menor vaidade” 10 , agora “vira a mesa, assume o
jogo” 11 e entende que “não precisa ser Amélia pra ser de verdade” 12 .
Bia Ferreira, na música Não Precisa Ser Amélia, canta para todas
as mulheres (e homens também, para que fiquem cientes!) “Cê tem a
liberdade pra ser quem você quiser. Seja preta, indígena, trans, nordestina.
Não se nasce feminina, torna-se mulher” 12 .
A mulher que, antes, era apenas a mãe e a esposa pode agora ser
110
Mariana Ducatti
quem quiser. Pode ser como Mônica, que toma “um conhaque” 13 e
tem “tinta no cabelo” 13 , que faz faculdade, fala alemão e gosta “do
Bandeira e do Bauhus.” 13 e que fala sobre “coisas sobre o Planalto Central,
magia e meditação” 13 ... Pode ser sonhadora como Beatriz 14 ... Dengosa
e geniosa como Mariana 15 ... Ou risonha como Irene 16 ...
A mulher pode ser quem quiser enquanto aquele papel lhe fizer
sentido. Pode mudar, quando desejar. Pode ser! Sendo assim:
Mulher, seja!
Mulher menina, mulher adulta, mulher idosa, seja.
Seja sua ação e sua reação.
Seu peso e a sua medida.
Seja seu sonho e sua realização. Seja!
1 - Música “Mulher”, de Erasmo Carlos.
2 - Música “Mulheres de Atenas”, de Chico Buarque
3 - Música “Maria Maria”, de Milton Nascimento
4 - IGBE. Estatística de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil; 2018 [acesso 28 de
junho de 2020]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_
informativo.pdf
5 - Martins, LAC. Cuidadores de idosos com Doença de Alzheimer: uma revisão do perfil
[monografia na internet]; 2019 [Acesso 28 de junho de 2020]. Disponível em: http://bdm.
ufmt.br/handle/1/1676
6 - Alves SPA, Bueno D. O perfil dos cuidadores de pacientes pediátricos com fibrose cística.
Ciênc. saúde colet. 2018 Maio; 23(5): 1451-1457.
7 - Honicky M, Silva, RR. O adolescente e o processo de hospitalização: percepção, privação e
elaboração. Psicol. hosp. 2009; 7(1): 44-67.
8 - Música “Cotidiano”, Chico Buarque
9 - Borsa JC, Feil CF. O papel da mulher no contexto familiar: uma breve reflexão. Psicologia.
com.pt. 2008 [acessado em 28 de junho de 2020]. Disponível em: https://www.researchgate.
net/profile/Cristiane_Feil/publication/303208368_O_PAPEL_DA_MULHER_NO_CON-
TEXTO_FAMILIAR_UMA_BREVE_REFLEXAO/links/5738f27308ae9f741b2bde8f/O-
-PAPEL-DA-MULHER-NO-CONTEXTO-FAMILIAR-UMA-BREVE-REFLEXAO.pdf
10 - Música “Ai! Que saudade da Amélia”, de Mario Lago e Ataulfo Alves
11 - Música “Descontruindo Amélia”, Pitty
12 - Música “Não Precisa Ser Amélia”, Bia Ferreira
13 - Música “Eduardo e Mônica”, Legião Urbana
14 - Música “Beatriz”, Chico Buarque
15 - Música “Mariana”, Seu Jorge
16 - Música “Irene”, Caetano Veloso
Lembranças de
cobras e lagartos e
Os tempos eram assim
Miriam Leirias
Miriam Leirias é psicóloga, professora
aposentada, ex-sindicalista e, também, mãe
e avó. Participa de saraus, clubes de leitura e
cursos, aperfeiçoando sua escrita.
Trabalha por um mundo melhor para todxs e
para ela também
Lembranças de cobras e lagartos - Miriam Leirias
Era uma casa branca, pintada de cal, com paredes muito largas e
janelas grandes e generosas de cor marrom. Sentávamos nelas
para ver o trem passar, duas vezes por dia: uma, no sentido capital, de
manhã, e a volta no sentido do interior do Estado, à noitinha. Balançávamos
nossas pernas e mãos. Acenávamos para os viajantes anônimos,
alguns dos quais nos retribuíam, com entusiasmo.
Os cômodos da casa eram amplos e continham armadores de redes
em sua maioria, o que ajudava a mudar suas funções à noite. Quartos,
só havia dois: um para minha mãe e outro para minha irmã mais velha,
recém-casada, que tivera um filho e morava conosco provisoriamente.
A sala de jantar tinha um banco grande e cadeiras para acomodar
todos nós: mamãe e seus oito filhos. Cada um buscando as migalhas de
sua atenção, repartida entre uma viuvez recente, dificuldades financeiras
e a criação dos filhos.
Cada um buscando criar-se e recriar-se, como a sinfonia mais desencontrada
do John Cage.
A cozinha, além de potes de água fresquinha, comprada e trazida
do olheiro de água doce, comportava um fogão a carvão e um armário
forrado de papel picotado, formando quase que um bordado.
O banheiro — aliás, os banheiros — eram lá fora da casa. Um bem
próximo e um mais distante. O mais próximo continha a privada e um
cacimbão, de onde era retirada a água e posta num tanque para uso
doméstico. O outro, meu preferido, estava bem mais distante e só havia
a privada, instalada num patamar de três andares, uma espécie de altar.
Para chegar lá, precisava passar pelo pé de mangueira, pelas bananeiras
e pelo capinzal.
Como já falei, era o meu preferido.
Lá podia ficar o tempo que quisesse sem ser perturbada, pois meus
irmãos não gostavam dele. Dava mais trabalho para manter sua higiene
e era longe de casa.
Lembranças de cobras e lagartos 113
Para mim, valia a pena a trabalheira. Lá eu ficava, cantando (agora
entendo que era pela boa acústica).
Imaginava-me cantora famosa, usando piteira e vestido longo, igual
àquela mulher da revista O Cruzeiro.
Inventava mundos e soluções, como aquele espaço fictício de férias
para as mães (não sei se bom para elas ou para os filhos, pensando hoje)
ou aquele lugar para as crianças sem família e não felizes.
Às vezes, eu criava alguns espaços que me davam medo — pareciam
tão reais!
Quando percebia o tempo, havia demorado demais da conta.
Voltava desconfiada, tentando despistar das aventuras passadas.
Antes via ou o mamoeiro, ou a mangueira, ou o imbuzeiro e levava
alguma notícia para minha mãe:
Tem um ninho de passarinho na goiabeira!
A mangueira está começando a florir!
Vi o lagarto e aquela cobra amarela!
Minha mãe me olhava, entre certa cumplicidade e estranhamento,
como se dissesse: essa minha filha...
Numa destas vezes em que estava no “meu trono”, criando meus
mundos, escuto uns sons muito estranhos, pavorosos e uma forte batida.
Saio na disparada, corri como nunca. Entro atropeladamente pela
cozinha, abro a boca para articular alguma palavra, a voz não sai.
Minha mãe, tentando saber o que houve, se fui mordida por algum
bicho, ou se me machuquei, me examina, me pergunta o que aconteceu.
Um irmão traz um copo d’água com açúcar. E eu sem fala. Os
outros irmãos apavorados.
Neste momento escutamos risadas. Muitas risadas. Foram ver: eram
meus irmãos mais velhos, rindo desbragadamente.
Os tempos eram assim - Miriam Leirias
Faz tanto tempo que não fazemos algo juntas, só você e eu. Estamos
sempre com mais gente. Hoje, talvez, você consiga abrir um
espaço em sua agenda e passe por aqui. Vou preparar aqueles bolinhos
de cenoura com chá de hibisco.
Outro dia lhe disse: eu queria tanto conversar sobre a sua meninice, a época
do seu nascimento... Você me respondeu: não, mãe! Pega leve! Os tempos são
outros, estou apressada. Concordei. Calei. Foi sempre ou quase sempre,
assim. Evitamos alguns temas que podem eclodir numa crise. Foram
pequenos conflitos que se tornaram fendas entre nós.
Minha menina; gostaria, sim, de falar de minhas meias presenças,
de minhas meias ausências, dos espaços divididos com outros não conhecidos,
que eram para permanecer desconhecidos. De minha quase
falta de alegria, ou mesmo tristeza. Não era sua a culpa.
Havia coisas que não podia falar — queria preservá-la.
Como era difícil eu estar inteira brincando no parque, com você,
quando minha amiga não podia ficar com a filha. E a outra amiga que
estava sendo torturada, grávida?! Não eram no meu corpo as torturas,
mas ele reagia, adoecia. Eu sentia cada dor impingida aos amigos e até
aos desconhecidos.
Você ali, saudável e linda. Eu temendo que, a qualquer momento,
pudessem chegar a nós, como chegaram à Yolanda, ao Irmão, à Amelinha.
Experimentei a maternidade entre êxtase, por estar gerando um ser
muito querido e a culpa, por trazê-la a um mundo onde não poderia
garantir uma vida segura e feliz.
Com que direito ponho um ser no mundo? Neste mundo?
“Vivíamos entre a ousadia e o medo”, como disse Fernanda Montenegro,
outro dia. Às vezes, era mais medo.
Você nasceu. E foi aquela explosão incontrolável de alegria! Eu dizia,
eufórica: eu amo o mundo! Eu amo!
Os tempos eram assim 115
Você veio com força e com vontade de viver. Às vezes, mexia na
estrutura de sua mãe amedrontada; às vezes, bulia na minha querência
de vida, de liberdade e de esperança.
ooo
Ao mesmo tempo em que me impulsionava a lutar por um mundo
melhor e mais justo, você era também motivo para me preservar.
Diminuí minha participação em algumas atividades de maior risco.
Agora existia você, para dar conta.
Minha menina foi crescendo, cheia de vida, de vontades. O entorno,
aos poucos, mudando. Foi possível lutar pela Abertura do País; em seguida,
pelas Diretas Já!. As conquistas foram suadas: brigávamos passo
a passo. Para você, era como se fosse algo vindo naturalmente. Como
se sempre houvesse existido, fossem as conquistas políticas, fossem as
sexuais.
Conversávamos sobre a situação do País, mas não sobre as ressonâncias
para nós duas, no afeto entre nós.
Depois, os exilados foram voltando e, dos que sobreviveram às torturas,
muitos tiveram merecido reconhecimento, o que ajudou as suas
crianças a entenderem e, talvez, aceitarem os desconfortos por elas vividos.
Poderiam até criticar as escolhas de seus pais, mas havia o contraponto
social em que o contexto ancorava.
Eu não. Não fui torturada, nem exilada, mas fui, sim, apartada do
meu País. Não o reconhecia, na maioria das vezes. Sofri, em minha
alma, as sevícias impingidas ao Frei Tito, à Tarcísia, à Criméria, ao
Derbi e sua família. Procurava sustentar meu corpo, para não sucumbir,
também.
As minhas dores não se comparavam com as que eles e outros sofreram.
Por isso achei desnecessário — mesquinho até — falar com você
sobre como a criei, num tempo que era assim e que forjou mães que
eram assim. Fez falta não conversar. Talvez alguns pequenos conflitos
tivessem se tornado só pequenos conflitos. E não fendas.
Ai, se eu fosse poeta para falar o indizível.
Din-don! Din-don!
Ah! A campainha! Você veio, minha menina!
Quando o amor
é mais forte
Rosa Carneiro
Aparecida Rosa Moro Carneiro nasceu em 1º
de março de 1943, na fazenda Tamboril, em
Pontal. Casada há 50 anos com Sergio Murad
Carneiro, tiveram três filhos: Sergio Filho,
Simone e Carina. Tem dois genros: Alfredo e
Gabriel. Uma nora, Daniela. Seis netos: Sergio
Neto, Gabriela, Pedro, João, Antônia e Júlia.
Cursou Pedagogia e Administração de
Empresas no Colégio Soares de Oliveira, em
Barretos. Lecionou por 25 anos no Ensino
Fundamental. Fundadora da empresa SR
Embalagens Plásticas em 1979, onde trabalha
até hoje.
Trabalha voluntariamente na Creche Santo
Antonio de Pádua, há 25 anos. Catequista,
leciona para crianças da 1ª etapa no Centro
Catequético Paulo VI. É vice-presidente da ABC
(Academia Barretense de Cultura). Escreveu o
livro A Altura do Céu e vários contos.
Lançou seu segundo livro No caminho...
histórias para contar! Participou de todas as 5
Antologias Solidárias, além de colaborar com
artigos para a imprensa barretense
Rosa Carneiro
Sabia que teria uma vida diferente ao casar-se com Haroldo. Era
professora formada, já estava lecionando em uma classe no Grupo
Escolar da pequena cidade onde morava com seus pais e irmãos,
mas realmente pensou que seria apaixonante morar na fazenda com o
homem que amava e, ainda, trabalhar com crianças... Assim relatou-
-me Ana Maria:
Estava sentada na varanda lendo e, ao mesmo tempo, olhando Rafael, que
brincava de bola no gramado do jardim, quando eu cheguei.
Disse-me que precisava recordar sua vida dos últimos anos — e se
eu gostaria de ouvi-la. Deixou o livro solto no colo e deu asas a seus
pensamentos, recordando sua vida de alguns anos atrás.
Iniciou seu relato.
Como a pintura de um quadro, viu-se estudando na cidade de Jundiaí,
centro maior e com mais facilidade de escolas. Passear com as
amigas, paquerar, ir aos bailes, cinema, barzinhos... Que vida boa levava!
Seu sonho era ser professora. Sabia que a profissão era desvalorizada,
mas era o que mais queria: ensinar crianças a ler, escrever, cantar
com elas, contar histórias, brincar, ensinar Matemática, Geografia, um
pouco de tudo que ela havia aprendido.
Formou-se e voltou para casa de seus pais. Logo, apareceu um concurso
para o Magistério primário e, prestando vestibular, foi aprovada.
Escolheu sua cadeira em uma fazenda pertencente ao município onde
vivia com seus pais e irmãos. Seus irmãos mais velhos já haviam se
formado. Paulo trabalhava no banco e André gerenciava um supermercado.
Ainda não haviam se casado e viviam todos juntos com os pais.
Era assim naquela época: ninguém saía de casa antes do casamento.
Escolheu uma cadeira na fazenda Boa Vista. Deveria começar a lecionar
em fevereiro e ainda era início de dezembro. Estava muito en-
118 Quando o amor é mais forte
tusiasmada, sonhando com sua primeira escola e queria conhecê-la.
Como todos trabalhavam, esperou sábado para Paulo, seu irmão, levá-
-la até a fazenda. Saíram cedo. Sua mãe, Paulo e Ana.
Apenas alguns quilômetros e lá estavam na entrada da fazenda. Não
era uma qualquer. A entrada principal era cercada por uma guarita,
onde um guarda uniformizado tomava conta. No interfone, Paulo falou
o motivo da visita. Após alguns minutos, o grande portão se abriu e
o guarda mostrou onde ficava a escola, no interior do pátio da fazenda.
Infelizmente, estava fechada e o administrador da fazenda não estava
em casa. Foram até a casa principal e a senhora que os atendeu
não tinha como ajudar, pois não possuía a chave. Um pouco ansiosa e
decepcionada Ana falou para sua mãe e irmão:
Tudo bem. Voltaremos outro dia... pelo menos sabemos o caminho e onde
está localizada a escola da fazenda Boa Vista.
Não desistiu nem esperou. No dia seguinte, após o almoço, Ana e
sua mãe se dirigiram até a fazenda. Agora sim! Localizaram o administrador
que, gentilmente, mostrou a elas a escola. Havia mais uma
professora na fazenda e Ana lecionaria para a primeira série, enquanto
a outra professora ficaria com a segunda. As crianças das duas séries
seguintes estudavam na cidade. Logo que saíram da escola com o administrador,
depararam-se com um rapaz muito elegante, em um lindo
cavalo preto. Era o dono da fazenda.
Haroldo era o seu nome. Desceu do cavalo para cumprimentá-las.
Rapaz de boa aparência, educado, com um lindo sorriso. Ana se encantou
por ele — e o olhar com que ele lhe retribuiu fez tremer suas pernas.
Dois dias antes do início do ano letivo, foi abrir a escola e ver se estava
em condições de ser usada. Encontrou-a impecável, limpa e organizada.
Ainda estava olhando alguns quadros da professora da segunda
série quando sentiu alguém a suas costas.
Quando se virou levou um grande susto. Era Haroldo.
- Oi, tudo bem? Sou Haroldo! Você se assustou?
- Não, respondi. Eu estava distraída...
Haroldo, rapaz acostumado a ser paquerado pelas jovens, tentou,
pela primeira vez, tomar a iniciativa e mostrar sua lábia para ela. Ana
contou que o tratou com distância e elegância.
Rosa Carneiro 119
- Prazer! - respondeu com certa indiferença e completou – sou a
nova professora da turma da manhã na escola.
- Eu já sabia - respondeu Haroldo. Gostaria de me acompanhar para
tomar um suco em minha casa? - perguntou, em seguida.
- Não, muito obrigada! Seria ótimo, mas tenho que voltar para casa.
Minha mãe está me esperando no carro.
O ano letivo começou e, muito entusiasmada mostrava, com simpatia
e atenção, seu jeito amoroso com as pessoas. Logo se tornou conhecida
e amada pelas crianças e seus familiares.
Haroldo continuava visitando-a e, lentamente, uma simpática amizade
surgia entre eles. Haroldo vivia na casa grande. Havia perdido
seus pais há muitos anos em um desastre de carro e morava sozinho
com uma senhora que o criara. Nhá Joana era sua babá desde seu nascimento
e nunca o abandonara. O tempo passava e Haroldo e Ana já se
visitavam e saíam juntos para passear com os amigos.
Pouco a pouco, um romance nasceu. Apaixonaram-se. O casamento
aconteceu nos jardins da Boa Vista. Toda cidade foi convidada e ninguém,
antes ou depois, falava sobre outro assunto.
Após alguns dias, viajaram em lua de mel. Países como Dinamarca,
França, Suécia estavam no itinerário de Haroldo, que havia preparado
tudo. Ela, garota simples, enamorada, vivia um sonho impossível e inacreditável.
Haroldo dedicou-se inteiramente a ela; ela acreditava que
ele a amava e se sentia muito feliz. Um mês passou rapidamente; agora
tinham que voltar para casa.
Para Haroldo, ela não voltaria à escola; mas insistiu que gostaria de
continuar seu trabalho.
Em pouco tempo se familiarizara com a fazenda. Nas horas vagas,
visitava as famílias dos operários. Tinha tempo para plantar o jardim,
ajudar nhá Joana e ainda ler muito.
Estava sempre pronta para Haroldo, que chegava em casa à tardinha,
também vindo das plantações da fazenda.
Não fazia um ano que haviam se casado quando engravidou.
Nas primeiras semanas, a felicidade tomou conta de Haroldo, que
presenteou Ana com um lindo anel de esmeraldas. Mas, após aquele
fascínio, Haroldo já não dava muita atenção para a esposa. Chegava
tarde, cheirando bebida, desarrumado, entrava e ia direto para a cama.
120 Quando o amor é mais forte
Ana estranhou sua atitude e, na manhã seguinte, questionou a situação,
sem nunca reclamar.
Algum problema sério na fazenda, querido?
Haroldo não respondeu à pergunta e, com indelicadeza, disse que
ela nada tinha a ver com os negócios da fazenda.
O tempo foi passando e, a cada dia, Haroldo chegava mais tarde,
mais bêbado e agressivo. Agora chutava cadeira, jogava tudo no chão
por onde passava e nem tomava banho para deitar-se. Não se alimentava
e, quando ela questionava e apresentava seu jantar, gritava. nhá Joana
também estava inquieta e dizia para ter paciência. Haroldo dormia
até às 12, 13 horas e saía solando os pneus da camionete.
Numa quinta-feira chuvosa, apareceu na sede da fazenda o administrador.
Queria falar com Ana. Ela o recebeu na varanda. Américo questionou
que ele não sabia mais o que fazer na fazenda, que a plantação
havia terminado e ele não tinha mais programação para os operários;
eles estavam sem receber seus salários há três meses.
Ana não sabia nada da fazenda. O desespero tomou conta dela, que
já sentia o peso da gravidez e foi tomada de surpresa. Para ela, Haroldo,
ainda que diferente de antigamente, ainda estava tomando conta da
fazenda. Tranquilizou Américo de que falaria com Haroldo a noite e,
com certeza, tudo seria resolvido a contento.
Haroldo chegou de madrugada, pior que os dias anteriores, mas
Ana estava esperando. Sem titubear, tentou conversar com ele, mas levou
um safanão que a jogou ao chão; ele ainda gritou que Ana não
tinha nada a ver com seus negócios.
- Tenho sim! - com dores horríveis, e se levantando com dificuldade,
respondeu.
- Você me deve explicação sobre suas atitudes dos últimos meses!
- Quem é você para me pedir explicações, pobretona! Se não tivesse
casado comigo, estaria morrendo de fome junto com sua família vagabunda!
Casou comigo para ter status! Cale a boca ou jogo você para
fora a pontapés!
Ana contou-me que tremia e se deixou, sentada no chão, de olhos
arregalados. Precisava se controlar, senão perderia meu filhinho.
Haroldo bateu a porta do quarto e saiu arrastando pneus da camio-
Rosa Carneiro 121
nete. Levantou-se e, após lavar o rosto, agora muito inchado, deitou no
seu lado da cama. Nunca abandonaria seu lugar ao lado de seu esposo.
Ficou quieta, ali, deitada, protegendo seu bebê, mas não dormiu...
Levantou-se cedo para lecionar. Haroldo não havia chegado. Foi para
a escola muito preocupada, mas não tinha a quem recorrer. Não queria
preocupar seus pais. Nem saberia o que dizer a eles.
O tempo foi passando. Os cobradores aparecendo no portão da sede
da fazenda. Os trabalhadores fazendo serviços insignificantes e sem pagamento.
Precisava dar um jeito! Vendeu seu anel de esmeraldas para pagar
os trabalhadores. Ele era muito valioso. Sem mais saber o que fazer,
chamou Américo para, com ele, decidir a administração da fazenda.
O milho e a soja teriam de ser colhidos. Deveriam alugar uma colheitadeira
para a soja e o milho seria colhido pelos trabalhadores. Pediu
a Américo que procurasse saber na cidade onde seu marido passava
seus dias. Foi quando Américo disse que já sabia que Haroldo estava
passando a noite em uma mesa de jogos em Jundiaí.
Sentiu que ia desmaiar. Precisava trazer seu esposo de volta, saber o
que aconteceu para que ele acabasse assim, numa mesa de jogo. Mas
não deu tempo. Haroldo havia hipotecado a fazenda e não pagara a
hipoteca na data certa. A fazenda passou para o Estado que, sem a
decisão de Haroldo de readquiri-la, colocou-a em leilão.
A bela e produtiva fazenda foi vendida num piscar de olhos. Haroldo
desapareceu e ninguém mais soube o paradeiro dele.
Ana recebeu intimação para deixar a fazenda. Tudo que ela não
queria era voltar para a casa de seus pais, agora velhinhos e doentes.
Mas criou coragem e foi conversar com eles. Foi acolhida com o maior
amor. Levou consigo nhá Joana que, sofrida e idosa, não tinha para
onde ir.
Nesse período estava de licença-maternidade, pois seu filho estava
para nascer.
Não demorou muito e se sentiu envolvida com as dores do parto.
No hospital, com a mãe a seu lado, estava feliz, mas angustiada: onde
estaria Haroldo? Como desejava que ele estivesse a seu lado! Nunca
entendeu o que acontecera a ele. Por que a mudança, por que o desaparecimento?
Seu filho Rafael nasceu forte e sadio. Chorou lágrimas de felicidade
122 Quando o amor é mais forte
e também dolorosas, ao se sentir sozinha nesse momento especial. Jurou
para seu filhinho recém-nascido que encontraria seu pai.
E não esqueceu.
O tempo foi passando. Tentou se fortalecer, enquanto Rafael crescia
a olhos vistos. Tomou uma decisão que já estava rondando em sua
cabeça: deixaria Rafael com seus pais e nhá Joana e sairia à procura de
Haroldo. Onde? Não sabia! Falou com seus pais, que lhe aconselharam
a não ir. Haroldo não merece isso! Mas insistiu.
Numa manhã chuvosa, se despediu de seu pequeno bebê e, com algumas
roupas na mala, partiu em seu carro. Procuraria primeiramente
em Jundiaí.
Percorreu bares, casas de jogos, casas de mulheres serviçais do sexo,
hotéis, cadeias e nada — ninguém conhecera ou vira Haroldo.
O que fazer? Teria que andar mais um pouco. Com gastos mínimos,
quase somente com o combustível, fraca e com medo, partiu para São
Paulo. Meu Deus! Onde procurar Haroldo numa cidade tão grande? Pior que
procurar uma agulha num palheiro! - era seu pensamento. Mas não desistiu;
sentia que Haroldo precisava dela.
Procurou nos becos, nos albergues noturnos, em pequenos e horríveis
hotéis da periferia e nada. Falar com quem? Não conhecia ninguém.
Explicar o quê? “Por favor, você viu o Haroldo?”.
Certa noite, colocou o carro em um lugar afastado e recostou para
descansar. Tão cansada e desolada estava, que sentiu as lágrimas fluírem
em seus olhos e chorou, chorou muito: de saudade de seu filho, da
ingratidão do marido. Chorou pela decepção do tão sonhado casamento.
Quando percebeu, alguém batia no vidro do carro. Que susto levou!
Era um guarda de rua, que advertia que ela não podia ficar ali naquele
lugar. Era muito perigoso.
Ela não sabia aonde ir e, num impulso de fraqueza, grossas lágrimas
saltaram dos seus olhos, deixando o bondoso policial preocupado.
Pela primeira vez, explicou, em desespero, o que estava fazendo ali.
O guarda aconselhou-a a procurar na Cracolândia. Nunca imaginaria
Haroldo neste lugar, mas disse ao guarda que iria até lá. O guarda disse
que a acompanharia quando terminasse seu plantão, se ela quisesse
esperar. Como não esperar?! - pensou. Não sabia onde ficava nem como
chegar lá.
Rosa Carneiro 123
Na manhã seguinte, quando o guarda saiu do plantão, seguiram para
a Cracolândia. Arrepiou-se ao chegar ao lugar. Que desespero aquelas
pessoas jogadas nesse lugar sórdido, imundo! Impossível Haroldo ter vindo
parar ali. Desceu do carro e iniciou a procura, determinada a encontrá-
-lo se ele estivesse nesse lugar.
Com a ajuda do guarda, andou muito. Não encontrou Haroldo.
Agradeceu pela gentileza e disse que procuraria um hotel. Mas virou
uma esquina e continuou procurando numa rua perpendicular. Sentiu-
-se em desespero, pois tentavam lhe arrancar a bolsa das mãos e até sua
saia tentaram puxar. Como louca, corria das pessoas, mas continuava
procurando... De repente, alguém com a mão estendida suplicou:
Uma esmola, pelo amor de Deus!
Reconheceu aquela voz frágil e se virou. Um homem sujo, maltrapilho,
barbudo estendia sua mão, ainda mais suja, para ela.
Levou um susto. Conheceu o homem! Era seu marido, era Haroldo!
Aproximou-se e o chamou pelo nome. O maltrapilho assustou-se e,
olhando para ela, encolheu-se.
É você Haroldo? - perguntou. Estou te procurando há vários dias! Vamos
para casa!
Haroldo se encolheu ainda mais e fez um gesto para fugir.
Nisso, um guarda que passava, perguntou-lhe o que estava acontecendo.
Disse-lhe que era seu marido e que queria levá-lo para um hospital,
pois achava que ele estava muito doente. O guarda concordou e a
ambulância levou Haroldo, praticamente inconsciente, para o hospital.
Seguiu atrás com seu carro.
Seus pensamentos voltaram-se para os meses que viveu feliz com
Haroldo. Resgataria seu amado das drogas com toda sua força.
Seguiu a viatura até o hospital. Não tinha muito que fazer por enquanto,
mas não abandonaria Haroldo nem por um minuto. Sentia
tanto desespero, tanta solidão!
Os dias foram passando. Haroldo, inconsciente, alimentado por soro
ainda tinha alucinações violentas. Com muita força, conseguia segurá-
-lo e acalmá-lo. Foram muitos dias e noites.
Não sabia quantos se passaram. Uma madrugada, já mais calmo,
124 Quando o amor é mais forte
Haroldo mexeu os braços e balbuciou algumas palavras desconexas.
A esperança não a abandonava. Estava segura de que recuperaria seu
marido. Seu Deus e seu amor eram mais fortes que as drogas.
Pouco a pouco, Haroldo foi voltando a si e tentando saber onde se
encontrava.
Reconheceu-a e estremeceu. Queria sair da cama e, com os olhos
lacrimejantes, se debatia. Seu coração estava a mil. Continuou ali, sentada,
segurando sua mão e falando palavras serenas para tranquilizá-lo.
Indo e voltando de sua inconsciência, Haroldo, por vezes, balbuciava
seu nome e voltava a dormir. Muitos dias se passaram, mas ela
não saia daquela cadeira perto da cama. Dormia algumas horas num
pequeno hotel nas imediações e voltava ao hospital. Às vezes, recostava
a cabeça na cama e as lágrimas apareciam. Lembrava-se de seu filho.
Como estaria agora? E as crianças da escola, seus pais... - porém, queria salvar
seu marido, não queria que seu filho crescesse sem o pai.
Os sinais vitais de Haroldo foram melhorando e ele já conseguia
conversar melhor.
Naquela tarde, falou com Ana e perguntou por que ela estava no
hospital com ele e quem o trouxera.
Explicou detalhadamente e duas lágrimas surgiram em seus olhos.
Sabia que não tínhamos casa e que deveríamos ir para a casa de
meus pais.
Pouco a pouco, de acordo com a melhora de Haroldo ela foi contando
o que aconteceu e da beleza do filho. Conforme relatava os acontecimentos
sem esconder nada, Haroldo, cabisbaixo, dizia baixinho:
Perdão Ana! Perdão meu amor! O que foi que aconteceu comigo? Como cheguei
a esse buraco tão fundo?
Na sua tristeza, de ver o sofrimento de Haroldo, ela afirmava que
o futuro os esperava com muita saúde e alegria. Era somente isso que
deveria pensar.
Já bem recuperado do vício e das alucinações, Haroldo recebeu alta
do hospital e assim partiram para casa.
Lá, todos os esperavam. O pequeno Rafael pulou em seus braços.
Foi uma choradeira só.
Algumas semanas passaram. Agora, Haroldo já saía para a rua.
Rosa Carneiro 125
Disse-lhe que iria procurar um emprego. Como era agrônomo, achou
que seria fácil. Mas não. Seu histórico era muito ruim. Ninguém queria
aceitá-lo. Resolveu partir para a cidade maior, Jundiaí.
Depois de enviar muitos currículos conseguiu uma entrevista.
Esperou por semanas. Já desiludido, recebeu uma ligação telefônica:
estava empregado e faria o que mais gostava — cuidar de terras,
plantações, colheitas.
Ana preocupou-se com a separação, mas logo tentou transferir-se
para uma escola em Jundiaí. Conseguiu uma sala numa estadual. Começaria
lecionar na nova escola em fevereiro. Teria mais de dois meses
para procurar uma casa e mudar. Nhá Joana iria morar com eles.
Tudo iria dar certo: Haroldo trabalhando na fazenda, ela na escola
e nhá Joana cuidando de Rafael.
Compraram alguns móveis, utensílios para cozinha e começaram
uma vida nova do nada.
Mas Ana estava preocupada: não estava feliz. Salvara seu amor, pai
de seu filho e construíra um tão sonhado lar. Viviam felizes os três com
a ajuda de nhá Joana, mas tinha medo da recaída, pois as más línguas
diziam que era normal.
Acordou de seus devaneios e, feliz, sentiu que tudo exalava felicidade.
O ano seguia calmo, a família unida, Rafael crescendo... Deixou
o livro de lado e se fixou em seu garoto, que continuava brincando de
bola no gramado.
Convidou Rafael e a mim para entramos e seguimos para a cozinha.
Preparararia o jantar.
Naquela noite, Haroldo não apareceu, à tardinha, como era de costume,
nem mais tarde, nem no outro dia... Eu estava com Ana e senti
sua angustia.
Preparou-se e seguiu para São Paulo: agora, sabia onde encontrar
Haroldo.
Nunca desistiria dele.
Lá vem a
Teresa Torta...
Sada Ali
Sada Ali nasceu em Barretos. Escritora desde
sempre, concebeu Helena e Vitória (de sua
obra bipartite “Perfume dos Laranjais”) por 10
anos.
Lançou “Perfume” em Barretos, Ribeirão Preto,
Uberaba e São João del-Rei/MG (vencedora
de edital da UFSJ), além das Feiras do Livro
Caminhos da Leitura e da Fliporto, em Olinda/
PE. Ainda lançou em Florianópolis (Livraria
Catarinense) e em São Paulo (Bienal, Livraria
Cultura e Casa das Rosas).
No exterior, sua obra esteve na 107 Foire de
Paris, na França e London Book Fair (Londres,
Inglaterra). Ainda em terras francesas, pelo
Ministério da Cultura, Sada esteve presente
no Espaço Evasion e nas Festas Consulares de
2013, em Lyon.
Em Portugal (2016), lançou em Gaia e Porto.
Comandou canal on-line de entrevistas com
autores independentes, o Ponto de Leitura
TeVeLê. Coordena essa Antologia Solidária
Sada Ali
Sua chegada era precedida pelo jargão: Lá vem a Teresa Torta... Lá
vem a Beleza Torta. A sonoridade das sílabas era acompanhada
do molejo, ginga e da cadência inata dos moradores daquela área da
cidade. Samba no pé, rima na voz e remelexo nos quadris. A vila era
campeã. Campeã do samba, da cachaça e das mulheres da vida.
Lá vem a Beleza Torta. Nos áureos tempos, teria dado um bom samba.
Bateria nos acordes e ela, o tema, na frente, rainha soberana gingando
com toda a tortuosidade do seu corpo explorado. Fora-se o tempo.
Passara, soçobrando a amargura crônica, injusta, díspar — um contraponto
à sua pretensa obstinação.
Diziam termos todo o tempo do mundo. A eternidade!, diziam. Mas
o que é o tempo senão um monopólio de eternidade oferecido em doses
homeopáticas? Átimos de segundos exaurindo nossas forças e nos
colocando à sua mercê? Insistira em renegá-lo e ele mantivera-se em
plácida espera. Sem imposições. Paciência inesgotável, consumindo
vorazmente carnes, sonhos, desejos e ilusões.
Abruptamente, algo parecia ter se rompido. Um elo, uma cadeia,
uma conexão. Quem era aquela estranha a ocupar a frente do seu espelho?
Nada restara de sua antiga consorte. Rosto, corpo, mãos, expressões.
A beleza estava realmente torta; Teresa totalmente torta. Declínio
da saúde, paciência, musculatura e tudo mais que se referisse ao seu
ser. Tudo sendo consumido; mas a maior sensação de perda estava nos
cabelos. Sedosos, brilhantes, os negros cachos haviam se transformado
em montículos de nuvens entremeando nuanças amarelas, alvas e acinzentadas.
Do antigo jardim, um canteiro de urtigas. Sem viço, perfume
ou cor.
Uma companheira sugerira, tentando rejuvenescer-lhe a aparência,
que passasse a tonalizá-los e, de maneira a melhor convencê-la, além
de presenteá-la com uma negra tintura, também se comprometera a
aplicá-la. Outra frase, também dita pela amiga – e que maior persuasão
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Lá vem a Teresa Torta...
exercera na resolução – fora o desafio à sua personalidade:
A Teresa que eu conheci nunca temeria ousar.
E fora rendida.
Usara e, inicialmente, até gostara. As madeixas negras, recaindo em
cachos sobre os ombros, fizeram-na sentir-se realmente rejuvenescida.
Assim procedera durante anos, findo os quais tivera que abandonar o
uso. As parcas economias, seus rendimentos, haviam decaído e não a
permitiam sequer pensar em consumir qualquer supérfluo. Resignara-
-se, deixando, novamente, os cachos descoloridos. A colega de trabalho
afirmara: cabelos brancos envelhecem, fazem perder clientes!
Para não ter que confirmar já viver aquela realidade, culpara a imagem
vislumbrada todas as manhãs ao se mirar no pedaço de espelho
disposto sobre a pia do banheiro. Aquilo realmente não valeria o custo
da cara tinta! Ao mencionar o espelho, lhe vem à mente o exato momento
em que ele havia se estilhaçado. O fato ocorrera durante uma
das madrugadas mais frias já vividas. Encontrava-se diante da janela, a
assoprar bolinhas do próprio hálito contra seu vidro, quando um ruído
ecoa pelo ambiente. Abaixa o volume do rádio de pilhas disposto na estante
à sua direita e, deslizando rapidamente a manga da blusa de lã sobre
os desenhos traçados por seu bafento vapor, tenta visualizar através
da vidraça o lado externo da avenida. Nada inusual. O frio espantara
a maioria dos transeuntes e, na estreita via, poucos carros circulavam.
O cenário, nada fugidio, mantinha sua singular displicência e a fizera
questionar-se da direção do ruído. O que seu sentido auditivo captara
havia ocorrido do lado interno e não externo. Estava, quase como de
costume, na mais completa solitude. O que ocorrera?
O ambiente contíguo era guarnecido por sumária mobília: duas poltronas,
uma estante feita de tijolos vazados e tábuas enceradas (onde se
encontrava seu rádio a pilhas) e alguns exemplares que possibilitariam,
a quem fosse permitida a invasão, captar a dimensão de sua personalidade:
livros profanos e religiosos. Apenas. A arte da vida não permitia
ambiguidades: sonhar era para poucos. Para que livros, se nem escola ou
futuro teria? Escola: tabu, privilégio de ricos. Frequentar? Impossível.
Aprendera a ler numa deferência da vizinha, que acreditara poder ser
um dia professora. Bondade efêmera, tão efêmera quanto o sonho da
Sada Ali 129
vizinha. Há anos dividiam o ponto numa das esquinas da vila.
Tendo aprendido o básico, a descoberta das letras e o que os seus
símbolos traduziam, um mundo novo se descortinara. Lia os jornais
em que trazia, embrulhadas, as compras do bar do seu Augusto; as
revistas eróticas do pai que, displicentemente, as abandonava ao lado
da cama; os livros de bolso trocados com outras companheiras de infortúnio
e os religiosos oferecidos pelas damas de caridade. Isso, até o
dia em que as expulsara. Como ousavam falar em Deus e exibir escancarada
mediocridade diante das dificuldades e tormentos alheios? Em
seu reduto, faltavam todos os gêneros necessários para se viver com
dignidade; até mesmo a água, a essência da vida. Deus era aquilo? Deus
permitia aquilo? E por que vinham com aquela palhaçada de dizer que Deus
está em meio aos pobres, em meio aos humildes, em meio aos que se resignam
diante de seus tormentos? Suas vestes, mãos, cabelos e faces bem cuidadas
não pareciam patentear o dogma ou verdade alvíssaras.
Aquilo era partilhar do desejo divino?
Ateia! – fora a resposta.
Teresa alonga os braços em direção à própria miséria, ao corpo defeituoso,
à pobreza. Se não carregasse um ser supremo em seu interior,
como sobreviver? Nunca mais retornaram; isso sim, fora um presente
divino! A consumação do Éden na diabólica e abandonada vila.
Desliza o olhar sobre os pertences buscando a causa do ruído: algo
havia sido quebrado. Vasculha como uma devassa, faminta pelo dinheiro
prometido. Depara-se com a morbidez vazia da cama e uma
gratidão súbita a acomete: a cama era a responsável por seu sustento!
Presenteada há um quarto de século por um cliente satisfeito, larga e
espaçosa, madeira maciça e estrado de molas. Não possuía um traço de
cupim. Aquilo sim era uma cama e não as porcarias que hoje se encontravam
à disposição nos convencionais magazines. E quantas aventuras
já não haviam compartilhado...
Diligentemente — e sem outros pensamentos a lhe interromperem
o andar, alcança as outras mínimas dependências: cozinha, que comportava
um micro-tanque e o último cômodo, o banheiro. Da porta do
diminuto banheiro já detecta o incidente. A parede que sustentava o
espelho era edificada por tijolos vazados e revestida por fraco reboco,
130
Lá vem a Teresa Torta...
certamente a causa da queda. O estrago só não fora pior pelo auxílio
miraculoso da pia, que além de interrompê-lo de uma completa queda,
salvara-o da inutilidade permanente. Decidira-se, então, a não substituí-
-lo. Esperaria que aquele lhe predestinasse os sete anos de azar. Não
desejaria incorrer no risco de, com um novo, fazê-lo também desabar
daquela parede oca e, com isto, duplicar os anos de infortúnio.
Com o passar do tempo, perdera o interesse em adquirir um que
viesse a substituí-lo. A imagem refletida já não compensaria novo gasto.
Melhor seria continuar vendo-se por entre as nesgas das rachaduras.
Para um rosto gasto, aquele trincado espelho bastaria. E, retomando o
início de sua introspecção, como poderia explicar, ainda hoje, as palavras
que sua passagem incitava? Pelos saudosos momentos não inteiramente
esquecidos?
Morava naquelas imediações pelo tempo de sua vida e se julgava
parte da paisagem. Era a velha figueira plantada defronte à casa da Maria;
o banco no bar do falecido Sr. Augusto; o velho poste de madeira
poupado pela companhia energética; as pedras cortantes perdidas no
meio do caminho. Fora um, melhor dizer, era um adorno a mais na vila;
e se sua passagem ainda era recebida por saudosa saudação, certamente
seria devido ao grato reconhecimento da juventude que a recebia
com a mesma euforia herdada dos seus predecessores.
Naquele tempo, seu quadril arredondado e empinado, seios perfeitos
e rijos, cabelos sedosos e naturalmente pretos, pele moreno-jambo,
um sorriso de marfim emoldurado por lábios carnudos e macios, realmente
faziam por merecer aqueles galanteios. Mas, à sua passagem, os
suspiros que os homens lhe dedicavam tornavam-se tímidos, tépidos,
bocas fechadas, gargantas travadas premidas entre dentes... O jargão
repetido à meia-boca interrompia o parcial silêncio. Aquela timidez incoerente
só fora compreendida quando um cliente confidenciara: você
é maravilhosa por inteiro, mas a parte que a difere das demais são seus olhos.
E o que há com meus olhos? – perguntara, estarrecida. – Com tantos
predicados, — e alongara a mão em direção ao próprio corpo já mutilado
— são meus olhos que arrebatam a maior atenção? O homem cala-se,
absorto. Arranha suas costas, marcação inútil num território sem lei
ou posse, confere cada detalhe de seu corpo, detém-se na tortuosidade
da coluna, observa minuciosamente. Sorri um sorriso de homem expe-
Sada Ali 131
riente e reafirma a beleza avistada em seu olhar. Únicos! Seus olhos são
milhares de sensações — prosseguira no que julgara pura pieguice.
Mas nos intimidam.
No mesmo instante, deixa a cama e, caminhando com a lepidez
que a tortuosidade de sua deficiência a permitia, mira-se no espelho
ainda intacto para uma melhor observação. – Teria algum fundamento
ou era mais uma tentativa de sedução? As pestanas longas e escuras, se
debatendo em contraposição umas às outras, cobriam-lhe temporária
e superficialmente o fundo branco dos olhos coloridos por duas bolas
de um ofuscante cinza. Retorna descrente para junto do homem que
tentara lhe ressaltar, pela primeira vez, a singularidade dos olhos. Era,
seguramente, conversa para amolecer seu coração.
Sua gargalhada irônica estrondeara, ecoando pelos quatro cantos do
aposento antes de lhe afirmar: deixa de ironia!, e fixando novamente o
olhar, àquela altura já frígido como o sentimento que lhe dedicava, conclui:
agradeça por eu estar ainda um pouco mais sóbria de mim, por não ter me
embriagado no desejo maior que é estar em mim. Essa sensatez que sobrou ainda
me impede de ser irônica. Se embriagada estivesse na magnitude maior do
seu eu, aquele eu pleno, inteiro, seguramente seu eu lhe diria: desapareça
da minha frente! Não estou aqui para ouvir suas asneiras. Meu próximo cliente
me espera. Nova admiração e o homem a pede em casamento enquanto
continua a ressaltar a beleza dos seus olhos. A esse seguiram-se muitos
outros pedidos. Sempre negados. Um dia, amadurecida pelas empíricas
experiências e na mais completa solidão, reagindo a uma saudade
não identificada, que entrava sem convite para assumir o comando da
casa e a ocupar por inteiro, repensa:
Se tivesse tentado...
ooo
Comprar mistura sempre fora um tormento. Como comprar, se nunca
pagavam? Não iria. O sopapo ao pé do ouvido a destitui da decisão.
Não era para repetir aquelas palavras. Se seu pai chegasse e a encontrasse
falando daquela maneira, não iria gostar e terminaria espancando-a,
como sempre acontecia. Falar ou calar? Ambas terminariam em idêntica
implicação. Temente, escolhe o calar-se; mas o silêncio é como pensara:
recebido como um desafio. A mão aberta, os dedos em riste. O ar
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Lá vem a Teresa Torta...
sibila, cortante rente ao seu ouvido. Fecha os olhos e cobre as orelhas.
E a primeira bordoada deixa as marcas sobre a pele moreno-jambo das
faces. Dois vincos trincando a pele, fruta sendo partida pela lâmina da
faca. Dor! Novas bordoadas e um médio corte no supercílio. Nem o
ferimento tem o poder de sensibilizá-la, mas diante da premente necessidade
da mistura, a mãe sai para apanhar algo que estancasse aquele
sangue vertido. Nenhum pedido de perdão ecoa de seus lábios.
O sangue escorre rosto afora e o medo seu corpo adentra. Nada
de mencionar o ocorrido, tampouco as marcas podiam ser notadas.
Espera o trapo com a quietude dos que sabem o dano de qualquer movimento
proibido. Um resto do passado em forma de tecido é deposto
em sua mão. Tão massacrado quanto seu interior. Atira o velho trapo
sujo de sangue sobre a cadeira, único móvel daquele ambiente, e sai
caminhando com toda a dignidade que lhe restara. No rosto ainda vincado,
acrescia-se o rastro seco traçado pelo volume de sangue. Absorta
na própria dor, não se atém à beleza do dia, uma suave manhã de outono.
Uma vontade de morrer; de apagar para todo o sempre aquelas
cenas que vivera. Tal como as fadas que lhe tapavam olhos e ouvidos
nas madrugadas, livrando-a de presenciar ou ouvir os gemidos e outros
ruídos oriundos do quarto do pai, a morte também poderia resgatá-la,
livrá-la para todo o sempre daquela penitência.
Nesse pensamento, eleva novamente o olhar ao céu. Quanta beleza!
– exclama interiormente ao notar, pela primeira vez, o esplendor da manhã.
O céu, tomado de azul, era regido pela magnitude do Sol que, alongando
as copas das árvores, projetava sombras sobre o seu caminho.
Belo dia para morrer. Apesar da idade, que lhe fora amadurecida pelas
empíricas experiências, se apieda do próprio epitáfio: aqui jaz Teresa: menina
pura e virgem, precocemente chamada pelo Senhor. Ao menos na morte
poderia ser tratada com civilidade. Já não lhe fora dito que enterrar seus
mortos se constituía num primeiro ato de civilização que a humanidade
ensaiara? Pés descalços, acham uma pedra. Um corte e vermelho
filete de sangue. Abaixa-se para conferir o estrago e ouve o primeiro
assobio. O vestido curto, as coxas bronzeadas e roliças, os seios mal
nascidos, despontando em plena ignorância às leis da gravidade. Um
novo assovio e se vira, rosto inexpressivo, para deparar com Melcíades,
o filho mais velho de D. Jussara. Três anos mais velho, forte, de um
Sada Ali 133
moreno que quase se aproximava ao negro, era um dos mais próximos
amigos. Por que havia lhe assoviado? Aquele era seu costume para as
tardes de verão, quando reunidos a mais uma dúzia de meninos e meninas,
saíam para apanhar as rosadas e suculentas mangas das chácaras
nas redondezas, para nadar no pequeno regueiro que corria atrás das
casas da vila e para outras pueris aventuras... Teria alguma desventura
para lhe contar? Não. Dificilmente. Seus pais eram mais ponderados na
maneira de tratá-lo e ele vivia de um jeito que considerava até absurdamente
feliz. Esquece-o e volta a caminhar.
Sr. Augusto percebe a melancolia e as marcas a brasão feitas nas faces
trigueiras da cliente regular. Como poderia se recusar a entregar três
míseros ovos a um pequeno anjo? O que teria se sucedido àquela menina?
Outra pancadaria inútil? Gostaria de poder ajudá-la, mas a vida,
com sua constante urgência, sempre relegava determinações alheias, ao
nada, ao vazio das próprias necessidades. Caminho de volta e os mesmos
assobios. Aqueles assobios eram galanteios gratuitos. O anseio em
Melcíades resgata parte do seu desejo pela vida. A vida poderia não ser
tão desastrosamente ruim. Ou seria?
Àqueles assovios outros se sucedem, muitos dos quais, inúmeras
vezes, assistidos pelo pai, ocultado pela janela, ou ainda à porta, sentado
junto a outros tão alcoolizados quanto ele. Cerca de cinco anos
transcorrem. Já não brincava de fada com a velha boneca herdada da
prima da filha da vizinha. Por que sua fada a havia abandonado assim
que lhe surgira as primeiras regras? Não sonhava mais com a morte
libertadora, mas continuava como o fizera em toda a sua infância: a
tapar, durante as madrugadas, os próprios ouvidos para se livrar dos
urros de cadela no cio do quarto contíguo. A mãe sibilava mais que o
vento em tempestade de verão. Sibilo agudo e cortante, que bramia e
permanecia.
Aquela fora sua escola, seu meio. Nenhum ser vivente, nenhum ser
onipotente partira em seu socorro. Tinha que se livrar, pelos próprios
recursos, dos olhares lascivos do pai, dos urros e impropérios intolerantes
da mãe e dos assobios da molecada da redondeza, todos tão miseráveis
e indefinidos quanto seu próprio mundo. Até que, numa tarde
chuvosa, por que fora escolher seu momento favorito na Natureza?, quando
ouvia e via chuva rebater contra a janela de vidro – janela tão comum
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Lá vem a Teresa Torta...
quanto a que ainda fazia bafejar para escrever desinteressantes e efêmeras
mensagens ao mundo — eles a haviam deixado eternamente
marcada. Batem a porta. A chuva caía, em meio a trovões e outras
particularidades inerentes. O pai, que parecia já estar aguardando visita,
se apressa em atender. Abre a porta e, instantaneamente, os dois
metros que os separavam passam a inexistir pela rigidez com que seu
olhar a escrutinava. Não resistindo àquela força que atuava como imã,
se estaca, pronta a obedecê-lo, a segui-lo, a qualquer outra atitude que
o pai lhe impingisse. A porta se abre largamente, dando passagem à
inoportuna visita. O recém-chegado deposita o guarda-chuva contra a
parede, entrega o grosso capote ao pai. Confidenciam ao pé do ouvido.
O homem assente com sisudez. Parecia tenso.
Forte, de ventre proeminente, tez larga — ainda não se encontrava
inteiramente calvo, mas era o que suas grandes entradas lhe prometiam
— passara a mirá-la. Recua o passo atemorizada, recostando o corpo
magro contra o frio e impessoal vidro da janela. O pai chama. Se aproxima,
hesitante. O que poderiam desejar? Alguma oferta de emprego?
Ouvira o pai e a mãe a conversarem e, pelo teor do diálogo, sabia estar
com os dias contados a sua vida sem nenhum, seria correto dizer, afazer
rentável, posto que trabalho era o que mais exercia desde que alcançara
a mínima altura para cuidar da pia, fogão e tanque. Seu pai estaria
recebendo a visita de um possível empregador?
O senhor lhe estendera as mãos gordas, nodosas e brancas que, por
sua maciez, a fizera acreditar ser um patrão. Mãos macias, nenhuma
calosidade aparente. Apresentam-lhe o Sr. Durval e a mandam ser boazinha
com ele. Saem sob a chuva torrencial. Sob a soleira da porta
ainda lhes observa a saída. Ao que precisamente o pai aludira quando
dissera ser boazinha? Talvez se lhe servisse um café... E onde pretendiam
ir com aquela chuva?
Oferece a cadeira. Um som de lenhos ressecados e prestes a cederem
se insinua pela sala triste e úmida. Sai para preparar o café. Ele calmamente
espera. Tinha a eternidade como aliada. Mete a mão no bolso
da camisa, de onde retorna com uma carteira de cigarros e uma caixa
de fósforos. Acende, puxa com vigor, bafejando a primeira e delirante
tragada. Expele generosas baforadas de fumaça perfumada e envolvente.
Envolvente como a névoa da noite. A nicotina preenchia seu prazer
Sada Ali 135
e a névoa da noite encobriria seus atos. Retorna. Café no bule e coração
nas mãos. Serve no copo e aguarda, à retaguarda. Sentia-se mais protegida.
O copo retorna vazio. Parecia querer outro. Estende o bule, mas
o que a encontra são as mãos livres. É enlaçada com violência. Bule e
copo caem e se misturam formando estragos heterogêneos em sons,
texturas, aromas e finalidades. Eclodem, velados pela tempestade que
desgraçadamente colaborava para a desventura que se abatia sobre ela.
Compreendera, naquele instante, a escolha do dia chuvoso. Seu terror
seria abafado pela Natureza – e ela, infalivelmente, colaboraria para
seu pavor.
Suas vestes são rasgadas. Esperneia, urra. Animal silvestre enjaulado.
A boca é recoberta e, para conter a força que impusera aos membros
inferiores, sofre certeiros chutes pelo baixo ventre, bacia e nádegas. No
momento em que era submetida à pior parte da agressão, ousaria afirmar
terem sido utilizados vários pares de mãos na tentativa de dominá-
-la. Vencida pelo cansaço, cede. Seu corpo é deflorado sem piedade,
carinho, encanto; tampouco cuidado. Findo o ato, notas são atiradas
a esmo, misturando-se aos cacos e à borra de café. O homem, isto é,
Sr. Durval, sai e seu pai – era dele um dos pares de mãos a segurá-la —
imediatamente se apresenta. Ainda no chão, a mãe reinicia a tortura.
Durval, pai e mãe; tortura física e moral. A mãe, aos gritos, defende a
atitude, delimitando o território feminino. Ser mulher era aquilo. Ter
o corpo violentado, humilhado, usado. Apanha nas faces, membros
superiores e inferiores. Recolhem o dinheiro espalhado pela sala, arrumam
seus pertences em duas sacolas plásticas. Iam partir. Haviam
esperado tempo demais. Ela aprendera a ganhar a vida. Que fosse dona
do próprio sustento. Ainda a orientam a não pegar criança. O pai nunca
assumia. Filho de puta não tinha pai. E, a propósito: aquele não era o
seu pai. As últimas palavras proferidas e ouvidas. E saem.
Fica um tempo ainda inerte, sem ação. Café e guimbas de cigarro
como companheiros de infortúnio. Tenta se levantar, mas perde os sentidos.
Horas depois de intercalar desmaios e lucidez, arrasta-se até alcançar
a porta. Alonga o braço e, com um solavanco, a move. A chuva
caía. Um lamento derramado em cântaros. Ou prantos? Bênção para
uma benéfica morte ou, na falta de forças até para a morte, que essa a
lavasse e a purificasse da imundície da invasão, expurgasse o mal enrai-
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Lá vem a Teresa Torta...
zado em suas entranhas e a libertasse do pecado cometido.
Ali permanecera até sentir a chuva minguar, céu interromper o lamento.
A dor era novamente sua.
O dia amanhece e, antes que fosse avistada por algum olhar indiscreto,
se arrasta ao interior da casa. Ainda assim, esperaria pelo retorno
da mãe e daquele a quem chamava de pai. Insistia em acreditar no
regresso. Ledo engano. Estava só. O dia morre no horizonte. Queria
ter ido com ele. Mas viveria para sentir todas as dores do mundo. Um
assobio invade a casa. Melcíades. Qual seria a programação do fim do
dia? Apanhar manga, nadar no córrego?
Gostaria de poder acompanhá-los como de costume, mas jamais
seria. A inocência tirada, as dores alicerçadas, os medos cravados na
carne. Um desejo crescente a invade. Queria caminhar solitária, sentar
sob as árvores, presenciar o ocaso, o último suspiro do sol.
Dias depois, Melcíades retorna. Para na soleira e assovia novamente.
Porta entreaberta. Entra. Por que não atende aos assobios? – questiona.
Ao ver seus andrajos, sangue e fezes, pensa em buscar socorro. O detém.
Estava próxima da maioridade. Não podia se arriscar a perder
a liberdade, ser reclusa em uma instituição para menores. Odiaria ser
atendida por assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e padres. Melcíades
cuida fraternalmente. Desnecessário dizer que, após recuperada,
também exige seu quinhão. Assim, sua vida profissional se iniciara.
Assim, sua mãe a ensinara a batalhar pelo próprio sustento.
O corpo sarara sem cuidados médicos. De que adiantaria corrigir o
físico? A dor da alma jamais a deixaria. Sr. Durval a fizera; o suposto
pai o permitira e a mãe aprovara. E a sua vida, tal como a outra Teresa,
aquela que já se encontrava cansada, fora inteiramente encaminhada
para a guerra, à luta pela sobrevivência, sob a única maneira que lhe
fora ensinada.
ooo
O tempo passara, afoito como uma labareda diante das folhas secas.
As cicatrizes se fecharam, as quebraduras haviam se soldado, tortuosas,
paralelas, diagonais: cada uma ilustrando, à sua moda, a sua caminhada.
Sua tortuosidade física a agraciara com numerosos clientes.
A bela e a fera.
Um rosto angelical encobrindo um corpo surreal, como lhe haviam
Sada Ali 137
dito uns tantos outros Senhores Durvais a cruzar seu caminho. Alguns
afáveis, outros grosseiros; uns atentos às suas dores, outros voltados
apenas aos próprios anseios.
Apenas um a fizera se emocionar, apenas um se fizera digno de registro
numa memória que ainda hoje vinha a acalentá-la. Ainda se recorda
da maior sensação de prazer que alguém jamais poderia ter lhe
proporcionado. Visitava sua casa quando, singelamente, a convidara a
dançar. Assustara-se. Corpo imperfeito, prostituta. Era só para a cama.
Recusa-se. Ele insiste e o disco de vinil ecoa na vitrola. A música invadira
o ambiente, ecoara romanticamente pelo quarto, penetrara em seu
coração e retumbara em seus sentidos...
O dono da perfeita voz a ecoar na sonata, sem se atentar à ignorância
daquela que nunca antes o havia ouvido, emociona e a desperta
para a alegria que também poderia ser o viver.
A música, dominando seus receios, lhe conferia a pureza dos anjos.
O tal Charles magicamente a transportara ao paraíso, onde os seus defeitos
diagonais e paralelos simplesmente inexistiam.
Momento único.
Durante os minutos em que ecoara o vinil, ele a fizera sentir-se
perfeita e íntegra. Ele a fizera esquecer-se do refrão que, vida afora, a
acompanhara:
Lá vem a Beleza Torta... Lá vem a Teresa Torta...
Um mergulho em mim
Thaís Mendes
Moura Carneiro
Thaís Mendes Moura Carneiro é apaixonada
por histórias, pessoas e abraços. Mestranda
em História Social e graduada em História
pela Universidade de São Paulo (USP), pósgraduada
em Fundamentos da Arte e da
Cultura pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP), encontrou na escrita um caminho.
Seus primeiros rabiscos a acompanharam na
adolescência e, desde 2016, produz conteúdo
para o site Mulheres Viajantes, criado como
um espaço de empoderamento feminino por
meio de viagens. Em 2010, experimentou a sua
primeira viagem sozinha e a partir disso, não
parou mais, conhecendo 10 países
Thaís Mendes Moura Carneiro
Passagens compradas e o coração saindo pela boca. Eu não lembrava
qual havia sido a última vez que eu tinha tomado uma
decisão dessas. Eu só tinha saído do país uma vez e o destino era o
mesmo. Agora, seria mais fácil, foi o que eu pensei. Eu já conhecia a cidade
que me fez morrer de amores por ela. Viajei com aquela angústia
dentro de mim.
A primeira vez que eu pisei em Buenos Aires foi em 2010. Eu era
uma garota de 19 anos, estudante de uma universidade pública que trabalhava
em dois estágios e dispendia de cinco a seis horas no transporte.
Foi o fato de morar com os meus pais, na periferia de São Paulo, que
me deu espaço para juntar um dos salários que eu recebia por um ano.
Foi a minha primeira viagem sozinha. Aprendi um tanto, chorei outro,
comemorei os meus 20 anos, me desentendi e me decepcionei com
algumas pessoas, me apaixonei pela qualidade de vida de morar em
uma cidade em que eu podia me locomover a pé. Um dos momentos
mais memoráveis dessa minha estada de um mês na cidade foi ouvir da
minha mãe, pela primeira vez, ao telefone, eu te amo.
A vida é, minimamente, uma loucura. Por vezes, sou tomada por
avalanches e me sinto encurralada. Em outras, percebo que a avalanche
não é feita de neve — e esse gelo todo pode ser um delicioso sorvete e
eu posso deslizar caminho afora. Amo sorvetes. Digamos que eu sou
apaixonada por comer e as metáforas com alimentos são corriqueiras
na minha fala.
Deixemos as aventuras de 2010 para pensarmos as desventuras na
cidade, três anos depois, no frio de julho. Eu amo o inverno. Talvez esse
apreço todo seja por ser temporada do meu aniversário e, claro, férias
escolares. De algum modo, alinhei as expectativas do meu eu criança ao
ficar anos trabalhando em uma escola como professora, o que fez com
que eu curtisse as férias, praticamente, da mesma forma.
2013 foi o ano em que o Brasil pegou fogo. As manifestações de ju-
140
Um mergulho em mim
nho pipocaram por todo o país. 1 milhão de pessoas chegaram a ocupar
as ruas de São Paulo para protestar contra os atos de violência contra
civis e jornalistas, cometidos pela Polícia Militar. Não só o País estava
em chamas, mas meu coração também. Dramática? Um pouco.
No mesmo mês, eu havia finalizado um relacionamento abusivo que
durou cinco anos. Eu demorei alguns meses para formatar o que eu vivi
sob a égide dessa nomenclatura. Aprendi com uma das pessoas mais
admiráveis que eu conheço, que ao verbalizarmos sentimentos e processos
tão íntimos, acabamos por nomeá-los e, muitas vezes, torná-los
estáticos. Eu tive muito medo da transformação — todo esse furacão
em palavras me parecia uma forma de sacralizar a dor e a frustração.
Me sentia envergonhada por ter vivido aquilo, por me permitir passar
por isso.
O que as pessoas podiam dizer? Será que elas já sabiam? Por que eu não “me
dei ao respeito”? E se ele quiser se vingar de mim? Se ele quiser me processar
por dizer que foi abusivo? Foi um relacionamento abusivo mesmo sem ele ter
me batido? As questões rodopiavam em uma dança perversa na minha
mente. Foi absorta nesses pensamentos,que voltei a mi Buenos Aires querido,
buscando um novo fôlego.
Pois bem, era final de junho de 2013 e o inverno ainda não tinha se
instaurado em terras portenhas, de fato. As emoções começaram logo
no avião, quando durante os meus esforços para cochilar, retomei mentalmente
as tarefas que eu deveria realizar antes do embarque e me dei
conta da minha primeira turbulência da viagem: esqueci de sacar dinheiro.
Como alguém esquece de levar dinheiro vivo para uma viagem?
Não sei. Eu tenho tantas habilidades quem nessa altura do campeonato,
nem me surpreendo mais. Tranquilizei-me, pensando que, chegando lá
eu daria um jeito. O que importa é a fé, não é?
Consegui cair no sono e a voz da comissária de bordo no alto-falante
me acorda. Estou confusa. Será que estou entendendo direito? Aterrissamos
no aeroporto de Ezeiza e me deparei, pela primeira vez na vida,
com uma greve de carregadores de mala. Segunda turbulência de viagem.
Eu já conhecia bem a prática de defesa de direitos dos argentinos.
No mês em que morei na cidade, vi as ruas repletas de manifestações,
piquetes e cartazes. E lá estava eu, em meio a um paro argentino. Foi
dada a largada para a confusão. O meu celular, praticamente sem bate-
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ria, teve ajuda de um carregador emprestado por uma jovem solidária
no aeroporto. Não resolveu: eu não conseguia fazer ligações. Dei um
jeitinho para usar o orelhão e avisar a hospedagem que eu atrasaria um
bocado. Isso resolvido, lá fui eu entender as medidas a serem tomadas
pela companhia aérea e, na imprecisão das informações, decidir esperar,
nem que fosse madrugada afora, as malas serem liberadas.
Passadas três horas, consegui pegar a minha mala e seguir para minha
hospedagem. Depois disso, eu nunca mais despachei bagagem e
aprendi o significado de viajar leve, usando apenas uma mala de mão.
Reservei uma cama em um albergue simples da cidade, no bairro da
Recoleta, um dos representantes da classe média alta de lá. Logo quando
cheguei, fiquei confusa com a entrada e, mais ainda, quando não
percebi o elevador e tentei levar a minha mala gigantesca escada acima.
O recepcionista, um fofo, veio ao meu auxílio.
Ele me deixou fazer o check-in no dia seguinte. Afinal, eu precisava
arranjar o dinheiro, mas não contei a ele. A gentileza foi por conta do
avanço do horário e o meu cansaço. Fui para o quarto e foi uma das
noites mais frias que já passei. A pior foi o acampamento que realizei
em uma comunidade indígena, mas eu conto essa história em outro
momento. Em meio à escuridão, fui ao banheiro e pisei em algo gelado
e viscoso. Não dei bola; no dia seguinte percebi que a minha roomate
havia vomitado na porta do banheiro. Acordei e não havia água quente
no quarto. O frio se devia ao aquecedor desligado. Terceira turbulência
de viagem (ou quarta)?
Tomei um café da manhã com um pãozinho duro e uma porção de
doce de leite. No rádio — sim, no rádio — tocava Juanes.
Y para tu amor que es mi tesoro, Tengo mi vida toda entera a tus pies.
Eu não sabia bem o porquê de estar ali; minha angústia aumentava
em cada passo dado em falso.
Y para tu amor que me ilumina, Tengo una luna, un arco iris y un clavel.
Era uma das minhas músicas preferidas, na minha cidade preferida
na vida e com uma sensação de humilhação engasgada na garganta.
Ao fim e ao cabo, eu sabia que a minha dor era a minha libertação. Eu
precisava viver isso.
Saí emburrada de lá, à procura de um locutório. Eu precisava avisar
à minha mãe que eu estava bem. Para quem não a conhece, ela sem-
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Um mergulho em mim
pre me pede que eu ligue ou envie uma mensagem, avisando como
estou — e sempre acrescenta uma ameaça à conversa. Fui ligar pra ela,
com as minhas moedas contadas, e explicar a situação. Ela me sugeriu
mudar de hospedagem, ao que eu achei uma ótima ideia e pensei em
buscar no site que eu tinha visto ao regressar ao albergue. Me perdi na
volta e fui parar no centro da cidade, na calle Florida para ser mais exata.
Esqueci da obviedade de que eu estava sem dinheiro e fiz algumas compras
no cartão de crédito, ao que o meu cartão na terceira ou quarta
transação recusou a funcionar. Quinta turbulência de viagem. Eu não
tinha avisado à operadora de cartão.
Aviso viagem? Eu não fazia ideia do que era isso em junho de 2013.
Hoje em dia, está na minha lista de afazeres pré-viagem, por mais que
eu só o leve para emergências. Ligações de telefone, depois, em um locutório,
eu descobri que, além da falta de dinheiro vivo, eu não poderia
mais usar o cartão, pois ele havia sido bloqueado e só seria liberado
quando a fatura fechasse. Ou seja: eu já deveria estar no Brasil, de acordo
com a data. Mas como voltar, se eu não tinha dinheiro mais nem
para pegar uma condução? Que angústia e que erro!
A minha tentativa de performar como a personagem principal de
Comer, Rezar e Amar estava indo por água abaixo. De fato, não tinha
como eu me reencontrar daquele jeito. Caos dentro e fora de mim. A
minha solução, dada por um amigo colombiano, foi a de pedir que a
minha mãe me fizesse uma transferência em dinheiro.
Estava decidida a sair do albergue em que eu havia me hospedado.
Não tinha nada de vida noturna como eu pensava, estava dividindo o
quarto com uma senhora brasileira que havia vomitado na noite anterior,
o café da manhã era ruim, não havia água quente nem calefação.
Foi quando eu subi as escadas da recepção, um tanto quanto emburrada
com os meus erros, dei de cara com ele.
Havia trocado o turno do recepcionista e aquele sorriso me fez acelerar
o peito. Era só o que me faltava. Conversamos e eu me perdi no
sotaque portenho. Decidi que talvez, quem sabe, fosse uma boa ideia
permanecer ali. Foi o que disse à minha mãe ao telefone. Eu sou boa
de conversa e foi o que fiz.
Como a vida era uma loucura, me envolvi na paixonite mais louca.
Todos os detalhes fazem a história se assemelhar a mais um exemplar
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das novelas da Talia nos anos 1990. Durou uma semana.
O que seja eterno enquanto dure esse amor teve o gosto amargo de ser um
homem casado.
No último dia que nos vimos, ele me levou a um bairro que eu não
conhecia. Entramos em uma basílica para conhecer. Desabei a chorar,
aos soluços silenciados. As questões pipocavam na minha mente
aos borbotões. O que seria de mim dali pra frente? Como caminhar de cabeça
erguida? A minha boca amargava por ter sido traída e eu tinha sido A
Outra por uma semana. A minha angústia era por ter carregado um
relacionamento abusivo e opressivo por tantos anos.
A minha paixonite hermana me acolheu e me levou para tomar um
café com medialunas e manteiga. Ele perguntou se eu estava bem. A sua
preocupação era se as minhas lágrimas tinham a ver com o fato de não
nos vermos mais ou pela esposa dele. Ai, a arrogância masculina! Eu expliquei
a ele que voltar pra minha cidade era um retorno à construção
de mim mesma.
A minha versão portenha-brazuca de Comer, Rezar e Amar, tinha sido
concluída entre lágrimas e alfajores. Aprendi ali, na cidade que mais me
dá saudade e vontade de voltar, que viajar não resolveria minha angústia.
Fugir dos problemas jamais se viabilizaria porque eu levaria eles
comigo, fosse qual oceano eu pisasse.
Quando deixei Buenos Aires no início de julho, eu não imaginava
os meandros da vida que me levariam de volta para lá em dezembro do
mesmo ano. Eu fui embora cantarolando Piazzolla, com a consciência
de que, pela dor e pelo amor, eu deveria mudar.
E mudei.
Prefixo Editorial: 66961
Número ISBN: 978-65-991598-0-0
Título: Coletânea “ELAS nas Letras”
Tipo de Suporte: Papel
Essa obra foi impressa
em Triplex Supremo LD Branco 250 g/m2, Orelhas: 40 x 70mm,
4x0 cores (CAPA) e em Polen Soft Creme (MIOLO), pela