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BARRETOS EM 3ª PESSOA

Essa é uma obra sobre a cidade. Sobre o seu passado. Aqui, a cidade, Barretos, substantivo próprio, ganha novas roupagens, inclusive na gramática. Ela passa a ser o assunto em comum e a referência em quem todos os autores se debruçam; a 3ª pessoa – “ela”. Independente da natureza dos textos e da origem dos autores, a ideia é que os leitores, especialmente os barretenses, tenham a chance de visualizar a paisagem da cidade nos tempos idos, em diferentes décadas.

Essa é uma obra sobre a cidade. Sobre o seu passado. Aqui, a cidade, Barretos, substantivo próprio, ganha novas roupagens, inclusive na gramática. Ela passa a ser o assunto em comum e a referência em quem todos os autores se debruçam; a 3ª pessoa – “ela”.

Independente da natureza dos textos e da origem dos autores, a ideia é que os leitores, especialmente os barretenses, tenham a chance de visualizar a paisagem da cidade nos tempos idos, em diferentes décadas.

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SADA ALI

doente. Eram os tempos!

Quem era mais doce? A bebida ou o seo Américo?

A comitiva seguia pelo estradão, rompendo um sem fim de terras cercadas por mourões de

pau e arame. Tropa e gado num regurgito de pó, sombras e cores. O berrante ecoando pelas planícies e

vales e a boiada avançando lentamente, cortando extensões descampadas, cruzando vilas e pequenas

cidades separadas por quilômetros de beleza campestre.

Um boi burla a vigilância, galga a cerca rompida e some na mata ao redor. Ao sinal de perigo, o

ponteiro infla o peito, a boca enche e espreme o ar em suspiros, dando tom e ritmo ao vento soprado

no chifre curtido. O toque do berrante avisa a tropa; o rebatedor parte ao encalço do fujão. Momentos

de caça e o ruminante retorna, num destino tangido, rumo ao matadouro. Couro branco, ‘ouro branco’,

como repetia Coronel Bartolomeu, lá pelos fins-do-mundo das terras do seu domínio. ‘Meu ouro

branco’ – dizia, num rompante de orgulho de fazendeiro nobre e abastado, dono de terras herdadas

dos ancestrais; léguas espoliadas dos verdadeiros senhores do lugar. Ofuscados pela fuligem da poeira

da estrada, entre nuances verdes, azuis e tons da terra, o ouro branco mesclava-se, indo longe,

perdendo-se de vista naquela opulência única de carne, couro e patas, a encher ainda mais os ricos

bolsos do invasor. Pairando acima dos pensamentos e inquietações de cada homem, uma revoada de

nhambus recortava, em sombras, o ritmo lento da tropa.

Às tardes de sol incandescente sobrepunham-se noites enluaradas, argentando tudo ao redor,

refletindo na malemolência dos corpos cansados da lida da boiada. A comitiva recuperava as forças

num repouso pela vida, enquanto boiada rompendo estradão ao encontro da morte. Vida de gado!

Ao alvorecer, o orvalho no capim, café no bule e tropeiros prontos para a partida. O cozinheiro, já

distante com suas trempes, panelas de ferro e parafernálias presas às cangalhas, em movimentos

contínuos até a hora do novo pouso, sempre próximo a um açude; um ponto de água para a lida na

cozinha. Ah, as mulas! Rabos trançados em rodilhas, numa exibição de delicadeza, persistência e resistência,

impondo ritmo e vencendo a quase totalidade dos quilômetros que separavam a fazenda do

coronel Bartolomeu, do frigorífico da cidade de Barretos. Três meses cortando o estradão, vencendo

paisagens inóspitas e as variações do tempo da natureza. O gado, mais magro e afeito ao ritmo tangido

de viagem, necessitaria ser alocado nas invernadas para engorda. Após esse tempo, seria levado

ao abatedouro, à Companhia Frigorífica e Pastoril, primeiro frigorífico do país. E, naquele ritmo de

viagem, na manhã seguinte adentrariam o corredor boiadeiro, última etapa até Barretos, onde, sem

sons, enfileirados em trincheiras, teriam as carnes dependuradas, varais de açougue, prontas para

o comércio. Um princípio de piedade envolve a comitiva, desenlace dos últimos meses de convívio

junto aos animais, dicotomia entre a vida e morte prestes a ocorrer. A viagem, já se tornando uma

imagem-miragem, mesclando poeira, sol, mugidos e sangue.

A barriga roncando sinaliza o tempo de repouso. O cozinheiro ‘queimara o alho’ e o feijão tropeiro,

arroz carreteiro, paçoca de carne de sol estavam de lamber os beiços. Deleitam-se ao primeiro

bocado e a boca saliva satisfeita em resposta. Cospem a saliva excedente, levantam-se e seguem na

ronda ao redor do acampamento.

A noite passa lentamente, tendo por companhia o bule de café, os mugidos dos animais, o luciluzir

dos pirilampos, o coaxar insistente de alguns sapos numa lagoa próxima, o sobrevoar de uma

coruja solitária. Aos que dormiriam no primeiro turno, um gole da cachaça do alambique, bebida nas

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