BARRETOS EM 3ª PESSOA
Essa é uma obra sobre a cidade. Sobre o seu passado. Aqui, a cidade, Barretos, substantivo próprio, ganha novas roupagens, inclusive na gramática. Ela passa a ser o assunto em comum e a referência em quem todos os autores se debruçam; a 3ª pessoa – “ela”. Independente da natureza dos textos e da origem dos autores, a ideia é que os leitores, especialmente os barretenses, tenham a chance de visualizar a paisagem da cidade nos tempos idos, em diferentes décadas.
Essa é uma obra sobre a cidade. Sobre o seu passado. Aqui, a cidade, Barretos, substantivo próprio, ganha novas roupagens, inclusive na gramática. Ela passa a ser o assunto em comum e a referência em quem todos os autores se debruçam; a 3ª pessoa – “ela”.
Independente da natureza dos textos e da origem dos autores, a ideia é que os leitores, especialmente os barretenses, tenham a chance de visualizar a paisagem da cidade nos tempos idos, em diferentes décadas.
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RETALHOS DO PASSADO 167
tempo de vida em comum, dos inúmeros filhos nascidos, o mascate decide
fixar o comércio ambulante nessa casa do início da narrativa — a da Rua 4.
Ali, com o pequeno comércio e a lida materna na rotina do lar, encaminham
os filhos aos estudos que a eles fora negado. A mãe tentara estudar
numa escola pública, a léguas de distância da fazenda onde residiam,
atravessando porteiras, pulando cercas, cruzando pastos sob a força do sol,
chuva, frio. Seu sonho era se tornar uma PROFESSORA — repetido, assim,
PROFESSORA, enchendo a boca para falar. A vida a permitira seguir apenas
até o terceiro ano. Algo semelhante acontecera ao imigrante que, ainda com
menor conhecimento que a esposa, aprendera apenas a escrever números;
nenhuma letra, NADA. Todas as suas clientes eram donas Marias, mas seu sorriso,
sereno e humilde, era cativante e conquistava a confiança sem precisar
escrever sequer uma letra. Era um tempo onde a palavra dita valia a vida,
onde se vendia fazendas sem cartório, sem papéis, pela honra do nome. O
caráter era moldado no olhar dos pais e o fio do bigode lavrava sentenças.
Nesse quintal que parecia tão imenso florescia o abacateiro, mangueira,
goiabeira, bananeira; o persistente imigrante insistia em colher produtos
da estação: milho, que era servido assado na brasa, em bolos, pamonhas e,
para acompanhar, o arroz e feijão; plantava também verduras, que davam
gosto de se ver e comer. Ali florescia alho, couve, alface, cenoura, numa variedade
de canteiros preparados por ele que, até hoje, persiste na memória
dos que o viram. Braço na enxada cavoucando a terra, numa prova de determinação
e resistência: braço-cavouco-enxada-terra, em sucessivas enxadadas, até
compor aquele belo e bucólico cenário de cores, sabores, vida.
Monet não pintaria cena mais bela!
Numa das laterais da casa, uma cerealista, ou como diziam, máquina
de fazer arroz: era sempre uma alegria ver a máquina limpando o cereal —
de um lado arroz, do outro a casca. Que avanço em tecnologia! Era inspirador!
Aquela parede alta fornecia a sombra necessária para o cultivo da bela
e variada horta. Na outra lateral da casa, um terreno baldio, muito extenso
que recortava a quase totalidade esquerda do quarteirão, um terreno onde o
mato, as árvores, cresciam desordenadamente. Bem ao fundo, num cantinho
minúsculo vivia o seo Américo, um antigo boiadeiro que, tendo vivido a lida
das comitivas, já cansado e mais idoso, fixara residência naquele pontinho
de areia, num mar de oceano chamado Terra.
Dizem que quem bebe das águas de Barretos não se esquece jamais...
Seo Américo era contador de histórias, ele próprio era a história. Chapéu,
botas, calças rancheiras, cabelos encarapinhados e brancos, com bigode
também branco contrastando com a cor preta da pele e o berrante, seu único
bem em toda essa terra. Seo Américo, além de contador de histórias, pagava
guaraná — pra alegria da criançada, que só bebia do líquido quando estava