17.08.2020 Views

BARRETOS EM 3ª PESSOA

Essa é uma obra sobre a cidade. Sobre o seu passado. Aqui, a cidade, Barretos, substantivo próprio, ganha novas roupagens, inclusive na gramática. Ela passa a ser o assunto em comum e a referência em quem todos os autores se debruçam; a 3ª pessoa – “ela”. Independente da natureza dos textos e da origem dos autores, a ideia é que os leitores, especialmente os barretenses, tenham a chance de visualizar a paisagem da cidade nos tempos idos, em diferentes décadas.

Essa é uma obra sobre a cidade. Sobre o seu passado. Aqui, a cidade, Barretos, substantivo próprio, ganha novas roupagens, inclusive na gramática. Ela passa a ser o assunto em comum e a referência em quem todos os autores se debruçam; a 3ª pessoa – “ela”.

Independente da natureza dos textos e da origem dos autores, a ideia é que os leitores, especialmente os barretenses, tenham a chance de visualizar a paisagem da cidade nos tempos idos, em diferentes décadas.

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.




A quem, pela graça da memória,

tem a oportunidade de estar vivo

enquanto acesa estiver

a chama do lembrar


Copyright © Editora Pirapora

Coletânea Barretos em 3ª Pessoa

Realização: Prefeitura de Barretos e Academia Barretense de Cultura

Coordenação do projeto: Karla de Oliveira Armani Medeiros

Revisão/Edição: Luiz Felipe Nunes

Composição Eletrônica: Pirapora Editora/Karlos Mozzambani

Impressão: Ativa Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Barretos em 3ª pessoa / organização Karla de

Oliveira Armani Medeiros. -- 1. ed. --

Monte Alto, SP : Pirapora Comunicação e

Estúdio Fotográfico, 2020.

ISBN 978-65-991598-1-7

1. Barretos (SP) - História 2. Cidade - Barretos

(SP) - História 3. Fotografias 4. Literatura -

Coletâneas

5. Memórias I. Medeiros, Karla de Oliveira Armani.

20-41444 CDD-981.522

Índices para catálogo sistemático:

1. Barretos : São Paulo : Cidade : História 981.522

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

A responsabilidade pelo conteúdo desta coletânea é reservado à

Prefeitura de Barretos e aos autores dos textos.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob

quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos autores.

2020

Editora Pirapora

Rua Jeremias de Paula Eduardo, 2006 - Centro

15910-000, Monte Alto, SP

(16) 9.9709.1146 - piraporaeditora@gmail.com



Fragmento de vista aérea de Barretos, de 1969.

(arquivo Museu Histórico Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”)

Livro publicado em comemoração aos 166 anos de Barretos!

25 de agosto de 2020.

Uma parceria entre Prefeitura Municipal de Barretos e

Academia Barretense de Cultura.

GUILHERME ÁVILA

Prefeito Municipal de Barretos

JOÃO BATISTA CHICALÉ

Secretário Municipal de Cultura

JOSÉ ANTONIO MERENDA

Presidente da Academia Barretense de Cultura

KARLA DE OLIVEIRA ARMANI MEDEIROS

Organizadora da obra e

coordenadora do Núcleo de Estudos Históricos da

Academia Barretense de Cultura

LUIZ FELIPE NUNES

Edição final e montagem

EDITORA PIRAPORA

Produção geral da obra


“Que tipo de ideia podemos fazer de uma

época se não vemos pessoa alguma nela?

Se só pudermos fazer relatos generalizados,

vamos apresentar apenas um deserto que

chamamos de história”.

Huizinga, século XIX

Populares reunidos na Praça Francisco Barreto, em frente ao Paço Municipal

(arquivo do Grêmio Literário e Recreativo de Barretos)


“Há que se

reverenciar e defender

as capelinhas toscas,

as velhices dum tempo

de luta e os restos de

luxo esburacado que o

acaso se esqueceu de

destruir”

Mário de Andrade

Capela do Rosário, em 1929 (arquivo do Museu “Ruy Menezes”)


S U M Á R I O

Apresentação

Guilherme Ávila

Prefeito de Barretos PG 11

Prefácio

José Antonio Merenda

Presidente ABC PG 12

Introdução

Karla Armani Medeiros

Organizadora da obra P G 14

Nossa Biblioteca Pública de

Barretos Affonso (...) Taunay

Adalgisa Borsato PG 28

Minha Barretos:

O ser-tão profundo

Adonias Garcia PG 34

FEBAMPO

Alciony Menegaz PG 40

Jorge Andrade: Cultura, família e

história em suas obras

Ana Cláudia Ávila Mader PG 44

Uma lembrança feliz

Aparecida Rosa Moro Carneiro

PG 49

Ser criança em Barretos nos anos

80: memórias dos tempos (...)

Aurimar de Freitas Figueiredo

PG 52

Dr. Osório Faleiros da Rocha

Chamissi Zauith

e Maria Eugênia Rocha Nogueira

PG 56

Pinceladas em recortes:

A Primeira Capela

Conceição Apparecida Ribeiro

Borges PG 61

Sociedade Beneficente e

Recreativa Estrela D’Oriente

Coriolano José Neves PG 65

Os italianos em Barretos

Daniel Bampa Nétto PG 71

Recinto “Paulo de Lima Corrêa”:

Mosaicos de uma história

Elisete Greve Tedesco PG 75

Coronel João Carlos de Almeida

Pinto - vulto notável (...)

Gerson Aparecido Rodrigues

PG 81

Luiz Caros Arutim

José Antonio Merenda PG 87

Nidoval Reis e a destruição do

1° Grupo Escolar de Barretos

José Ildon Gonçalves da Cruz

PG 93

O bairro industrial do Frigorífico

Vila Operária

José Mesquita PG 98


S U M Á R I O

Bezerrinha: setenta anos

José Vicente Dias Leme P G 103

Elas, de Barretos!

Karla Armani Medeiros P G 109

Sobre uma Rocha criou-se a FEB,

hoje UNIFEB

Luiz Antônio Batista da Rocha

P G 114

A colônia japonesa e sua

importância em Barretos

Luiz Umekita PG 118

A Venda, os peões, a boiada e a

Igrejinha do corredor boiadeiro

Manoel Nunes Filho PG 123

Filetagem: a Arte dos caminhões

de boi

Marcos Diamantino PG 127

Alguns Apontamentos de

Trajetórias Pretas em Barretos

Michela Silva PG 131

Verí, Verídica, Verdadeira:

Veridiana

Mussa Calil PG 136

Minha Barretos nos anos 60

Newton Teixeira da Silva PG 140

Histórias (e novas histórias) (...)

Nivaldo Gomes e Nivaldo Gomes

Jr. P G 145

O emblemático episódio do

Trem da Fome

Patrício Augusto dos Santos Reis

PG 150

A classe operária em Barretos:

algumas considerações (...)

Priscila Ventura Trucullo P G 154

Museu Ruy Menezes por ele

mesmo

Raquel Milagres de Mattos

P G 160

Retalhos do passado

Sada Ali P G 164

Se essas paredes falassem...

Shirley Spaolonsi Pignanelli

PG 169

Silvestre de Lima: as multifaces

do personagem (...)

Sueli de Cássia Tosta Fernandes

PG 174

Resenha de um imigrante libanês

em Barretos

Zaiden Geraige Neto PG 179

Mais um pouco de História...

Hino Barretense PG 185

O brasão de Barretos PG 188

A bandeira de Barretos PG 190



Apresentação

E sta é uma obra escrita por quem conseguiu transformar o

amor da nossa terra, Barretos, em memória e em pesquisa. Para

comemorar os 166 anos deste “chão preto”, reunimos trinta e dois textos

com o objetivo em comum de destacar cenários, personalidades

e acontecimentos do passado da nossa cidade.

A estes autores, nossa gratidão em formato de leitura.

Junto à Academia Barretense de Cultura, a Prefeitura Municipal de

Barretos apresenta à cidade e aos barretenses mais uma plataforma

de conhecimento sobre a história de Barretos. Com este livro,

as crianças da rede de ensino poderão se aventurar pelo passado

da cidade junto aos seus professores, da mesma maneira que os

saudosistas poderão reviver paisagens antigas e os demais serão

convidados a refletir sobre essa Barretos tão diversificada em cores

e pessoas.

A terra de Chico Barreto e Ana Rosa construiu uma história fértil, regada

pelo suor da nossa gente e por batalhas diárias que garantiram

nosso desenvolvimento. Desta forma, para se conhecer recortes

deste passado, a História se edifica em monumentos, se dinamiza no

museu municipal e se revela em livros, como este.

Que a história de Barretos esteja sempre em construção, viva

e dinâmica.

Ao virar as páginas, permita-se conhecer uma Barretos longínqua

no tempo, mas próxima de nossos corações.

Guilherme Ávila

Prefeito de Barretos


Prefácio

É com euforia que anunciamos mais uma obra que versa sobre

a nossa história.

Estamos convencidos de oferecer aos diletos leitores e à história

e memória local, uma obra de alta qualidade, que traz à luz

fatos, entidades e personalidades históricas que tanto contribuíram

para o engrandecimento desta terra, tendo a missão de ressaltar os

seus valores.

Fundada a 1º de maio de 1983, por um grupo de 20 abnegados

cidadãos que fez florescer a ABC – Academia Barretense de Cultura e um

despertar para os novos tempos, em reunião realizada na Biblioteca

Municipal “Affonso d’E. Taunay”. Com sede na cidade de Barretos, SP, a entidade

tem por finalidade cultivar a literatura nacional e promover

o desenvolvimento das letras, das artes e das ciências barretenses,

em uma constante irradiação de cultura.

A recém-fundada ABC foi planejada para ser atuante e, sabedora

de seu papel, nunca mediu esforços para dar a sua contribuição

à comunidade barretense. Foi então que, em 1984, o primeiro

presidente da entidade, Dr. Jurandyr Souza, solicitou ao acadêmico

e jornalista Ruy Menezes que escrevesse uma obra sobre a história

do desenvolvimento cultural de Barretos. Foi um trabalho de fôlego:

depois de muita pesquisa e colaborações, o livro estava pronto. “Espiral

– História do Desenvolvimento Cultural de Barretos” foi publicado em 1985

e se tornou uma fonte de pesquisas para historiadores, professores,

estudantes e pessoas interessadas em conhecer Barretos e seus afazeres

culturais.

No transcorrer dos anos, são necessárias releituras dos acontecimentos

e o surgimento de novos historiadores e memorialistas.

Agora, defrontamos com o livro “Barretos em 3ª Pessoa”, que vem colaborar,

trazendo novas nuances da história e memórias, que vêm a

acrescentar em muito ao panorama histórico da cidade, tornando-se

mais um instrumento de pesquisa.


A ABC é um facho luminoso, com o intuito de transformar a sociedade

barretense através de suas ações culturais, como palestras,

debates, saraus literários e artísticos, semanas culturais, exibição de

filmes clássicos, semanas de cinema, exposições de artes, feira de livros,

encenações teatrais, publicações de livros e a realização, desde

1984, do Concurso Nacional de Contos e, como consequência, a produção das

Coletâneas de Contos, ambas as ações literárias provenientes do “Prêmio

Jorge Andrade”.

Saudamos com fervor todas as cultas figuras que ajudaram a escrever

esta obra: acadêmicos e convidados, componentes da Diretoria

e Conselho Fiscal, Núcleo de Estudos Históricos da ABC, a acadêmica e

historiadora Karla de Oliveira Armani Medeiros, coordenadora e organizadora

e seus esforços inequívocos na edição desta obra.

Agradecemos ao prefeito do município de Barretos, Sr. Guilherme

Henrique de Ávila, que confiou a execução deste livro à ABC, cujo

teor é tão relevante para o resgate histórico.

José Antonio Merenda

Presidente da Academia Barretense de Cultura (A BC)


Introdução

Essa é uma obra sobre a cidade. Sobre o seu passado. Aqui, a

cidade, Barretos, substantivo próprio, ganha novas roupagens, inclusive

na gramática. Ela passa a ser o assunto em comum e a referência

em quem todos os autores se debruçam; a 3ª pessoa – “ela”.

Independente da natureza dos textos e da origem dos autores, a

ideia é que os leitores, especialmente os barretenses, tenham a chance

de visualizar a paisagem da cidade nos tempos idos, em diferentes

décadas.

Aqui, a fotografia em preto e branco ou aquela colorida, mesmo

que se distanciem no tempo, são portadoras do mesmo objetivo:

ilustrar os locais, as pessoas e os cenários. As imagens trazem novas

dimensões às narrativas, conduzem a imaginação do leitor aos espaços

de convívio, congraçamento, conflitos, trabalho, produção e de

atividades dos barretenses dos tempos de outrora.

Por mais de um século, a cidade foi descrita e analisada pelo

olhar da História e da Memória. Desde o nascimento da imprensa local,

com o jornal “O Sertanejo”, em 1900, a cidade, com quase cinquenta

anos de fundação oficial, já era considerada como um espaço de

passado interessante e instigante, cujas lacunas começavam a ser

preenchidas. Foi, então, que o jornalista e agrimensor Jesuíno da

Silva Melo deu vida à coluna “Tradições de Barretos”, expondo e

analisando o surgimento do arraial, a família Barreto, os perfis dos

moradores antigos, a paisagem e os recursos naturais.

Rica produção deixou-nos Jesuíno. Depois dele, outros jornalistas

se aventuraram nas páginas da imprensa barretense a fim de

registrar fatos históricos, contar episódios marcantes, rememorar

feitos e ilustrar pessoas. Alguns deles foram Virgílio Alves Ferreira,

Olindo Menezes, José Eduardo de Oliveira Menezes, Ruy Menezes e

Osório Faleiros da Rocha. Estes dois últimos tornaram-se autores de

obras literárias importantes à história da cidade, respectivamente

Espiral: história do desenvolvimento cultural de Barretos (1985) e Barretos de Outrora

(1954).


KARLA ARMANI MEDEIROS 17

Primeiro Paço Municipal de Barretos, inaugurado em 1907. Desde 1979, abriga o acervo do Museu

Histórico Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”, tendo, desde 1994, como patrono, um dos jornalistas

que registrou nossas histórias e costumes (arquivo do Grêmio Literário e Recreativo de Barretos)

Por estes nomes, o passado da cidade foi contado pelo olhar memorialista,

isto é, narrado pelas experiências individuais de seus autores, que

mesclavam suas próprias memórias com dados de pesquisas coletados.

O memorialismo, quando estudado, afirma-se como uma produção literária

que descreve fatos, registra dados, edifica nomes, adjetiva personagens

e, por isso, cria memórias e tradições, contribuindo para o ensejo

da memória coletiva. Não são memórias soltas, e sim narrativas intencionais

e motivadoras sobre o passado. Deste modo, o memorialismo

é considerado uma fértil fonte histórica para a produção de trabalhos

acadêmicos sobre História e todos os ramos das Ciências Humanas. São

obras que precisam ser cuidadosamente arquivadas e utilizadas como

vestígios do passado, inclusive, por conta da grande quantidade de fontes

originais que se perdem ao longo do tempo.

Por outro lado, pesquisas históricas sobre Barretos cresceram nas

últimas décadas, resultando em livros, trabalhos científicos, artigos e teses

acadêmicas. Pelas perspectivas sociais, políticas, culturais e econômicas,

a cidade de Barretos tornou-se assunto destes trabalhos, desdobran-


18

INTRODUÇÃO

do-se em temas que vão além da imaginação de qualquer barretense.

A origem de um bairro, o nascimento da maior festa do peão da

América Latina, greves operárias no primeiro frigorífico do Brasil, a

contribuição dos imigrantes ou a movimentação militar de um levante,

são alguns exemplos de temáticas pertinentes da história local a serem

estudados — muitos, muitos outros caberiam aqui. Afinal, em 166 anos,

Barretos vivenciou períodos históricos desde o Império, característica

que sensibiliza qualquer historiador a investigar seus pontos de conflito,

conquistas e ações.

Nesta perspectiva, surge o conceito de “história local”, em que a análise

do passado se recorta a determinado tempo e espaço de escala reduzida.

Ou seja, estudando a cidade, um bairro ou uma comunidade, em

determinada época, é possível entender as particularidades de um povo,

bem como dialogar com fatos e episódios da história do país e do mundo.

Conhecendo o aspecto local de determinado povo, enxerga-se a realidade

histórica de forma mais próxima, o que permite reconhecer a diversidade

humana, conscientizar a população do exercício da cidadania,

tatear e legitimar identidades, valorizar o patrimônio histórico material

e imaterial e suas leis de preservação, dar importância e utilidade aos

arquivos, museus e bibliotecas e contribuir para a construção (e reconstrução)

da memória coletiva.

Bailarinas em apresentação no Teatro Santo Antônio, onde eram exibidos espetáculos de dança,

música e teatro na primeira metade do século XX. Manifestações do nosso patrimônio imaterial

(arquivo do Museu Histórico, Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”)


KARLA ARMANI MEDEIROS 19

Compreendendo a diferença, o diálogo e a complementaridade entre

a História e a Memória, entende-se melhor o caminho deste livro. Nas

páginas seguintes, deparar-se-á o leitor com textos escritos sob olhares

da pesquisa histórica, assim como das lembranças vividas. É um diálogo

de narrativas sobre o passado. A maneira como cada autor escreve

sobre “ela” — Barretos — é íntima, particular e sem rótulos. Tempera-se

a memória da mesma maneira que se saboreia a História. Os perfis dos

autores são descritos por suas biografias curtas, assim como seus estilos

literários; são historiadores, pesquisadores, biógrafos, professores,

escritores, jornalistas, artistas ou simples amantes do passado citadino.

Os temas foram livremente escolhidos por cada escritor, conforme

suas afinidades, linhas de pesquisa ou lembranças. O interessante é que,

ao leitor atento, oferece-se a sensação de perpassar os diversos tempos

vividos em Barretos. O século XIX está tão presente quanto a memória

de quem vive hoje. É possível conhecer boa parte da história de Barretos

pela sensibilidade das linhas que aqui se sucedem. Página a página,

encontra-se novo recorte, personagem, cenário e espaço. E o mais importante:

tudo real. Nada fictício. Tudo ao alcance da realidade que se

permite a pesquisa da História e a capacidade da memória.

Desfile cívico na Praça Francisco Barreto, em frente ao antigo Paço Municipal. Nota-se a presença de

escolares (inclusive as alunas do Colégio Maria Auxiliadora), atiradores do Tiro de Guerra 512,

autoridades e populares, cujas memórias também são nosso patrimônio

(arquivo do Museu Histórico, Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”)

Tanto quanto as pessoas são os espaços da cidade que essa obra

quer captar. As ruas, praças, igrejas, coretos, instituições, parques, pré-


20

INTRODUÇÃO

dios, casas, templos, trilhos, córregos, rios e todos os cantos e recantos

do “chão preto”. Personagens e lugares que mudam conforme o tempo,

mas, que, cada qual a sua maneira, contribuiu para o desenvolvimento

da antiga “Vila do Espírito Santo de Barretos” à capital do gado e da festa do

peão.

O objetivo, caro leitor, é que seja aberto a você conhecer o passado

da cidade pelas pesquisas e pelas memórias destes autores. Sobretudo,

que você reconheça que, em qualquer época, o tempo é relativizado, que

sempre se tem a sensação de saudade e de afeto não com o passado

em si, mas com as características dela – da cidade. É como eternizou J.

Amaro na citação da contracapa deste livro:

“O Barretos daquelle tempo, rústico e hospitaleiro, é o que vive na nossa lembrança,

é o que não morre na nossa saudação”.

Permita-se conhecê-la: Barretos tem, aqui, parte de seu passado

descortinado.

Karla Armani Medeiros

Historiadora e organizadora desta obra

Edifício da Santa Casa de Misericórdia de Barretos, inaugurado em 1921. Foi demolido na década de 1970

(arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Barretos)


KARLA ARMANI MEDEIROS 21

Praça Francisco Barreto

na década de 1920.

Destaque ao busto da

República, instaurado em

1922 na solenidade do

Centenário da

Independência do Brasil, e

às torres da Matriz

ainda sem o relógio

(arquivo do Museu

Histórico, Artístico e

Folclórico “Ruy Menezes”)


22

INTRODUÇÃO


KARLA ARMANI MEDEIROS 23

1º Grupo Escolar de Barretos, inaugurado em 1912

(arquivo do Grêmio Literário e Recreativo de Barretos)


24

INTRODUÇÃO


KARLA ARMANI MEDEIROS 25

Soldados constitucionalistas de 1932 em frente à sede do

Grêmio Literário e Recreativo de Barretos, na rua 18.

A sede do Grêmio foi transformada no “Estado Maior” do

Batalhão “Júlio Marcondes Salgado”

durante os meses da guerra paulista

(arquivo do Grêmio Literário e Recreativo de Barretos)


26

INTRODUÇÃO

Visita do Presidente da República,

Jânio da Silva Quadros, a Barretos,

em 4 de março de 1961

(arquivo do Museu Histórico, Artístico

e Folclórico “Ruy Menezes”)


KARLA ARMANI MEDEIROS 27

Visita do Senador Washington Luís Pereira de Sousa ao Grêmio Literário

e Recreativo de Barretos, em 1922.

Em 1926, Washington Luís era eleito Presidente da República do Brasil

(arquivo do Grêmio Literário e Recreativo de Barretos

Visita de Getúlio Dornelles Vargas a Barretos, no prédio do

Sindicato Rural Vale do Rio Grande, durante sua campanha eleitoral em

4 de setembro de 1950 (arquivo do Sindicato Rural Vale do Rio Grande)


28

INTRODUÇÃO

Visita do presidente da

República, Ernesto

Beckmann Geisel,

acompanhado de sua caravana

e do prefeito de Barretos,

Melek Zaiden Geraige, durante

a VI ExpoINel, entre 5 a 13 de

março de 1977, no Recinto

de Exposições “Paulo de Lima

Corrêa” (arquivo do Sindicato

Rural “Vale do Rio Grande”)

Saudação exposta em frente ao

Cine Barretos durante a visita do

presidente da República, General

Emílio Garrastazu Médici, a

Barretos, em 1971 (arquivo do

Museu Histórico, Artístico e

Folclórico “Ruy Menezes”)


Essa obra celebra Barretos através

da memória destes viventes,

que pelas

suas trajetórias

também constroem tua

história.

Mergulhe na cidade,

em 3 a pessoa

e muitas épocas, pessoas,

sons, sabores

e VI DA!


Nossa Biblioteca

Pública de Barretos

A

Affonso d’Escragnolle taunay

primeira Biblioteca Pública Municipal de Barretos foi instituída

pelo Decreto-Lei nº 175, de 18 de setembro de 1942, pelo prefeito Fábio Junqueira

Franco. Mas, somente muito tempo depois, ela foi instalada.

Enquanto isto, em novembro de 1941, a Associação Comercial, Industrial e Rural

de Barretos (ACIRB) 1 instaurou a sua Biblioteca, com registro no Instituto Nacional

do Livro, em 13 de agosto de 1943, sob o nº 1293/3, contando com 4.843

volumes, 3 álbuns com fotografias históricas, coleção dos Diários Oficiais do

Estado e da União e todos os jornais que se publicavam em Barretos.

Foram inscritos na galeria de benfeitores da ACIRB, os senhores José

Benevides de Andrade Figueira, Dr. Jerônimo Serafim Barcelos, Gastão de

Castro Leite e Dr. Osório Faleiros da Rocha, sendo este o iniciador e Diretor

da Biblioteca e o maior incentivador desta casa de leitura, aberta ao público

em geral.

Gastão de Castro Leite era presidente da ACIRB e, em visita à capital

paulista, convidou Dr. Affonso d’Escragnolle Taunay, biógrafo, historiador,

ensaísta, lexicólogo, tradutor, romancista, heráldico e professor para ser o

patrono da biblioteca e o homenagear, dando a ela o seu nome. Ele aceitou o

convite.

Conforme o jornal Correio de Barretos, do dia 22 de abril de 1943, Gastão

enviou para a ACIRB o seguinte telegrama:

“João Barone - Associação Comercial - Barretos -

Doutor Taunay aceitou nosso convite patrono nossa

Biblioteca - Saudações - Gastão”.

Adalgisa Borsato

1 Atualmente, Associação Comercial e Industrial de Barretos (ACIB).


NOSSA BIBLIOTECA PÚBLICA DE BARRETOS 31

Na época, Taunay era Diretor do Museu do Ipiranga e alto funcionário do

governo do Estado de São Paulo. Ocupou a cadeira nº 1 da Academia Brasileira

de Letras, tendo nascido em 11 de julho de 1876, na cidade de Florianópolis,

Santa Catarina.

A Biblioteca Municipal, instituída em 1941, foi instalada no suntuoso

prédio do antigo Paço Municipal, às 16h do dia 14 de janeiro de 1963, quando

aconteceu a solenidade de sua inauguração. Nesta data, estavam o prefeito

Cristiano de Carvalho, o tenente Afonso Câmara Filho, sra. Eunice Prudente

de Oliveira, os jornalistas Ruy Menezes e Paulo Bezerra de Menezes, sendo

este último convidado a desatar a fita de abertura. As bênçãos foram dadas

pelo padre Vicente Ramalho Marques.

Também presentes: Maria Aparecida Caruso, Terezinha Maria de Araújo

e altos funcionários da Prefeitura Municipal de Barretos. Durante o coquetel, o

jornalista Paulo Bezerra de Menezes felicitou o prefeito por este ato. O evento

foi irradiado pela Rádio Barretos, na voz de Antônio de Jesus Buck.

O acervo da ACIRB foi doado à Prefeitura com o trato de que permanecesse

o nome do Patrono. Esse pedido foi atendido, denominando-a Biblioteca

Pública Municipal “Affonso d’Escragnolle Taunay”.

A prefeitura manteve o convênio com o Instituto Nacional do Livro, quando

recebia contribuições em livros, anualmente; também comprava exemplares

e recebia doações expressivas dos munícipes.

O prédio onde foi instalada a Biblioteca se encontra na Praça Francisco

Barreto, avenida 17, nº 311, antigo Paço Municipal, conhecido como “Palácio

das Águias”. Possui uma construção Neoclássica, tendo duas águias na parte

externa ao alto do prédio. Na época da instalação, era assim: na entrada,

pequena escada nos conduzia ao grande salão, em pisos de tábuas envernizadas,

janelas altas, envidraçadas. Havia uma separação entre o público e

os funcionários, delimitada por um balcão em madeira torneada; belíssimo.

Mesas antigas e estantes de livros; escrivaninhas para o leitor. No subsolo

do prédio havia uma área reservada ao escritório.

No primeiro quadro de funcionárias, a Biblioteca teve: a diretora Maria

Aparecida Caruso, as escriturárias Terezinha Maria de Araújo, Vera Lúcia

Garcia de Oliveira e a servente Olga Scaraboto. A diretora Maria Aparecida

Caruso adotou a “Tabela de Classificação Decimal Dewey”, que é um sistema

de classificação desenvolvido pelo bibliotecário americano, Melvil Dewey:

método de classificação de livros que torna fácil o acesso, nas estantes, por

suas subdivisões infinitas.

No dia 11 de agosto de 1975, eu, Adalgisa Aparecida Borsato, passei a

integrar o quadro de funcionários da Biblioteca Municipal, quando a diretora

e Bibliotecária Maria Aparecida Caruso me acolheu e me ensinou os primeiros

passos sobre o funcionamento da Biblioteca.


32

ADALGISA BORSATO

Ela me disse: “o atendimento ao público deve ser prioridade”. Na organização,

consideramos dois pontos: o intelectual, que é a preocupação de

atender o público que vem em busca do conhecimento; e a preparação do

acervo, para criar condições de atendimento. Adquirido o material, deve-se,

em primeiro lugar, registrar ou elaborar o “tombamento”, numerando o livro,

passando a ser propriedade do município. O livro deve ser classificado

de acordo com o assunto, receber o carimbo da biblioteca e, depois, catalogado.

Como exemplo: nome do autor, título, editora, ano da edição, cidade

de procedência. Naquela época, todo trabalho era feito manualmente e em

máquinas de datilografia.

Ficava admirada com a beleza das estantes – em madeira, altas, com

portas de correr, envidraçadas, repletas de livros em língua inglesa, incluindo

a Enciclopédia Mirador Internacional – soube serem provenientes de uma

doação da viúva do professor José Felix Valois de Almeida Scortecci, falecido

em acidente de carro em 13 de junho de 1967.

Tudo para mim era surpreendente! Adorava o contato com os livros,

pois aprendia os assuntos do conhecimento humano.

No dia 16 de agosto de 1978, o acervo da Biblioteca foi transferido

para um prédio na rua 24, nº 1354. Isso porque no majestoso prédio onde

estávamos seria instalado o Museu Histórico, Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”, por

determinação da professora Lídya Scanavinno Scortecci, diretora da Divisão

de Educação, Cultura, Esportes e Turismo da Prefeitura de Barretos. Nessa

época, recebemos mais funcionárias: Clarinda Carvalho da Silva, Carmem

Lucia dos Reis Andrade e Iraci Almeida da Silva.

A Biblioteca permaneceu nesse local por três anos, enquanto era construído

um prédio especialmente para ela, na Praça Francisco Barreto. Projetado

pelo arquiteto Hamer Abrão Geraige, com amplas instalações: uma sala

maior abrigava as estantes de livros e mesas para estudos. Auditório para

palestras e eventos, com poltronas confortáveis. Salas de Diretoria e escritório,

pequena cozinha e banheiros. O prédio, cercado por vidros temperados,

formava um espelho d’água refletido pelos lagos que o circundavam.

Em 7 de setembro de 1981, realizou-se a cerimônia de inauguração, às

20h30, quando a Lira Barretense executou os hinos: Nacional, da Independência

e dos Expedicionários. O vigário da Paróquia do Divino Espírito Santo, padre

Cezar Luzío Junior, deu as bênçãos. Durante a solenidade, discursaram o

prefeito Dr. Mélek Zaiden Geraige e o presidente da Câmara Municipal, Dr. Kalil

Sales. A poetisa Ophonísia Alves de Oliveira declamou versos do seu livro

Olhos D’Alma. Ainda nos ambientávamos ao local quando houve um acontecimento

bastante triste: o falecimento da funcionária Vera Lúcia Garcia de

Oliveira, em 8 de novembro de 1982, deixando-nos enternecidos.

A diretora da Biblioteca, Maria Aparecida Caruso, se aposentou e to-


NOSSA BIBLIOTECA PÚBLICA DE BARRETOS 33

Prédio da Biblioteca Pública Municipal de Barretos, 1981. Arquiteto Hamer Abrão Geraige.

Foto: acervo pessoal

mei posse do cargo de Bibliotecária, por determinação do prefeito Dr. Mélek

Zaiden Geraige, no dia 16 de dezembro de 1982. No documento de posse foi

registrado: “a funcionária recebe esse cargo por direito e merecimento”.

Prometi a mim mesma que tudo faria em benefício da Biblioteca.

Acontecimento importante, no dia 1º de maio de 1983: nas dependências

da Biblioteca, foi fundada a Academia Barretense de Cultura - ABC. Vinte

intelectuais do cenário cultural barretense se reuniram, sob coordenação

dos doutores Jurandyr Sousa e Matinas Suzuki. Os participantes eram escritores,

advogados, médicos, professores, jornalistas, radialistas, engenheiros,

dentistas, músicos e um sacerdote. Unidos pelo mesmo ideal, deram início

à ABC, cujo lema era: “Agrupar cidadãos dedicados à Literatura, às Artes e

Ciências”, para contribuir com a sociedade cultural de Barretos.

Como diretora da Biblioteca, tive o privilégio de assistir à fundação da

ABC e o despertar das letras em nossa querida Chão Preto.

Iniciei as Semanas Culturais da Biblioteca, sempre realizadas no mês

de março, tendo duas datas importantes: 14 de março, o Dia da Poesia e 12

de março, Dia do Bibliotecário e data de nascimento do primeiro bibliotecário

do Brasil, Manuel Bastos Tigre.

Com vasta programação, aconteciam: lançamentos de livros, exposições

de fotos e de quadros, ciranda de livros, teatros de fantoches, peças de


34

ADALGISA BORSATO

teatro adulto, concursos de Conto e Poesia e, principalmente, eventos voltados

para crianças. Sempre com a colaboração de funcionários e de artistas

barretenses. Esses eventos chamavam a atenção do público, despertando o

interesse para a biblioteca e pela Cultura em geral. Criei o Departamento de

Biblioteca Circulante, onde o leitor passou a retirar o livro para ler em sua

residência, havendo um despertar pela leitura e escrita.

Semana da Biblioteca. Lançamento do Livro Eu Garimpeiro, de Zé de Ávila. Presença dos acadêmicos da ABC

Jurandyr Sousa, João Cornélio Perini (de costas), Ruy Menezes, Lauro Lima, Aníbal Rodrigues, Zilda Avila,

esposa do autor e Matinas Suzuki. Foto: Jornal O Diário, 22/03/1986

Continuando a iniciativa da ACIRB, prossegui com o trabalho de arquivamento

dos jornais da cidade, mandando encaderná-los, visando futuras

pesquisas. Atualmente, esses jornais estão no Museu Municipal, também em

processo de digitalização.

Um dia, de 1988, recebi, na Biblioteca, a visita do presidente da Academia

Barretense de Cultura, Matinas Suzuki, que me convidou para pleitear

vaga na Academia.

Disse: “você é a mulher que precisamos na ABC, para nos ajudar com

eventos, devido seu brilhante trabalho na Biblioteca Municipal”. Surpresa

com o convite, aceitei. Mas, como tudo na vida é incerto, em 1990, fui prestar

serviços no Detran de Barretos. No ano de 1997, retornei ao meu cargo


NOSSA BIBLIOTECA PÚBLICA DE BARRETOS 35

de bibliotecária a convite da secretária de Cultura, sra. Léa Therezinha Pitelli

de Sousa Lima.

Tive bastante trabalho para reorganizar a Biblioteca, que possuía

23.000 volumes. No ano 2000, aposentei-me. A biblioteca foi transferida

para um prédio provisório, na avenida 13, esquina da Rua 20, sob a responsabilidade

da bibliotecária Marlene Zaniboni. Com a mudança de funcionamento

do Fórum de Barretos para a Região dos Lagos, a Biblioteca Pública

Municipal foi instalada no prédio à avenida 15, nº 724, em 2012, na gestão

do prefeito Emanuel Mariano de Carvalho, tendo como bibliotecária Sandra

Aparecida Furlan Khatib, que reorganizou a Biblioteca que conta, hoje, com

51.950 volumes.

Atualmente, na gestão do prefeito Guilherme Ávila, outros eventos são

realizados, como: exposições de obras de arte, exposição de livros de escritores

barretenses, feira de troca de livros, rodas de leitura com escolas municipais.

Tem um público diversificado para idosos, deficientes visuais, crianças

e adolescentes. Importante renovação foi a chegada de um computador para

deficientes visuais, com mouse estacionário e leitor óptico.

“A esperança é o que mantém a vontade de algumas pessoas

em persistir edificando e mantendo viva nossa melhor parte:

“o ser cultural que somos”, a nossa Biblioteca”.

Adalgisa Borsato é membro efetivo da Academia Barretense de

Cultura - ABC, cadeira 32. Livros publicados: Rodeio, trilha de campeões,

Vida que nos transforma, A Caminhada, Amor em Preto e Branco,

O Ratinho Sonhador, O Ratinho Detetive no Circo,

Os sapos do vovô Galdino e Os pássaros do vovô Galdino


Minha Barretos:

O ser-tão profundo

N

Adonias Garcia

ão, não é uma definição pejorativa no mundo moderno em que ser

bacana é ser da urbis, chamar uma cidade de sertão pode parecer um insulto,

mas o lugar onde nasci era sertão: a metáfora do profundo, E, se não era

para os outros, era, ao menos, para mim.

Eu nasci numa Barretos que não existe mais — era um lugar mágico

para meu olhar de criança: a rua da minha casa não era asfaltada, não havia

luz elétrica nem água encanada; era tudo tão difícil para os adultos, mas

para as crianças, que levantavam de manhã e brincavam o dia todo em meio

a árvores, plantas e na terra, era um tempo mágico, um espaço do encantamento.

Ainda hoje, 50 anos depois, as imagens das ruas, das árvores, dos

quintais abertos cheios de frutas, do piquete com uma paineira plantada pelo

meu pai em frente à minha casa, da boiada passando em campo aberto ali

no limite da cidade, onde está a rua Sofia Thomé, ocupam os meus sonhos.

A infância nunca morre, nos ensinou a Psicanálise.

Não sabia também que estava vivendo o fim de um ciclo, compreendamos.

Mas antes, leitor, me permita falar de outras coisas e de voltar no

tempo. Primeiro, no meu espaço-tempo mágico: meu pai, Anésio Garcia, era

peão de boiadeiro, dono de uma tropa de burros (os burros eram usados para

conduzir boiadas em longas distâncias porque são mais resistentes que os

cavalos). Também meus irmãos mais velhos eram peões; meu pai também

era comissário, contratado para buscar boiadas em Goiás, Mato Grosso, Minas

Gerais e tantos outros lugares. Minha mãe cuidava da casa, das crianças

e meu pai viajava. Quando ouvi, adulto, os versos de Renato Teixeira “o meu

pai foi peão, minha mãe, solidão”, entendi a vida de minha mãe, de minha família e

tantas outras famílias brasileiras. Ao menos as famílias daquele tempo.

Todos sabemos que Barretos cresceu pautada no comércio de bois, sobretudo

na venda de bois magros e, justamente por isso, muitas comitivas

de outros lugares do Brasil vinham à cidade. Os bois gordos que chegavam


MINHA BARRETOS: O SER-TÃO PROFUNDO 37

geralmente eram buscados pelas comitivas locais. Vê-se que o peão de boiadeiro

era um personagem central nessa história, por ser o condutor de todo

esse gado.

No década de 1950, meu pai havia sido chamado em Barretos de “o

homem da tropa roxa”, por conta da cor de seus animais. Ele contava isso com

orgulho. Falo de minha família porque ela é um meio para entender um pouco

da história de nossa cidade e porque falo a partir de minhas memórias.

Barretos teve, em meados do século XX, talvez o mais movimentado ponto

de pouso do Estado de São Paulo, quiçá do Brasil, o São Domingos, e a vida

de minha família passa por ele, porque minha mãe, Nazaré Carrilho, trabalhava

como babá desde a década de 1930, naquele lugar, para a família que

administrava a fazenda que era propriedade da Agrícola Pastoril Mombaça.

Em 1943, meus pais (meu pai, já peão há anos), se casaram e passaram

a tomar conta da fazenda e do ponto de pouso e isso duraria, não de

forma contínua, até 1960. Lá nasceram meus irmãos mais velhos, Armando

Garcia que hoje cuida do Concurso de Berrantes da festa de Barretos e Alceu

do Berrante, que se tornaria uma lenda do berrante no país. A casa que

meus pais moravam era um casarão daqueles cheios de janelas enormes e

com uma arquitetura rústica; ficava próximo à lagoa da atual Via das Comitivas,

naquela época corredor boiadeiro. A Fazenda São Domingos se estendia da atual

avenida Rio Dalva (também corredor boiadeiro na época), até próximo ao Rio

das Pedras, onde atualmente há um clube. Simbolicamente, a área onde hoje é o

Parque do Peão, fazia parte da fazenda. Em frente (ao casarão) do outro lado do

corredor, havia um sítio e um outro ponto de pouso, onde morava um outro

comissário importante em Barretos, Antônio Ângelo. Nesse tempo (década

de 1940) é que meu pai começou a comprar burros e deixou de ser somente

peão para ser também comissário de comitiva boiadeira.

Me permita, leitor, duas explicações: um ponto de pouso era um espaço

fundamental na logística de uma comitiva boiadeira. Era onde havia um

rancho (nem sempre) para se proteger da chuva e do frio e um pasto para a

tropa descansar e para a boiada ficar; ou, se não havia pasto, havia um jeito,

um espaço que permitia aos peões fazerem ronda. Era também onde havia

água para preparar refeições; a comida era a mais trivial possível, porque

o cozinheiro tinha que ser rápido — às vezes, cozinhava embaixo de chuva.

A segunda explicação é sobre a “Queima do Alho”, o tradicional evento da

culinária boiadeira. No ponto de pouso era onde se fazia a comida e havia

o hábito de se dizer “queimar o alho” que era um tempero que podia viajar

nas bruacas meses sem estragar; portanto, muito usado nas comitivas. Em

Barretos, na segunda Festa do Peão, o comissário Onésio Carvalho, que não

desfilava, mas era muito próximo das comitivas que o faziam, propôs que se

fizesse na festa também um almoço e que se tocasse “uma ponta de boi” para as


38

ADONIAS GARCIA

pessoas terem ideia de como era, de fato, no “estradão”. A ideia não vingou,

mas na terceira festa foi retomada e meu pai foi um dos principais incentivadores,

convencendo vários comissários: no geral, eles achavam difícil e caro;

afinal, pagariam todas as despesas. Enfim, acabou acontecendo, não com a

ponta de boi, só almoço.

A lembrança é estendida, oralmente, até hoje. Participaram, entre outros,

os seguintes comissários: Anésio Garcia, Antônio Ângelo, Zé Meinberg,

Saluzão, João Latão, Tuca Preto, Nego Ângelo, Tim, Geromão, Lindolfo Jota,

Afrânio, Deco de Paula, Etelvino Bráz de Ávila e Gerônimo Machado. A comida

servida era arroz branco, feijão, mandioca cozida, paçoca no pilão e carne

assada. A famosa “Maria Isabel” (arroz com carne seca), que às vezes se fazia

no estradão, só entraria no cardápio junto ao feijão gordo na década de 1980,

depois que Alceu do Berrante viu esse prato em restaurantes do Mato Grosso

e, junto com um grupo de pessoas ligadas aos Clube “Os Independentes”, começou

a fazê-lo em vários eventos, de aniversários a quermesses. Ocorre que, em

1980, o presidente da República da época veio a Barretos e o Alceu fez para

sua equipe essa comida. Por conta do grande sucesso nesse momento e nesses

eventos todos, é que foram acrescentados à Queima do Alho da Festa

do Peão. Vale lembrar que o nome “Arroz a Carreteiro” (ou arroz carreteiro) foi

importado da região Sul do Brasil — lá, esse prato é tradicional.

Eu disse que a minha primeira infância (nasci em 1969) era num fim

de um ciclo: pois bem, com a criação de um frigorífico em Barretos no início

do século XX, houve um mudança na economia do município — nossa região

já era, antes disso, ao que parece desde o final do século XIX, uma região

com boiadas, mas a partir desse momento, até meados do século XX, tornou-

-se um local com cenário e vida muito particular, como um centro da cultura

e da economia boiadeira; as comitivas, então, floresceram e a profissão de


MINHA BARRETOS: O SER-TÃO PROFUNDO 39

peão de boiadeiro teve um papel, talvez, único na história e no mundo: não

só em Barretos, mas pelo interior do Brasil. Mas Barretos era o centro.

Ocorre que o país se industrializou a partir do governo de Getúlio Vargas

e, com o passar dos anos, as estradas de asfalto foram avançando pelo

interior e, nelas, vieram os caminhões. Pois bem: ter uma comitiva boiadeira

a partir da década de 1970, na nossa região, ficou impraticável. Meu pai vendeu

sua última tropa em 1975; o ciclo se encerrava, aos poucos, para todos.

Pode-se dizer que a história não quis ser generosa com o peões de boiadeiro:

aos mais velhos, restou a solidão e o reajuste, trabalhando em atividades

que nem sempre tinham relação com o seu trabalho do passado. Muitos

dos peões mais jovens, que não tinham mais o “estradão” para trabalhar, foram

para as fazendas; mas viria um outro ciclo, a partir dos anos 2000, que

é o da Cana-de-Açúcar, que também tiraria o espaço deles.

A profissão de peão de boiadeiro, cantada e romantizada na música

sertaneja que dá nomes a eventos importantes como a festa de Barretos,

não teve, na realidade, a mesma celebração e foi destruída na nossa região.

Saudosismo? Não. Eu fui uma criança que viu o mundo do seu pai ruir:

não somente a profissão, já que ser peão de boiadeiro não era somente um

trabalho para garantir o sustento; era também um sonho, um posicionamento

na vida. O que aconteceu no interior do Brasil e, particularmente, em

Barretos, deixou de existir; no Pantanal, por exemplo, não existe, em certo

sentido, o peão de boiadeiro: existe o peão de fazenda, que leva o gado de um

local para outro por conta das cheias, mas não tem a mesma dimensão dos

peões que cortavam o país tocando boiada.

No caso da minha família, usamos da arte para não deixar morrer essa

Foto do filme “Rodeio de Bravos – Onde o Chão é o Limite”;

roteiro e direção de Coriolano Rodrigo, produção de Armando Garcia


40

ADONIAS GARCIA

memória, já que, por parte de minha mãe, temos uma vocação artística: um

primo seu, Ozualdo Candeias, foi o criador do “Cinema Marginal” na década

de 1960; meu avô materno, Antônio Candeias, era sanfoneiro dos bons... o

que fizemos? O Alceu do Berrante participou como berranteiro do filme “Mágoa

de Boiadeiro” (1977) com o cantor Sérgio Reis e, com seu berrante, durante todos

esses anos, provoca ecos daqueles tempos passados. Eu me tornei diretor

teatral e dramaturgo e usei da linguagem teatral para refletir sobre essa realidade:

escrevi e dirigi o espetáculo “O Outro Lado da Moeda”, em 1990, um trabalho

que refletia sobre os efeitos humanos desse processo econômico e mostrava

a solidão do peão Sebastião e da sua esposa Tereza diante de um mundo que

os atropelou e tirou sua razão de viver. O Armando, meu irmão mais velho,

em 1979, produziu um filme chamado “Rodeio de Bravos” que contava a história

de um estudante da FEB (Fundação Educacional de Barretos, hoje UNIFEB) que queria

ser campeão em Barretos e, nos preparativos para o rodeio, ele viajava numa

comitiva boiadeira. O filme levou ao cinema um olhar das comitivas da forma

mais original, talvez única no audiovisual brasileiro, já que outras experiências

do cinema e da televisão falharam nesse sentido.

Boa parte do trabalho foi filmada em Barretos e, além do elenco vindo

de São Paulo, de atores como Santoni Santiago, Giselda Beneti, Henricão, Cecílio

Giglioti, entre outros, também participaram várias pessoas de Barretos

e alguns peões. A película foi exibida em centenas de cidades do Brasil, Argentina

e Paraguai. O foco desses trabalhos foi a história do povo da nossa

região, que me parece universal. Um outro irmão, Álvaro Garcia, mantém

viva a comitiva de nossa família, participando do concurso Queima do Alho da

festa de Barretos e outros eventos.

O tempo passou. O bairro onde vivi minha infância se transformou e

não sobrou muito espaço para o verde e para os sonhos. O antigo ponto de

pouso da Fazenda São Domingos também se foi; no lugar onde era o casarão, havia

uma paineira, a mesma da década de 1930 onde peões paravam à sua

sombra. Essa paineira assistiu a primeira conversa dos meus pais, quando

se conheceram por volta de 1941.

No ano 2000, meu pai deu entrevista para um programa de TV embaixo

dela, contando suas histórias e sua importância.

Depois que meus pais morreram, eu já passei dezenas de vezes na Via

das Comitivas; já fui até lá, com meu filho, contar a história de nossa família.

A paineira foi arrancada para se fazer um residencial no local, só que, na

minha imaginação, ela ainda está lá; sua ausência seria a destruição do último

símbolo da história de minha família e, talvez, a morte do último símbolo

da Barretos sertão.

Em 2008, depois de ter sofrido diversos AVCs, meu pai me disse, em

lágrimas, que a última coisa que queria fazer na vida (e que sentia mais sau-


MINHA BARRETOS: O SER-TÃO PROFUNDO 41

dade) era de montar numa mula bem arreada e passar uma tarde embaixo

daquela árvore, da mesma forma quando conheceu minha mãe.

Foi a última vez que conversamos sobre sua história; ele morreria logo

depois, e minha mãe 11 meses após.

A paineira não demoraria a ser destruída.

Agora, o sertão só está no sonho.

À frente, da esquerda para a direita:

Anésio Garcia, Aldo Garcia e Armando Garcia,

em foto da década de 1960

Adonias Garcia é pedagogo formado pela UNESP de São José de Rio Preto.

Diretor de Teatro, estudou Interpretação Teatral no Centro de Pesquisas Teatrais

em São Paulo. Escreveu ou adaptou/dirigiu diversos espetáculos teatrais.

É autor do livro em prosa “O Mito do Caminho de Atman”, pela Multifoco


FEBAM PO

Alciony Menegaz

B

arretos: uma cidade onde a arte sempre recebeu muito incentivo. Digo

isso por experiência própria, pois ainda criança já me apresentava na Rádio

Barretos PRJ-8, no programa infantil, e também em vários outros programas de

auditório, como em inúmeros eventos da cidade.

Depois, na adolescência e juventude, pude participar de grupos musicais

e de teatro, onde vi nascer inúmeros conjuntos musicais que faziam

nossa música ecoar.

No ano de 1968, em que o prefeito era João Batista da Rocha, um

jornalista tomou a frente na organização do Festival Barretense de Música Popular,

o chamado FEBAMPO. Antonio Paulo Flosi, o “Pinduca” como era carinhosamente

conhecido, tomou essa espetacular iniciativa que fez fervilhar o meio

musical da cidade.

Todos queriam mostrar seus trabalhos. Essa grande oportunidade encheu

os corações dos jovens de expectativas e de sonhos.

Fui procurada por uma compositora que vivia no Instituto dos Cegos, Vanda

Cesar, para interpretar sua canção. Seria acompanhada ao piano pela

linda pianista Regina Toller. Os ensaios começaram; foram muitas tardes na

casa da Regina e várias outras reuniões no Instituto dos Cegos.

O FEBAMPO aconteceu no Cine Centenário e, já na semifinal, era um sucesso.

Músicas muito boas, difícil escolha. Vários grupos acompanhavam os artistas;

dentre eles, o conjunto Night and Day.

“Tapera” destacou-se como uma das favoritas, assim como “Fim de Sonho”,

de Carlos Henrique Parise. Depois da semifinal, Carlos Henrique me procurou

e pediu para que eu defendesse sua música na final. Fui várias vezes à

sua casa para aprendê-la; ensaiamos bastante e também a defendi.

A música venceu o Festival e “Tapera” ficou em segundo lugar. Fui a

vencedora do prêmio de “Melhor Intérprete”.

As quatro primeiras colocadas foram gravadas em um compacto duplo,

pela gravadora RCS, de Barretos. Foram elas:


FEBAMPO 43

1º - “Fim de Sonho”, de Carlos Henrique Parise.

2º - “Tapera”, de Vanda Cesar.

3º - “Canto de um Canto”, de Cícero Vasconcelos.

4º - “Tempos de Tereza”, de João Carlos Soares de Oliveira Jr.

A produção do FEBAMPO primava pela excelência na organização e escolha

do corpo de jurados.

Foram convidados nomes importantes do cenário musical como: Maestro

Élcio Álvarez, Matinas Suzuki, Antonio Celso, da Rádio Difusora de São Paulo,

José Vicente Dias Leme, o jornalista Ruy Menezes, Marco Antonio Siqueira

de Matos, Irmã Lenita, Pérsio de Piratininga e outros.

Em 1969, realizou-se o segundo FEBAMPO.

Momentos das 1ª e 2ª Edições do FEBAMPO, de 1968 e 1969 (arquivo autora)

Meu irmão, Cesar Menegaz, havia começado a compor um samba em

homenagem a uma garota que admirava e seu refrão era muito forte:

Isabela: onde está você,

Só de saudade não posso viver.

Mostrou para Carlos Henrique Parise e, juntos, terminaram a música.

Eu logo me identifiquei com ela e já começamos os ensaios, com acompanha-


44

ALCIONY MENEGAZ

mento do nosso conjunto musical, The Kick-Backs.

Novamente, o local foi o Cine Centenário, numa euforia incrível.

“Isabela” venceu e recebi o prêmio de “Melhor Intérprete” novamente.

Em 1970, resolveram mudar o local do FEBAMPO para o Rochão. Montaram

um palco bem alto com um banner enorme atrás, muito bonito!

Só que o clima foi bem diferente, por causa da acústica. Muito eco: o

som reverberava e ficou prejudicado.

Neste Festival defendi duas músicas: “Dois no Balanço”, de João Carlos

Soares de Oliveira Jr., com Cesar Menegaz e, também, uma composição de

Roberto Sanches com Flávia Carvalho, com uma letra linda:

Desfila na rua a alegria do luar

É paz que flutua, é ternura pra sonhar.

Novamente, recebi o prêmio de “Melhor Intérprete”.

O IV FEBAMPO voltou a ser realizado no Cine Centenário.

Momentos das 3ª e 4ª Edições do FEBAMPO, de 1970 e 1971 (arquivo autora)


FEBAMPO 45

Nesta época, eu já estava morando em São Paulo, apresentando-me

na casa de shows O Beco, dirigido por Abelardo Figueiredo. Também já havia

gravado meu disco pela RCA Victor: “Isabela”, música vencedora do 2º FEBAMPO.

Minha irmã, Darkinha, Joana Darc Menegaz, brilhou neste FEBAMPO defendendo

a música “Gota de Orvalho”, de Cesar Menegaz e João Carlos de Oliveira

Jr. e recebeu o prêmio de “Melhor Intérprete” do festival.

Cesar, meu irmão, acordou de manhã, percebeu as gotas do orvalho

brilhando nas folhas de uma planta e sentiu no peito uma saudade imensa

de mim, sua companheira de palco que havia partido para a Capital. Segundo

ele, esse aperto doído fez com que brotasse a inspiração para compor “Gota de

Orvalho”. Quando ele me contou, fiquei muito emocionada!

Nesse IV FEBAMPO fui homenageada pelos organizadores do festival e

recebi um belíssimo troféu das mãos de João Monteiro de Barros Filho, meu

grande amigo, que muito me incentivou a continuar nesta carreira.

O FEBAMPO gerou uma ebulição cultural na cidade, incentivando e revelando

muitos artistas, muitos músicos que contribuíram para o sucesso, para

a beleza deste festival que ficará para sempre na história da cidade.

Posso citar alguns nomes que contribuíram para esse sucesso, revelados

pelo FEBAMPO como: Ajax Fininho, Marcelo Bezerra, João Carlos Soares de

Oliveira Jr., Gamela, que veio de Goiânia com um grupo para participar, Rosicris

Bitencourt, Alni Guimarães, meus irmãos Cesar Menegaz e Darkinha

(Joana Darc Menegaz), Toninho Gabalhero, de Bebedouro e tantos outros...

Para mim, representou um crescimento artístico muito grande, uma

oportunidade de mostrar meu talento, de confraternização com amigos compositores,

conhecendo melhor meus colegas.

Aqui, procurei expressar minhas lembranças, minhas vivências, de

acordo com o que trago na memória. São muitos anos passados, muitos arquivos

perdidos, mas o coração continua vibrando cada vez que vejo uma

foto, ouço uma das músicas, deparo-me com algum comentário sobre esse

fantástico FEBAMPO. Paulo Flosi, meu querido e reverenciado amigo: seu trabalho

e seu empenho ficarão para sempre gravados no coração de cada um

que vivenciou esta época maravilhosa. Você foi um desbravador, um entusiasta,

um realizador de sonhos.

Reverência também à imprensa, às rádios, aos

patrocinadores, à Prefeitura e à toda população barretense.

Alciony Menegaz é filha do Maestro Yolando Menegaz. Desde criança tem

sua vida dedicada às artes como cantora, pintora, apresentadora do programa de

TV “Música & Arte com Alciony Menegaz”, tendo, na escrita, crônicas e poemas

editados em 14 Antologias. É acadêmica honorária da ALAB, acadêmica da ALARP e

membro de vários grupos literários.


Jorge Andrade:

Cultura, família e história

em suas obras

Ana Cláudia Ávila Mader

F

Jorge Andrade em sua casa em São Paulo, onde criava suas obras.

Fonte: Blog do Nilson Xavier – Canal Viva

alar de Jorge Andrade é mais do que falar de um profissional, de um

dramaturgo, de um ícone cultural da cidade de Barretos; é falar também de

um homem que, através de sua obra, impactou a minha vida e de muitas

pessoas.

Sua referência moldou minha história em duas fases: a primeira, profissionalmente,

quando conheci seu trabalho através da obra “Vereda da Salva-


JORGE ANDRADE: CULTURA, FAMÍLIA E HISTÓRIA EM SUAS OBRAS 47

ção”, em 1991, e decidi que era exatamente isso o que eu buscava: a arte

dramática; e, a segunda, afetivamente, quando 17 anos depois, também através

de sua obra, conheci seu sobrinho Guilherme, o homem por quem me

apaixonei, casei e vivi uma linda história de amor.

Aluisio Jorge Andrade Franco, nasceu em Barretos, São Paulo, em

21/05/1922. Filho do casal Ignácio de Lima Franco e Albertina de Andrade

Franco, teve quatro irmãos: Aradir, Amélia, Ademar e a caçula Anna Luiza.

Casou-se em 1956 com Helena de Almeida Prado, com quem teve três filhos:

Gonçalo, Camila e Blandina.

Jorge, desde criança, já demonstrava ser diferente do mundo que o

rodeava. A família pertencia à aristocracia da terra, mas Jorge não se considerava

um fazendeiro; talvez, como dizia em suas entrevistas:

Posso ser um “fazendeiro do ar” na classificação de Carlos Drummond de Andrade.

Os valores da época eram o cavalo, o cachorro e a caça, em um meio

agreste. Era um mundo onde não se conhecia o rádio, a TV e muito menos

a arte; nesse mundo, ele amava os livros, comovia-se com a música, criava

estórias e torcia pela caça.

A “conscientização” de seu trabalho como dramaturgo veio quando foi

assistir a montagem de “Anjos de Pedra”, de Tennessee Willians, no TBC/SP, em

1950. Ele conheceu Cacilda Becker, que transformou seu destino, aconselhando-o

a fazer a Escola de Arte Dramática – EAD, com a finalidade de escrever. Já

no primeiro ano, criou a obra teatral “O Telescópio”, descobrindo-se dramaturgo.

Outro conselho essencial para sua escolha foi quando, em uma viagem aos

Estados Unidos, conheceu o dramaturgo Arthur Miller, que lhe diz:

Volte para seu país, Jorge, e procure descobrir porque os homens são o que são e não o que

gostariam de ser, e escreva sobre a diferença.

Sua primeira montagem profissional aconteceu em 1955, em São Paulo,

no Teatro Maria DellaCosta: “A Moratória”, peça que teve Fernanda Montenegro no

início de sua carreira como atriz, com a direção de Giani Rato.

Suas obras são de conteúdo denso, intenso, ousado, original. Este homem

não corria atrás do apelo popular mais fácil, de agradar por agradar:

ele realmente respeitava a inteligência do público, instigando-o a refletir e a

criar uma imagem própria.

São obras de grandes cenários, movimentações complicadas e muitos

personagens. Mas se não fosse para escrever o que queria, não escrevia.

Para ele, o teatro é onde o homem está sendo representado.

Seus textos evidenciam famílias, culturas e história, como, por exemplo

em “A Moratória”, que enfoca a derrocada do café e o declínio de toda uma

classe patriarcal devido à crise de 1929.


48

ANA CLÁUDIA ÁVILA MADER

Em “Vereda da Salvação”, que retrata um grito de protesto contra a condição

do homem do campo, o problema do messianismo que marca a história do

homem brasileiro, Canudos, o Contestado, a religiosidade popular.

Em “Pedreira das Almas”, outro momento histórico abordado: a Revolução

de 1842, quando se deu a derrota dos liberais para as forças absolutistas na

cidade de São Tomé das Letras, em Minas Gerais, onde a exploração do ouro

havia chegado ao fim.

Seu lado humanista, social, verdadeiro também podemos ver em “A Escada”,

onde a vida de um casal de idosos é discutida pelos filhos que moram

no mesmo prédio.

Jorge é cultura. Jorge é história. Jorge é família.

Apresentação, no Cine Barretos, da peça teatral Vereda da Salvação, com o elenco do Studio

Claudia Ávila de Atores (SCAatores). Foto: Guilherme Franco Mader

Levava cerca de 1 a 2 meses para escrever a primeira versão de uma

peça, pois trabalhava durante o dia e escrevia a noite inteira. Mas o envolvimento

era integral, pois sempre carregava consigo um bloco de notas,

em que anotava palavras e frases onde estivesse: na rua, no meio de uma

reunião, no carro; não perdia ideias que surgiam, e, mais tarde, desenvolvia

a estória. De “Vereda da Salvação” elaborou 9 versões até chegar ao texto final.

Jorge batizava seus personagens com nomes de seu mundo, nomes que

ouvia desde menino, nomes que se repetem em suas obras, como Mariana


JORGE ANDRADE: CULTURA, FAMÍLIA E HISTÓRIA EM SUAS OBRAS 49

em “Pedreira das Almas” e em “Rasto Atrás” e, também Joaquim em “Vereda da Salvação”

e “A Moratória”.

Escreveu para o teatro as seguintes peças: O TELESCÓPIO (1951); AS COLUNAS

DO TEMPLO (1952); A MORATÓRIA (1954); PEDREIRA DAS ALMAS (1957); VEREDA DA SALVAÇÃO

(1958); A ESCADA (1961); OS OSSOS DO BARÃO (1962); O INCÊNDIO (1962); RASTO ATRÁS (1965);

AS CONFRARIAS (1969); O SUMIDOURO (1970); MILAGRE NA CELA (1977); A ZEBRA (1978); SE-

NHORA NA BOCA DO LIXO; O MUNDO COMPOSTO; A RECEITA e SESMARIAS DO ROSÁRIO (sem data)

Livros publicados: MARTA, A ÀRVORE E O RELÓGIO (antologia de dez peças) e LABI-

RINTO.

Novelas para a TV: OS OSSOS DO BARÃO; O GRITO; AS GAIVOTAS; DULCINEIA VAI Á

GUERRA; OS ADOLESCENTES; NINHO DA SERPENTE E SABOR DE MEL, produzidas pela Rede

Tupi, Rede Globo, SBT e Bandeirantes.

Adaptou “Vereda da Salvação” para o Cinema, em 1965, sob a direção de seu

amigo e compadre Antunes Filho.

Suas obras são montadas e publicadas em todo o mundo, e muito produzidas

em montagens acadêmicas e como provas em seleções universitárias;

até mesmo em aulas de História.

Ganhou o “Prêmio Saci” (por três vezes), promovido pelo jornal “O Estado de

São Paulo”, como homenagem aos grandes nomes do teatro brasileiro e “Prêmio

Molière” (também três), concedido aos melhores do teatro; coincidência ou não,

cada filho ficou com uma das estatuetas.

Em Barretos, é patrono da cadeira n° 6 da ABC, Academia Barretense de

Cultura, onde também é promovido o “Concurso de Contos Prêmio Jorge Andrade”,

de âmbito nacional.

Foi homenageado em sua cidade natal, Barretos, por diversas vezes:

• Em 1991, em uma junção de todos os grupos teatrais da cidade, sobre o comando do ator

e diretor Luiz Carlos Arutim; Em 1998, 2000, 2004, 2009, 2012 (Jorge Andrade 90 anos) , 2014 e

2016, todos esses com a produção do “Studio Claudia Ávila de Atores”, convidados e parceiros: ABC,

Secretaria Municipal de Cultura, Grupo Encena de Teatro (Orias Elias), a diretora Regina Papini

(esses dois últimos de São Paulo).

• Em 2012, foi produzido um filme documentário sobre sua obra, com Guilherme Mader como

Jorge Andrade; e uma coletânea de depoimentos falando sobre Jorge, com presenças de sua irmã

caçula Anna Luiza Franco Mader, do primogênito Gonçalo Franco, da atriz Malu Mader e de artistas

e amigos barretenses. Com minha assinatura no roteiro, direção e produção.

Em Barretos, temos dois teatros com seu nome: do Grêmio Literário e Recreativo

e da UNIFEB.

Porém, defendo que sua obra deve ser mais expandida aqui em Barretos,

sua cidade natal, chegando até mesmo a ter um evento registrado no

calendário anual cultural, e, também, aplicado em disciplina escolar, pois

Jorge Andrade é um dos – senão o único – barretense a ter seu nome com


50

ANA CLÁUDIA ÁVILA MADER

projeção internacional na Arte e na Cultura.

Hoje, todos os direitos autorais de suas obras teatrais e de teledramaturgia

estão sob a posse da Rede Globo de Televisão.

JORGE ANDRADE: o homem que criava ouvindo óperas italianas; o pai, extremamente

protetor, que levava os filhos no domingo de manhã na ma tinê

do “Cine Metro”, em São Paulo, para assistirem Tom e Jerry; que amava criar

na sua máquina de datilografar, fumando de piteira e tomando sua dose de

uísque; que amava restaurante italiano e assistir aos jogos de futebol no Pacaembu;

que trabalhava em seu escritório, em um porão, com uma escadaria

repleta de fotos de suas montagens teatrais; que levava o sobrinho Guilherme

para assistir suas aulas na Escola Vocacional em Barretos, quando trabalhava

como professor; que recebia amigos quando morava em sua fazenda, a

“São Luís dos Coqueiros”, em Jaborandi.

Que se foi em 13/03/1984, levando consigo o sonho de escrever sua

última peça teatral: “As Moças da Rua 14”. Sim, a nossa Rua 14, via tradicional e

diferenciada em nossa Barretos, onde suas irmãs, filhas, sobrinhas e primas

viveram, por muito tempo, sonhos e emoções; emoções essas que ele queria,

ah, como queria, retratar em sua última obra.

“Meu mundo, pelo qual sempre lutei, sempre foi o tema principal de tudo que escrevo.

Se não conseguia viver nele nem aceitar seus valores, vivi através das obras escritas, recriando

aqueles valores literariamente. E, é, sendo o que sou como dramaturgo, que provo ter sempre

pertencido a este mundo, como continuo pertencendo artisticamente” (Jorge Andrade).

Ana Cláudia Ávila Mader é atriz, roteirista, diretora e

professora de Teatro e Cinema do “Studio Claudia Ávila de Atores”.

Já produziu, com seus mais de 600 alunos, cerca de 20 peças

teatrais e 25 curtas-metragens ao longo dos

30 anos de carreira, completados em 2020.

Trabalhou no cinema e na televisão brasileira.

Membro da ABC, cadeira 37, do patrono Luiz Carlos Arutim


Uma lembrança feliz

Aparecida Rosa Moro Carneiro

A

paixonei-me por Barretos alguns anos antes de nosso casamento.

Aqui estamos, há 50 anos.

Nesse meio século, quantas recordações agradáveis tivemos, fatos que

nós vivemos e que estão guardados em minha memória!

Poderia escrever um livro preenchido somente de aventuras vividas

em nossa cidade nesses anos, mas deixarei aqui somente uma de minhas

lembranças com nossos filhos quando crianças.

Nessa ocasião, morávamos na Avenida 15 e, após o banho e execução

das tarefas escolares, as crianças, os amiguinhos da rua, eu e também o Scot,

nosso cachorro paulistinha, subíamos até a Pracinha da Primavera (hoje, Praça

“Nidoval Reis”).

A pracinha era nova, as plantas do jardim estavam crescendo, os bancos

ainda inteiros, o coreto sempre com a música alegre da bandinha e também

o chafariz sempre ligado.

As crianças adoravam passar por ele e tomar aquele banho de pingos

de água levados pelo vento.

Na pracinha, vínhamos para brincar de bola, com bicicletas, biroca,

corda, giz para fazer amarelinha. Eu organizava tudo. Começávamos pelas

corridas: eram várias voltas entre as plantas no piso novinho e sem buracos,

completo e perfeito. Com um cronômetro, eu marcava o tempo gasto por este

ou aquele corredor.

Quando o cansaço aparecia, passava-se para outra e mais outra brincadeira,

até que alguém reclamava de fome.

Quem quer lanche do “seo” Getúlio?

Era uma gritaria só! E lá íamos nós para a barraca do seo Getúlio, que

ficava na Rua 16 na lateral da pracinha.

A confusão começava aí: a escolha do tipo do lanche. No final, era o


52

UMA LEMBRANÇA FELIZ

tradicional e gostoso cachorro-quente o mais escolhido.

O cachorro-quente produzido pelo seo Getúlio era perfeito: pão macio, salsicha

quentinha, batata palha, ketchup, mostarda e maionese. Contando também

com sua simpatia: recebia as crianças com braços abertos.

Que delícia! Eu também gostava daquele tradicional cachorro-quente!

A garotada era insaciável! O segundo lanche era pedido juntamente

com a Coca-Cola na garrafa de vidro.

Mais um bate-papo com outras mães que também levavam seus filhos,

mais uns assuntos colocados em dia e eu chamava:

Vamos crianças! Amanhã temos aula. Outro dia voltaremos.

Depois de uma gentil despedida ao seo Getúlio, voltávamos para casa. Então,

um segundo banho e cama, com uma boa noite mamãe e um beijo.

Esta é uma pequena atividade, sem nenhuma repercussão, mas que

exemplifica como era saudável a vida das crianças anos atrás.

Fazer a tarefa do dia após o banho era uma obrigação. Televisão não

era prioridade, mas brincar, sim. E qual o lugar mais adequado nessa época?

A Pracinha da Primavera!

Sempre limpa, a frescura da tarde, muitas crianças, mães, e muita

brincadeira.

Brincadeira coletiva, risadas, competições sem brigas, alegria.

Praça “Nidoval Reis”, antigamente conhecida como Pracinha da Primavera, décadas atrás.

Fonte: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”.


APARECIDA ROSA MORO CARNEIRO 53

E hoje? Que pena! Onde está a nossa bandinha com sua música saudosa

no coreto?

Já não vemos muitas crianças correndo pela pracinha; elas estão conectadas

em outros jogos. O chafariz não funciona. Entendo, economia de

água, com isso eu concordo...

Subo a “16” e olho a barraca do seo Getúlio... mas ele já não está mais

lá. Aquele senhor simpático e atencioso se foi. Os anos de trabalho noturno

pesaram sobre o corpo que se tornou frágil, mas tudo valeu a pena. A

lembrança daquele carismático senhor e de seus famosos lanches ficou na

memória de muitos. Ele cumpriu sua missão.

As crianças de ontem cresceram. São homens, mulheres, mães e pais

trabalhadores e responsáveis. Todos passam pela Pracinha da Primavera e ninguém

se esquece dos folguedos da infância. Distrações que ajudaram a formar

pessoas fortes e humanas.

Tudo aquilo ficou na memória de uma infância bem vivida: brincadeiras,

chafariz e muito cachorro-quente.

Aparecida Rosa Moro Carneiro é escritora, pedagoga e

administradora de empresa. Cofundadora da

SR Embalagens Plásticas, em 1979, onde trabalha até hoje.

É autora dos livros “A Altura do céu” e

“No caminho... histórias para contar”, e vários contos.

É titular da cadeira 9 da Academia Barretense de Cultura


Ser criança em Barretos

nos anos 80:

memórias dos tempos de moleque

N

Aurimar de Freitas Figueiredo

as primeiras lições ensinadas pelos professores de História, estuda-

-se que “História é a ciência que estuda as sociedades humanas através do tempo”, que o principal

objetivo do estudo desta ciência é “estudar o passado para entender o presente e ter

elementos para construir um futuro melhor” e, ainda, que a preservação da memória é

muito importante para o estudo do passado e para que as futuras gerações

valorizem o processo histórico que as fizeram chegar onde estão.

Resgatar um pouquinho do que foi a infância e a adolescência na Barretos

dos anos 80 e 90 a partir das memórias do autor – Sim! Esse que escreve

o presente texto! –, é uma maneira de valorizar e eternizar o cotidiano e as

pessoas – gente simples, que fez e faz a História do Chão Preto no dia a dia.

Se a História estuda o homem em sociedade através do tempo, então

somos produtos – principalmente – das pessoas com as quais se convive. Até

os anos 90, convivia-se com muita proximidade. Naqueles tempos não havia

encontros virtuais: o tempo passava mais devagar, então se aproveitava

mais as pessoas dos círculos sociais mais próximos – a família, a escola, o

clube, a igreja – e elas, certamente, deixaram marcas em todos os outros com

quem conviveram.

Somos produtos uns dos outros, e ter consciência dessa responsabilidade

histórica é extremamente importante para construirmos um mundo mais

justo, livre e feliz.

Era 1984, primeiro dia de aula do Prezinho da EEPG Cel Almeida Pinto.

Acordava-se às 6h30 para chegar na escola às 7h30. Os alunos chegavam

e formavam fila; quem vinha conferir a ordem eram a diretora dona Sinila

Canoas e a professora tia Ilva Daushas. Ao soar o sinal, as crianças andavam

ordenadamente para a sala. Havia ordem, mas o sentimento é o de que

“estávamos ficando grandes, pois já íamos à escola”.


SER CRIANÇA EM BARRETOS NOS ANOS 80: MEMÓRIAS DOS TEMPOS DE MOLEQUE 55

Um dia de aula na Pré-Escola da EEPG Cel Almeida Pinto em 1984: todos atentos à explicação

da professora Ilva Ferreira Daushas. Fonte: acervo pessoal do autor

Todos os dias aprendia-se alguma coisa nova – desenhar, pintar, fazer

“ondinha”, “serra-serra”. Mas o cheirinho da pré-escola do início dos anos 80 era

de álcool. Entre as principais lembranças está o fato de ver as professoras

girando a manivela do mimeógrafo – era mágico para as crianças ver que, de

uma folha, a professora conseguia fazer várias outras iguais.

Em 1984, as professoras Ilva Ferreira Daushas e Carlota Carvalho

Abês eram as responsáveis pela pré-escola: sempre carinhosas, atenciosas

e responsáveis. Talvez tenham sido o motivo pelo qual esse que vos escreve

tenha se tornado professor.

As professoras do antigo Primeiro Grau (atualmente, anos iniciais do Ensino

Fundamental), pessoas importantes para tantos barretenses –. Diva

Marques, a tia Norma, a tia Lidia Muzetti, o sr. Dorival Pires (que veio para o

lugar da dona Sinila) – essa pessoas ensinaram as primeiras letras a tanta

gente que merecem ser lembradas com carinho.

Também merecem lembrança, para além dos professores do Almeida

Pinto, as professoras Edi Salvi Lima e a tia Alice Calil, do Colégio Técnico

“Soares de Oliveira”. A primeira ensinou esse autor a gostar de escrever e a

segunda ensinou a gostar de ler.

Em casa, também havia muito incentivo aos estudos. O interesse pela

leitura, pela História e pelas artes foi muito incentivado pelos avós deste

autor – dona Margarida de Freitas Figueiredo e o sr. Oswaldo Inocêncio Figuei-


56

AURIMAR DE FREITAS FIGUEIREDO

Festa de aniversário na Pré-Escola da EEPG Cel Almeida Pinto em 1984, comemorando a chegada dos seis

anos, com o tio José Cezário e a tia Florinda. Fonte: acervo pessoal do autor

redo (ambos semianalfabetos; por isso davam grande importância aos estudos),

que desde muito cedo me compravam livros – aos 9 anos, a leitura mais

marcante foi a do livro “O meu pé de laranja lima” de José Mauro de Vasconcelos.

Em seguida, outros títulos vieram e outros personagens povoaram a imaginação.

Entre os livros mais importantes estão “A ilha Perdida”, “A Montanha Encantada”,

de Maria José Dupré, “Tita, a poeta”, de Renata Pallottini, “Meninos sem Pátria”,

de Luiz Puntel e, finalmente, “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry.

A leitura do livro “O Meu Pé de laranja lima” me aguçou a curiosidade e o

personagem principal – o menino Zezé, tornou-se um grande herói para a meninada.

É marcante o diálogo de Zezé com seu tio Edmundo: aguçava a imaginação

e fazia a criança querer “ser alguém”; as coisas que o Zezé queria eram

o que as crianças da época queriam – como crescer, por exemplo:

“Você vai longe, Peralta. Não é à toa que você se chama José. Você será o Sol e as

estrelas irão brilhar ao seu redor. Fiquei olhando sem entender e pensando que era mesmo

trongola. - Isso você não entende. É a história de José do Egito. Quando você crescer mais, eu

conto essa história. Eu era doido por histórias. Quando mais difíceis, mais eu gostava. Alisei

meu cavalinho bastante tempo e depois levantei a vista pro Tio Edmundo e perguntei:- A semana

que vem, o senhor acha que eu já cresci?” (In: VASCONCELOS, José Mauro. O Meu Pé de

Laranja Lima. 57. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1987).

A vida de uma criança que vivia no alto da Avenida 21 era soltar pipas,

comprar e soltar bombinhas e busca-pés no bar (escondidos dos pais),

brincar na enxurrada que descia forte naquele alto da 21 em dias de chuvas


SER CRIANÇA EM BARRETOS NOS ANOS 80: MEMÓRIAS DOS TEMPOS DE MOLEQUE 57

intensas, ouvir discos na vitrola, assistir aos desenhos do Balão Mágico,

brincar na rua, andar de bicicleta (“Na calçada!” – conforme clamavam os pais),

comprar doces (balas Chita ou 7 Belo, Paçoquinha, Bandinha); o “dinheirinho”

que os pais davam sempre ia parar nos bares dos saudosos sr. Virley, sr.

Etelvino, na distribuidora de doces do sr. Olinto Bars, ou ainda na padaria

do sr. Orlando Gori (que carinhosamente apelidou esse autor de Presuntinho).

Chegar à Catedral bem antes da missa para ser coroinha também era

uma missão de muitas crianças – o padre Cesar era ídolo de muitos! Era importante

usar a túnica de coroinha e ficar no altar. Após a missa, as crianças

chegavam em casa e ficavam esperando o almoço, pois nos domingos a “boia”

era sempre melhor e tinha refrigerante (durante a semana, quando muito,

havia Q-suco). O refrigerante deixava a comida ainda mais gostosa.

Os sonhos eram ser cantor, ator, médico, juiz, professor, padre. Eram

de uma inocência e sinceridade ímpares! Nas quermesses, gincanas e brincadeiras

de rua não faltavam; “fermento” para a imaginação e criatividade. Na

Praça da Bandeira, defronte ao Almeida Pinto, havia uma linda fonte luminosa.

Ali foram realizadas algumas quermesses, onde cantamos a música “Cowboy

do Amor”, do Balão Mágico:

“Quando monto em meu cavalo e jogo o laço, prendo logo o coração...”.

Tantos fatos e tantas pessoas viriam depois: Eunice de Souza Espindola,

José Antonio Merenda, Ricardo Tadeu Marques, Luiz Carlos Arutin, Adalgisa

Borsato, Milton Ferreira, Luiz Roberto Gomes, Nilton Domingues, Júlio Cesar

Cardoso, mas esse texto precisa findar-se! As experiências dessas pessoas e

suas histórias tornaram melhor a vida desse autor e, certamente, ajudaram

a construir a história da cidade.

Chegamos ao parágrafo derradeiro. Lembranças das coisas e pessoas

que tornaram esse autor uma pessoa melhor – é pra isso que serve a memória.

Aquelas brincadeiras, aqueles costumes... tanta gente viveu daquele

jeito e com aquelas pessoas – que se imortalizaram nos

corações de tantos barretenses, e que, de certa maneira,

também ficam imortalizadas nesse texto.

Afinal, não se faz História sozinho. Por isso, é importante

valorizar e eternizar essas memórias, a fim

de que, a partir dessas vivências, possamos continuar

a ser esse Chão Preto caipira, hospitaleiro e trabalhador.

Aurimar de Freitas Figueiredo é professor de História;

Bacharel/Licenciado em História (2000) e mestre em Serviço Social (2014)

pela FCHS-Unesp/Franca. Licenciado em Pedagogia (2010) pela FISO/Barretos,

atua no teatro amador barretense desde 1990


Dr. Osório Faleiros

da Rocha

Chamissi Zauith e Maria Eugênia Rocha Nogueira

“S

ua obra é um reforço de cidadania”

Nossa intenção é deixar nestas páginas um conhecimento maior sobre

a personalidade do Dr. Osório, sua atuação como cidadão, sua inteligência e

interesse pela historicidade da terra de Chico Barreto, na obra “Barretos de Outrora”.

Em minha lembrança de menina-moça, ouvi várias vezes meu pai referir-se

à notoriedade do Dr. Osório como jurídico e homem público que trabalhou

pelo engrandecimento de Barretos, dedicando-se com esmero às causas

jurídicas que lhe foram confiadas.

Como a vida é cheia de surpresas, tive a honra de conhecê-lo pessoalmente

em 1958, quando fomos colegas de Magistério no Ateneu Municipal.

Homem íntegro, taciturno, discreto, datado de exemplar simplicidade e educação.

Hoje neste texto de coautoria, tenho o prazer de apresentar aos leitores

sua neta: Maria Eugênia Rocha Nogueira, filha de Maria Luiza Rocha Nogueira.

“Osório Faleiros da Rocha – Meu Avô”

Ozorio Falleiros da Rocha nasceu no dia 17 de março de 1885 na atual

Patrocínio Paulista, estado de São Paulo, e faleceu na capital do estado, aos

91 anos de idade (16/04/1976).

Foi o quinto filho dos sete que tiveram Francisco Rodrigues da Rocha e

Ubaldina Elisa do Nascimento. Três morreram ainda crianças, o que o tornou

o único filho homem e caçula, mimado tanto pela mãe como pelas irmãs mais

velhas. Filho de fazendeiro, esperava-se do único herdeiro varão que entendesse

de gado, cavalos e plantações; que fosse contundente em sua maneira

de se expressar, como convinha aos homens daquele tempo que dispunham


DR. OSÓRIO FALEIROS DA ROCHA 59

Osório Faleiros da Rocha e sua esposa Genoveva Franco da Rocha. Fonte: Arquivo do jornal “O Diário”

de terras e empregados.

No entanto, sua natureza era muito mais contemplativa e artística, o

que lhe valeu alguns conflitos com o pai e acentuou seu retraimento.

O contato com os primeiros professores logo lhe devolveu um pouco da

alegria de poder ser quem era. Muito interessado na escola, aprendia rápido


60

CHAMISSI ZAUITH E MARIA EUGÊNIA ROCHA NOGUEIRA

e era elogiado. Essas primeiras experiências positivas provavelmente influíram

em sua disposição para seguir a carreira de professor quando adulto

– de Português e Francês, sobretudo. Além de ter fundado o Externato Faleiros

da Rocha, lutou junto a outros barretenses ilustres pela implantação da escola

média nesta terra.

Veio de Franca para Barretos aos 21 anos, a convite do amigo Vassimon.

Nessa cidade, encontraria a mulher que foi sua companheira de toda a

vida, Genoveva Franco Rocha, ela também filha de fazendeiros. Romântico,

escreveu em homenagem à noiva o poema Gotas de Orvalho.

Repetiu esse modo de versejar em dois outros poemas com o mesmo

nome, escritos quando ele e D. Vevinha completaram, respectivamen te, 50 e

60 anos de casamen to.

Sempre se referiu à esposa

com os adjetivos mais

elogiosos. Nessas cartas, em

que havia lirismo e humor na

narração dos fatos cotidianos,

ele ilustrava as frases com

pequenas figurinhas recortadas

dos jornais, que às vezes

eram verdadeiros achados.

Apreciador da beleza femi

nina, escreveu a Centúria de

Honra, em que fez, em versos,

o perfil de 100 belas barretenses;

a finalidade era obter

renda para construir a escola

de que Barretos necessitava.

Osório teve seis filhos,

todos longevos, com exceção

de uma menina falecida muito

pequena.

Capa do Álbum

“Centúria de Honra”,

publicado em 1930

(Fonte: Arquivo do Museu

“Ruy Menezes”)


DR. OSÓRIO FALEIROS DA ROCHA 61

Amava as crianças. Divertia-se muito com as brincadeiras e mesmo com

as brigas entre seus meninos (dois) e meninas (três). Quando querelavam

entre si, eles tinham a tarefa de escrever o que motivara o desentendimento.

Os bilhetinhos eram postos sobre sua mesa de trabalho. Ao chegar à casa, ele

fechava a porta do escritório e se punha a lê-los. Escondidos atrás da porta,

os filhos ouviam gargalhar com as histórias ingenuamente escritas.

Já adulto, conseguiu realizar o grande sonho de se tornar advogado,

pela renomada Faculdade de Direito do Largo São Francisco, de São Paulo. A profissão

decepcionou-o um pouco: a morosidade da Justiça – e a falta dela em inúmeros

casos, não eram aquilo a que ele tinha aspirado. Mas não deixava de

anotar os casos hilariantes que presenciava no júri. Várias dessas anedotas

estão registradas, algumas em sua autobiografia, Reminiscências, outras nas

crônicas que escreveu muitos anos como jornalista, em Barretos e outras

cidades do interior paulista e, ainda, outras em sua história da cidade que o

acolheu, Barretos de Outrora.

Foi poeta, escritor, jornalista, conferencista, advogado. Amava a música,

tendo criado letras para Marcelo Tupinambá, Carlos Guimarães e Pachequinho.

Foi um avô delicioso, sempre arquitetando brincadeiras, criativo, divertido,

achando sempre muita graça nas invenções infantis. A certa altura,

escreveu Miss Neta, para ser cantado ao som de uma melodia conhecida. No

poema, exaltava as trezes netas, convocando, a seguir, os cinco netos para

fazerem o julgamento de qual seria a mais bela. Uma das netas, filha de seu

primogênito Paulo Franco Rocha, ainda reside em Barretos – Virgínia Junqueira

Franco, casada com Antônio Junqueira Franco.

Filhos (atualmente falecidos): Paulo Franco da Rocha; Uriel Franco Rocha;

Maria Luiza da Rocha Nogueira (casada com Ercy de Mello Nogueira,

pais de nove filhos: Luiza Maria, Paulo Tarcísio, Maria Eugênia, Maria Ignez,

Maria Teresa, Estêvão, Maria Auxiliadora, Pedro Paulo e Francisco de Paula);

Maria Ruth Franco Rocha e Maria Teresa Franco Rocha.

Era extremamente patriota e sempre disposto a lutar pela lei e os bons

costumes. Orgulhava-se de ter participado da Revolução Constitucionalista de

1932, quando já tinha 47 anos. Entre seus amores, contava-se a “última flor do

Lácio”, que ele defendia ferrenhamente contra a introdução dos neologismos

de outras línguas.

Apaixonado pelos livros, dizia que o único volume de sua vastíssima

biblioteca que não conseguira ler chamava-se Grandezas e misérias do nosso futebol,

presente de algum desavisado a respeito de suas preferências.

O lema literário de Eça de Queiroz, autor que ele muito admirava, foi

contínua fonte de inspiração em sua vida:

“Sobre a nudez cruel da verdade, o manto diáfano da fantasia”.


62

CHAMISSI ZAUITH E MARIA EUGÊNIA ROCHA NOGUEIRA

CONCLUSÃO:

Eu não poderia encerrar este texto sem fazer referência à atuação

deste insigne cidadão que muito contribuiu para o engrandecimento desta

cidade, considerado pelos jornalistas da época como um dos melhores no

âmbito nacional.

Previu, na obra “Reminiscências”, que a cidade de Barretos seria incontestavelmente

uma “urbis” destinada a um grande futuro.

Em suas crônicas, relata o panorama geral da cidade no seu cotidiano

em seus múltiplos aspectos.

Na verdade, ele reimplantou a árvore genealógica da história barretense,

demonstrando em seu interior e inteligência o quanto amava Barretos.

Aqui residiu por 60 anos, integrando sua família aos valores cristãos.

A ele devemos honrar e preservar viva sua memória por sua ação

construtiva, agindo como escultor do tempo, deixando-nos um legado histórico

de inestimável valor.

Chamissi Zauith é

pedagoga, mestre em História

PUC-SP, catedrática de História

Geral e do Brasil. Membro da ABC

pela cadeira 30

Maria Eugênia Rocha

Nogueira é psicóloga formada

pela PUC, musicoterapeuta

(Faculdade Musical, PR)

e instrutora Paneuritmia


Pinceladas em recortes:

A Primeira Capela

Conceição Apparecida Ribeiro Borges

N

o arraial dos Barreto e Librinas, nos idos da segunda metade do

século XIX, quase a totalidade de moradores eram advindos de Minas Gerais.

Chegaram por volta de 1830 e construíram aqui sua morada. Tomaram

posse de uma região despovoada de terras férteis e excelentes pastagens. Os

povoados que foram se formando eram quase sempre distantes um do outro

e davam abrigo também a viajantes, mormente tropeiros com suas tropas.

A primeira capela teria sido erigida por volta de 1856, quase uma década

após ao óbito de Francisco Barreto, o velho Chico Barreto. Um templo

tosco, bem como as primeiras casinhas. Tudo parecia erguido como a título

de experiência. Como era de costume se ter uma capela na própria residência,

essa demora parece justificável.

“A primitiva egreja de Barretos erigida sob a invocação do Espírito Santo, foi edificada

por José Francisco Barreto, mais ou menos em 1856, ao pé da actual residência do

Tent. Joaquim Ângelo, defrontando com o velho cruzeiro que ainda ali subsiste para

attestar aos hodiernos a conspícua piedade dos antigos” (Jesuíno de Mello; Artigo: Tradições

de Barretos; jornal O Sertanejo n. 002 de 07.04.1900; pág. 2).

José Francisco Barreto era filho do casal Francisco Barreto e Ana Rosa.

O pé da residência do tenente Joaquim Ângelo localizava-se mais ou menos

no meio da fachada do atual prédio da Associação Rural do Vale do Rio Grande; portanto,

a área ocupada por essa primeira capela e seu entorno começariam a

partir da metade do referido prédio.

As paredes erguidas de forma rudimentar e frágil sofriam com as intempéries

e, consequentemente, iam se deteriorando com a ação do tempo.

Placidino Alexandre Ferreira, em 1926, fez o seguinte depoimento a Osório

Faleiros da Rocha:


64

PINCELADAS EM RECORTES: A PRIMEIRA CAPELA

“Lembro-me da escola do Eliseu Guardanapo Papudo. Era na igrejinha, e ele, que era

Garimpo das Alagoas, costumava sair para o lado de fóra e ficar espiando pelos buracos

das paredes de paus-a-pique já ruinosas se os meninos estavam estudando e

direitinhos.” (Osório Rocha, Barretos de Outrora, pág. 166).

Não menos convincente, o depoimento de Antônio José Borges sobre

o dia do seu casamento, em 30 de julho de 1875, com Antônia Cândida de

Jesus:

“O vento nesse instante começou a assobiar pelas frestas da igrejinha esburacada, e

então o sacristão (Ferreirinha) mandou que os meninos assistentes ficassem junto ao

altar, com as mãozinhas em concha junto às chamas das velas para não se apagarem.”

(Osório Rocha, Barretos de Outrora, pág. 135).

A simplicidade não estava só presente na arquitetura, mas também no

interior do templo. Não teria aspecto de igreja, o que parece ser o comum

daquela época. O notável botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, quando da sua

incursão pelo Brasil na primeira metade do século XIX (1816 a 1822) em

direção à Província de Goiás, atravessou o Sertão da Farinha Podre, hoje Triângulo

Mineiro, e registrou:

“A capela de Farinha Podre é muito pequena, baixa e destituída de ornamentos, como

devem ter sido os primeiros oratórios dos portugueses que descobriram o Brasil. À

época de minha viagem havia apenas um capelão ali, subordinado à paróquia de Desemboque,

distante dali 30 léguas. Todavia, os habitantes do lugar, estavam tentando

conseguir que o governo central elevasse o arraial a sede de paróquia.” (Auguste de

Saint-Hilare, Viagem à Província de Goiás, pág.150).

Parece que a ausência de bancos para os fiéis se sentarem no interior

do templo era o comum.

“Como não havia bancos, os fiéis, principalmente as mulheres, sentavam-se no chão.”

(Osório Rocha, Barretos de Outrora, pág. 52).

“[...] o Antônio Paixão e família ficavam de cócoras a um canto do templosinho e gruinham:

“Puis antão

Quando adão fez Deus ...

Louvemos a Santa Cruz!”

(Osório Rocha, Barretos de Outrora, pág. 50).

A ausência de bancos seria realmente um costume herdado. Uma ilustração

pertinente de Hércule Florence (1804-1879), de cerimônia religiosa, reproduzida

no Livro Iconografia Paulistana do Século XIX, página 77, do autor Pedro Corrêa


CONCEIÇÃO APPARECIDA RIBEIRO BORGES 65

do Lago, consta a seguinte legenda transcrita de Yan Almeida Prado (1898-1991):

“... templo desprovido de bancos sentavam-se as mulheres à moda oriental sobre

esteiras estendidas no piso…”.

As missas, casamentos e batizados dependiam das vindas esporádicas

de padres de outras localidades como poderemos ver a seguir:

“As primeiras missas rezadas n’essa Ermida foram celebradas por padres que de São

Paulo seguiam viagem para Campo-Bello, e o primeiro parocho residente de Barretos

foi Pe. Manoel Eusébio, vindo de São Simão em 1862 ou 63. O patrimônio da egreja foi

doado pela família Barreto e a licença para a fundação do povoado foi concedida sob a

condição de ser garantida ao orago o domínio de um quarto de légua em quadra, tendo

no centro a capella”. (Jesuíno Mello, Artigo Tradições de Barretos, jornal O Sertanejo n.003

de 14.04.1900, pág. 1).

Como vimos, só após seis anos de existência é que passou à Capela Curada.

A Capela do Divino Espírito Santo, em 1873, pertencia ao 3º Distrito do Termo

da Comarca de Araraquara, conforme publicação no “Almanak da Província de São

Paulo para 1873”, em sua página n. 534:

Ilustração hipotética da primeira capela, feita pela autora do texto


66

PINCELADAS EM RECORTES: A PRIMEIRA CAPELA

“3º Districto - Da barra do ribeirão Bomfim, no rio Mogy, seguindo por este abaixo até

o rio Pardo, por este até o Rio-Grande, por este até abaixo do bairro dos Paulistas, onde

é divisa do 2º Districto; por esta divisa até o ribeirão dos Porcos, onde é a divisa do

Jaboticabal com esta Villa de Araraquara; dahí em diante, a procurar a cabeceira do

ribeirão Bomfim, e por este abaixo até o rio Mogy. Comprehende a Villa do Jaboticabal,

as capellas das Pitangueiras, Barretos, S. Sebastião do Ribeirãosinho, São José do

Rio-Preto e os bairros dos Paulistas, do Virador, do Bálsamo, dos Ignacios, dos Olhos

d’Agua e outros.”

Em 2 de julho de 1877, foi canonicamente instituída a Paróquia do Divino

Espírito Santo por ato de d. Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, bispo da Província de

São Paulo. Ato em cumprimento à Lei n. 42 de 26 de abril de 1874.

Em 1878, recebeu seu primeiro vigário, o padre Henrique Sassi.

Diante desse cenário, podemos deduzir: já havia se consolidada a permanência

dos que aqui aportaram e a próxima etapa seria a construção da

segunda ermida, em substituição daquela em que não se tinha condições de

abrigar todos os fiéis e tão pouco espaços suficientes para as funções eclesiásticas.

Diversos depoimentos de antigos moradores estão contidos nas valiosas

publicações de Osório Rocha que atestam que, já em 1880, estaria desativado

o simples templozinho.

Obs: Os textos transcritos obedeceram à ortografia original

Conceição Apparecida Ribeiro Borges por ela mesma: sou

barretense com muito orgulho. Aqui cursei o Primário, Ginasial, Normal

e Secundário, casei e tive filhos, exerci a minha profissão e me aposentei.

Pertenço à Academia Barretense de Cultura – ABC, como membro efetivo

(cadeira 24)


Sociedade Beneficente e

Recreativa Estrela D’Oriente

A

Coriolano José Neves

ceito! Mas vamos mudar o nome do Clube para Estrela D’Oriente, para que, assim como

a Estrela guiou os Reis Magos até Jesus Cristo, Nosso Salvador, ela guie a nossa raça

doravante a melhores destinos, a melhores dias ...”

Estas foram as palavras que seo Lazinho, o Lázaro Silva, proferiu em

uma das vezes em que foi convidado a presidir o principal clube que congregava

os negros de Barretos. E, assim, no dia 6 de janeiro de 1936, foi fundada

oficialmente a Sociedade Beneficente e Recreativa Estrela D’Oriente.

Esse relato foi incluído no enredo da escola de samba em 1979, após a

gloriosa Estrela ter ficado de fora do desfile oficial de Barretos durante dois

anos, e foi ouvido da própria boca do seo Lazinho, pelo carnavalesco da Escola

de Samba da Estrela, Coriolano José Neves, este que vos relata, presente em

todos os seus desfiles oficiais a partir de 1972 até os anos 90.

ooo

Um grupo de músicos negros, aproximadamente cinco ou seis, reunia-

-se sempre à sombra de uma mangueira na residência de Senhorita, uma moça

negra de família bastante católica, para dar vazão à sua arte, visto que o espaço

para os negros era seriamente restrito na cidade; a Abolição mal havia

completado 30 anos.

Entre eles, estavam Senhorita, seu irmão Faustino, o saxofonista Silvio

de Oliveira...

O carnaval de rua de Barretos, a exemplo de outras cidades, era composto

de corsos, onde as pessoas mais abastadas saíam em seus carros, com

muito confete e serpentina.

Segundo Silvio de Oliveira, que também relatou a mim, neste mesmo


68

SOCIEDADE BENEFICENTE E RECREATIVA ESTRELA D’ORIENTE

ano de 1979, o pequeno grupo resolveu sair a pé no carnaval de rua, tocando

e cantando um samba daquela época. E fizeram sucesso. Silvio era o pai

do grande mestre Álvaro de Oliveira, o Alvinho. Esse foi o embrião do Bloco

Carvão Nacional, que depois foi incorporado pela Estrela e, momentos mais tarde,

brilhou pelas avenidas da cidade, sob a batuta do recém-chegado a Barretos

Américo Espíndola.

Américo veio da Marinha e colocou disciplina no Carvão Nacional; tudo

o que fazia tinha muito rigor. As fantasias dos batuqueiros eram de marinheiros

e grande parte do bloco se vestia como tal. Passava em revista cada

fantasia, seu asseio, os calçados, enfim: primava pela séria uniformidade do

conjunto; pontos que são levados muito em conta nos desfiles oficiais do Rio

e São Paulo.

Constavam da estrutura do bloco os batuqueiros (chamados de “escola de

samba”), um passista que vinha à frente, de Abre-Alas, fazendo malabarismos

com sua baqueta, passistas, Princesa e Príncipe, Rei e Rainha, acompanhados

por uma corte de “damas d’honneur” e ladeados por escolta com espadas e

uma Porta-Estandarte principal.

Na frente da “escola de samba”, vinha uma passista habilidosa no rebolado,

chamada de rumbeira (uma alusão ao rebolado da Rumba). Imortalizaram-se,

em suas funções, o Abre-Alas Dinda, os passistas Ronã e Mauricio,

as passistas Valdelice, Josmaria, Ucha e Vanda. A Porta-Estandarte Efigênia

destacou-se, enquanto viveu, como a maior de todos os tempos. Desfilou

até mesmo depois de extinto o Bloco Carvão Nacional. A presença e atuação dos

cantores (atualmente puxadores) do samba que o bloco entoava foi marcada

com louvor pelos grandes Salvador, Arlindo Barracão e o inesquecível mestre

Oscarzinho, que dá nome hoje ao Sambódromo de Ribeirão Preto. Os apitadores (hoje

mestres de bateria) mais destacados foram o próprio Oscarzinho, Narciso e

Pedro, filho do seo Bequinho, ex-jogador do BFC.

Sempre costureira desses desfiles, Vitalina Silva, em 1945 foi uma das

mais destacadas rainhas do Carvão Nacional. Era conhecida pelos comerciantes

de tecidos, dentre eles o seo Miguel Miziara, que a ajudou a confeccionar a

bela fantasia de cetim rosa, com um manto azul celeste, toda salpicada de

estrelas de brocal prateado. Os arranjos e o bastão foram confeccionados por

outro grande integrante, o também artesão Cirilo. Outra grande rainha do

bloco, sobrinha do então presidente da Estrela, seo Tuca, foi sua sobrinha Maria

Inês, negra de grande beleza que encantou a cidade durante o desfile.

Grande foi a participação das famílias negras que operavam na cidade.

Algumas delas: a do seo Lazinho, com os filhos Rubens e Lina (Liberalina Silva),

os Malaquias, família do Zé Preto, do Tatão, família do seo Silvio, do Guilherme

de Britto, do Tonhão e tia Rita, família Miguel e Cruz, entre outras...


CORIOLANO JOSÉ NEVES 69

Seo Lazinho

É considerado o fundador

oficial da Estrela. O grande presidente.

Dono de uma pastelaria

no centro da cidade, Lazaro Silva,

sempre que estava à frente

da Estrela, dava a ela respeito e

credibilidade.

Alugava salões para bailes

e comemorações da negrada

e a polícia só não fechava

os recintos quando o seo Lazinho

estava à frente do evento. Daí

o grupo de diretores ter recorrido

a ele para presidir o clube

em 1936. Lázaro, então, havia

desistido de liderar, devido a

grandes desencontros internos

na agremiação.

Vitalina, Rainha do Bloco Carvão Nacional da

Estrela D’Oriente, em 1945, mesmo ano em

que se casou com José Pereira Neves

Leobino Pereira Neves

Respeitado pela sua atuação

dentro do ramo de gastronomia

da cidade, Leobino era

frequentador assíduo dos eventos

da Estrela.

Foi o presidente que entregou o bastão para que seo Tuca cumprisse o seu

último mandato à frente da Estrela D’Oriente.

Seo Tuca

Francisco Caetano Estevão foi, por muitas gestões, o grande presidente

da Estrela. Era tropeiro, que transportava boiadas para o então Frigorífico

Anglo. Homem respeitado, de posses, de comando, que, conta-se, até oferecia

prêmios para os vencedores das primeiras Festas do Peão de Boiadeiro de

Barretos. Tuca e sua esposa, dona Chiquinha, faziam do Bloco Carvão Nacional uma

grande atividade. Os ensaios aconteciam no barracão do Sindicato Rural do Vale do

Rio Grande. Ele bancava todas as despesas do Bloco e sua esposa, grande cos-


70

SOCIEDADE BENEFICENTE E RECREATIVA ESTRELA D’ORIENTE

tureira, confeccionava com sua equipe todas as fantasias e o desfile sempre

saía de sua própria residência, na rua 12 entre as avenidas 27 e 29, rumo ao

centro da cidade onde acontecia o desfile. Mantinha forte e atuante diretoria.

Realizava com louvor os tradicionais negros bailes de maio (Abolição) e de

agosto (Aniversário de Barretos), onde a raça se esmerava em belos trajes

de gala.

Posse de Leobino Pereira Neves na presidência da Estrela D’Oriente, em 1965, na sede do clube na rua 18,

onde hoje funciona o Cartório do Segundo Ofício de Barretos. Da esquerda para a direita, José Pereira Neves

(Zé Preto), Francisco Caetano Estevão (Seo Tuca) e Leobino Pereira Neves

Zé Preto

José Pereira Neves, grande jogador do Barretos Futebol Clube, da rua

32, era conhecido e respeitado na sociedade barretense, onde também era

proprietário da Tinturaria Esporte. Compadre de seo Tuca, recebeu de suas mãos

a presidência da Estrela D’Oriente, cuja sede era na rua 18, onde atua hoje o

Cartório do 2º Ofício. Zé Preto, na sua primeira gestão, continuou mantendo

o lume dado ao clube pelo seo Tuca. Na segunda metade dos anos 60, levou

a Estrela a apresentações folclóricas nos aniversários da cidade. Por ocasião

do 13 de maio de sua primeira gestão, organizou na Matriz do Divino Espírito

Santo, com o auxílio da organista negra Filomena e de Janete Bampa, um

inesquecível coral que abrilhantou missas de ação de graças pela data. Em

sua gestão também, por sua estreita relação com os professores do iniciante


CORIOLANO JOSÉ NEVES 71

Ginásio Vocacional, criou com o professor José Expedito Marques, o TEN – Teatro Experimental

Negro, que encenou para Barretos e Capital a peça “Esqueleto Zero Hora”,

fazendo história na cultura barretense. Com músicas cantadas pelo mestre

Oscarzinho, a peça contou com a participação de um elenco totalmente de

negros. Dentre eles: Reinaldo dos Santos, Antonieta Silva, Luíza, Silva Regina,

Marlene, Antonia, todos de dentro do clube. Os ensaios desta peça foram

realizados no espaço do Sindicato Rural do Vale do Rio Grande. Ainda na sua primeira

gestão, Zé Preto mudou a sede da Estrela para a Avenida 17 entre as ruas 26 e

28 e, a partir de 1966, realizou grandes desfiles do Carvão Nacional, desta feita

comandados pela sua esposa Vitalina Silva Neves e pelo genro Waldemar Nogueira.

Waldemar, em 1966, começou a modificar o bloco, adaptando-o para

uma Escola de Samba nos moldes das grandes cidades, introduzindo toques

diferentes na Bateria e, também, o casal de Porta-Bandeira e Mestre-Sala,

postos ocupados pelos inesquecíveis Destão e Marelice. Esta, filha do lendário

negro Sibidão. Ainda no primeiro mandato de Zé Preto, a Sociedade Beneficiente e

Recreativa Estrela D’Oriente foi reconhecida como de Utilidade Pública pela Câmara

Municipal de Barretos, em Lei de 1966. Também nesta fase, José Pereira

Neves conseguiria do prefeito Christiano de Carvalho a doação de um terreno

para sua sede própria, à avenida 9 esquina com a rua 4, onde construiria,

depois, o prédio atual do clube.

Zé Preto concluiu seu primeiro mandato, passando a presidência para

João Batista de Souza, depois Reinaldo dos Santos e Benedito Souza, o Ditinho.

José Pereira Neves retornou à presidência no final 1971 e permaneceu até

1984.

Ao retornar, Zé Preto conseguiu realizar a chamada Era de Ouro desta escola

de samba, com seguidas vitórias que culminaram, em 1976, com o histórico

enredo “Zumbi – A Imagem da Liberdade”, trabalho desenvolvido por dona Vitalina,

Clélia Maria, Waldemar Nogueira, Álvaro de Oliveira, Marcelo Suzuki e Coriolano

José Neves. Neste concurso, a Estrela venceu o Jockey Clube e o Rio das Pedras

Country Club. Após essa vitória, houve uma pausa nos desfiles, pois através de

empréstimo conseguido na Nossa Caixa, com o auxílio do Governo do Estado

de São Paulo, respaldado pelo prefeito Dr. Melek Zaiden Geraige, José Pereira

Neves constrói, com sua diretoria, a tão sonhada sede própria da S.B.R.E.O.

Ainda em 1976, lança a pedra fundamental da construção. A sede é

inaugurada em 1977. Após esse feito, em 1979, a Estrela retorna à avenida

com o enredo “Nossa Estrela vem do Oriente”, onde, através de depoimentos dos

baluartes ainda vivos, conta sua própria história. Este ano marca a estreia

da lendária Porta-Bandeira Clélia Maria e do grande Mestre-Sala Euripinho.

Em 1984, José Pereira Neves deixa a presidência, falecendo no mesmo

ano. Adão Ribeiro elege-se o novo presidente do clube. A participação da

Estrela no carnaval de rua volta a ter novo ápice em 1986, com Adão Ribeiro,


72

SOCIEDADE BENEFICENTE E RECREATIVA ESTRELA D’ORIENTE

quando sob o comando de Matinas Suzuki, uma comissão interna de carnaval

do clube levou à avenida o Jubileu de Ouro da Estrela D’Oriente. Adão Ribeiro foi

substituído por Guilherme de Britto; ambos fizeram brilhantes gestões. Também

foram presidentes: José Alves, Coriolano José Neves, Sebastião Gregório

da Silva e Luiz Antonio Cruz – Euripinho, seu atual presidente.

A história da Estrela D’Oriente corresponde à saga da raça negra na região

do Vale do Rio Grande. As famílias de negros que mais participaram do dia-

-a-dia da cidade, caminharam juntas no caminho traçado pela Estrela na vida

de Barretos e na vida de cada cidadão que congregou e congrega.

Como uma grande árvore, a Estrela deu origem a todas as oito escolas de

samba que existiram na cidade, sendo constituídas por elementos que dela

saíram e com ela aprenderam, funcionando como eterna raiz de uma negritude

desenvolvida com sangue e suor de seus participantes.

Considerada o grande e primeiro Quilombo de Barretos, deu oportunidade àqueles

recém-abolidos do convívio com os seus, com espaço para exercer sua

cultura, sua crença, seu modo de viver e encarar a vida. De forma educacional,

seus principais líderes nortearam o desenvolvimento cultural e social de

cada um de seus elementos, cujos filhos hoje formam, orgulhosamente, uma

espécie de diáspora, grupos da sua África maior, a SOCIEDADE BENEFICIENTE E

RECREATIVA ESTRELA D’ORIENTE.

Coriolano José Neves, 67 anos, barretense nato, é filho de

José Pereira Neves e Vitalina Silva Neves. É amante de Escola de Samba.

Tem a Estrela D’Oriente no coração e deve sua formação à atuação que teve

dentro dela. É carnavalesco, jornalista e designer gráfico.

Diretor da Parabòle Arte e Editora desde 1990


Os italianos em Barretos

Daniel Bampa Nétto

Primeira sede da Sociedade Italiana “Unione & Fraterlanza” de Barretos, fundada na cidade em 1895. Tal

edifício se localizava na esquina da avenida 27 com a rua 18 (imagem: Jornal Barretos Memórias, julho de

1988, p. 2 – Arquivo do Museu “Ruy Menezes”)

P

elos depoimentos que sempre ouvia de meus pais, tios e conhecidos

e pesquisando a respeito do motivo de milhares de italianos terem deixado

a pátria-mãe, concluí que se deveu à grande dificuldade econômica e à instabilidade

política que o Norte da Itália atravessava na segunda metade do

século 19.

Analisando o histórico da Itália na época, percebe-se que, quando terminaram

as lutas da unificação italiana com a conquista de Roma, em 1870,

por Vitor Emanuel II de Piemonte, rei da Itália, juntamente com Giuseppe Garibaldi, ao

invés de se solucionarem os problemas socioeconômicos, estes se agravaram.

A economia era dependente de poucas indústrias e de muitos latifundiários

ainda ligados a esquemas econômico-medievais e feudais e de exploração da

força operária e agrícola. A formação de uma nova Itália, como reino, não

abria perspectivas propícias à revogação dos esquemas antiquados de grandes

proprietários feudais com títulos hereditários de posse de terras.


74

OS ITALIANOS EM BARRETOS

As regiões ao Norte do rio Pó permaneceram no “status” socioeconômico

idêntico ao de antes da unificação. Havia grande disparidade entre classe

rica e classe pobre, estando essa quase na miséria que dominava toda a

região.

A Venécia, ainda em parte sob o domínio austríaco, o Trentino-Alto Ádige

todo, também sob o domínio austríaco e pretendido pela Itália, apresentavam

uma situação política de instabilidade e de futuro incerto.

Neste cenário de dificuldades e incertezas, uma leva considerável de

italianos decidiu sair de seu país de origem e se aventurar em outras terras,

atrás de um futuro que poderia lhes dar uma garantia de vida melhor.

Tanto o meu avô quanto, certamente, todos aqueles que deixaram a sua

terra, não enxergavam oportunidade melhor do que aportar no novo mundo,

ainda por explorar e cheio de oportunidades.

Como a maioria dos imigrantes italianos era experiente na atividade

agrícola, já era encaminhada ao trabalho em grandes fazendas de café, substituindo

a mão-de-obra escrava abolida recentemente (1888).

Várias famílias italianas foram encaminhadas para a nossa região. Até

hoje há remanescentes destes primeiros imigrantes.... Marchi, Ducatti, Martinelli,

Benedetti...

Daniel Bampa, nascido em 23 de março de 1871, na comune São Michele

Extra, na província de Verona, imigrou para o Brasil entre 1893/94. Chegou

ainda solteiro e com aproximadamente 22 anos, acompanhado do seu irmão

José Bampa, casado, então com 2 filhos.

Ficou aqui até por volta de 1897, quando voltou para a Itália. Três anos

depois, embarcou no vapor Arno para retornar a Barretos. Nessa viagem

conheceu minha avó, Virgínia Martinelli, casando-se às onze horas do dia 13

de outubro de 1900. Faleceu aos 63 anos, no dia 18 de maio de 1934, vítima

de colapso cardíaco, segundo atestado de óbito fornecido pelo médico patrício,

Dr. Carmélio Guagliano.

Trabalhando duro, Daniel Bampa conseguiu fazer o seu “pé de meia” e,

com uma família numerosa, fundou um pequeno armazém e adquiriu uma

pequena gleba, onde obtinha o sustento para os 12 componentes da família.

Era bastante comum a reunião de toda família em torno de uma grande

mesa, contando com três dezenas de descendentes, numa algazarra, fala

alta, tendo boa parte dos integrantes o ato de proferir palavrões, principalmente

após o segundo copo de um bom tinto, mesmo que não fosse um Brunello

Di Montalcino.

Como toda família italiana, a mesa farta fazia parte da cultura, contando

com a extensa variedade de comida oriunda da “Velha Bota”, como espaguete,

lasanha, pizza, nhoque, capelete, polenta e ravioli, entre outros, sempre

acompanhada de velhas canções, não só napolitanas, mas de todas as


DANIEL BAMPA NÉTTO 75

regiões italianas.

Sem qualquer exagero: o alarido nessas ocasiões poderia ser ouvido

a centenas de metros. Às vezes, aqueles que não estavam habituados com

tamanha algazarra e confusão acreditavam existir ali uma grande discussão

entre todos os participantes do grupo.

Entretanto, era uma mera oportunidade de botar a conversa em dia.

Havia também os ruidosos encontros dos patrícios no clube da colônia

italiana, o Unione e Fratelanza, nas acirradas disputas de partidas de “boccha”

nos finais de semana. Seria o correspondente fanatismo do futebol nos dias

atuais.

O edifício “Casa d’Itália” passou a sediar a Sociedade “Unione & Fraterlanza” em 1936. Localizava-se na

esquina da avenida 15 om a rua 16. A Sociedade Italiana foi fechada em 1945, após o fim da

2ª Guerra Mundial (imagem: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”)

Hoje, passado mais de um século do enlace matrimonial de Daniel Bampa,

não existe mais nenhum descendente direto vivo. Mesmo porque o caçula

do casal estaria hoje na casa dos 90 anos.

Apesar desta distância temporal, hábitos, costumes, consideração entre

seus descendentes ainda se mantêm vivos, um pouco desgastados devido à

aculturação própria de quem convive com uma gama de descendentes de

outros povos e raças.

Da mesma forma que os Bampa/Martinelli/Benedetti/Colucci, meus quatro

avós, outras famílias italianas povoaram, miscigenaram e fazem parte da

comunidade barretense, constituindo uma grande família de italianos. Vemos


76

OS ITALIANOS EM BARRETOS

os sobrenomes Donato, Galatti, Baroni, Scannavino, Tedesco, Verardino, Gazetti, Bernardi, Borsato,

Possato, Lazarini, Solera, Mazelli, Pierangelli, Armani, Barini, Thomazatti, Tomazini, Ducati e

muitos outros que se fazem presentes no cotidiano barretense.

Não é demais afirmar que, entre eles, surgiram profissionais em todos

os segmentos de todas as áreas, fazendo e participando ativamente da Terra

do Chico Barreto.

Os traços culturais italianos se manifestam de forma intensa não só

nos pratos e na culinária, mas também nas atividades profissionais e em

todos os segmentos, como artistas de toda sorte, desde pintores, artesãos,

dançarinos, músicos e compositores.

O caminho percorrido pelo meu avô certamente foi o mesmo feito por

milhares de outros imigrantes italianos. Cada um teve sua saga, a sorte ou

a desilusão na busca de vida melhor. Outros, desiludidos pela dificuldade ou

pela má sorte, retornaram ao seio da pátria-mãe. Os que ficaram se uniram

a tantos outros povos que para aqui vieram, resultando neste nosso povo que

traz a Bela Itália no DNA, nos costumes e nos hábitos.

Daniel Bampa Nétto é barretense, nascido em

7 de junho de 1939. É contador. professor e economista.

Proprietário do Espasso Contabilidade


Recinto “Paulo de Lima Corrêa”:

Mosaicos de uma história

E

Elisete Greve Tedesco

stando em Barretos em 23 de maio de 1943: Paulo de Lima Corrêa,

Secretário Estadual de Agricultura e Comércio de São Paulo, recebeu pedido

de João de Almeida Queiróz, presidente da “Associação dos Pecuaristas do Vale do Rio

Grande” para que fosse viabilizada a construção do Recinto de Exposições Agropecuárias

na cidade. Depois de mantidos todos os contatos, o então presidente da

Associação dos Pecuaristas, Raul dos Santos, foi comunicado sobre a decisão do

interventor Fernando Costa. Para agilizar a construção, a prefeitura adquiriu

e desapropriou área de propriedade de João Baroni, Raul dos Santos e

Nemércio Vilela Lemos, doando-a ao Governo do Estado.

Foram designados os técnicos da Secretaria da Agricultura, Alfeu Reveillau

e Antônio Carlos de Campos Salles, para comandarem a construção.

As obras do projeto assinado pelo arquiteto Hernani do Val Penteado foram

iniciadas em 24 de julho de 1944, tendo como construtor o empreitei ro

Antônio Costa, responsável pela contratação dos mosaicistas que ornamentaram

o calçamento do Recinto com belos arabescos e rosáceas.

Alfeu Reveillau declarou o gasto de aproximadamente dois milhões de

cruzeiros na construção, destacando o formato do terreno, amplitude e conforto.

Com capacidade para abrigar cerca de 500 reses, além de equinos,

suínos e produtos de origem animal, o Recinto foi considerado uma das

mais belas e modernas obras construídas no Brasil, agradando pecuaristas

e população em geral. Em suas dependências foram construídos imponentes

edifícios, arquibancadas, bar, restaurante, alojamentos para tratadores e implementos,

cinco moderníssimos e confortáveis pavilhões para o gado fino e

excelentes currais para os bois gordos.

Em reunião na “Associação dos Pecuaristas do Vale do Rio Grande”, em que participaram

Alfeu Reveillau, chefe do Departamento da Produção Animal do


78

RECINTO “PAULO DE LIMA CORRÊA”: MOSAICOS DE UMA HISTÓRIA

Estado e Antônio Campos Sales, médico veterinário do mesmo departamento,

pecuaristas e negociantes de gado, foram definidas as datas de 17, 18 e 19

de março de 1945 para a inauguração do Recinto e da “Primeira Exposição de

Animais”.

A cerimônia oficial teve início às 15 horas do dia 17, com o hasteamento

do Pavilhão Nacional e descerramento das duas placas inaugurais, uma

das quais em homenagem ao grande entusiasta, o engenheiro agrônomo

“Paulo de Lima Corrêa”, falecido em 30 de agosto de 1943, aos 50 anos de

idade.

Em 1949, foi realizado no Recinto o “1º Concurso de Bois Gordos da Região de

Barretos”, juntamente à “3ª Exposição Regional de Animais e Produtos Derivados”. Até o

ano de 1953, foram realizados cinco concursos com gado exclusivamente

engordado nas pastagens da região.

Em 1951, a “Associação Rural do Vale do Rio Grande” realizou, pela primeira vez

no local, competição em que participaram apenas bovinos de propriedade do

Estado, evento que contou com total apoio da Secretaria de Estado da Agricultura.

Nos anos de 1952 e 1953, as exposições contaram com bovinos de propriedade

de expositores barretenses, da região e do governo.

Seguindo calendários aleatórios, gradativamente, as exposições deixaram

de ser realizadas no Recinto, sendo a 44ª edição a última realizada

no local, ocorrendo no período de 17 a 27 de abril de 2003.

O patrimônio pertenceu à Secretaria da Agricultura e Abastecimento

do Estado de São Paulo desde a sua fundação. A partir de 18 de outubro de

1996 passou a ser gerenciado por contrato de comodato entre o Sindicato Rural

do Vale do Rio Grande e Prefeitura de Barretos. Posteriormente, devido à resolução do

Estado, passou a ser administrado pelo Escritório de Defesa Agropecuária de Barretos

– EDA.

Recinto “Paulo de Lima Corrêa” na década de 1960, com destaque

ao obelisco de 1959 e ao pórtico – autoria da fotografia: José Tedesco.

(Fonte: arquivo pessoal da autora)


ELISETE GREVE TEDESCO 79

O RECINTO E AS FESTAS DO PEÃO DE BOIADEIRO

No ano de 1947, o prefeito Mário Vieira Marcondes reuniu lideranças

na “União dos Empregados no Comércio de Barretos”, conclamando-as a contribuírem

na realização de evento em prol da “Bandeira Paulista de Combate à Tuberculose” e ao

Peão de Boiadeiro. Foi realizada então, com grande sucesso, a Primeira Festa do

Peão de Boiadeiro, que contou com diversas atividades em clubes sociais, logradouros

públicos e no Recinto “Paulo de Lima Corrêa”. Além de corridas de motos e

bicicletas, foram realizados rodeios com cavalos, bois bravos, burros xucros,

torneios de laços, gincanas, Pega do Porco Ensebado, Pau-de-sebo, desafios entre

violeiros, dentre outras atividades.

Nos dias 19 e 26 de setembro de 1948, a Festa do Peão de Boiadeiro foi realizada

novamente no Recinto.

A partir de 1958, a “Queima do Alho” começou a ser realizada no Recinto.

Na década de 60, Orestes de Ávila, um dos primeiros locutores da Festa

do Peão, criou o slogan “O Chão é o Limite”, usando-o quando os peões, literalmente,

caíam do cavalo. Frases como “Mais elegância, pois o Chão é o Limite”, “Elegância

quer dizer Rapidez” também surgiram no cenário da Festa. Em 1966, Antonio de

Souza, o “Zé do Prato” introduziu a célebre frase: “Seguuuuuuuura Peão”.

Diversos nomes do cenário artístico brasileiro apresentaram-se no “Palco

Iluminado do Rodeio”, bem como grupos folclóricos brasileiros e da América Latina,

merecendo destaque: Grupo de Danças Folclóricas de Sussy Claude (Paraguai); Grupo

Folclórico Sarangi (Uruguai); Santhiago Ayala (Argentina); “El Chucaro”, com Norma Viola e Amália

Garcia (Argentina); Grupo Folclórico Alichil (Chile); Grupo Folclórico da Universidade de Cochabamba

(Bolívia); Javier de Léon e Mariachis Zanabria (México).

Na década de 70, “Zé Ribeiro” passou a narrar os rodeios ao lado de Orestes

de Ávila, introduzindo músicas e frases de efeito durante as apresentações.

No ano de 1972, participando da abertura, Emílio Garrastazu Médici

foi o primeiro presidente a prestigiar a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos. No

mesmo ano, a empresa Heublein, fabricante do whisky Drury’s, foi a primeira

empresa a utilizar “merchandising” no evento.

No ano de 1973, os peões que se sagraram campeões passaram a receber

um carro “Fusca 1300”, patrocinado pela Volkswagen do Brasil.

Em 1978, foi introduzida na festa a montaria em touro.

No ano de 1980, o barretense Alceu Garcia foi considerado o “Melhor

Berranteiro do Brasil”, e em homenagem ao Jubileu de Prata da Festa do Peão,

executou o Hino Nacional Brasileiro.

Em 1981, com considerável comitiva, foi a vez do Presidente João Baptista

de Figueiredo participar da Festa.

No ano de 1986, a Festa recebeu o Presidente José Sarney.

Inúmeros foram os governadores, ministros, deputados, senadores e


80

RECINTO “PAULO DE LIMA CORRÊA”: MOSAICOS DE UMA HISTÓRIA

demais autoridades que a visitaram a “Festa do Peão de Boiadeiro”, destacando:

Adhemar de Barros, Laudo Natel, Carvalho Pinto, Paulo Egydio Martins, José

Maria Marins, Paulo Salim Maluf, autoridades civis e eclesiásticas.

Figurando no calendário oficial da Festa do Peão, as montarias em touros

foram iniciadas no Recinto a partir de 1983.

Até o ano de 1984, as festas do Peão de Boiadeiro foram realizadas no

Recinto “Paulo de Lima Corrêa”.

De 11 a 14 de março de 1999, foi realizado no Recinto o “1º Encontro dos

Campeões de Barretos” por José Alexandre Paiva, Flávio Eduardo Paro, Tião Procópio

e Vergílio Gonçalves.

Em 2004, foi realizada a “Festa dos Campeões”, comandada por José Uilson

Freire.

Festa do Peão de Boiadeiro realizada no Recinto “Paulo de Lima Corrêa” na década de 1970

Autoria da fotografia: Maurício Pinto. (Fonte: arquivo pessoal da autora)

RECONHECIMENTO DO PATRIMÔNIO

Em 25 de junho de 1999, atendendo à solicitação do veterinário Élio do

Nascimento Meirinhos e do ex-delegado de polícia José Carlos Moreira de Oliveira,

o prefeito Uebe Rezeck pleiteou o tombamento do patrimônio histórico

junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Em 4 de outubro de 2000, a superintendência do IPHAN oficiou: Senhor

Prefeito, temos a satisfação de informar à V. Sa que foi aberto o processo de nº I466-T-00, referente

ao tombamento do Recinto de Exposições Agropecuárias Paulo de Lima Corrêa.

Vencidas todas as instâncias, infelizmente, devido a interferências polí-


ELISETE GREVE TEDESCO 81

ticas contrárias ao tombamento, o processo foi arquivado.

Em 20 de março de 2003, os “Amigos do Recinto” Elio do Nascimento Meirinhos,

Elisete Greve Tedesco e José Carlos Moreira de Oliveira deram continuidade

ao sonho da proteção legal do patrimônio, encaminhando ofício

assinado por José Carlos Moreira de Oliveira ao Conselho de Defesa do Patrimônio

Histórico, Artístico e Arquitetônico de São Paulo – CONDEPHAAT.

Decorridos praticamente dez anos do início da luta, o bem foi tombado

com o seguinte parecer: A guisa de conclusão deste parecer, retomamos os aspectos acima

elencados, fortes indicadores da significação deste Patrimônio no quadro estadual, que o tornam

merecedor de reconhecimento oficial de sua importância cultural, isto é, do tombamento pelo CON-

DEPHAAT.

Em 11 de maio de 2010, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publicou:

Resolução SC-10, de 11-3-2010: Artigo 1º. - Fica tombado na categoria de bem arquitetônico,

histórico, ambiental e cultural o conjunto do Recinto de Exposição Agropecuária

Paulo de Lima Correa, situado à Rua Trinta e Quatro, s/n, bairro Exposição,

na cidade de Barretos, no Estado de São Paulo. O presente tombamento se aplica aos

seguintes itens: a) Do portal de acesso pela área central até a Tribuna: 1 Portal de

acesso; 2 Obelisco em homenagem a Paulo de Lima Corrêa; 3 Espelho D’ Água; 4 Arena

com seu gradil e arquibancadas; 5 Tribuna de Honra. 6 Obelisco de Azulejos, alusivo ao

tropeirismo. b) Do portal de acesso pela lateral direita: 7 Restaurante; 8 Casa do Administrador;

9 Escritório Central; 10 Conjunto das Baias; 11 Cocheiras; 12 Bebedouro

para animais; 13 Lavador de Cavalos; 14 Edifício de produtos derivados; 15 Tatersall;

16 Casa de Pouso c) Do portal de acesso pela lateral esquerda: 17 Casa do Criador; 18

Pavilhões de Bovinos e Suínos (9 pavilhões). Artigo 3º - Ficam definidas as seguintes

diretrizes para intervenção no bem tombado: Os imóveis listados para tombamento

deverão manter sua implantação original, volumetria e elementos decorativos caracterizadores

do partido neocolonial.

A recuperação do conjunto deverá obedecer a um plano diretor discriminando sua

ocupação e/ou reciclagem.

Qualquer intervenção de reforma, demolição e/ou implantação de novas edificações na

área delimitada deverá ser objeto de análise e aprovação do Condephaat.

Em 25 de junho de 2012, foi assinada a escritura definitiva de posse.

Em 28 de junho de 2012, foi assinado convênio de repasse de verba

no valor de R$ 7,517 milhões pelo Governo Federal e contrapartida de R$

483 mil da Prefeitura, totalizando a quantia de R$ 8 milhões para as obras

que visavam transformar o Recinto em Centro de Treinamento da Seleção Brasileira

de Hipismo.

Em 11 de dezembro de 2013 foram iniciadas as obras de revitalização

do patrimônio barretense... mas isso é outra história!


82

RECINTO “PAULO DE LIMA CORRÊA”: MOSAICOS DE UMA HISTÓRIA

Fontes de Pesquisa:

Álbum do Centenário de Barretos, Menezes Ruy, Tedesco José, Gráfica

Tedesco, Barretos, 1954; Menezes, Ruy, Espiral – História e Desenvolvimento

Cultural de Barretos, 1ª Edição, 1985; Acervo do Sindicato Rural do Vale do

Rio Grande e outras diversas mídias.

Elisete Greve Tedesco é historiadora, artista plástica e membro da ALAB

pela cadeira n° 1. É autora de inúmeros artigos publicados pelo Jornal Regional de

Barretos. Presidiu a ALAB e AARPLIC e foi responsável pelo dossiê que tombou o

Recinto Paulo de Lima Corrêa


Coronel João Carlos de

Almeida Pinto - vulto notável da

História de Barretos

‘U

Gerson Aparecido Rodrigues

m campineiro destemido, republicano apaixonado’, como já dizia Osório Rocha

em artigo de jornal de 1952, chegou em Barretos por volta de 1883, proveniente

de Jaboticabal. Nascido em Itapetininga-SP em 21/04/1855. Filho do Dr.

Francisco Antônio Pinto e Manuela de Camargo. Era tio do Prof. Fausto Lex, filho

do Dr. Matias Lex e Belizaria

Pinto Lex, irmã dele: Cel. Almeida

Pinto. Passou a adolescência em

Campinas, onde recebia ideais

republicanos, residindo posteriormente

em Jabo ti cabal, onde

foi um dos primeiros homens

a aderir ao ideal democrático e

propagandista da Abolição e da

República, fundando o Partido Republicano

Paulista em 15/03/1881.

Atuou também como verea

dor e presidente da Câmara

Municipal. Diz a história que,

durante uma audiência com o

juiz municipal de Jaboticabal,

surgiu um incidente: uma violenta

discussão entre ambos. Irritado,

deixou o recinto, voltando

logo depois empunhando um

cabresto, avançou para o juiz e, Cel. Almeida Pinto (fonte: Álbum Comemorativo do 1º

aos gritos, tentou enfiar-lhe o Centenário da Fundação de Barretos - Arquivo do Museu “Ruy

Menezes”)


84

CEL. JOÃO CARLOS DE ALMEIDA PINTO - VULTO NOTÁVEL DA HISTÓRIA DE BARRETOS

cabresto na cabeça.

“Quero embuçalar este burro!”.

Em 11/02/1881, contraiu matrimônio com Maria Amélia de Oliveira,

natural de Uberaba, filha do farmacêutico barretense Jeronimo de Oliveira

Silvares e Lucrécia de Oliveira Silvares, pois esta era irmã de Francisco Almeida

Silvares, Escrivão de Paz e, mais tarde, Tabelião do Cartório de 1º Oficio;

também conhecido por Chiquim, seu amigo que acertou o namoro - e o casamento

foi rápido. Os dois se casaram e fixaram residência em Jaboticabal,

mas por pouco tempo; logo decidiram morar no arraial de Barretos, na fazenda

do sogro, próxima ao bairro Prata. Chegando a Barretos, bem cedo partiu

para o sertão, que ajudou a desbravar com sua inteligência fora do comum,

trabalhando infatigavelmente no Fórum e na imprensa, lecionando primeiro

em Araraquara, onde foi Promotor Público. Já nessa época era jornalista,

advogado perante o tribunal de júri e ainda exercia outros misteres, notadamente

o de curandeiro para servir a classes menos favorecidas.

Em Barretos, conhecido como um lugarejo infestado por valentões, onde

não havia garantia de vida para ninguém, trouxe novo talento e impulsos

bem diversos, graças ao seu temperamento ardente.

Sua esposa não pretendia morar em Barretos, mas a convenceu de que

a cidade precisava começar a mudar com novas ideias, principalmente a nossa

República, e essas ideias precisavam se espalhar por todos os cantos. Deste

casamento nasceram os filhos: João Carlos de Almeida Pinto Júnior e Múcio

S. Almeida Pinto.

Era dotado de vibratilidade incomum, aliciador com dotes especiais,

tomado de ardores pelo credo republicano, além de grande simpatia pessoal,

inteligência brilhantíssima, com certa boemia, e esbanjador de dinheiro.

Enrolava dinheiro, fazia cigarros e queimava. Sua aversão ao dinheiro era

grande e constituía uma forma de desafiar a hipocrisia na época.

Era conhecido também pela alcunha de “louco” por causa de suas manias

bizarras e roupas distintas da região.

Tornando-se um homem muito influente, há quem diga que nada se

fazia sem sua ajuda direta. Agitou a questão política no seio do pachorrento

vilarejo; conseguiu fundar aqui o “Partido Republicano Paulista”, em 10/03/1885,

dando o nome de “Grêmio Republicano Francisco Glicério” a quem estava ligado por

sólida amizade, instalando-o no mesmo prédio do seu colégio São João. Conseguiu

em 10/03/1885, pela Lei 22 da Assembleia Providencial, a criação do município

de Barretos. Sete anos depois, conseguiu do Governo Provisório da República,

através do Decreto nº 98 de 26/11/1890, a criação da Comarca. Também foi Juiz

de Paz, vereador, fundador e presidente de sociedade, boticário, tabelião, professor,

advogado, jornalista, escrivão do Júri, curandeiro, benfeitor, Intenden-


GERSON APARECIDO RODRIGUES 85

te Municipal Interino (24/01/1886 a 07/01/1887), homem de Letras, etc.

Em 1887, eleito para o cargo de Intendente Municipal, participou da

cerimônia de instalação da Comarca, juntamente com outros conselheiros

nomeados, em 07/01/1891, sendo um dos signatários da ata da instalação.

No aspecto do curandeirismo, foi durante anos dono inconteste da maior

clínica da cidade e adjacências. Não possuía farmácia, mas seu braço direito,

uma espécie de assistente, era Francisco Antônio das Chagas, vulgo Chico

Boticário, dono de botica que vendia remédios alopáticos e homeopáticos. Possuía

pequenos conhecimentos de Medicina que o auxiliavam na terapêutica

sintomática. Sua extrema bondade supria a falta de maiores conhecimentos.

Sempre dizia as palavras sábias de Miguel Couto:

“Se toda a Medicina não está na bondade, menos vale dela separada”.

Foi graças a Almeida Pinto, juntamente com outros como Messias Alves

Gonçalves, Frederico Carneiro Pessanha Falcão e Rufino Messias que o

gover no, atendendo seus pedidos, mandara ao abandonado vilarejo os primeiros

soldados da Força Pública. Como não havia cadeia, a maneira de corrigir

os desordeiros era amarrá-los a um coqueiro que havia na esquina da Avenida

21 com a Rua 12.

Quanto aos réus, levava-os até a sede da Comarca de Jaboticabal para,

ali, livrá-los das condenações (o que sempre conseguia) sem receber coisa

alguma, pois era um homem desprendido.

Almeida Pinto fez com que os sete únicos eleitores de Barretos, famosos

republicanos, estando ele incluído (Francisco Antônio Chagas, Romão Carlos

Nogueira, Manoel de Paula e Silva, Antônio Alves de Lima, Florentino Garcia

Vieira Junior e Inácio Armindo Junqueira Franco) descarregassem o peso

de sua votação em memorável pleito, quando Prudente de Moraes, em plena

vigência do regime monárquico, disputava, pelo Partido Republicano, uma cadeira

no Parlamento Imperial, da então província de São Paulo em 30/11/1884.

Neste pleito, Prudente de Moraes derrotou o venerando Conselheiro Antônio

Prado, contendor da Monarquia. Consta que, na capital do estado, o Conselheiro

Antônio Prado contava com a maioria de cinco votos, dependendo apenas

dos resultados dos povoados retardatários de Água Choca (Monte Mor) e

Barretos. Pouco depois, chegou o resultado de Água Choca, que não modificou

a sua boa situação a favor do adversário.

Corre a versão de que ninguém dava importância a estes dois povoados

retardatários. O Conselheiro Antônio Prado, precipitadamente, cantou a

vitória, recebendo os parabéns de amigos e correligionários ao som de banda

musical, foguetes e discursos. Finalmente chegaram os sete votos únicos de

Barretos dados a Prudente de Moraes, que venceu seu adversário por dois

votos. À frente do pequeno grupo de republicanos de Barretos, achava-se a


86

CEL. JOÃO CARLOS DE ALMEIDA PINTO - VULTO NOTÁVEL DA HISTÓRIA DE BARRETOS

figura empolgante do Coronel Almeida Pinto, propagandista das ideias novas

e parente do imortal Francisco Glicério, a quem estava ligado por sólida amizade.

Barretos teve seu nome ovacionado nas ruas da capital quando o jornal

“A Província de São Paulo” expôs, no seu placar, o resultado da eleição reali zada

na remota paróquia sertaneja, anunciando o apoio integral ao republicano.

Houve dias seguidos de festa, em que se davam vivas ao eleitorado de nossos

sertões, aqueles homens sinceros e honestos tão bem guiados pela inteligência

e civismo de Almeida Pinto. O Partido Republicano de Barretos ficou notabilizado

ao decidir essa eleição, graças à liderança deste notável vulto da História.

O arraial “Espirito Santo de Barretos”, pelo alongado da nomenclatura, por força

de desejos de síntese passou a denominar-se “Barretos”, pela Lei nº 1021, de

16/11/1906 do Congresso de Estado. Tal era o seu ardor republicano que,

em 19/11/1890, propôs à Câmara Municipal que desse a Barretos o nome

de “Comarca da República”, como consta nos anais.

Almeida Pinto, respeitável educador, amava ensinar e, dessa paixão,

fundou em 1893 o “Colégio São João”, localizado na esquina da Avenida 17 com

a Rua 14, considerado o primeiro estabelecimento de ensino regular de Barretos,

que revolucionou a mentalidade de nossas crianças.

No pórtico deste colégio colocou uma placa contendo o dístico letreiro:

“Ave Lux”, além do nome Colégio São João saudando a luz como símbolo da Ciência,

da Cultura, pois o povo inculto, nada afeito às palavras latinas, só ouvindo

nas missas, traduzia aquelas palavras arrevesadas: Ave-Pinto, Lux-Louco... logo:

Colégio do Pinto Louco. O Cel. Almeida Pinto, já nos últimos dias de sua vida, escreveu

na imprensa barretense que a verdadeira história sobre a piada com

respeito ao lema do seu colégio foi assim:

Um dia, passava em frente do Colégio um viajante muito espirituoso, o Maurity, e vendo na

fachada do edifício um desenho representando um menino empunhando um estandarte, com os seguintes

dizeres: “AVE LUX”, o rapaz parou, dirigindo-se aos companheiros disse: Esta traduzido: Ave

é pinto e Lux deve ser louco: ‘Colégio do Pinto Louco’.

E, assim, numa brincadeira do moço Maurity essa piada ficou perpetuada

na história barretense. Alunos remanescentes daquele educandário recordam-se

de um livro de capa vermelha, no qual eram lançadas as atas das

reuniões da agremiação. Pena haver extraviado tão precioso documentário.

Em 22/01/1891, deixou o Conselho de Intendência Municipal para tomar posse

como Tabelião e Oficial de Registro de Hipotecas. Mais tarde, desistiu do cartório

para dedicar-se exclusivamente à advocacia e à política. Era advogado que

mais causas defendia no Tribunal de Júri. No dia 03/07/1911, faleceu sua

esposa, Maria Amélia de Oliveira Pinto, em São Paulo.

Foi um dos redatores de “O Sertanejo”, primeira folha de imprensa local,

fundada em 20/03/1900 por Silvestre de Lima. Neste jornal, possuía uma


GERSON APARECIDO RODRIGUES 87

coluna humorística, “Crônicas da Terra”, sob o pseudônimo de João Bobo. Mostrava

seu talento fenomenal com rimas engraçadas, fazendo pilhérias com fotos,

coisas e pessoas da época.

Era um homem alegre. Gostava de festas; amigo dos seus amigos, amou

esta terra, nossa gente e viveu muito do seu tempo dedicado à nossa cidade.

Tomou parte ativa em todas as iniciativas de progresso de Barretos

desde o primeiro período de nossa imprensa, como nas providências para

a vinda de soldados da Força Pública, criação do primeiro colégio de ensino,

o amparo às populações desvalidas, mediante movimentos assistenciais, a

construção da Igreja Matriz para qual, saindo pelas fazendas, acompanhado

de uma banda musical, angariou donativos; criação do município e a instalação

da Comarca, vinda do frigorífico e da Estação Estrada de Ferro. Também

participou dos seguintes feitos: criação de Loja Maçônica “Fraternidade Paulista”,

Grêmio Literário e Recreativo, Tiro de Guerra “502”, da Sociedade Instrução e Recreio, colaborador

do primeiro jornal, O Sertanejo;

comandou todos os serviços

do júri, como cartório e os tabelionatos

do Primeiro e Segundo

Ofícios. Foi fundador da Corporação

Musical “Orphelina Barretense”.

No livro “Barretos de Outrora”, com

autoria de Osório Faleiros da

Rocha, consta um depoimento

do senhor José Garcia de Vassimom

referente ao período de

1900 a 1907, em que descreve,

com sutileza, a trajetória do Cel.

Almeida Pinto.

Após a Proclamação da

República, organizou o Partido

Republicano de Barretos, sob a presidência

do abastado fazendeiro

e prestigioso cidadão Cel. Antônio

Marcolino Osório de Souza.

Eram seus companheiros

de diretório, Silvestre de Lima,

Jose Eduardo de Oliveira (Zeca

Vigilato), Antônio Garcia de Oliveira,

Joao Simplício de Macedo

e outros. O ilustre chefe republicano

declarava que, a partir de

No frontão do túmulo foi inserido o seguinte:

Cel. João Carlos de Almeida Pinto

*21/04/1855 † 24/06/1925.

“O preito de gratidão da EE. Cel. Almeida Pinto ao

benfeitor que tanto dignificou Barretos”.

Restaurado em novembro de 2018 e entregue solenemente no

dia 16/04/2019 (registro do autor)


88

CEL. JOÃO CARLOS DE ALMEIDA PINTO - VULTO NOTÁVEL DA HISTÓRIA DE BARRETOS

agora, o filho de um tropeiro poderia encarar face a face o Imperador. Não

resta dúvida ser este o primeiro fato político de relevância do qual Barretos

tomou parte.

Faleceu em Barretos, em 24/06/1925, conforme Atestado de Óbito do

Cartório local, em estado de pobreza, sendo sepultado em carneira comum,

Perpétua nº 190, no Cemitério Municipal de Barretos. Todas as homenagens que lhe

prestaram serão a expressão da mais perfeita justiça. Por Decreto nº 21698-b de

11/09, publicado a 13/09/52, o 3º Grupo Escolar de Barretos passa a denominar-se

“Cel. Almeida Pinto”.

No dia 16/04/2019, em cerimônia pública, num ato de reconhecimento

e gratidão ao grande vulto da história de Barretos, foi entregue à população

o túmulo centenário do patrono da escola Cel. Almeida Pinto, totalmente restaurado,

como preservação da memória da cidade, patrocinado pelo Prof. Gerson

Aparecido Rodrigues, diretor daquela escola durante 20 anos, sob aplausos

dos presentes.

Referência Bibliográfica:

- Livro “Barretos de Outrora”. ROCHA, Osório, São Paulo, 04/1954

- Textos “Intendentes Esquecidos (2)”. MACHIONE, Gabriel Francisco

Junqueira e TINELI, Roseli.

- “Artigos Históricos”. GREVE, Elisete.

Gerson Aparecido Rodrigues é natural de Novo Horizonte, SP.

Formação Superior pela UNIMEP e em Gestão Escolar pela UNICAMP.

Diretor da EE Cel. Almeida Pinto. Memorialista do Livro “Águas da Amizade”.

Secretário Municipal de Educação e Cultura em Barretos e Novo Horizonte


Luiz Carlos Arutim

José Antonio Merenda

A

“A arte dramática é a capacidade de representar

a vida do espírito humano, em público e em forma artística”

(Constantin Stanislavski)

quela manhã de segunda-feira, 8 de janeiro de 1996, ficou marcada

para sempre em minha memória. Quando cheguei à Caixa Econômica Federal,

onde trabalhava há 20 anos, fui surpreendido pela infausta notícia da

morte de meu amigo Arutim. Fiquei em choque, difícil de acreditar! Estivemos

juntos — eu, minha esposa Cacilda de Souza e ele, em Barretos, no dia

28 de dezembro. Conversamos muito. Ele tinha muitos planos para o novo

ano. Logo, a imprensa começou a me ligar. Eles queriam meu depoimento.

Não conseguia nem falar. Minhas pernas tremiam. Era como se tivesse perdido

alguém da própria família.

Após tomar um fôlego, comecei a me inteirar dos acontecimentos. Ele

se encontrava em seu apartamento em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro,

quando naquela madrugada, um incêndio, provavelmente provocado por uma

vela acesa, atingiu o imóvel. Segundo depoimento de seu filho, Camilo Vieira

Arutim, de 17 anos, ao jornal ‘Folha de São Paulo’:

“Meu pai ficou no apartamento para apagar o fogo, e não atrás de bens materiais”,

como a notícia havia se espalhado. O ator barretense, consagrado nacionalmente,

faleceu aos 62 anos, asfixiado pela inalação de fumaça, deixando a

viúva Maria do Carmo Vieira Arutim e os filhos José Ernesto, Marcelo Simon

e Camilo.

A sua trajetória artística e seu talento na arte de interpretar fizeram

dele um astro nacional. Luiz Carlos Arutim nasceu em Barretos, em 19 de

janeiro de 1933, filho de José Arutim e Maria Popolani.

Iniciou seus estudos, em Barretos, no 3º Grupo Escolar, hoje Cel. Almeida Pinto

e no Instituto de Educação Estadual “Mário Vieira Marcondes”. Graduou-se em Direito

pela Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro, de Uberaba, MG.

Em seu retorno a Barretos, trabalhou no comércio de sua família. Em

1955, ingressou na política, como suplente de vereador; em 1959, tomou


90

LUIZ CARLOS ARUTIM

posse como vereador, pela UDN, sendo reeleito em 1963.

Ainda em 1963, sua vida mudou completamente com o convite do professor

José Expedito Marques, diretor do TEB – Teatro Experimental de Barretos,

para integrar o elenco da peça “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna,

e viver o malandro “João Grilo”.

Seu desempenho foi magnífico! O TEB participou, naquele ano, de dois

festivais de teatro amador e, em ambos, Arutim foi laureado com o Prêmio

de ‘Melhor Ator’: em agosto, no VII Festival Paulista de Teatro Amador, realizado no

Teatro Leopoldo Fróes, em São Paulo, onde recebeu o Prêmio ‘Arlequim’, e em novembro,

no I Festival de Teatro Amador do Estado de São Paulo, realizado no Teatro Carlos

Gomes, na cidade de Campinas, com o Prêmio ‘Governador do Estado’ e uma

Bolsa de Estudos na EAD - Escola de Arte Dramática de São Paulo.

Em sua vida profissional, atuou no teatro, cinema e televisão. Logo

após a conclusão da EAD, engajou-se no Teatro de Arena de São Paulo, importante

grupo teatral brasileiro, tendo ocupado o cargo de diretor no período de

1969 a 1972, com o qual participou de excursões ao México, Estados Unidos,

Argentina, Peru e França.

Em 1968, durante a montagem da peça 1ª Feira Paulista de Opinião,

reunindo 6 textos de autores paulistas de vanguarda, houve alguns contratempos

com a polícia, que jogou até uma bomba no teatro.

Em entrevista ao jornal ‘O Diário’, em agosto de 1993, Arutim relatou

o fato:

“Eu, Renato Consorte, Zanone Ferrite, Aracy Balabanian, Antonio Fagundes, começávamos

a encenar em um teatro, a polícia vinha, fechava o teatro, a gente saía pela outra

porta e ia encenar em outro teatro. Mas vem desta época a minha formação (...)”

Cena de O Menino Maluquinho, de Ziraldo


JOSÉ ANTONIO MERENDA 91

No Teatro, como ator, encenou inúmeras peças, entre elas: ‘Escola de

Mulheres’, de Molière, com direção de Augusto Boal e ‘Arena conta Tiradentes’,

de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal (1967); ‘Arena conta

Zumbi’, de Gianfrancesco Guarnieri (1969); A Comédia Atômica’, de Lauro

Cezar Muniz (1969); ‘A Resistível ascensão de Arturo VI’, de Bertolt Brecht

(1970); ‘Um, Dois, Três de Oliveira Quatro’, de Lafayette Galvão (1972);

‘Este ovo é um galo’, de Lauro César Muniz (1973); ‘Nós também sabemos

fazer’, de Paulo Goulart (1975); ‘O Vison Voador’, de Ray Cooney (1987); ‘O

Inocente’, de Sérgio Jockymann (1978). Ainda dirigiu várias peças de sucesso,

no Rio, São Paulo, Porto Alegre e interior paulista.

Em sua carreira artística também atuou no Cinema, com participações

importantes em diversos filmes, tais como: ‘O Picapau Amarelo’, direção de

Geraldo Sarno e ‘O Detetive Bolacha Contra o Gênio do Crime’, direção de Tito

Teijido (1973); ‘Flor do Desejo’, escrito e dirigido por Guilherme de Almeida

Prado (1983); ‘Sonho Sem Fim’, dirigido por Lauro Escorel (1985); ‘O Menino

Maluquinho’, dirigido por Helvécio Ratton, baseado no livro infantojuvenil

do cartunista Ziraldo (1995).

Na Televisão, trabalhou em diversas emissoras, em telenovelas e minisséries.

O seu primeiro trabalho foi na novela ‘Meu Pedacinho de Chão’,

de Benedito Ruy Barbosa, exibida simultaneamente pelas TV Cultura e Globo

(1971). Depois, atuou: na TV Tupi: “Vitória Bonelli”, de Geraldo Vietri (1972);

na TV Bandeirantes: ‘A Deusa Vencida’, de Ivani Ribeiro (1980); ‘Os Imigrantes’,

de Benedito Ruy Barbosa, Wilson Aguiar Filho e Renata Pallottini (1981); ‘O

Campeão’, de Jayme Camargo (1982); ‘Os Imigrantes – Terceira Geração’, de

Wilson Aguiar Filho e Renata Pallottini (1982); na TV Manchete: ‘Carmem’, de

Glória Perez (1987); na Rede Globo: ‘Champagne’, de Cassiano Gabus Mendes

(1983); ‘Vereda Tropical’, de Carlos Lombardi (1984), ‘A Gata Comeu’, de

Ivani Ribeiro (1985); ‘Tenda dos Milagres’, minissérie de Aguinaldo Silva,

inspirada no romance homônimo de Jorge Amado (1985); participação especial

em ‘Cambalacho’, de Sílvio de Abreu (1986); ‘Sinhá Moça’, de Benedito

Ruy Barbosa, inspirada no romance homônimo de Maria Dezonne P. Fernandes

(1986); ‘Vida Nova’, de Benedito Ruy Barbosa (1988); ‘’Top Model’,

de Walther Negrão e Antonio Calmon (1990); ‘Renascer’, de Benedito Ruy

Barbosa (1993); ‘Memorial de Maria Moura’, minissérie de Jorge Furtado

e Carlos Gerbasi, adaptação do romance homônimo de Rachel de Queiroz

(1994); no SBT: ‘As Pupilas do Senhor Reitor’, de Lauro César Muniz, uma

versão do romance de Júlio Dinis (1995); e seu último desempenho em ‘A

Idade da loba’, de Alcione Araújo e Regina Braga, exibida pela TV Bandeirantes

no período de 24 de julho de 1995 a 19 de janeiro de 1996.

Ele desempenhava seus papéis com alma, brilhantismo e galhardia,

dando vida a seus personagens e os tornando inesquecíveis: Oscar, de ‘A Gata


92

LUIZ CARLOS ARUTIM

Comeu’; o libanês Rachid, de ‘Renascer’; o técnico de futebol Bepe, de ‘Vereda

Tropical’; o Sr. Augusto, de ‘Sinhá Moça’; o Silas, de ‘Top Model’; o Dr. João Semana,

de ‘As Pupilas do Senhor Reitor’; entre outros.

Como reconhecimento público, em 1969, recebeu o Prêmio “Aldeão”,

como melhor diretor; em 1970, como melhor ator coadjuvante; em 1978, foi

laureado com o Prêmio Molière, como melhor ator na peça ‘O Inocente’, de

Sérgio Jockymann, com a interpretação inigualável de Luigi Pécora; em 1982,

foi eleito melhor Ator de Televisão pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte,

com atuação na novela ‘O Campeão’, da TV Bandeirantes, no papel de Orlando

Cardoso.

Sucesso nacional, Arutim enveredou pela cultura de sua terra natal, Barretos

Apesar de todo esse sucesso, nunca se esqueceu de Barretos. Em 1990,

tive o prazer de ser a primeira pessoa a conversar com o Arutim e tomar

conhecimento do projeto ambicioso que desejava desenvolver e que iria movimentar

toda a classe artística barretense. Ele poderia ter montado essa

peça em qualquer cidade brasileira, ou mesmo, no eixo Rio-São Paulo, com

artistas profissionais, mas não: preferiu vir à sua terra natal e contar com

o talento barretense.

A peça escolhida foi ‘Vereda da Salvação’, do dramaturgo barretense

Jorge Andrade, de renome no Brasil e no exterior, e que Arutim chamava de

Aluizio, seu nome de batismo. O projeto me entusiasmou. Solicitou-me, então,

que convidasse os artistas vinculados aos grupos de teatro da cidade.

O espetáculo estreou no dia 25 de maio de 1991, no Teatro “Jorge Andrade”,

sob sua direção e assistência de Regina Papini, com as participações dos seguintes

grupos: GTAAB – Grupo Teatral “Amor à Arte” de Barretos, GTASB – Grupo de Teatro


JOSÉ ANTONIO MERENDA 93

“Atair da Silva Bonfim” (Ginásio Vocacional), GTI – Grupo de Teatro do Industrial (Ginásio Industrial)

e Teatro do Terceiro Mundo, com o seguinte elenco (em ordem alfabética): Adilson

Calvit, Adonias Garcia, Alex Rodrigues, André de Freitas Bastos, Carlos Rolfe,

Carolina Stoppa, Cláudia Ávila, Daniela Rezende, Eunice Espíndola, Euri Silva,

Foster Inhota, Francis Cristina, José Antonio Merenda, Josy de Oliveira, Lú

Sampaio, Luciana Rodrigues, Malu Lima, Marcelo Bezerrah, Neusa Tonani,

Nilton Vieira, Osmildo Andrade, Osni Pinheiro, Reinaldo Cardoso, Robes Brito e

Suenio Espíndola. Com cenário de Nivaldo Gomes e Eduardo Brant. Figurinos:

Pedro Perozzi. Painel e execução: Cesários Ceperó e Pedro Perozzi.

Em 1992, Arutim volta a Barretos. Desta vez, para realizar outro projeto:

este, além de ambicioso, era ousado, pois queria produzir a primeira

telenovela no interior. Ele foi à TV Soares Educativa e o Júnior Soares, um visionário,

comprou a ideia. Alguns meses depois, estava lá todo o elenco barretense

reunido para mais um desafio, a produção da novela ‘Maracutaia’, de

Eloy Araújo. As gravações chegaram a movimentar esta terra com tomadas

de cenas em vários pontos da cidade. Infelizmente, por motivos alheios à sua

vontade, a novela não teve sequência.

Como reconhecimento público, em 1963, recebeu o Diploma de ‘Gente

Que é Notícia, outorgado pela Rádio Barretos e Jornal “O Correio de Barretos”; em 1982,

Arutim recebeu o título de “Cidadão Benemérito de Barretos”, outorgado pela

Câmara Municipal; a estrada que liga o bairro do Frigorífico e a Rodovia Faria

Lima, passou a ser denominada de Estrada Vicinal “Luiz Carlos Arutin”; em 2014,

foi criada a Medalha de Ordem do Mérito Cultural “Luiz Carlos Arutin”, através

da Lei 4.971, de 30 de abril de 2014, com outorgas, pela Câmara Municipal,

anualmente, em comemoração ao Dia da Cultura, a personalidades de destaques

nos afazeres culturais na cidade.

Arutim é patrono da Cadeira nº. 37 da ABC - Academia Barretense de Cultura,

cuja primeira titular foi Eunice de S. Espíndola (falecida) e, a segunda, Ana

Cláudia Ávila Mader.

Em decorrência da morte de seu amado filho e a consternação que

tomou conta da classe artística, fãs, amigos e de toda a cidade, a Prefeitura de

Barretos decretou luto oficial por três dias, assinado pelo prefeito Nelson James

Wright.

Cerca de 8.500 pessoas fizeram fila no Velório Municipal de Barretos, conforme

estimativa da Polícia Militar, para renderem suas últimas homenagens.

Duas personalidades artísticas presentes no velório concederam entrevistas

ao jornal ‘Folha de São Paulo’: o cantor Sérgio Reis, amigo da família de

Arutim há mais de 20 anos, disse que o ator:

Gostava de viver no meio do povo e que sempre valorizou a simplicidade e a amizade

e Benedito Ruy Barbosa, autor global, muito emocionado, declarou:

Vou tirar o personagem criado para Arutim, da próxima novela das 20h da Rede Globo,


94

LUIZ CARLOS ARUTIM

‘O Rei do Gado’. Vou começar a escrever pensando nele. Isso vai me bloquear.

O sepultamento ocorreu às 17 horas do dia 9 de janeiro de 1996, no

Cemitério Municipal, cercado de muita comoção.

Dados bibliográficos:

MENEZES, Ruy. Espiral – História do Desenvolvimento Cultural de Barretos. Barretos, SP. ED.

INTEC.1985.(p. 611)

MARQUES, José Expedito. Que Teatro é Este?. São Paulo. Ateniense.1988 (p. 53)

MERENDA, José Antonio. Artigos no jornal “O Diário”, edições de 26/07/1991, 11/01/1996

e 19/01/2002

JORNAL “Folha de São Paulo” – Folha Nordeste – Edição de 29/11/1992 e 10/01/1996

ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020.

WIKIPÉDIA. Biografia de Luiz Carlos Arutim.

José Antonio Merenda é ator, diretor teatral, professor e historiador;

formado em Licenciatura em História pelo Faculdade Barretos; é aposentado da

Caixa Econômica Federal; é membro da ABC – Academia Barretense de Cultura –

ocupa a Cadeira nº 29


Nidoval Reis e a destruição do

1° Grupo Escolar de Barretos

H

José Ildon Gonçalves da Cruz

á quase cem anos, no dia 21 de dezembro de 1922, nascia, no Distrito

de Laranjeiras, no município de Barretos, Nidoval Thomé Reis, o futuro Nidoval

Reis. Era o primeiro filho da professora Risoleta da Silva Reis e do professor

e farmacêutico José da Silva Reis, também conhecido por Juca Reis.

A professora Risoleta casou-se, em primeiras núpcias, com João Carlos

de Almeida Pinto Junior, filho do Coronel João Carlos de Almeida Pinto e de

dona Maria Amélia de Oliveira Pinto, em 1912. Depois, casou-se com José

da Silva Reis, em 1919, ano da pandemia de gripe espanhola que matou o

presidente da república eleito, Rodrigues Alves. O irmão de Nidoval Reis, Nivaldo

da Silva Reis, faleceu no ano de 1924. Em 1925, nasceu o seu segundo

irmão, recebendo o nome de Nivaldo da Silva Reis, em homenagem ao irmão

falecido. A irmã caçula se chamava Valdoni Aparecida dos Reis.

A família Reis gostava tanto do nome do primeiro filho, Nidoval, que,

para nomear os demais filhos, organizou as mesmas letras do seu nome,

com uma beleza poética e sonora. Do nome de Nidoval nasceram os nomes

Nivaldo e Valdoni. Aos 15 de fevereiro de 1985, o poeta se despediu de cada

um, ao falecer em Bauru; solicitou que suas cinzas fossem semeadas na Praça

Primavera, hoje, Praça Poeta Nidoval Reis.

Escreveu os seguintes livros: Sob a sombra da desgraça (1951), Um

Pouco Além do Mundo (1955), Quinze poemas e um soneto para minha mãe

(1965), Chuva miúda (1968), Calendário de trovas (1981), Onze de Antigamente

(Sonetos) (1982), Calendário de poemas (1982) e Calendário de

sonetos (1985), além de deixar um livro inédito, Estrada tuberculosa.

Ele sempre foi poeta — e jornalista na imprensa paulista e carioca, radialista,

apresentador da “Hora da Seresta”, da TV Bauru, além de ser Diretor

de Relações Públicas da mesma. Escrevia seus poemas nas paredes dos bares,

na areia, em cadernos e folhas soltas; em muros, em lugares onde comia


96

NIDOVAL REIS E A DESTRUIÇÃO DO 1° GRUPO ESCOLAR DE BARRETOS

pastel, tomava café, se alimentava. Gostava de pimenta e leite ninho

Desenhava seus versos nas paredes no local de trabalho, em qualquer

lugar, a qualquer hora:

Meu destino é fazer verso.

Fazer verso e correr mundo…

Para os bons, eu sou poeta;

para os maus, um vagabundo

Família Reis: Nidoval Reis, José da Silva Reis, Risoleta da Silva Reis, Valdoni Aparecida dos Reis (no colo) e

Nivaldo Reis. Foto tirada em 25 de outubro de 1934. Acervo particular de Silvio Rodrigues de Morais

Gostava de redigir. Pegava o papel da pauta do dia, colocava na máquina

de escrever, permanecia de dois a três minutos, quietinho. Daqui a pouco,

começava a bater os dedos na máquina. Era uma coisa absurda.

Fazia assim, todos os dias — preparava a matéria do jornal: ele dormia

e, no seu sono, preparava o que seria publicado no dia seguinte. De manhã,

se sentava no seu gabinete, pensava e colocava a folha na máquina. Gostava

de ler, de escrever, de estudar.

Estudou no 1º Grupo Escolar de Barretos, atual Escola Estadual “Dr. Antonio Olympio”,

inaugurado no dia 30 de setembro de 1912, dez anos antes do nascimento do

poeta. Ele dizia que neste Grupo aprendeu tudo que sabia na vida.

O seu único professor se chamava Dorothóvio do Nascimento, a quem

dedicou um poema.

O tempo passou. Nidoval mudou-se de Barretos. Mas o seu professor e

o seu 1º Grupo Escolar não saíam dele.

No dia seguinte ao aniversário de Barretos, às 15h do dia 26 de agosto

de 1972, Nidoval Reis esteve no antigo Grupo Escolar. O seu único professor

estava presente. Ele declamou o poema “Soneto das Reminiscências Infan-


JOSÉ ILDON GONÇALVES DA CRUZ 97

tis”, dedicado ao seu docente. Depois, o poema foi emoldurado e colocado na

parede de sua antiga sala de aula:

Era esta sala. Oh! Se me lembro, o vulto,

escorreito do velho professor,

a dizer-nos palavras sobre o culto

ao Saber, ao Brasil e ao Amor.

Era esta sala. E, ao visitá-la, exulto,

lembrando-me do mestre protetor.

Como é triste saber que, hoje sepulto,

o passado é Saudade, é tédio, é dor.

Era esta sala. Confidências fiz

sobre os cadernos debruçado, triste,

sonhando, no futuro, ser feliz

Era esta sala, o mesmo quadro, enfim

de toda esta Saudade, ainda existe

o garoto escolar dentro de mim.

Nidoval era amigo do jornalista e radialista barretense José Vicente

Dias Leme. Depois dessa homenagem, ele escreveu uma carta de agradecimento

e pediu que seu amigo agradecesse aos amigos barretenses pelo evento,

principalmente ao amigo Ruy Menezes (hoje, patrono do nosso museu):

há ainda um nó em minha garganta, marcando carinhosamente os instantes belíssimos

que me foram proporcionados na sala de aula onde, um dia, tive o prazer e a felicidade

de conseguir ser alguém na vida. Não poderia, de forma alguma, deixar de levar

até você, o meu mais sincero agradecimento pela promoção. O sucesso dela nasceu de

sua iniciativa. Valeu a pena a minha estada aí no velho Grupo Escolar. Transmita a

todos os que lá estiveram, a minha gratidão.

Nidoval amava a escola. Tinha um respeito pelos professores, pela professora

dona Tita e alunos. Tudo que se referia à escola e à educação era determinante

para a sua vida. As seguintes personalidades foram seus colegas

de classe, entre 1933 e 1936: Abel Elias, Abílio Anthero Machado, Aguinaldo

Pires, Álvaro Bearzoti, Amilcar Vicentini, Antônio Anania, Archimedes Gai,

Ariones Pereira, Arlindo de Souza, Armando Correa, Assis Francisco, Atayde

do Nascimento (filho de Dorothóvio do Nascimento, único professor de Nidoval

Reis), Atílio Caramori, Ayr de Moraes, Bolivar Fernandes, Brasilino

de Carvalho, Circe Alfredo Bonatelli, Demetrio Antônio, Dirceu Ferreira de

Faria, Dreyfus Bucci, Edmundo Vicentini, Emílio Castelar Norona, Heli Gue-


98

NIDOVAL REIS E A DESTRUIÇÃO DO 1° GRUPO ESCOLAR DE BARRETOS

des de Toledo, Jeronymo de Oliveira, Joaquim de Oliveira, José Antônio Dias,

José Barbosa Filho, José Carlos Dias de Toledo, José Guimarães, José Jorge

Ferreira, José Raymundo de Carvalho, Josino Fontoura Pires, Lelio Barbosa,

Luiz de Deus Silva, Paulo Velloso de Castro, Pedro Ernesto Sobrinho, Renato

Bearsoti, Rubens Sá, Sebastião S. da Fonseca, Valeriano de Freitas, Waldemar

B. Ferreira, Waldemar Collabono, Waldomiro Pereira Gomes, Wilson Pedro,

Zico Lapinsk.

1º Grupo Escolar de Barretos. Foto: Acervo Particular de Ruy Carvalho

Em 1977, teve grande decepção relacionada ao seu querido 1º Grupo

Escolar, que foi derrubado pelo poder público de Barretos. Ele registrou que o

Executivo e o Legislativo barretenses da época nem sabiam o que seria tombamento

e, de forma absurda, decretaram a destruição do único monumento

histórico-educacional de Barretos, um testemunho do trabalho, da inteligência,

do amor à terra, das gerações pioneiras, onde plantaram o seu destino.

O poeta escreveu o seguinte texto para o Jornal Cidade de Barretos, do dia 6

de novembro de 1977:

“Abominável, sob todos os pontos de vista, foi o crime hediondo cometido contra o

patri mônio histórico de Barretos, quando se concretizou o massacre à estrutura do

Grupo Escolar “Dr. Antônio Olympio”. Não sabemos mesmo a quantas estavam os

pensa mentos dos epocários (da época) mandantes da terra chocolate, desse abençoado

solo onde não escolhemos para nascer, mas do qual sempre nos orgulhamos, quando

traçaram a malfadada destruição daquele único monumento histórico-educacional capaz

de suportar a sucessividade de incontáveis centenários. A nossa voz não é demagógica,

porque jamais estivemos em nossa terra para pedir (o que seria muito natural)

um voto aos nossos conterrâneos e a todos aqueles que escolheram Barretos para

alicerce de seu futuro, mas ela se levanta para repudiar o nefasto acontecimento. Nós

que, em 1936, recebemos o nosso modesto mas utilíssimo e bem estruturado Diploma

Escolar, único em toda a nossa existência, sob o teto desse sagrado Grupo Escolar; nós

que até hoje trazemos em nossa memória todo aquele passado de alegrias e tristezas,


JOSÉ ILDON GONÇALVES DA CRUZ 99

sentimo-nos frustrados por nada podermos ter feito contra o mais maquiavélico ato

administrativo contra a história barretense. A preservação do patrimônio histórico

de uma cidade é mais do que obrigatório e não é justo que com um simples decreto ou

mesmo uma Lei votada, às pressas, se jogue ao chão o que gerações pioneiras tenham

deixado de si, como testemunho do seu trabalho, de sua inteligência, do seu amor à

terra, onde plantaram o seu destino. O executivo e o Legislativo da época tinham, isso

sim, obrigação de projetar e realizar sólida reforma para o Grupo Escolar “Dr. Antônio

Olympio”, depois (e como mereceriam aplausos e até mesmo placa de bronze com seus

nomes) fazerem construir, à sua volta, artística redoma de cristal, para que as gerações

futuras se orgulhassem do discernimento de cada um, o que, infelizmente, não se

pode fazer agora. A nosso ver, o tombamento do histórico prédio teria sido o caminho

mais acertado. Pelo visto, sem querermos cometer injustiça, os epocários, nem de leve,

sabiam na realidade, o que seria tombamento. Pelo crime, a todos eles, o nosso sentimento

de tristeza.”

O tempo passou. Poucos tiveram a sorte de ter convivido com o poeta.

Seus conhecidos falam dele com encantamento. Era uma pessoa estranha e

generosa, confidente; uma coisa esquisita, fora de série. Era muito bom de

coração, incomum. Um intelectual, uma pessoa sensata. Algo interessante:

ele transitava em todo lugar, assim revelaram os seus contemporâneos.

Tinha tudo para ser uma pessoa arrogante, mas não era. Era poderoso

e não usava esse poder em benefício próprio. Nunca se elogiava pela posição

que tinha. A sua humildade era demais. Ele reclamava muito das pessoas,

mas da vida, nunca reclamou — e isto encantava.

A personalidade de Nidoval era que os outros sempre avançassem. Ele

não diminuía ninguém, nem se diminuía; nem se exaltava. Era mediador.

Sempre fez isso. Sempre ajudou as pessoas. Há muita gente que cresceu no

jornalismo, na política, no meio artístico, na educação, porque ele sempre

deu forças. É aquela coisa — há dois tipos de pessoa: as que nasceram para

aplaudir e as que nasceram para serem aplaudidas.

Nidoval foi as duas pessoas ao mesmo tempo.

Ele tinha a humildade de aplaudir e a humildade de ser aplaudido.

José Ildon Gonçalves da Cruz é membro efetivo da Academia

Barretense de Cultura - ABC, cadeira 23, dos patronos Nidoval Reis e João Cornélio

Perini. Doutorando em Educação, pela Unifesp, sob a orientação da Profª Drª Cláudia

Panizzolo. Autor do livro: Nidoval Reis: biografia de um poeta


O bairro industrial do

Frigorífico: Vila Operária

T

José Mesquita

(colaboração: José Antonio Merenda)

udo começou com a instalação, em Barretos, em 1913, da Companhia Frigorífica

Agropastoril, pelo Conselheiro Antonio Prado, sendo o primeiro frigorífico

do país. Em 1923, o mesmo foi vendido ao grupo inglês Brazilian Meat Company,

e, em 1924, a empresa a denomina-se S.A. Frigorífico Anglo, com sede na cidade

de São Paulo.

Vários fatores contribuíram para a instalação do frigorífico em nossa

cidade, como as invernadas de grande qualidade que Barretos possuía; o Córrego

Pitangueiras, que ficava perto do local e, aliando o espírito empreendedor do

Conselheiro Antonio Prado, um dos grandes homens do Império e da República,

que ocupava o cargo de presidente da Companhia Paulista de Estradas de Ferro,

trazendo para cá, com inauguração no dia 25 de maio de 1909, os trilhos que

estavam parados em Bebedouro.

A partir da implantação do frigorífico, que ficava em local ermo e distante

do núcleo urbano, foi necessária a criação de uma ‘vila operária’ para

atender as necessidades de seus trabalhadores e suas famílias. Com isso,

foram criados grupos de casas, denominadas ‘colônias’. Estas casas, em sua

maioria, eram geminadas e destinadas a empregados graduados ou não,

construídas por tijolos produzidos na Olaria, com a marca ‘Anglo’. A Vila Operária

era uma família unida, todos se conheciam. O local contava com pontos de

lazer, cultura, comércio, estabelecimentos de ensino, igrejas etc., como segue:

Avenida Central - a principal, na entrada do bairro, era destinada à moradia

de encarregados e chefes de seção;

Avenida São Paulo - localizada na entrada do bairro e defronte à Avenida Central,

separada pela Estrada de Ferro;

Rua Barretos - destinada a empregados, localizava-se transversalmente às

avenidas São Paulo, Coronel Luciano e Colina;

Rua Coronel Luciano - destinada a empregados, localizada entre as avenidas


O BAIRRO INDUSTRIAL DO FRIGORÍFICO: VILA OPERÁRIA 101

Colina e São Paulo, separada também pela colônia de quartos de empregados

solteiros, barbearia e cantina da dona Palmira;

Avenida Paulista - constituída por duas colônias de casas geminadas que se

confrontavam, as quais iniciavam na Travessa Federal e seguiam até o Grupo

Escolar “Fábio Junqueira Franco”. No início dessa avenida havia o campo de futebol,

do Paulistano, de onde se avistava o Clube dos Ingleses e o Campo de Golfe;

Avenida Campinas - constituída por duas colônias de casas geminadas, uma

em frente à outra;

Avenida Federal - constituída por excelentes residências, destinadas a executivos

ingleses e altos funcionários (cargos de confiança) da empresa;

Rua Municipal - onde se localizava a Igreja Presbiteriana e o Grupo Escolar;

Avenida da Estação - grupo de casas geminadas, de duas em duas, destinado

também a empregados. Situava-se após a Igreja Presbiteriana, em rua de acesso

à estação de trem;

Avenida Colina - com casas geminadas, situadas ao fundo da rua Coronel Luciano,

também conhecida por Colônia do Sapo, pois localizava-se próximo às casas

de bombas de água e da represa e, mais adiante, também se encontrava a

‘mina’, que servia a muitos pela qualidade da água.

Como opções de entretenimento, cultura e lazer, o bairro possuía um

cinema, localizado ao lado do Clube Social e Recreativo do Frigorífico, tendo à sua

frente restaurante, armazém e padaria, além de possuir estabelecimento de

ensino e templos religiosos.

Raro registro do Cine Frigorífico (arquivo do autor)

Cine Frigorífico - era frequentado por moradores, que esperavam ansiosos

pelos filmes de terça, quinta, sábado e domingo. Anexo ao cinema funcionava

o ‘serviço de alto falante’, sob o comando do Sr. Ricardo Rodrigues;


102

JOSÉ MESQUITA

Clube Social e Recreativo do Frigorífico - cujos associados eram empregados do

Frigorífico e seus dependentes. Era muito frequentado, onde aconteciam memoráveis

bailes, espetáculos de artistas conhecidos e os famosos bailes de

Carnaval, com destaque aos desfiles de blocos, concursos de fantasias e matinês;

INCO – Indústria e Comércio, era a festa do ‘Dia do Trabalhador’. As avenidas

eram decoradas para a grande festa, com realizações de gincanas, jogos de

futebol entre seções da fábrica, atividades de atletismo e outras competições

esportivas que ocupavam o dia inteiro;

Clube dos Ingleses - o chamado Club House, exclusivo para uso dos ingleses e

seus convidados, para festas e lazer;

Campo de Golfe - um dos melhores campos de golfe do Brasil, onde eram

realizados grandes torneios e de uso exclusivo dos ingleses e seus convidados

especiais;

Grupo Escolar “Fábio Junqueira Franco” - situado ao lado da Igreja Presbiteriana e

das avenidas Campinas e Paulista, inicialmente ministrava-se o Curso Primário,

da 1ª à 4ª série, em dois turnos diurnos; posteriormente, foi implantado

o Curso Ginasial, no período noturno. Esta escola representava o início de

grandes amizades, pois, a maioria dos filhos de empregados estudava lá;

Escolinha de Admissão – curso de preparação para o ingresso ao curso ginasial;

Grupo de Escoteiros D. Pedro – existente na década de 1950, comandado pelo

Tenente Britto;

Casarão - das famílias Mazelli e Narduchi, estava localizado no final da

via Conselheiro Antonio Prado, confluência com a avenida da Estação;

Igreja Presbiteriana - situada na entrada do bairro, era frequentada por

moradores evangélicos;

Capela – situada na avenida São Paulo, criada por Armando dos Santos,

era frequentada por moradores católicos, pois antes da construção da mesma,

os fiéis iam até à Igreja da Vila Pereira;

Centro Espírita “Allan Kardec” - situado nas proximidades da Estação de Trem;

Campos de futebol – o maior e principal do bairro era o do ‘Juventus’, ao

lado da avenida Federal: era todo gramado, com muros e arquibancadas. Pelo

time passaram grandes jogadores, alguns até com carreira profissional; o

Campo do Paulistano possuía gramado e era aberto, onde se disputavam partidas

amistosas e treinamento dos moradores das adjacências; Campo do Nacional, da

Vila Silva (Vendinha); Campo do Olaria – a princípio, era um pequeno espaço gramado

para as chamadas ‘peladas’ de fim de tarde, sendo, posteriormente, construído

um campo oficial e outro de treinamento, anexos ao Clube Social e Recreativo

do Frigorífico, onde eram realizados jogos e torneios;

Restaurante, Armazém e Padaria - situados na avenida Central, bem defronte


O BAIRRO INDUSTRIAL DO FRIGORÍFICO: VILA OPERÁRIA 103

ao cinema e ao clube. Seus principais proprietários foram Carlos Ortolan,

famílias Kavasteck, Adelino Meirelles, Joaquim Figueiredo e, por último, pertenceu

à família Sarri.

Cooperativa – destinava-se à venda de gêneros alimentícios consignados

em folha de pagamento do frigorífico;

Estação de Trem – da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, a partir de 1921,

servia para embarque e desembarque de passageiros. A Estação possuía,

também, ramais ferroviários de utilização da fábrica para o transporte de

gaiolas de bois, mercadorias e também a famosa ‘Maria Fumaça’, para transporte

de empregados moradores da zona urbana de Barretos.

Pontilhão - localizado sobre o Córrego Pitangueiras, atendia, primeiramente,

além da Estrada de Ferro, pessoas e carros que utilizavam a rua 18, na Vila

Pereira e, posteriormente, a Via Conselheiro Antonio Prado. Em época de chuva,

havia enchentes no local.

Vila Silva – mais conhecida por Vendinha, era considerada parte do bairro,

onde residiam inúmeras famílias, mas as residências não pertenciam ao Anglo.

Imigrantes – No início da operação da fábrica, o bairro contou com um

expressivo número de trabalhadores imigrantes; muitos lituanos, eslovacos,

poloneses, ucranianos, alemães, portugueses, italianos e também de outras

nacionalidades do leste europeu.

Barro Branco – localizado um pouco acima do pontilhão sobre o Córrego

Pitangueiras, local aprazível e preferido pela garotada para prática de natação

e até de piquenique.

Cocheiras – situadas atrás da fábrica, onde eram mantidos os bois para

a ‘abate’ e onde residiam famílias de boiadeiros.

Detalhe da Colônia de Moradores (arquivo do autor)


104

JOSÉ MESQUITA

O BAIRRO ATUAL

A partir da década de 1970, com a desativação da via férrea e dos

ramais e o asfaltamento da via Conselheiro Antonio Prado, ligando o núcleo

urbano de Barretos ao bairro do frigorífico, diminui, sensivelmente, a distância.

Ainda, o surgimento de bairros adjacentes, como Nogueira e Ibirapuera e os

conjuntos habitacionais, CECAP I, CECAP II e Pedro Cavalini propiciaram a debandada

de seus moradores, com aquisições de casas nessas localidades.

Nos dias atuais, além da fábrica, o bairro mantém oito casas na avenida

Central; parte das casas onde residiam os ingleses; o Clube Social do Frigorífico;

o pontilhão, totalmente abandonado; o campo de futebol do Olaria; o Club House

e o campo de golfe; as casas Colônia da Estação, hoje pertencentes a particulares;

a Igreja Presbiteriana; o Centro Espírita “Allan Kardec”; a estrutura do Grupo Escolar “Fábio

Junqueira Franco”, hoje transformada no 33º Batalhão da Polícia Militar.

A Rua Municipal passou a denominar-se Estrada Vicinal “Luiz Carlos Arutin”; a

Avenida Estação passou a se chamar Via Marli Vedovato. Ainda há o surgimento de

novos loteamentos e conjuntos habitacionais.

Hoje, só temos as recordações, através de fotografias, e saudades de

termos vivido num bairro que nos proporcionou grandes alegrias, amigos

verdadeiros e incontáveis, de bom caráter, que enriqueceram nossa criação;

nossos agradecimentos por tudo que nos foi concedido por Deus.

José Mesquita nasceu em Barretos, no Bairro do Frigorífico, em 1954. Formado

em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Bebedouro, é aposentado

da ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.

É pesquisador incansável do Bairro do Frigorífico


Bezerrinha: setenta anos

1

José Vicente Dias Leme

Transcrição de reportagem publicada no jornal

“O Diário” (Barretos/SP) de 12/04/1990

945. Mês e dia, não me lembro. Estava eu nas oficinas do jornal A Semana

(onde meu pai trabalhava), quando apareceu Antônio Bezerra de Menezes

(Sinhô), de passagem, dizendo que ia para a Estação da Paulista, onde filmaria

a chegada do sobrinho Bezerrinha, que estava voltando da Guerra. Convidou

o Chiquinho para ir com ele — e este pediu que eu também fosse. E fomos os

três. De carro. Na estação, o movimento era grande. Seo Sinhô arranjou, com

o gerente da Paulista, Julião Secco, uma cadeira para nela subir e ter melhor

condição de filmar o desembarque. Chiquinho e eu fomos escalados para segurar

a cadeira, dando, assim, total segurança ao trabalho executado pelo tio

“pracinha” que chegava. Foi, esta, a primeira vez que vi o aniversariante de

hoje: 12 de abril. E a data é por demais significativa, porque Bezerrinha está

arredondando os 70. Nasceu em Barretos, em 1920, filho do dr. Francisco de

Assis Bezerra Filho e de dona Ilnah de Lima Bezerra. Casado com dona Lígia

Guerra Bezerra, tem seis filhos e um punhado de netos.

Bezerrinha e seus companheiros durante

a 2ª Guerra Mundial.

Fonte: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”


106

BEZERRINHA: 70 ANOS

O filme, nunca vi, nem tive notícia de que alguém tivesse visto. Mas a

chegada de Bezerrinha a Barretos foi filmada pelo seu tio Sinhô.

Eu tenho um rancho que fica em Barretos / Não existe outro igual no sertão

Moroso passa pertinho o Rio Grande / Soluçando uma doce canção.

Nome nacional da MPB, o compositor Bezerra de Menezes teve, como

primeira música gravada, no início dos anos 50, o samba “Triste Quarta-

-Feira”. O cantor foi Albertinho Fortuna, da Rádio Nacional, e a gravadora, a

Continental.

Eu sofro, sem um ai, sem um queixume / Ao ver o lança-perfume / Que no seu colo brincou.

Lembranças, eis tudo quanto me resta / Meu quarto parece em festa /

Mas sei que a festa acabou.

Quando das comemorações do Quarto Centenário de São Paulo, em 54,

Bezerrinha foi para as “paradas de sucessos” com seu samba-exaltação “Perfil

de São Paulo”, gravado na Columbia por Sílvio Caldas, que trinta anos antes

havia sido, em Barretos, motorista do dr. Benevides de Andrade Figueira.

Aonde estão teus sobrados / De longos telhados / E teus lampiões

E os moços da Academia / Na noite tão fria /Cantando canções

“Perfil de São Paulo” tornou-se um clássico da MPB, tanto que tem mais

de vinte gravações, sendo as de Silvio Caldas, Agnaldo Rayol, Jair Rodrigues,

Inezita Barroso, Titulares do Ritmo e Orquestra de Luiz Arruda Pais as mais

conhecidas.

E sinhazinha delgada / Pisando a calçada / Na tarde vazia /

O tempo mudou / Mas não apagou / A tua poesia.

Quando, nos anos 60, a gravadora Copacabana resolveu homenagear o

presidente Costa e Silva com um LP, pediu-lhe que relacionasse as dez músicas

da sua preferência para que Agnaldo Rayol as gravasse. E “Perfil de São

Paulo” abriu a lista das preferidas do então Presidente da República.

Não mudou / Não se acabou / A tua sedução / A garoa / Cai à toa / Pra guardar a tradição

São Paulo num só minuto / É o Braz, Tietê, Viaduto / Barracas de flores / E a multidão.

Ainda hoje, quando se vai homenagear São Paulo, o samba de Bezerra

de Menezes abre ou fecha qualquer evento. Tornou-se uma obrigatoriedade.

Quase como cantar o Hino Nacional nos jogos do Brasil.

Os pardais / Em madrigais / O sol rasgando / A cerração

E a noite com seus pintores / Apagando, acendendo em cores / Teu nome no meu coração.

Houve até um concurso para nele serem escolhidas as melhores mú-


JOSÉ VICENTE DIAS LEME 107

sicas do ano. Bezerra foi o grande vencedor com dois troféus: pela melhor

música e pelos melhores versos. O único a ganhar dois prêmios com uma só

música.

Ah! Quanta mágua / E você sabe porque / Se eu fosse um fio d’água / Estaria a correr

Até chegar ao mar... até você.

Ainda nos anos 50, Bezerra teve um encontro, no Rio de Janeiro, com

a cantora Linda Batista. Mostrou-lhe o samba “Exaltação ao Rio”, que Linda

gravou na RCA Victor dias depois. Como o compositor era do interior (Barretos)

e não vivia de música, a gravadora resolveu “criar” um parceiro para

Bezerra de Menezes. No disco de 78 rotações, ao lado de seu nome, aparece o

de Aldacyr Louro, um homem que era divulgador da RCA e que passou a ser

meeiro do compositor. O único em toda a história musical de Bezerra, que nem

mesmo nunca viu o seu sócio. Nem em fotografia.

Um pandeiro, um tamborim / Uma noite estrelada / As cores do arco-íris

Uma morena bronzeada / Quero tudo quanto é belo / Pra traçar este perfil

Da mais linda cidade / Do meu Brasil.

Rio de Janeiro / Doce quarela / Deus te pintou / E maravilhado / Do Corcovado

Não se afastou. / Praças Paris, gente alegre e feliz / Guanabara luzindo ao lugar

Copacabana é uma pequena / Bronzeada, debruçada / Olhando o mar.

Rio de Janeiro / Em fevereiro / Em março ou abril

É sempre a festa brejeira / Das cores da Bandeira / Do nosso Brasil”.

No auge dos Festivais Internacionais da Canção (FIC), idealizados e dirigidos

pelo barretense Augusto Marzagão e levados a efeito pela TV Globo, Marzagão

veio a Barretos num período de Festa do Peão, trazido pelo amigo Sebastião

Monteiro de Barros, hospedando-se na casa do sogro deste, Joaquim de

Oliveira Pereira. Eu fui encarregado de levar Marzagão à casa de Bezerra

de Menezes, para ouvir suas músicas. Acompanhada ao piano pelo marido,

Lígia cantou as músicas mais conhecidas e Marzagão ficou maravilhado com

a obra musical do conterrâneo. Pelas tantas, com os filhos de Bezerra e Lígia

já em casa, Marzagão pede a palavra e anuncia:

Quero comunicar-lhe que o meu primeiro convidado para júri deste ano do Festival Internacional

da Canção está aqui presente: é Bezerra de Menezes.

Imediatamente telefonei para O Diário, comunicando o fato. Minutos depois,

chegavam à casa da avenida 25 Monteiro Filho, Joel Waldo e o fotógrafo

Ismael, que registrou o momento. E Bezerra foi para o Festival. Ainda hoje,

quando a Globo, em seus programas jornalísticos, relembra a fase do FIC,

Bezerra sempre aparece.

Mais bela que o céu / Que o mar, que a terra / Que o luar

O sol, as estrelas / Vivem no brilho / Do seu olhar.


108

BEZERRINHA: 70 ANOS

Francisco de Assis Bezerra de Menezes - o Bezerrinha,

compositor barretense.

Fonte: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”

Mostrado para Elizeth Cardoso há quase trinta anos, o samba “Por

Falta de Adeus” ficou de ser gravado pela Divina, que acabou não o fazendo.

Se for por falta de adeus / Até nunca mais / Vá com Deus /

Pode ir embora, sem explicação / A porta é a mesma / Que um dia se abriu

Pra você no meu coração / Carregue tudo que é seu / Deixe nada pra mim

Nem saudade / Saudade pra quê / Nosso amor já morreu.

Entrevistado por um jornal da cidade há alguns anos, Bezerra disse

que “Um Milhão de Madrugadas” é, das suas músicas, a preferida. Sobre

essa marcha-rancho, conto-lhes a seguinte história: estava eu como gerente

da Rádio Cultural de Guaíra; Luiz Aguiar foi contratado para organizar uma semana

de shows e, como a cidade não tinha um hotel de luxo para hospedar os

artistas, foi alugada uma grande casa. No dia em que Altemar Dutra ia se

apresentar, procurei-o, levando duas cópias da letra de Bezerra, que já era

conhecido de nome, pois dele lhe falava sempre a cantora Helena de Lima,

que já havia gravado, de Bezerra, o samba “Quando a Saudade Chegar”.

Altemar, saído do banho, estava com uma toalha enrolada na cintura,

sentado na cama, violão nas mãos e um copo de uísque na cadeira. Ao seu

lado me sentei e mostrei a letra do “Milhão”. Pediu-me que a cantasse. Tirou

uns acordes no violão e, depois, cantamos juntos. Aprendeu a música e disse:

Vou gravar! Vai ser o meu segundo “Trovador”. No papel da minha cópia da letra, anotou

o número do seu telefone em São Paulo e disse: “Diga ao Bezerra para que me telefone.

Quero que vá jantar em minha casa. À noite, só saio quando tenho show. No mais, sou homem de ficar

em casa e quero ouvir o que Bezerra tiver para mostrar”. No mesmo dia, telefonei para a

casa de Bezerra, contei o fato à dona Lígia, dei-lhe o telefone do Altemar... e o

“miserável” do compositor não foi visitar o grande cantor, que queria gravar


JOSÉ VICENTE DIAS LEME 109

suas músicas. Hoje, Altemar é uma grande saudade.

Hoje eu completo um milhão de madrugadas / A noite se enfeitou prá me esperar

A lua, vendo estrelas acordadas / Trouxe o céu para as calçadas / Sobre o céu vou caminhar.

Boa noite estrelas, boa noite / Lua querida, minha namorada / Até parece que o sereno

Chora comigo nesta madrugada / Gente da noite me acenando / Quanto calor no seu abraço

Boa noite velho camarada / Eu sempre ouço por onde eu passo / Deixe que eu fique a sós a noite

Qual namorada sempre de mãos dadas / A noite é velha companheira

Me faz lembrar antigas madrugadas / No céu há um milhão de estrelas

Que se acenderam prá me esperar / Vou apagá-las uma a uma / Assim que o dia clarear”.

Em muitas das letras de suas músicas, Bezerra tem homenageado figuras

queridas da cidade, como aconteceu com o saudoso Padre Primo Scussolino

em “Canoeiro”, gravado na Copacabana por Inezita Barroso.

Hoje tem festa em Barretos / Com foguete e procissão

Padre Primo me pediu / Tu não faltes pro leilão.

Há perto de cindo anos, conheci em São Paulo o então diretor da Discos

Eldorado, Aloísio Falcão, que me ofereceu alguns discos e autografou um LP

para que eu levasse a Bezerra de Menezes. Nele estava o “Perfil de São

Paulo” com os Titulares do Ritmo, cantando à capela. De tanto falar no compositor

barretense, o diretor da Eldorado disse-me que ouviria mais músicas

de Bezerra, desde que estivessem gravadas em fita. Poderiam até acontecer

novas gravações. Bezerra não me deu a fita, o tempo passou. Aloísio saiu da

Eldorado e acabou não acontecendo nada.

Estava escrito desde o começo / Que eu te amaria a qualquer preço

Estava escrito na minha mão / Que teu seria meu coração

Prá que trazer o coração aflito / Tudo passou, nada restou, estava escrito.

Embora o Samba seja o seu forte, Bezerra tem composições gostosíssimas

na linha sertaneja, fazendo, também, música para se cantar em igrejas

e procissões. Quem não conhece estes versos?

Vento gelado batendo em meu rosto / Me diz que é agosto / Florada do ipê no sertão

Diz que eu me esqueça de todos apertos / Que eu vá prá Barretos / Pra Festa do Peão.

Há uma composição que, segundo dizem, Bezerra dedicou carinhosamente

à esposa Lígia.

Não troco o céu pela terra / Você bem sabe porque / Não troco nada no mundo

Pelo mundo que tenho em você. / Não troco o céu pela terra / Querer o céu para quê

Se eu tenho tudo na terra (bis) / Se eu tenho o céu em você.

Outra, também, dedicada à esposa, é o samba-canção “Contraste”, gra-


110

BEZERRINHA: 70 ANOS

vado pelo excelente Miltinho, no RGE.

Amor faz par com saudade / Saudade não vive sozinha

Deus quis que eu fosse só seu / E que você fosse minha.

Bezerra tem dezenas de sambas que precisavam ser gravados. Como

“Sol de Boêmio”, feito sob medida para a voz de Nelson Gonçalves.

Segue seu destino como a cigarra vadia / Que viveu cantando até morrer

Só quem morre um pouco a cada dia / Sabe realmente o que é viver”.

Certa feita, indo a Guaíra para uma audiência no Fórum, chegou até

à Rádio Cultura, onde eu trabalhava, contando-me ter feito uma canção para a

antiga “capital do ouro branco”. Pedi-lhe que cantasse, escrevesse a letra, e

ele o fez no verso de um envelope de ofício, assinando e datando: 10/02/76.

Nasceu da cantiga das águas / Em busca de um lago / Para morar / Nasceu da florada do ipê

Não perguntes por que / Ninguém sabe explicar. / Guairá Flor menina em botão

És pura e bela como uma oração / E esse teu jeitinho que me inspira

A te dizer e a repetir Guaíra / Conserva-te menina até o fim

Teus namorados querem-te assim. / Que bom dizer-te em forma de canção

Que estás todinha no meu coração (bis).

Gosto muito do samba-canção “Miragem”, gravado na Continental por

Lueli Figueiró. Para quem tem boa memória, quero lembrar que a gaúcha

Lueli foi a cantora contratada pelas Lojas Coteninga, quando da inauguração de

sua filial em Barretos, na avenida 19, ao lado da Casa Baroni.

Tanto esperei que eu nem senti / O inverno na folhagem

Então compreendi que andamos / Em vão correndo atrás de uma miragem.

Não dependendo da música para viver, Bezerra não procura cantor

para gravar os sambas que faz. Eu mesmo não conheço 5% da obra do nosso

compositor. E ele nem está aí. Com mais aposentadorias que o Franco Montoro,

seu negócio é viajar, bebericar, aproveitar a vida. No que está muito

certo. Salve ele!

De copo na mão, mesmo à distância, receba o tim-tim do seu velho

admirador e amigo.

Nota: Neste ano de 2020, completou-se o centenário

do nascimento de Bezerrinha; homenageado,

aqui, por essa bela amizade

José Vicente Dias Leme é barretense, de 1931.

Comunicador desde 1951, atua como jornalista e locutor na Rede Vida de Televisão.

Ocupa a cadeira 31 da ABC, cujo patrono é o

jornalista, escritor e poeta José Dias Leme


Elas, de Barretos!

Karla Armani Medeiros

S

“Antes, a mulher era explicada pelo homem, disse a jovem personagem do meu

romance ‘As meninas’. Agora é a própria mulher que se desembrulha, se explica”.

(Lígia Fagundes Telles)

e, na Literatura, a mulher demorou para se tornar autora de suas

próprias divagações, imagine na História? Aliás, na História ela demorou para

se tornar até personagem. Inserir a mulher como personagem histórico, seja por

sua trajetória individual de vida e trabalho ou como grupo social, foi tarefa da

nascente história de gênero – corrente só vigente após a segunda metade do século

XX. Quando se trata de história local e regional, cuja escala de observação e

tempo é reduzida, a situação da mulher como personagem é ainda mais desafiadora.

Isso, porque, durante décadas, a história local foi tratada pelo viés

memorialista, em que temas históricos de uma cidade eram narrados a partir

da vivência individual do autor, sem bases metodológicas e teóricas. Deste

modo, o passado de uma cidade era narrado pela exaltação das figuras dos

ditos grandes homens, seguindo a linha factual e política da história tradicional.

Numa análise genérica de obras memorialistas vê-se que às mulheres

eram relegadas poucas citações, geralmente as condicionando a seus maridos

e sobrenomes de família, ou a simples omissão. O contrário, porém,

revelam as fontes históricas: isto é, quando o historiador vasculha arquivos e

se depara com fotografias, jornais e documentos — qual não é a surpresa de

sempre encontrar por ali a aparição de mulheres?

Deste modo, como uma forma de demonstração de que as fontes históricas

podem ser desvendadas por olhares diferenciados, a História local

— hoje dialogada com a micro-história, a história social e a história cultural — tem a

chance de corporificar a vida, os atos, o trabalho e os legados de mulheres.

Dentro deste contexto, a cidade de Barretos se compõe como próspero

exemplo de localidade a ser estudada pelo viés da história local a partir da ação

de personagens mulheres. O passado da cidade foi alvo de vivências marcantes

nos períodos do Brasil Imperial e Republicano, visto Barretos ter sido

inicialmente habitada a partir da década de 1830 e oficialmente fundada em

1854. Nas últimas décadas, o município tem sido estudado por pesquisas


112

ELAS, DE BARRETOS!

historiográficas relevantes, que se desdobram em avaliar seu desenvolvimento

econômico a partir da veia pecuária, cuja extensão contribuiu para a

elevação do antigo arraial dos Barreto para a cidade sede do Brasil Central Pecuário.

A partir de toda a cadeia econômica, bem como os enredos políticos

e a solidificação das instituições públicas e privadas da cidade, Barretos é

constituída por uma gama de temas a serem estudados pelo viés da História,

dentre os quais a vida e obra de mulheres que, cada qual a sua maneira,

trabalharam vigorosamente para o crescimento da terra de Ana Rosa de Jesus,

fundadora da cidade junto a seu marido Francisco José Barreto.

Ana Rosa de Jesus e Joaquina Cândida de Jesus são os primeiros nomes femininos

registrados na história local, visto que ambas eram matriarcas das

famílias Barreto e Marques (Librina); doadoras dos 82 alqueires de terras

usados como base ao arraial no século XIX. São mães de duas personagens

que o memorialismo narra como excêntricas, conhecidas pela alcunha de

Rita Parnaíba e Inácia Homem. A primeira, caçula do casal Barreto, era assim conhecida

por certa vez ter atravessado o Rio Paranaíba (MG/GO) em uma jangada

improvisada em direção a Goiás. Tal travessia teria sido uma fuga, já que

foi perseguida pela polícia e condenada à prisão por júri em Araraquara por

conta de um assassinato. Além disso, Rita é personagem de episódios icônicos

defendendo as mulheres da família e era conhecida por dançar o cateretê, cantar

e festejar; era fazendeira. Já Inácia, filha dos Librina, era notada com jeito

masculinizado na aparência e nas atividades. Dirigia os serviços da roça, corria

os pastos, caçava, era dona de casa e administrava fazenda. Era reconhe cida

em toda a região por seu trabalho em tecer e tingir tecidos. Inclusive, tecia e

tingia suas próprias roupas, tendo o costume de usar calças azuis e um “robe”

por cima, causando estranhamento à gente da época. Consta-se também que

foi casada, mas por sofrer violência do marido, separou-se dele.

O século XIX abriga poucos registros sobre mulheres na cidade. Os principais

referem-se a propriedades materiais como inventários, testamentos e

outros registros civis. Referentes a escolas, somente, encontram-se nomes

individuais de professoras que se aventuravam em ministrar aulas quando

a cidade mais se parecia com uma pequena vila na transição do século XIX

para o XX, como as professoras Laurinda Vieira d’Escobar (1890), Jacintha de Almeida

Soares de Sá (1902), Anna Lacerda (1903), Maria da Glória Carvalho (1907) e Noemi Hilda Nogueira

(1900). Esta, além de ser professora e proprietária de colégio particular para

meninas na cidade, era a única colaboradora mulher no jornal O Sertanejo

(1900), sendo tradutora de textos em francês. Além dela, o jornal tinha a

colaboração da charadista e poetisa mineira Marianna Carmelitana d’Arantes, tia da

sra. Maria Isoleta Carneiro Vieira — única mulher presente na fundação do Grêmio

Literário e Recreativo de Barretos, em 1910, entre os 96 sócios fundadores. Ao lado

daquelas pro fes soras, sempre citadas em O Sertanejo, fulguravam ou tras que


KARLA ARMANI MEDEIROS 113

Professora Noemi Hilda Nogueira (1874-1911) – colaboradora e

tradutora do jornal “O Sertanejo” de Barretos entre 1900 a 1903.

(Fonte: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”)

em anos posteriores trabalharam

rumo à instrução

na cidade, dentre elas: Lúcia

Garrido Lex (escola municipal),

Joana de Monte Bastos

(escola maternal) e Maria

José d’Oliveira (Asilo-Creche);

sendo as duas últimas integrantes

de projetos educacionais

da renomada

educadora Anália Emília Franco

Bastos, que visitou Barretos

algumas vezes e instituiu

sedes de instrução

e filantropia na cidade,

no penoso início do século

XX. Centenas de crianças

foram atendidas por estes

projetos.

Dentre tantas professoras,

uma se destaca por

trabalhar de forma diferenciada:

dedicava-se a ensinar

os alunos em situações

de exclusão por problemas

socioeconômicos ou doenças

mentais; era a Profª Paulina

Nunes de Moraes. Sua atuação em Barretos, desde 1915, dava-se no bairro Outro

Mundo (depois conhecido por Fortaleza), que ficava atrás dos trilhos da Paulista,

onde habitava a população carente. O mesmo local sediava a Igreja do Rosário, da

qual Paulina foi importante membro como catequista e benfeitora.

Ainda como professoras, mas voltadas à cultura, outras mulheres trabalharam

para a instrução e instalação de importantes instituições em Barretos.

Na Música, as professoras e pianistas Haydée Oliveira Menezes e Adelaide Galati

permitiam aos barretenses a apreciação e o conhecimento acerca da música

clássica e das canções brasileiras em saraus, recitais e audições que promoviam

no Grêmio Literário e Recreativo. Haydée chegou a ser pianista da rede da

Instrução Artística do Brasil, levando o nome de Barretos a sete capitais federais

e a mais de cinquenta cidades paulistas por onde passou. Adelaide fundou,

em 1943, na cidade, o Instituto Dramático e Musical Santa Cecília, formando jovens na

erudição da música instrumental.


114

ELAS, DE BARRETOS!

Professora Paulina Nunes de Moraes, por volta de 1925, entre seus alunos no bairro Fortaleza, antigo

“Outro Mundo” (fonte: Arquivo da família Nunes de Moraes)

A primeira Pinacoteca da cidade foi criada a partir da ação de uma

professora de artes, Maria Aparecida Bernardes Tasso, da Escola Estadual “Mário Vieira

Marcondes” (Estadão), em 1959. Sua iniciativa, somada aos inesquecíveis salões

de arte que realizava na cidade, angariou obras de arte de grande relevância,

incluindo duas obras do pintor naif José Antônio da Silva. O Museu Municipal,

inaugurado em 1979 no prédio do antigo Paço Municipal, também foi resultado

do trabalho de uma professora, Lydia Scannavino Scortecci; que, enquanto diretora

da Divisão de Educação, Cultura, Esportes e Turismo, foi responsável pela

guarnição e apresentação das peças antigas ao público barretense.

Em outras áreas, mesmo em menor proporção, as mulheres também se

mantiveram ativas, como o caso da participação em movimentos militares

como a guerra paulista de 1932, chamada à época de Revolução Constitucionalista.

Muitas mulheres participaram na enfermaria, customização de uniformes,

produção de alimentos, dentre outras coisas. Como foi o caso de Sebastiana Dias

da Cunha (Fiúca), que foi reconhecida com honrarias pelo batalhão de Barretos

por ter auxiliado no abastecimento aos carros oficiais. Na Saúde, as mulheres

também eram minoria até boa parte do século XX. Em Barretos, fez carreira

a médica Nilda Bernardi Carreira, que, formada em 1949, atuou na Santa Casa e clinicou

por muitas décadas na cidade, na pediatria e psiquiatria. Outro ponto

pouco citado é que o brasão de Barretos, elaborado através de concurso em

1954, possui autoria de uma mulher, a também professora Maria Luíza de Queiroz

Barcellos. Para além disso, a política é outro assunto importante a ser desnudado,

uma vez que a primeira mulher a ocupar um cargo na vereança barretense

foi a professora Maria Ignêz de Ávila Jacintho, nas legislaturas de 1973 a

1976 e 1977 a 1983; fato inusitado, visto que o voto feminino foi validado no

Brasil desde 1932. Apesar da demora da participação feminina em funções


KARLA ARMANI MEDEIROS 115

políticas na cidade, isso não significa que as mulheres estiveram alheias às

movimentações de governo — futuros estudos ainda revelarão muitos rostos

e contextos. É certo que outras médicas, professoras, artistas e profissionais

em distintas áreas atuaram no desenvolvimento da cidade. As citadas neste

texto são somente algumas de suas representantes, que, estudadas de forma

individualizada e esmiuçada, podem contribuir aos pormenores da história

de Barretos. Além do mais, há de se destacar a possibilidade de analisar as

mulheres como grupo, enxergando-as como operárias, educadoras, artesãs,

benzedeiras, comerciantes, cientistas, escritoras, etc.

Seja no olhar individualizado ou pela perspectiva de grupo, o estudo

sobre as mulheres permite captar aspectos de suas biografias — em especial,

de suas obras — daquilo que elas deixaram em forma de produção e legado.

Habilidades e trabalhos femininos que podem ser captados por uma releitura

das fontes históricas, cujos resultados anunciam quais eram as funções e os

cenários ocupados pelas mulheres, suas heranças, suas lutas e suas conquistas.

Sempre na tentativa de desmistificar o olhar preconceituoso da imobilidade

das mulheres no passado, como se a elas fossem somente condicionados

o matrimônio e a maternidade; dois pilares verdadeiramente reais à maioria

delas, é óbvio, mas, que, por vezes, não limitaram e nem congelaram suas

ações e propagação à vida, tornando-as, portanto, agentes de desenvolvimento

e crescimento da cidade. É claro que, às mulheres, foram renegados direitos

civis e incorporados estigmas de difícil libertação; porém, em tempo, isso

é quebrado por questionamentos e mudanças de mentalidades. Por assim

dizer: se foram produtoras de trabalho e participantes dos momentos reais

da história local, é mais que tempo de inserir as mulheres como personagens da

História. Esse movimento nem precisa ser panfletário: basta se sensibilizar

com as fontes históricas e rastrear, nelas, as contribuições das mulheres.

São elas, de Barretos, as nossas personagens da vida real.

Fontes (em resumo) - Livros: “De onde cantam as cigarras” (2020);

“Barretos de Outrora” (1954, p. 24 e 33),

Tese de Doutoramento em História do Prof. Humberto Perinelli Neto

(Unesp, 2009, p. 347); Revista da Semana / RJ (edição 475) -

Acervo da Biblioteca Nacional; Revista “Ação e Vida – Santa Casa”

(janeiro de 2011); Documentos do Museu “Ruy Menezes”

e jornais “O Sertanejo” (edições 3, 23, 156, 185 375)

e “O Diário de Barretos” (04/07/2008; 28/11/2018;

12/03/2019; 06/02/2019 – artigos da autora).

Karla de Oliveira Armani Medeiros é historiadora, palestrante,

professora e titular da cadeira 7 da ABC. É autora do livro “De onde cantam as

cigarras” (2020) e de mais de 400 artigos pelo jornal “O Diário” sobre a história de

Barretos. Foi Secretária Municipal de Cultura (2013-2015)


Sobre uma Rocha criou-se

a FEB, hoje UNI FEB

O

Luiz Antônio Batista da Rocha

Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos — UNIFEB — conta,

hoje, com milhares de estudantes cursando Engenharia, Odontologia, Direito,

Administração, Farmácia, Veterinária, Ciências e áreas técnicas, sendo

atualmente polo educacional regional num raio de cerca de 250 quilômetros.

Mas tanto a sua criação como sua posterior implantação se deu à custa de

grandes esforços e muita perseverança.

João Batista da Rocha – prefeito de Barretos (31/01/1964 – 31/01/1969),

(cinco anos, devido à prorrogação) preocupado com estudantes que tinham

de deixar Barretos em busca de universidades, com a vontade política inerente

aos estadistas, em praça pública, no dia 25 de agosto de 1964 — aniversário

de Barretos — assinou a lei municipal nº 1.032, que criava a Fundação

Educacional de Barretos - FEB.

João Batista da Rocha assina, em praça pública, Lei Municipal nº 1.032, de 25 de agosto de 1964, que criou

a Fundação Educacional de Barretos - FEB


SOBRE UMA ROCHA CRIOU-SE A FEB, HOJE UNIFEB 117

Mas, até chegar a esse ato, o caminho foi árduo. Houve resistência tanto

por parte de aliados políticos como do poder público. Considerava-se utopia

– e, portanto, sonho irrealizável – fundar-se uma faculdade em Barretos, no

portal do sertão, a 425 quilômetros da Capital.

Houve oposição, como se disse, até em setores de órgãos públicos encarregados

da apreciação do pedido de criação da faculdade. Só mesmo a

persistência, a visão e o idealismo é que podem explicar terem sido vencidos

todos os obstáculos opostos pela burocracia estatal.

O grande estadista é aquele que sabe se cercar das pessoas certas para

as demandas públicas certas. Escolheu, João Batista da Rocha, o amigo professor

doutor Roberto Frade Monte para viabilizar a implantação do ensino superior de

engenharia em Barretos.

Roberto Frade Monte lecionava nas faculdades de engenharia Mackenzie, Mauá

e de São Carlos. Foi nessas excelentes escolas que ele buscou a equipe de professores

do 1º Ano da FEB, da qual ele era Diretor: Jose Justino Castilho – Cálculo

I e II; Oscar Freitas Wassimon – Cálculo Numérico; Sylvio Nisckier – Geometria

Descritiva; João Pedro de Carvalho Neto – Topografia e Geodésia; Flavio Freitas Castilho –

Geometria Analítica; Bartolomeu Albanese – Mecânica Geral; Nelson Martins – Física

Geral II; Waldo Augusto Perseu Pereira – Res. Materiais; Antonio Dozzi – Desenho Técnico;

Mario Ernesto Hamberg – Química; Ronald Ulisses Pauli – Física Geral I; Oduvaldo

Donnini – Direito para Engenharia.

Os Professores Assistentes eram todos de Barretos: Maria Alves Barcelos

– Cálculo I e II; Maria Henriqueta Alves Ferreira – Geometria Descritiva; Lauro Kfuri

– Química.

O 1º Conselho Diretor da Fundação Educacional de Barretos, formado atendendo

“convocação” do prefeito Rocha, tinha os seguintes membros titulares

(1964/1966): Olivier Waldemar Heiland; Ercy de Mello Nogueira; Ruy Menezes; Sebastião

Freitas Pires de Campos; Jarbas Pinheiro Landim; Haroldo Tramujas Mader. Suplentes: Luiz

Castanho Filho; Mozart Ferreira.

Mesmo depois de sua implantação, não cessaram as investidas contra a

FEB. E essas eram de toda ordem e origem: alardeava-se que os professores

não tinham condição de dar aulas a uma distância tão grande de SP; que

os professores estavam fazendo turismo à custa do dinheiro dos munícipes

barretenses; que a Prefeitura não tinha condição de manter uma faculdade,

etc., etc., etc.

Dentre todas as aleivosias, as críticas referentes aos professores eram

as mais injustas. Esses renomados mestres, das melhores faculdades de engenharia,

sacrificavam-se em estafantes viagens de trem, davam aqui suas

aulas e voltavam para cumprir seus compromissos em suas faculdades de

origem, comportamento que só o idealismo, em seu mais alto nível, pode

explicar.


118

LUIZ ANTÔNIO BATISTA DA ROCHA

Professores (esq. para a dir.): Flavio Freitas Castilho, José Justino Castilho, Bartolomeu Albanese, Ronald

Ulisses Pauli, Nelson Martins, João Batista da Rocha, João Carlos de Figueiredo Ferraz (Patrono

da Turma), Roberto Frade Monte, João Pedro de Carvalho Neto, Antonio Dozzi e Oduvaldo Donnini

Para se aquilatar o grau de responsabilidade, comprometimento e

seriedade desses professores, basta atentarmos para o seguinte fato: inscreveram-se

na primeira turma de Engenharia cerca de 100 alunos. Terminaram

o curso:

Engenheiros Civis: Alonir Paro; Antonio Ricardo Carneiro; Edson Abdala Thomé; Fábio

Izoldi; Joel Moroni; José Humberto de Faria; Marcelo Anania de Paula; Omar Abdo Droub; Raul Meinberg

dos Santos; Vera Lucia de Melo; Vicente Paziani.

Engenheiros (Elétrica e Eletrônica) – Iokio Tomoda; Naomi Hirata.

Ou seja: 13 alunos.

Em 1964, a faculdade funcionou em prédio alugado, na Avenida 29,

entre as Ruas 18 e 20. Em 1966, a Faculdade de Engenharia foi oficialmente autorizada

a funcionar, sendo inaugurada em abril daquele ano. Em janeiro de

1967, a Prefeitura consegue fazer a aquisição de um terreno e o doa à Fundação

Educacional de Barretos. E, em janeiro de 1968, funciona, em prédio próprio, o

1º pavilhão com os cursos de engenharia: Civil, Elétrica e Eletrônica.

Em 1969, foi autorizado o funcionamento da Faculdade de Ciências, ainda

sob a gestão de seu fundador, Roberto Frade Monte.

O curso de Engenharia de Alimentos foi criado em 1981. Em 1984, foi

autorizado o funcionamento do curso de Odontologia. Em 1995, os de Direito,

Administração e Serviço Social.

As faculdades isoladas foram reunidas sob a denominação de Faculdades

Unificadas da FEB, em 2003 e, posteriormente, em 2007, alçadas à condição de

Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos, instituindo sua Reitoria como

órgão superior unificado de gestão acadêmica administrativa.


SOBRE UMA ROCHA CRIOU-SE A FEB, HOJE UNIFEB 119

Hoje, o Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos, através de suas

faculdades integradas e de suas unidades de ensino Médio, Técnico e Profissionalizante,

está plenamente aparelhado para cumprir as determinações

das diretrizes educacionais do país, desenvolvendo plenamente suas ações

nos campos do ensino, da pesquisa e da ação comunitária.

A história do UNIFEB se confunde com a história dos personagens mais

ilustres da história de Barretos:

João Batista da Rocha, prefeito, que teve a audácia de conceber a ideia de

criar uma escola na entrada do sertão;

Roberto Frade Monte, que conseguiu unir o que havia de melhor, quanto a

docentes, no ensino da engenharia e trazê-los para cá;

Maria Alves Barcelos e Maria Henriqueta Alves Ferreira, excelentes professoras;

Olivier Waldemar Heiland e Ruy Menezes, primeiros presidentes do Conselho

da FEB, nomes que honram a cultura barretense; e muitos outros, que seria

enfadonho mencionar aqui.

O prefeito João Batista da Rocha, enfrentando todo tipo de dificuldades, ao

assinar a Lei nº 1.032, de 25 de agosto de 1964, não estava apenas ordenando

que se criasse mais uma autarquia. Com sua extraordinária visão

de homem público, de verdadeiro estadista que pensa nas futuras gerações,

tinha plena convicção de que fundava uma verdadeira instituição para a

posteridade.

Encontrei nas anotações pessoais de meu querido e saudoso pai um

pensamento de Samuel Smiles (1812-1904: escritor e reformador britânico formado

pela Universidade de Edimburgo) e que norteou toda a vida de João

Rocha:

O homem não vive só para si. Vive tanto para o proveito dos demais como para proveito

próprio. Todos têm deveres a cumprir, tanto o rico como o pobre. Para alguns a vida é

um gozo, para outros é uma dor. Porém, os homens não vivem só para gozar nem para

ganha fama. O que os move é a esperança de serem úteis para uma boa causa.

Os anos se encarregaram de provar que ele estava certo.

Ontem e hoje, o primero ensino

superior de Barretos se rende à

“Rocha” fundamental

Luiz Antônio Batista da Rocha é filho de João Batista da Rocha e Maria

Diva Borges da Rocha. Engenheiro Civil, de Segurança do Trabalho e

Auditor Ambiental. É titular da cadeira 40 da Academia Barretense de Cultura


A colônia japonesa e sua

importância em Barretos

A

Luiz Umekita

ntes de falar sobre nossa colônia, gostaria de rememorar alguns

fatos que ocasionaram o início da vinda dos japoneses para o Brasil, que se

iniciou oficialmente com a chegada, em Santos, do navio Kasato Maru, no dia

18 de junho de 1908, partindo da cidade de Kobe, numa viagem que durou

52 dias, trazendo a bordo os 781 primeiros imigrantes, vinculados ao acordo

imigratório estabelecido entre Brasil e Japão, além de 12 passageiros independentes.

Os primeiros imigrantes que aqui chegaram, neste Brasil fértil e grandioso,

cheios de esperança e sonhos de prosperidade, encontraram um país

de costumes, idioma, clima e tradição completamente diferentes do seu. Eles

deixaram para trás o seu país em período de pós-guerra quando, no Japão,

as dificuldades para se conseguir os principais proventos para a sobrevivência

eram tão grandes que a imigração tornou-se saída para aquele momento.

Ainda que em situação difícil e desestruturado, tanto monetariamente

quanto em reservas de alimentos, o Japão não se descuidou da educação

de seus súditos, sendo que no final do século XIX, passou por um processo

de alfabetização de todos os japoneses. Dessa maneira, todos os imigrantes

em idade e aptos para o trabalho que aqui chegavam eram alfabetizados no

idioma japonês. A maioria desses imigrantes tinha a intenção de trabalhar e

ganhar dinheiro, como era difundido pelas pessoas que os convenciam a vir

para o Brasil. Eles diziam ser aqui o Paraíso, o Eldorado; vinham, então, com a

intenção de enriquecer e retornar ao seu país de origem. No entanto, encontraram

muitas dificuldades de adaptação, pois quase não havia, nas fazendas

em que foram instalados, pessoas que traduzissem aquele estranho idioma,

que nunca tinham ouvido pronunciar; uma comida de paladar completamente

diferente ao seu costume. Hábitos que estavam acostumados, como no uso

do mais simples talher, pois usavam o hashi; a maneira de tomar banho, usando

o ofurô — aqui era usado o banho de bacia; sem falar no clima brasileiro


A COLÔNIA JAPONESA E SUA IMPORTÂNCIA EM BARRETOS 121

e, para agravar, usavam o kimono, composto de várias camadas de tecidos.

Além disso, diversos tipos de doenças mataram grande número de japoneses.

Mas os japoneses, com grande determinação e coragem, conseguiram

vencer estes obstáculos, pois não se admitia a expressão derrota: usavam e

usam, até hoje, a expressão gambate, cuja tradução seria ‘esforce-se’, ‘empenhe-se’

para vencer os desafios, as dificuldades. Inclusive, muitos pais utilizavam

e ainda utilizam esta expressão quando mandam seus filhos para um novo

trabalho ou para a faculdade, a fim de vencerem e terem êxitos nos desafios

que se apresentam ao longo de suas vidas.

Assim, foram conseguindo cumprir seu contrato de imigração. À medida

que os imigrantes começaram a se desvincular das fazendas, tratavam logo

de criar escolas de idioma japonês para seus filhos. Em 1932, já contavam

com 189 estabelecimentos reconhecidos (Fonte: Folha de São Paulo); em 1938, já

eram 486 os Nihongakus. Neste mesmo ano, o presidente Getúlio Vargas proibiu

o funcionamento das escolas estrangeiras e, com o início da 2ª Guerra, as

restrições ficaram ainda mais rigorosas, como o uso de idiomas em lugares

públicos, reuniões ou agrupamento de pessoas estrangeiras.

Alguns daqueles que aqui chegaram e trouxeram um pouco de dinheiro,

foram logo comprando seu pedaço de terra. Muitos conseguiram trabalhar

nas próprias fazendas, como parceiros, naquela época chamados de meeiros e,

com seus esforços e com a fertilidade da terra, foram se tornando grandes

produtores; à medida que começaram a prosperar, pelo menos um de seus

filhos era enviado para a cidade grande em busca de estudos.

Em 1923, Kinjo Yamato, passageiro do Kasato Maru, se formou na Escola de

Odontologia de Pindamonhangaba, SP. É o primeiro registro de um filho de

imigrante japonês a se graduar no país, e, em 1948, o primeiro vereador

eleito em São Paulo.

Aqui em Barretos não foi diferente: temos imigrantes que aqui chegaram

não só com suas mãos e braços, mas com grande vontade e esforço (gambate),

para vencer na vida. Conseguiram ocupar importantes posições sociais

e econômicas na comunidade, contribuindo para seu desenvolvimento. Houve

grande número de produtores na área de hortifrutigranjeiros, que supriam

grandes centros consumidores; até aqueles que comercializavam para grandes

centros vendiam seus produtos na feira, na época, localizada na avenida

21, atrás da Igreja Matriz; os grandes produtores de algodão, milho e arroz

vendiam, então, para grandes empresas que o beneficiava e comercializava

para grandes centros consumidores.

Nos anos 1950, foi instalada, aqui em Barretos, uma das maiores beneficiadoras

de arroz da região da Paulista e da Mogiana, que foi a Arrozeira

Barretos, do Sr. João Sato. Ainda tivemos grandes empresários do arroz, como

as famílias dos irmãos Ohara, Motinaga, Cavaguti e Tachibana.


122

LUIZ UMEKITA

Praça Francisco Barreto na década de 1930, com destaque aos arcos de inscrições japonesas.

Fonte: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”

Na área de hortifruti, tivemos compradores e distribuidores, como as

famílias Endo, Shinohara, Ito, Yamada e Kitagawa.

E nos setores de máquinas agrícolas e veículos, tivemos as famílias

Kawai e Endo, que geraram grandes movimentações monetárias e, consequentemente,

muitos impostos a serem recolhidos aos cofres públicos.

Num crescente desenvolvimento, tanto econômico, quanto cultural e

educacional, temos registro de pessoas da colônia ocupando as mais diversas

áreas na comunidade, como empresários, bancários, profissionais liberais,

professores, políticos, num gambate constante para o progresso desta querida

cidade de Barretos. Entre muitos, citamos o dr. Matinas Suzuki, médico, vereador

e presidente da Câmara Municipal de Barretos; membro-fundador e presidente

por três vezes da ABC – Academia Barretense de Cultura; o Sr. Nobuiro Kawai, que foi por

muito tempo presidente do Sindicato Rural do Vale do Rio Grande e a professora Sissi

Kawai, atual Reitora do UNIFEB – Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos.

Como os japoneses são de uma raça muito unida e social, temos em

nossa cidade, desde os tempos do pós-guerra, um local para nos reunirmos

e praticarmos o esporte preferido na época, que era o Basebol. Este local, nos

anos de 1946 a 1948, era provisoriamente instalado em um barracão de

madeira nos altos da avenida 21, onde depois foi instalado o Campo do Motorista.

Em 10 de setembro de 1948 foi inaugurada, oficialmente, nossa associação.

Não podia, ainda, nenhum japonês ocupar o cargo de presidente de

qualquer instituição no Brasil; por isso, foi nomeado um brasileiro para tal:

o Sr. Joaquim Augusto, ocupando a vice-presidência o Sr. João Cavaguti.

De lá para cá, foi uma constante luta para o crescimento do KAIKAN, tanto

dentro da colônia quanto na sociedade barretense, tendo por objetivo de unir


A COLÔNIA JAPONESA E SUA IMPORTÂNCIA EM BARRETOS 123

a colônia e a coletividade, mantendo vivos os costumes e tradição de seu país,

difundindo-a em toda a comunidade de Barretos. Com o intenso trabalho de

seus dirigentes, associados e muitos simpatizantes, a Associação Atlética Barretense

(KAIKAN) adquiriu, com o tempo, confiança e respeito de toda a cidade.

O KAIKAN teve sua presença marcante na sociedade com a realização de

memoráveis carnavais; participou de vários torneios de futebol entre clubes

da cidade; os torneios de Tênis de Mesa eram muito frequentes nos anos 1960;

o time de Basebol de Barretos, em conjunto com o time da Chácara Santa Rosa,

chegou a participar do Campeonato Brasileiro de Basebol.

A Associação sempre esteve presente nos eventos comemorativos da

cidade, colaborando com seus organizadores, marcando presença com carros

alegóricos alusivos aos nossos costumes. Por vários anos, em seu aniversário,

eram realizados, no Recinto Paulo de Lima Corrêa, grandes UNDOKAIS, uma festa

popular esportiva em clima de confraternização, com distribuição de prêmios

a todos os participantes.

Entre os anos de 2012 e 2016, foi realizado o MATSURI. Era uma festa

que fazia parte do calendário turístico de Barretos, com shows, comidas típicas,

Odori, Taikô apresentados por grupos de Barretos e região, quando todos

estavam convidados a confraternizar com a Colônia Japonesa. A festa era de

grande agrado do povo, comprovada pelo grande público que a prestigiava.

Em nossa associação, desenvolvem-se cursos de Hapikido, Taikô e Karaokê.

A arte do Taikô é milenar no Japão, com participações não só de nikkeis, mas

também de jovens brasileiros que praticam não só o toque dos tambores, mas

também a disciplina e o respeito ao companheiro.

Atualmente, o Taikô está em grande evidência, sendo que o grupo é chamado

constantemente para festividades em Barretos e região.

Grupo de Taikô do KAIKAN. Fonte: Fotografia do autor


124

LUIZ UMEKITA

Acreditamos que, assim, estamos contribuindo com estes jovens no preparo

para suas vidas, ajudando no modo de bem conviver, no enfrentamento

de futuras dificuldades a serem superadas ao longo de suas vidas e evitando

também o seu descaminho.

Esperamos, assim, contribuir não só com o desenvolvimento econômico,

mas também com o desenvolvimento humano e cultural desta cidade, pois

uma cidade não se faz somente com CAPITAL, mas também com homens,

que, bem formados, trarão desenvolvimento, cultura e paz.

Luiz Umekita nasceu em Miguelópolis/SP em 1944.É Técnico em Contabilidade;

trabalhou na Cooperativa Agrícola Sul Brasil e na Com. e Ind. Brasileiras COINBRA

S.A. Aposentado pelo Banco do Estado de São Paulo (Banespa), é presidente do

KAIKAN desde 2008


A Venda, os peões, a boiada e a

Igrejinha do corredor boiadeiro

A

Manoel Nunes Filho

época? Por volta de 1940: minha mãe assim nos conta que, ainda

com seus seis anos de idade, filha mais nova de uma família de dez irmãos, já

trabalhava com seu pai na Venda, de sua propriedade. Na época, essas vendas

eram como pequenas mercearias. Meu avô, além de administrá-la era, também,

um respeitável criador de suínos na região: tomava conta de tudo sem empregados

— apenas com a ajuda dos filhos.

A Venda estava localizada nas proximidades do antigo pontilhão da rua

Trinta, que hoje é a rotatória para o

Parque do Peão e Avenida dos Coqueiros, à beira

do corredor boiadeiro, que vinha de diversas

regiões e entrava na cidade descendo

pela atual rua Trinta e tomando

a rua Vinte e Quatro, passando em

frente à Igreja de Nossa Senhora Aparecida até

a avenida Quarenta e Cinco, onde hoje

é o clube da União dos Empregados no Comércio,

subindo até as proximidades da rua

Quatorze e, daí, descendo até o destino

final, que era o frigorífico.

Ao longo do corredor e próximo a

uma pastagem, havia uma cruz de madeira,

que era chamada pelos moradores

de Cruzeiro. As pessoas, geralmente

mulheres da região, na época de seca,

iam em procissão, em um momento

de muita fé e religiosidade, com latas

A Venda, em 1941.

Fonte: acervo familiar


126

A VENDA, OS PEÕES, A BOIADA E A IGREJINHA DO CORREDOR BOIADEIRO

cheia de água, molharem o Cruzeiro. Conta a lenda que, logo após este ato, as

chuvas não tardavam a cair, salvando, assim, as plantações e deixando os

pastos verdes para o alimento do gado.

A venda de meu avô, por estar à beira do corredor boiadeiro, era o ponto

de parada dos peões que, tocando suas boiadas, ali paravam para descanso

e alimentação, enquanto os bois descansavam pastando nas proximidades

de uma lagoa, onde também saciavam sua sede.

Como não havia chegado ainda a energia elétrica na região, as garrafas

de bebidas — vinho e aguardente — eram colocadas em buraco no chão,

cober tas com areia grossa; jogava-se água por cima, ficando assim as bebidas

bem refrigeradas.

Os peões consumiam de tudo: de sanduíches de pão com mortadela a

“fumo de corda”, com muito vinho e aguardente. Ali reinava a alegria e congraçamento

entre eles; conversavam, riam e contavam os causos da viagem

cansativa desde os rincões das invernadas. Ali compravam os mantimentos

para refazer o estoque da comitiva e, depois, para seguirem viagem, totalmente

abastecidos.

Próximo à venda de meu avô havia um bar, construção antiga com tijolos

expostos e uma placa bem visível com o nome de Sol e Lua, sobre o qual,

não se sabe por que, ninguém comentava, embora muitos peões gostassem

de ali frequentar.

Havia um pontilhão, erguido acima do corredor — ou seja, na parte de

baixo era o corredor e, na parte de cima, a linha férrea, caminho do trem

de ferro. O horário do trem, às vezes, coincidia com a parada das boiadas,

o que causava alguns transtornos, pois, ao soar o seu apito, ocasionava o

“estouro da boiada”. Os bois, assustados e desgovernados, corriam de um

lado para outro, chegando, às vezes, a invadir o estabelecimento de meu avô,

quebrando móveis e utensílios; estes prejuízos eram pagos pelo responsável

da boiada. Era também, por vezes, interrompida a alimentação dos peões,

que tinham que correr com seus cavalos e burros para reunir toda a boiada

que havia se espalhado pelas redondezas.

O peão da frente fazia soar o berrante, juntando aos poucos o gado e

continuando assim o seu caminho.

Passam os anos: já pelos idos de 1958, minha mãe vai, já com a família

constituída, morar em terras que tinham sido de meu avô — e, agora, de

propriedade de um tio, à beira do corredor boiadeiro, na altura da rua Vinte

e Quatro.

À tardinha, quando o som do berrante ecoava no ar, minha mãe corria

fechar o portão — e eu corria para a beira do corredor boiadeiro, a contemplar

o gado que seguia com os peões naquela nuvem de poeira.

Eu, ali, acabara de completar meus cinco anos de idade, sem medo al-


MANOEL NUNES FILHO 127

gum, totalmente alheio ao perigo daqueles animais bravios trilhando aquele

corredor que os levariam ao frigorifico, para serem abatidos.

Do alto do barranco da estrada, não imaginava que algum daqueles

animais poderia, a qualquer momento, mudar sua trajetória, passar sobre a

estrada e me atropelar. Nesta altura da infância, não tinha noção alguma do

perigo e, ali, ficava a contemplar todo aquele esplendor de centenas de cabeças

de gado que seguiam, também sem imaginar que estavam a caminho do

fim de seus dias, para cumprir a finalidade para que foram criados.

Também chamava a atenção, à beira do corredor, saindo do caminho

da boiada, uma figura característica da região: um senhor de baixa estatura

que não tinha domínio da razão: roupas bem sujas, com muitas latas ve lhas

amarradas às suas vestes e barba sem fazer há muito tempo — daí, o apelido

de Barbudinho ou, às vezes, Sujinho. Vivia da ajuda dos moradores e era o terror

das crianças da redondeza, que o temiam pelas histórias que contavam dele,

as quais nunca comprovadas: era apenas uma pessoa que não tinha o domínio

da consciência e que não fazia mal a ninguém.

Do lado mais alto da estrada, podia-se contemplar também a passagem

do gado em frente a uma grande lagoa, que era explorada com a extração do

saibro para a confecção de tijolos, cuja localização, hoje, situa-se na rua Vinte

e Quatro, nas proximidades da avenida Quarenta e Sete. Nesta esquina, até

hoje, ainda permanece, sob um bueiro, uma mina d’agua, onde a Natureza

insiste em não morrer. Seguindo, a boiada passava em frente a uma capela,

fundada em 12 de outubro de 1921, chamada pelos peões de Igrejinha da Graia,

nome este que não sabiam como nem de onde surgiu.

Capela de Nossa Senhora Aparecida. Fonte: Fotografia do autor


128

A VENDA, OS PEÕES, A BOIADA E A IGREJINHA DO CORREDOR BOIADEIRO

Com o tempo, passou-se a chamar Capela de Nossa Senhora de Aparecida, pela

qual os moradores da região tinham muito respeito e muita fé e ali, constantemente,

iam fazer suas orações ou, às vezes, rezas do terço. Não havendo

presença de padres na mesma, para a frequência bastava pegar a chave na

casa que ficava numa chácara no mesmo terreno da Capela.

Com o passar dos tempos, foi reformada; hoje tem-se uma bela igreja

e, aos domingos, podemos ouvir o sino chamando para a missa dominical.

Além das missas, são realizados casamentos, com grande presença de fiéis.

Com a continuidade do modernismo e o passar dos anos, o antigo pontilhão

foi demolido, dando lugar a uma rotatória que dá acesso a uma grande

avenida denominada Avenida dos Coqueiros e para o Parque do Peão de Boiadeiro “Mussa

Calil Neto”, dando vazão à grande quantidade de carros nos tempos de festa em

homenagem aos peões.

O antigo corredor boiadeiro, hoje todo asfaltado, deixa como lembranças

apenas os alagamentos em tempos de chuvas, que causam grandes enxurradas

como na época do corredor e, ainda, dão muito trabalho aos administradores

da cidade que, com muita atenção e dedicação, vão resolvendo este

problema e, em pouco tempo, também só será lembrança.

Passaram-se os tempos e ficaram apenas as memórias de um passado

não tão distante, mas que, com certeza, fez parte da bela história de nossa

cidade de Barretos e da infância de nossas famílias.

Manoel Nunes Filho é natural de Barretos/SP. Formado em Contabilidade e

Computação, com pós-graduação em Análise de Sistemas e Banco de Dados.

Desde criança, dedica-se ao desenho e à pintura. Ocupa a cadeira nº 04 da

Academia Barretense de Cultura – ABC


Filetagem: a Arte dos

caminhões de boi

Marcos Diamantino

Dedicado a Manoel Diamantino Filho (1936-2013), caminhoneiro da Frota “C”.

F

undada em Barretos, no final dos anos 1950, a Frota “C” é considerada

a primeira empresa brasileira voltada ao transporte rodoviário de gado. Em

seu pioneirismo, o fundador Clarindo Alves de Queiroz (1923-2013) colaborou inclusive

para que um fabricante da região desenvolvesse as carrocerias adequadas

para o transporte de gado. A iniciativa fez surgir também um novo

profissional: o motorista de caminhão de boi.

Com os frigoríficos locais gerando a demanda, lá pelos anos de 1970, a

cidade já possuía duas grandes transportadoras de gado: a pioneira Frota “C”,

na Avenida Rio Dalva, nas proximidades da Rodovia Faria Lima, e o Expresso

Barretos, na Avenida 43, esquina com a Rua 28. Vistosos caminhões boiadeiros

Mercedes-Benz e Scania, vinculados às duas transportadoras, circulavam

às centenas pelas estradas do Brasil, levando o nome de Barretos aos mais

distantes rincões.

A madeira era a matéria-prima das carrocerias dos caminhões dessa

época. E não só dos caminhões boiadeiros. A maioria das carrocerias tinha,

no entanto, padrões semelhantes de pintura. O que se pode chamar de Filetagem,

imprimia nas carrocerias grafismos a partir de linhas sinuosas ou retas

numa composição abstrata que caiu no gosto dos caminhoneiros. A tinta era

sempre o esmalte sintético. Sobre as tábuas que recebiam uma demão de

tinta, que os pintores chamavam de “cor lisa”, eram feitos os filetes. Para

realizar os traços, os pintores usavam pincel, em um trabalho à mão livre.

Outros usavam aerógrafos ou carretilhas para traçar linhas uniformes.

Uma fábrica barretense de carrocerias de madeira era a Mecânica Industrial

Eduardo, criada nos anos 1970, nas proximidades da Praça Santa Helena. Com

o tempo, modificou suas atividades e razão social. Hoje, com o nome Madcar

Madeiras, de propriedade de Marcelo Cael (1960), produz carretas agrícolas.


130

FILETAGEM: A ARTE DOS CAMINHÕES DE BOI

No início dos anos 1970, a M.I. Eduardo fabricou muitas gaiolas para

caminhões de boi. Nesse período, o pintor responsável pelos filetes nessa

fábrica era Geraldo Rodrigues Dado Stuart (1953). Ele lembra que os motoristas se

identificavam muito com a Arte da Filetagem, deixando a escolha do padrão

decorativo por conta do pintor. Cada motorista indicava as cores desejadas e

obtinha uma carroceria personalizada e exclusiva. A carroceria servia também

como identificador do veículo. Como o caminhão não podia ficar parado,

o filetador precisava trabalhar com rapidez. Dado Stuart revela que pintava

uma carroceria de boi em até dois dias. Porém, foi o pintor, cartazista e letreirista

Geraldo Stuart Rangel (1916-2013), pai de Dado Stuart, um dos introdutores

da Arte da filetagem em Barretos.

Letreiro atribuído ao pintor Dado Stuart (arquivo empresa Madcar)

Mas qual é a origem da Arte Filetada? Esse estilo pode ter chegado ao

país com os imigrantes europeus, segundo o site Pinstriping Brasil (pinstripe.

com.br). Em seus países de origem, muitos eram construtores de carruagens,

carroças e charretes que utilizavam a técnica da pintura filetada para

agregar valor ao produto.

De acordo com artigo “Fileteado”, no Wikipedia, o filete, na Argentina, é

um estilo tradicional. Naquele país, fileteador é quem realiza esse tipo de trabalho,

que requer pincéis de pelo longo:

a palavra filete deriva do latim filum ou um fio.

Se o Fileteado argentino diferencia-se da Arte Filetada brasileira por

conter desenhos, assemelha-se, no entanto, ao costume no Brasil quando

agrega à decoração palavras e frases. Muitos caminhoneiros brasileiros exa-


MARCOS DIAMANTINO 131

cerbam a decoração de seus caminhões ao incluírem, nos para-choques, provérbios

e, nos para-barros, desenhos de paisagens ou imagens religiosas.

O filetador Dado Stuart lembra que, em seu trabalho, incumbia-se também

de pintar nos caminhões ditados populares escolhidos pelos motoristas.

A Arte Filetada guarda semelhanças também com o Pinstriping, técnica

de pintura utilizada para decorar a carenagem de veículos modificados nos

Estados Unidos nos anos 1950, carros hot rods e motocicletas choppers. Segundo

o álbum ilustrado Rat Fink – Máquinas e Monstros, da Conrad Editora (2008), que

destaca os trabalhos do artista popular americano Ed Big Daddy Roth (1932-

2001), o Pinstriping é “uma técnica antiga de decorar superfícies que consiste

numa fina linha de tinta aplicada à mão com um pincel”.

O pintor Manoel Luis Ferreira (1965) é um especialista em Arte Filetada.

Usa uma ferramenta chamada Beugler, que confere à obra filetes de espessura

e traço uniformes com a mesma densidade de tinta. Essa ferramenta é outro

ponto a relacionar o trabalho de brasileiros e americanos, pois também é

utilizada pelos artistas dos Estados Unidos.

Ferreira contou que aprendeu essa técnica de pintura em uma fábrica

de carrocerias. Ele é fiel às técnicas e ao estilo que desenvolveu durante 25

anos. Conhecedor do ofício, afirma que o tipo de carroceria determina um

estilo de pintura. Quando a carroçaria é construída com muitos sarrafos, e

exis te pouco espaço para filetar, o modelo a ser utilizado é o Ibitinga, que permite

desenhos menos criteriosos. Ele, particularmente, gosta do estilo Monte

Alto, quando há espaço para um trabalho mais elaborado, mais floreado, com

muitos arabescos.

O filetador

Manoel Luis

Ferreira

(arquivo do

autor)


132

FILETAGEM: A ARTE DOS CAMINHÕES DE BOI

Como havia uma demanda grande por reformas de carrocerias, Ferreira

decidiu trabalhar como autônomo. Segundo o pintor, esse segmento já foi

muito próspero, mas existe uma tendência de queda. As razões são encontradas,

principalmente, nas mudanças nas relações de trabalho.

“Antigamente, os motoristas eram os donos dos caminhões e tinham uma relação diferente

com o veículo. Era comum personalizar o caminhão”, explicou o pintor. De fato, os caminhões

boiadeiros eram decorados ao gosto do motorista-proprietário: a cabine

se transformava em um segundo lar para o condutor. Havia banco que

virava cama, cortina para quebrar o sol, capas ou colchas de chenille para

os bancos, adesivos no para-brisa, amuletos ou imagens no painel, além das

famosas frases de para-choque que significavam a filosofia do caminhoneiro.

E, claro, a decoração da carroceria também era um elemento de identidade

do motorista.

Atualmente, as transportadoras de gado trabalham com caminhões e

carretas terceirizados. As gaiolas de madeira ficaram para trás. As carretas

de hoje são de aço, com modelos também padronizados com até dois pavimentos

para o transporte do gado. Na maioria dos casos, as carretas são

pintadas numa só cor, sem apelo visual.

Apesar de tudo, o pintor Ferreira orgulha-se da atividade, que exige

muita habilidade.

“Pode até ser pintor famoso, mas se não tiver jeito com o filete, não faz o que eu faço”, cita,

manejando o pincel.

Ferreira mostra que o seu trabalho é quase artesanal, feito à mão mesmo.

Até os pontinhos coloridos dos desenhos são feitos com as pontas dos dedos.

Numa época de mudanças, o filetador Manoel Luis Ferreira pode ser considerado

um dos últimos remanescentes de uma arte que já foi muito popular na

região de Barretos.

Marcos Valério Diamantino nasceu em 1960, em Barretos, SP. Membro

da Academia Barretense de Cultura, é jornalista, professor de Artes e escritor, tendo

publicado três romances: “Homem escreve diário?” (2016); “Nós que trocávamos

cartas de amor” (2017) e “Tempo bom em Alpondras” (2019).

É casado e pai de duas filhas (foto: Mário Menezes)


Alguns Apontamentos de

Trajetórias Pretas em Barretos

A

Michela Silva

história do preto no Brasil, apesar de ter passado por avanços positivos

consideráveis, ainda transita pela lógica do epistemicídio 1 de Boaventura

Souza (1995), que é parte do contrato social que sela o acordo de exclusão

e subalternidade de pessoas negras. Quando falamos de Barretos, intensificam-se

os aspectos de uma contribuição preta na formação histórica deste

território. À vista disso, iremos percorrer uma análise de alguns aspectos da

trajetória sociocultural de pessoas e organizações pretas na cidade de Barretos,

nas décadas subsequentes à escravização no país.

Cumpre ressaltar que a urbanização barretense desenvolveu-se a partir

de um modelo segregador, aos moldes do crescimento das grandes cidades:

modelo de crescimento e expansão urbana do paradigma gueto/senzala 2 , tendo

em vista que a cidade se desenvolve, durante os séculos XIX e XX, num

período em que a escravização era a principal forma de exploração da mão

de obra no Brasil. Ao longo dos anos, o processo de industrialização inglesa

pressiona para o fim da escravização enquanto solução para expansão de

um mercado consumidor; já no Brasil, a escravidão parecia se acentuar cada

vez mais, principalmente com a chegada dos pretos novos, mesmo com as

pressões inglesas para pôr fim à escravidão no Brasil (FAUSTO, 1972). Fatos

esses que, facilmente, podemos comprovar através do Censo realizado em

1874, em que foram contabilizadas 2.134 pessoas negras e, destas, 151

ain da se tratavam de pessoas escravizadas, algumas delas vindas de civilizações onde se

localizam a República Democrática do Congo e a Nigéria 3 .

Quando tratamos de aspectos socioculturais que envolvem pessoas pretas

e a cidade de Barretos no pós-abolição, precisamos trazer à tona os aspec -

1

SANTOS, S. Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995.

2

CAMPOS, Andrelino (2004). Do Quilombo à favela: a produção do espaço criminalizado no Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

3

ARMANI, Karla de Oliveira et. al. Descobrindo Barretos 1854-2012. Barretos/SP: Liverpool, 2012.

p.40


134

ALGUNS APONTAMENTOS DE TRAJETÓRIAS PRETAS EM BARRETOS

tos da urbanização do bairro Outro Mundo, o território das manifestações culturais

pretas, o congado, a representação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, os

bailados guerreiros, os capoeiras e até as macumbeiras.

O Outro Mundo tinha características ainda muito rurais; no bairro, residiam

ex-escravizados como Policarpo, Mãe Mina, Rita Bagagem, lavadeiras, imigrantes

não desejáveis e as putas do Bico do Pavão 4,5 . Este mesmo bairro que

abrigava tanta diversidade cultural, possuía comércio próprio e se mostrava

com uma efetiva autossustentabilidade; o mesmo bairro contava com estruturas

mínimas como saneamento básico, calçamento de ruas — a vida por lá

se demonstrava precária 6 .

OS Colunistas do “O Correio de Barretos”

Foto aérea demonstra a estrutura urbana de Barretos no ano de 1917. Fonte: Acervo do Museu Histórico

Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”

Ao retratarmos os conteúdos do jornal O Correio de Barretos, ressalta-se

que o periódico foi uma das principais expressões da mídia impressa em Barretos.

Foi fundado pelo único prefeito negro da história de Barretos, Coronel

Silvestre de Lima, um poeta talentoso, elogiado por grandes nomes da literatura

brasileira, como os famosos Machado de Assis e José do Patrocínio 7 .

Os feitos de Silvestre de Lima foram muitos, mas nosso objetivo é retratar

um pouco dos personagens Adão de Carvalho e Geremaro Manhães. Alguns dirão

que o professor Adão de Carvalho é um grande exemplo da meri tocracia; porém

nós dizemos que não: a história de Adão de Carvalho, homem negro, baiano que

escolhe, na Barretos do século XX, a busca de condições menos desumanas

de viver, assemelha-se com dezenas de trabalhadoras e trabalhadores rurais

4

PIACENTINI, B. C. Beni, o mito sexual de uma época. s/r, p.85-86.

5

NETO, Humberto Perinelli, PAZIANI, Rodrigo Ribeiro, A Construção da Civilidade numa Cidade do

Brasil Central Pecuário: Segurança Pública, Urbanização e Sociabilidade em Barretos (1890/1937). p.3-4.

6

ARMANI, Karla de Oliveira et. al. Descobrindo Barretos 1854-2012. Barretos/SP: Liverpool, 2012.

7

SUELI, Tosta Fernandes, “Razões e Sensibilidades: a trajetória de Silvestre de Lima.


MICHELA SILVA 135

Capela de Nossa Senhora do Rosário. Fonte: Acervo

Museu Histórico Artístico e Folclórico Ruy Menezes

e da construção civil que partem do Nordeste brasileiro em busca de uma

vida com mais oportunidades.

Quando chegou à cidade, Adão de Carvalho prestava serviços de barbearia.

Residiu por muito tempo isolado, nas proximidades do centro da cidade.

Escritos de memorialistas e historiadores locais trazem a história de Adão de

Carvalho como a de um homem que batalhou muito para vencer as mazelas

do estereótipo do negro na sociedade: economizava até nas refeições para a

compra de livros — foi alfabetizado depois dos 40 anos de idade, no primeiro

Grupo Escolar, hoje Escola Estadual Dr. Antonio Olympio.

Além do racismo, das dificuldades financeiras, teve ainda de enfrentar,

diante de sua elevada idade aos estudos na época, o estudo primário em meio

às crianças — com muito sacrifício, conseguiu vencer a luta para se alfabetizar,

tornando-se professor e fundador da escola Instituto do Amor às Letras 8 .

Também era poeta e violinista. O professor nunca tentou embranquecer:

viveu até o ano de 1962, com 70 anos, quando ainda não tinha desistido da

educação e estudava Direito na cidade de Bauru 9 . Adão lutou sozinho para

que fosse lembrado hoje como Adão de Carvalho — o homem que lutou até a mor-

8

MENEZES, Ruy. Espiral História do Desenvolvimento Cultural de Barretos.

9

MEDEIROS, Karla Oliveira, Armani: Postado em www.barretos.sp.gov.br no dia 26/11/2013

< acesso em 07/07/2014>.


136

ALGUNS APONTAMENTOS DE TRAJETÓRIAS PRETAS EM BARRETOS

te pela busca de seus objetivos, quais sejam, de se alfabetizar; portanto, homem

negro, em meio às dificuldades e estatísticas do processo de alfabetização

desta raça no país e em Barretos, no período em que ele viveu.

Pouco se sabe sobre a trajetória de Geremaro Manhães, preto de pele retinta,

médico, que chega a Barretos junto de sua família para prestar serviços

à Companhia Paulista de Estradas de Ferro. A família Manhães também deve ser

lembrada: exemplo na luta do negro na conquista de seu espaço, composta

pelo médico Geremaro Manhães, Lidia Gonçalves Manhães, enfermeira, e seus quatro

filhos; pessoas muito ativas na vida da cidade. Geremaro, além de médico,

foi professor da disciplina de Biologia Aplicada no Colégio Estadual e Escola Normal

Mário Vieira Marcondes e colunista do jornal Correio de Barretos. A História Oral traz

alguns relatos sobre a chegada de Geremaro Manhães e sobre suas ações na sociedade

barretense. Uma entrevis ta de um anônimo, um garoto de 15 anos

na época em que Geremaro chega a Barretos, diz:

“(...) eu fui na casa dele vê se eles pricisava dos meus serviço, eu fiquei com a maior

vergonha fia, tinha um negão trabaiando no jardim e perguntei onde tava o patrão o

doto e num é que era ele o doto. Eu sou negão tamém mais eu nunca que tinha visto um

negão que nem eu doto (ANÔNIMO, 2015) 10 .”

Podemos ilustrar aqui o contexto de invisibilidade de pessoas pretas

na Medicina desde as décadas subsequentes à escravização preta no Brasil.

Voltando à trajetória de Geremaro, as três entrevistas feitas com pessoas

que conviveram com Geremaro Manhães sempre relatam que ele e Dona

Lídia eram pessoas muito generosas 11 . Em uma entrevista com a médica Nilda

Carreira, ela enfatiza que, no período em que trabalharam juntos, os dois estavam

entre os poucos médicos que faziam questão de atender pessoas pobres

que, às vezes, precisavam aprender coisas simples do dia a dia, como tomar

banho e lavar as mãos 12 .

Apresento alguns aspectos da trajetória de Adão de Carvalho e Geremaro

Manhães para que possamos ilustrar como a perversidade do racismo age de

maneira sorrateira, de forma a passar despercebido aos olhos das pessoas

brancas. Podemos destacar, principalmente, a ilusão de que a ascensão social

de pessoas negras trará algum retorno positivo, falando em estruturas

racistas, assim estabelecendo um paralelo com o mito da democracia racial.

Voltando ao jornal: de fato, no ano de 1947, em data próxima à posse

do então prefeito Mário Vieira Marcondes, foi retratada uma manifestação de

apoio de O Correio às figuras de Adão de Carvalho e Geremaro Manhães, redatores do

periódico que, nos dizeres da época, foram vítimas de racismo por adversá-

10

ANÔNIMO 1. Reconhecimento de Fotos de Barretos.

11

TOMÁS, Dercidi. Reconhecendo fotos de Barretos.

12

CARREIRA, NILDA B. Trajetória da Primeira Médica de Barretos.


MICHELA SILVA 137

rios políticos de ambos.

A manchete do jornal foi intitulada Dr. Manhães e Professor Adão foram desagravados

devidamente. A notícia traz, em seu escopo, um posicionamento do Partido

Social Progressista, que se manifesta contrário ao ato:

“(...)fiéis intérpretes do pensamento e da tradição da gente barretense (...) Pelo que diz algum

racista de bobagem preocupado com a perniciosa manifestação de insensatas teorias, desconhecendo

talvez a influência do negro na civilização brasileira(...)”.

O Correio de Barretos trazia um tom progressista do acontecido, mesmo

pré-saídos da ditadura do Estado Novo, que “teria inviabilizado as ações independentes por

parte dos movimentos sociais” 13 — e que perdura de 1935 a 1942.

Portanto, quando falamos das décadas de 1930 e 1940, é importante

destacarmos que, neste período, o movimento social negro estava em sua

efervescência na sociedade brasileira. Mesmo passando por momentos repressivos,

teve como principal marco a fundação oficial do Clube Social Negro

Associação Beneficente Estrela d’Oriente, que trazia uma expansão destas discussões

na cidade e que, para além de preencher uma demanda de entretenimento

da população preta, contribuiu também para um fortalecimento moral de

famílias pretas, como um ato de resistência.

Com um pouco dos apontamentos da influência de pessoas pretas, conseguimos

concluir que foi determinante para a formação do povo barretense;

e sua forma de resistir ao processo total de aculturação sofrido desde o início

da escravização, permitiu que sobrevivências culturais perdurassem, mesmo

que a essência africana tenha se perdido em parte.

Vemos, ainda, essa essência representada pelos terreiros das religiões

de Matriz Africana, rodas de capoeira — reconhecendo-as não só como formas

de resistência preta, mas também como traços de uma cultura brasileira

formada com inserção e fusão de elementos culturais e sociais permanentes.

13

MATTOS, Marcelo Badaró. O Sindicalismo

Brasileiro após 1930. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003. p.22

Michela Silva é nascida em Barretos. Graduada em História, Especialista em

História e Cultura Afro-brasileira, atua como professora na Rede Pública Estadual e é

pesquisadora na área de Educação e Relações étnico-raciais em Barretos


Verí, Verídica, Verdadeira:

Veridiana

N

Mussa Calil

ão é preciso ser nenhuma sumidade em Linguística para se fazer

uma pequena marcha-a-ré, do Português ao Latim, para se perceber que os

pais de dona Veridiana acertaram na escolha de seu nome de batismo.

Nascida em 12/02/1924 e criada em Barretos, conheceu as principais

personalidades da nossa história. Veridiana Emelina Tupynambá Suzuki foi esposa de

Matinas Suzuki e mãe de 6 filhos: Vera Lucia Suzuki (biomédica), Matinas Suzuki Júnior

(jornalista), Marcelo Suzuki (arquiteto), Marcio Suzuki (filósofo, professor universitário

e tradutor), Maurício Suzuki (engenheiro e administrador de empresas)

e Marcos Suzuki (analista de sistemas), sendo uma profissional da Educação e

da Saúde digna de figurar para sempre no panteão das mais importantes e

queridas damas da sociedade barretense.

ASCEDÊNCIA

A jovem senhora, de educação refinada proporcionada por Tarquínio e

Maria Olina, foi enfermeira do Hospital das Clínicas e cativou o inteligente hematologista

Matinas Suzuki, deixando seu traço de bondade e finesse nas rodas que

frequentava, mas carregando sempre consigo o DNA dos lutadores Tupinambás,

legítimos filhos desta terra e originários da grande nação Tupi.

DNA de fibra, que demonstrou no episódio em que passou de atuante

e comprometida na diretoria da Associação de Pais e Mestres do Ginásio Vocacional à

heroína marcada pela repressão da ditadura militar, sendo presa e levada

para a sede da Polícia Federal em São Paulo, acusada por dividir e expor,

no saguão da entrada do Vocacional, junto com professores e alunos, a autoria

em um quadro de colagem que crucificava Che Guevara como mártir da era

moderna.

FORMAÇÃO

Veridiana Emelina Tupynambá Suzuki iniciou sua vida estudantil no 1º Grupo de

Barretos, de 1931 a 1935 e no Ginásio Municipal de Barretos, de 1935 a 1940.


VERÍ, VERÍDICA, VERDADEIRA: VERIDIANA 139

Cursou a Escola “Normal”, Faculdade do Colégio Batista Brasileiro, em São Paulo,

de 1941 a 1942.

Iniciou sua profissão de professora em 1943, nas cidades de Miristrela,

Américo de Campos e Indiaporã. Retornando a Barretos em 1944, começou

a dar aulas na área rural na região das Contendas, na escola da fazenda da

Sra. Tereza Caram. Graduada na Faculdade de Enfermagem da USP/SP (1945-1949), foi

chefe da Pediatria do Hospital das Clinicas de São Paulo em 1950.

Dona Veridiana faleceu em 13 de outubro de 2005. Carteira de Enfermagem, arquivo: Mussa Calil

Com seu profissionalismo, foi a primeira enfermeira-padrão de Barretos.

Implantou, em 1972, o curso técnico de enfermagem no Colégio Soares de

Oliveira juntamente com sua irmã Anna Rosa Brandão Tupinambá (graduada na Faculdade

de Enfermagem Ana Neri/RJ). Iniciou e chefiou os trabalhos na UTI da Santa

Casa de Misericórdia de Barretos como responsável da enfermagem, após estágio no

Hospital Beneficência Portuguesa, em SP. Trabalhou até novembro de 1980, quando

precisou fazer uma cirurgia cardíaca em São José do Rio Preto, em procedimento

médico realizado pelo cardiologista Dr. Domingos Braille.

DESCENDÊNCIA

Alguém já disse um dia: “Quem sai aos seus não degenera”. Os filhos que Veridiana

deu a Matinas, na verdade os deu à Humanidade, com a sua marca

registrada de bom caratismo, ética, sensibilidade e competência. Todos bem

resolvidos, proficientes nas respectivas áreas, mas igualmente leais, puros

e verdadeiros, forjados com a têmpera que pode ser melhor entendida em


140

MUSSA CALIL

trecho do livro do pai, que relata os fatídicos segundos em que comunicou

aos filhos a prisão da mãe:

Ouviram-me calados. Nenhum chilique. Nenhum choro. Nenhuma pergunta.

Apenas nos olhos adolescentes um irrequieto brilho nervoso.

VOCACIONAL

Sempre disposta a ajudar! Levava marmitas para vários alunos (ponto

era na Borracharia do Tarzan, na Rua 22 esquina da Avenida 19) pois no primeiro

prédio não havia cozinha industrial. Dona Veridiana foi presidente da

Associação de Pais e Mestres (APM) onde recolhia doações entre famílias generosas,

para que todos os alunos carentes pudessem viajar – nas mesmas condições

de todos os outros, fruto de um projeto à frente de seu tempo, o Estudo do Meio.

Realizava esse trabalho com ajuda da D. Nagibe Lian: tudo feito com muito carinho

— e gratuitamente.

AÇÕES COMUNITÁRIAS E CARIDADE

Além de dona de uma casa com família de razoável tamanho e de professora

e enfermeira, Veridiana tinha carinho especial pelo Centro Comunitário

que existia em frente a sua casa no bairro Exposição, bem como pela Capela

Nossa Senhora das Graças, tanto que tiveram seu envolvimento pessoal quando

das edificações. Como esposa de médico e enfermeira profissional, conseguia

muitas amostras grátis de medicações, e com isto, ajudava inúmeras famílias

carentes que procuravam o inusitado “postinho de saúde”, a “farmacinha da Dra. Nilda

(Carreira)”, anexa às casinhas do Pe. Gabriel (Correr) no Bairro Exposição. Trabalhou,

ainda, por muitos anos auxiliando nos cursos de trabalhos manuais (costura,

bordado, tricô e crochê) e de evangelização. Excelente cozinheira, sua

bacalhoada era famosa. Era hospitaleira, pois lembro que recebeu em sua

residência a artista plástica Tomie Ohtake, os cantores Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal

Costa e organizou e preparou jantar na Casa do Médico para o escritor Paulo Bonfim

que foi um poeta brasileiro, membro da Academia Paulista de Letras.

JUSTO RECONHECIMENTO

Câmara Municipal de Barretos. Projeto de Lei 138 de 25 de setembro de 2009.

Pelo que dona Veridiana representou para os barretenses, por si mesmo

como cidadã — e não por ser esposa de um médico e político — foi merecedora

de toda homenagem a carinho que ela e sua família vieram a receber

de nossas instituições mais antenadas, tendo sido batizado como Vocacional da

Saúde Veridiana Emiliana Tupynambá Suzuki o espaço antes utilizado pelo antigo Ginásio

Vocacional, escola onde seus filhos foram preparados para o saber, para uma

educação bem avançada dos padrões normais e que foi estigmatizada pela

truculência da ditadura militar.


VERÍ, VERÍDICA, VERDADEIRA: VERIDIANA 141

Esta homenagem foi duplamente importante: por ela e por todas as

enfermeiras de Barretos, pois representava toda a classe de enfermagem

naquela oportunidade, uma vez que médicos – com toda justiça – constantemente

tornam-se nomes de alas de hospitais e unidades de saúde espalhadas

pelos municípios, mas o mesmo não ocorre com a classe das enfermeiras,

que também tanto contribuem para a evolução dos serviços de saúde, principalmente

nos dias de hoje com a pandemia do Coronavírus, que está pondo fogo

no planeta e humilhando os homens mais poderosos do mundo.

PRIMEIRAS LEMBRANÇAS

História extraída do livro “Memórias de um Vivente Obscuro” (de Matinas Suzuki).

“Dia 24 de dezembro de 1987. Véspera de Natal, data gostosa. Ela vem

trazendo para casa os filhos, os netinhos, a parentada toda, e na permutação

de beijos, de abraços e das primeiras notícias, o fervilhar da alegria do

reencontro. Ufania religiosa por Jesus, prestes a nascer. Fervor católico por

Maria, em trabalho de parto. Pacotes de presentes, empilhados ao lado da

árvore de Natal, aguardando o momento do amigo-secreto.

Estou na sala, lendo jornal. A falação alegre na copa veio para a sala,

minha mulher, Veridiana, à frente. Ela me diz:

- Pensa um número, de zero a vinte.

- Pra quê?

- Depois eu conto. Já pensou?

- Dezesseis! – disse em voz alta.

- Ganhei! – exclamou Elinho, meu genro.

Aí vi minha mulher entregar a minha linda agenda, objeto luxuoso que

o Unibanco distribui anualmente aos seus clientes vips.

Só que, no meu caso, era deferência do doutor Gabriel Jorge Ferreira, que

sempre me honrou com a sua amizade.

Porque, economicamente, sempre fui um classe-média.

Protestei:

- Mas essa agenda é minha!

- Você não precisa. A sua vida é um carimbo!

Choveram risadas.

Veridiana dera uma definição pitoresca

à minha vida. Um carimbo.”

Mussa Calil é comerciante, administrador de empresa e membro da ABC pela

cadeira 22. Foi presidente de “Os Independentes” (1984/1985), onde implantou o

Parque do Peão. Esteve vereador (1993-1996) e vice-prefeito (2009/2012), sendo

prefeito municipal por licenciamento de Emanoel Carvalho. Cidadão Benemérito de

Barretos; membro da Comissão do Hospital de Câncer e presidente da APAE


Minha Barretos nos anos 60

O

Newton Teixeira da Silva

riundo da cidade de São José do Rio Preto, aportei nesta Barretos nos

idos do ano de 1958, com dez anos de idade. Fui cursar o 4º ano primário no

1º Grupo Escolar, hoje EE Dr. Antônio Olympio, classe mista, cujo professor era o saudoso

professor José Expedito Marques. Modéstia à parte, formei-me em primeiro

lugar da classe, dividindo a honra com uma menina. Quando da entrega do

prêmio de melhor aluno, dividido por dois, tive aí, por parte do professor José

Expedito Marques, uma mostra de educação e respeito, quando ele entregou o

prêmio primeiro para a menina, dizendo primeiro as damas. O 4º ano de grupo

era feito concomitantemente, durante o ano, com um curso que se chamava

“admissão” que era ministrado por professoras independentes e você tinha

que ser aprovado, senão não ingressava na primeira série ginasial. Eu fiz a

admissão com a Dona Pequena, que morava em frente ao Grêmio Literário e Recreativo

de Barretos, na avenida 19 — a sala de aula ficava nos fundos da casa.

Morei na esquina da avenida 27 com a rua 28, em frente ao Colégio das

Freiras, somente para meninas. Nos anos 60, as meninas, todas uniformizadas,

atraíam a atenção dos jovens. Nessa época, ainda imberbe, via na saída

do colégio os paqueradores da época, que passavam para cima e para baixo

nas suas lambretas e vespas — que eram as motos da época — se mostrando

para as meninas.

Lembro que íamos onde hoje é a Região dos Lagos, para ver os peixes ornamentais,

onde os japoneses que cultivavam hortas criavam-nas nos laguinhos

das minas d’água. Aquela região era brejo.

Fui fazer o 1º ano ginasial no Ginásio Estadual Mario Vieira Marcondes, no ano

de sua inauguração. Escola que deixou muita saudade, pelo nível dos professores

que tinham amor à profissão e faziam questão de ensinar. Não vou

mencionar os nomes com receio de esquecer alguns.

A Festa do Peão de Boiadeiro, recém-criada em 1956, fazia suas programações

de montaria no Recinto Paulo de Lima Correia, durante o dia, e a noite apresentavam

grupos de danças folclóricas de todo o Brasil e também do exterior. A

juventude então se fantasiava de boiadeiro e curtia toda programação.


NEWTON TEIXEIRA DA SILVA 143

Uma semana antes da Festa, todas as noites, na praça em frente à

Cate dral, cada colônia apresentava uma dança típica de seu País. Em um

ano, o Grêmio Literário e Recreativo de Barretos ficou responsável por apresentar

uma dança dos Estados Unidos. A dança que estava na moda era o Twist, que

vinha de lá na voz do Chubby Checker. Como eu dançava, fui convidado para

fazer parte do grupo de dança e a apresentação foi muito bem, com cabelo

na testa e tudo.

Defronte ao recinto existia o campo de futebol do Barretos Futebol Clube,

que em 1959 fez a fusão com o outro time da rua 20, o Fortaleza Futebol Clube,

ficando somente o Barretos Esporte Clube, com o campo da rua 20. Quando o campo

da rua 32 foi desativado, os muros foram derrubados, deixando o terreno

livre. Pude desfrutar de jogar várias “peladas” no campo desativado.

Durante a Festa do Peão, os camelôs armavam suas barracas no local

do campo de futebol, numa desordem total. Como era época da guerra do

Vietnã, o local ficou conhecido como Vietnã, por causa da bagunça. A coisa foi

aumentando e o Vietnã se espalhou na avenida 23 até a rua 30. Nessa época,

eu morava em frente à Santa Casa.

Já rapaz, com os amigos frequentávamos o footing: a definição para essa

palavra seria: “um passeio de ida e volta, em trecho curto, de rapazes e garotas para verem o

sexo oposto ou iniciarem um namoro”.

De fato, na praça Francisco Barreto existia uma fonte luminosa redonda,

doada pela colônia japonesa, onde era realizado o footing redondo — sim, redondo,

porque também existia o footing quadrado, realizado no quarteirão da

avenida 19 entre as ruas 18 e 20.

Praça Francisco Barreto, com destaque à fonte luminosa doada pela colônia japonesa; um dos pontos de

encontro da juventude barretense nos anos 1960 (fonte: arquivo do Museu “Ruy Menezes”)


144

MINHA BARRETOS NOS ANOS 60

Consistia o footing redondo de todos os rapazes andarem em volta da fonte

num sentido e as garotas andarem em sentido contrário. Quando uma garota

interessava, a troca de olhares era feita a cada volta, até que houvesse o

contato. No footing quadrado, os rapazes ficavam parados nas vitrines das lojas

e as garotas iam e viam de uma esquina na outra, também à procura dos

olhares. Daí saíram muitos casamentos.

Nessa época, só víamos as garotas: no footing, nas saídas das escolas,

missas e nas brincadeiras dançantes que eram realizadas nas casas. As

músicas novas só ouvíamos pelo rádio e demoravam para chegar discos em

Barretos. Quando alguém conseguia um disco novo, logo emprestava para

fazer a brincadeira dançante. Discos eram os LPs, long plays, discos de vinil

que podiam conter várias músicas e eram reproduzidos em toca-discos com

agulhas magnéticas. Assim, nós curtimos Elvis Presley, The Beatles, Rolling Stones,

curtimos rock, twist, hully gally e outros. Também fazíamos serenata de lambreta

e com toca-disco Sonata debaixo do braço, pois ele era portátil e à pilha:

que dava para o “garupa” segurar. Só complicava um pouco quando chovia.

Nessa fase de minha juventude frequentava o clube União dos Empregados

no Comércio de Barretos. Vi toda construção da praça de esportes, sendo que

no local da Primavera havia poucas casas e o córrego ainda era aberto. Uma

curiosidade era o campo de futebol que não era gramado e em desnível, mas

usufruímos bastante. Tínhamos um time que se chamava Pinga Fogo, de boas

lembranças e de bons amigos. Nas boates e bailes, com a presença das mães,

a fiscalização do salão era rigorosa, sendo que se você não andasse direito

um diretor te chamava para a diretoria no meio do salão. Outros tempos...

À noite, a reunião da moçada era no Pão de Açúcar, padaria na esquina

da rua 20 com avenida 21. Ali se jogava conversa fora, se bebia, entremeado

da degustação de salsicha, que ficava rolando num aquecedor, te convidando

para ir comer. Nunca mais vi daquele jeito. Depois de um tempo, descíamos

para o Café Ivaí, na esquina da rua 18 com avenida 19, esperando a passagem

do Viola, que se intitulava o Prêmio Nobel da Alimentação: fazia as melhores

coxinhas do mundo. Ele tinha uma caderneta que anotava o fiado, pois fazia

isso toda noite.

No trecho da rua 18 entre as avenidas 19 e 17, havia, na esquina, o

Café Ivaí; logo depois, no sentido 19 para 17, havia o Restaurante Pimentinha, a

empresa de ônibus São Manoel, o Afrikan Bar, o Nenê da Garaparia e o Café São Paulo,

onde havia mesas de bilhar. Eram pontos muito frequentados.

Em 1967, eu trabalhava no comércio e fazia curso de Contabilidade no

Ateneu Municipal — escola que tinha uma fanfarra muito boa — e fazia o Tiro

de Guerra.

O Tiro de Guerra era onde hoje é o Shopping, um espaço bem amplo

onde fazíamos nossas instruções. Nessa época, o Ginásio Rochão estava em


NEWTON TEIXEIRA DA SILVA 145

construção e o sargento fazia a tropa rastejar nas escavações, simulando

combate. Interessante que estávamos em pleno Regime Militar e nunca senti

pressão por parte dos sargentos; vivíamos normalmente, tudo na mais perfeita

ordem, livres e felizes.

No hipódromo do Jockey Clube, ainda consegui ver algumas corridas de

cavalos quarto de milha, fazendo apostas. Uma emoção diferente.

Fazíamos várias gincanas de automóveis, que movimentavam muito a

cidade, sempre com fim beneficente.

Em 1969, vários ônibus de Barretos foram ao Rio de Janeiro levando

torcedores para assistir a última partida das eliminatórias para a Copa do

Mundo de 1970, contra o Paraguai, onde ganhamos por 1 a 0, gol do Pelé.

O selecionado seria tricampeão no ano seguinte. Chegamos ao Rio às 6h e

o motorista parou perto do Maracanã e disse que não sairia dali. Em cinco

colegas, pegamos um táxi de um português que andou conosco pelo Rio,

mostrando atrações turísticas e nos deixou no estádio às 11h. Entramos e o

estádio foi enchendo até que não se pudesse mais andar. Foi a maior lotação

do Maracanã até hoje: 189.000 pessoas, recorde mundial. Para vir embora

II Febampo, realizado no Cine Centenário, em 1969.

Na foto, o cantor Carlos Fernandes e o compositor Newton

Teixeira da Silva (fonte: arquivo pessoal)

ainda ficamos um bom tempo

presos na rodovia, pois o

presidente Costa e Silva havia

sido internado e o exército

bloqueou as rodovias. Foi cansativo,

mas memorável.

A Jovem Guarda e a Bossa

Nova estavam em pleno vapor

e os festivais de música na TV

Record empolgavam a juventude.

Na crista da onda: Roberto

Carlos, Erasmo, Wanderleia, João Gilberto,

Vinicius, Toquinho, Elis Regina,

Jair Rodrigues e Tim Maia.

Aqui em Barretos, o Paulo

Flosi, mais conhecido como Pinduca,

que tinha uma loja de discos,

organizava o Festival Barretense

de Musica Popular, o FEBAMPO.

O segundo festival foi

realizado em 1969 no antigo

Cine Centenário, em dois dias. Primeiramente,

foram escolhidas

20 músicas para serem apre-


146

MINHA BARRETOS NOS ANOS 60

sentadas e, depois, as dez finalistas no outro dia. Eu trabalhava no Banco Moreira

Salles, que depois virou Unibanco e, agora, é Itaú; um colega que tocava violão

falou que ia ter um festival de música. Eu falei vamos fazer uma música, eu faço a

letra. Sentei na máquina de escrever e a escrevi. Não deu certo para fazer

com esse colega. Fiquei com aquilo na cabeça e, mentalmente, fiz a melodia.

Fiquei sabendo que o conjunto Night and Day fazia arranjos e, também,

que havia um cantor que já ia defender uma outra música, o Carlos Fernandes.

Procurei o Carlos e ele concordou defender a minha música também e o Night

and Day fez um arranjo espetacular. Depois da triagem do Paulo Flosi, fomos

escolhidos entre as vinte que iriam para o Festival. Após a apresentação no

primeiro dia, foi classificada para as dez que iriam para a final.

Vários autores acostumados com festivais em Barretos participaram,

como o Juninho Soares, Parisi, Cesar Menegaz, Mau Mau, de Bebedouro, entre outros.

Uma das cantoras era Alciony Menegaz, que foi a vencedora do festival com a

música Isabela.

No júri, além das pessoas de Barretos, veio também o maestro Élcio

Alvares, que tinha uma orquestra muito conhecida na época. Ele elogiou minha

música, disse que tinha cheiro de sucesso. Pelo que me falaram sobre a

classificação geral, fiquei em sétimo lugar.

Foram momentos inesquecíveis no Festival e, para quem não era do

ramo, até que ficamos bem.

Posso ter esquecido alguma coisa, mas foi uma década interessante.

Chegou 1970. Mas, aí, é outra história...

Newton Teixeira da Silva é nascido em Jaú. Mora em Barretos

desde 1958. Casado, Técnico em Contabilidade, cursou Ciências Contábeis

(incompleto).

É aposentado pelo Banespa, membro da Academia Barretense de Cultura

(ABC), cadeira 16. É casado com Maria Teresa Dal Moro Teixeira da Silva


Histórias (e novas histórias)

da minha cidade

Nivaldo Gomes e Nivaldo Gomes Júnior

D

HISTÓRIAS DA MINHA CIDADE

epois de morar em Barretos por oito décadas, quero, neste artigo,

rememorar fatos que me identificaram com este povo hospitaleiro e idealista.

A história de nossa cidade já foi escrita com muita competência pelos

nossos ilustres historiadores. Porém, é sempre bom lembrar aqueles desbravadores,

mineiros de Caldas Velhas, das Minas Gerais, que para cá vieram

com seus familiares e aqui se instalaram, dando início a um vilarejo que

resultou nesta progressista cidade do norte paulista.

Francisco José Barreto — Chico Barreto — e Simão Antonio Marques — Librina —,

sempre serão lembrados como fundadores desta famosa cidade do interior

brasileiro.

Os fatos e acontecimentos a seguir narrados serão expostos de forma

espontânea, com variados assuntos e sem muito compromisso sequencial

entre um parágrafo e outro.

São registros das décadas de 40 e 50. Infância e juventude.

DÉCADA DE 40

Nesta primeira década, os meninos em idade escolar tinham como distração

divertimentos ao ar livre, como empinar papagaio, jogar pião, bolinhas

de gude e futebol. Também era costume juntar figurinhas. Nada que

ultrapassasse as 10 horas da noite. As meninas preferiam jogar amarelinha

e brincar com bonecas. Quanto ao futebol, os meninos jogavam a semana inteira.

Nos domingos aconteciam “as finais” no Largo da Feira – Mangueirão e Largo

da Feira. A criançada se alimentava muito com frutas, sem pagar: caju, manga,

jabuticaba, jatobá, melancia, goiaba...

No futebol profissional, três times representavam nossa cidade no

Campeonato Paulista: Barretos F.C., Motoristas e Fortaleza. Todos com suas divisões

de base (infantil, juvenil e aspirantes).


148

HISTÓRIAS (E NOVAS HISTÓRIAS) DA MINHA CIDADE

Construção do Cine Barretos, inaugurado em 17 de dezembro de 1946 (arquivo do Museu “Ruy Menezes”)

No basquetebol, a ABC – Associação Barretense de Cestobol, formada apenas

com jogadores de Barretos, era referência no basquete estadual.

Nesta década, coisas importantes aconteceram em nossa cidade. Entre

outras, foram marcantes: a instalação da primeira emissora de rádio e

a inauguração do Recinto Paulo de Lima Corrêa — palco das melhores exposições

de gado do Brasil e, por trinta anos, local onde foram realizadas grandiosas

Festas do Peão de Boiadeiro de “Os Independentes”.

O fim da 2ª Guerra Mundial aconteceu em 1945, com muita festividade.

Em 1947, o então prefeito Mário Vieira Marcondes realizava a primeira Festa

do Peão de Boiadeiro do Brasil. Também nesta década, um grande acontecimento

foi o aparecimento da penicilina, que salvou milhares de vidas.

DÉCADA DE 50

Na década de 50, a moçada da bolinha de gude e do estilingue já procurava

outros divertimentos: matinês dançantes, boates, footing, cinemas, barzinhos,

etc.

Os estudos, agora, eram mais rígidos porque haveria pela frente o vestibular

e a definição da carreira profissional. Mesmo assim, a vida social era


NIVALDO GOMES E NIVALDO GOMES JÚNIOR 149

intensa. Os clubes eram bastante frequentados. Entre os pontos de encontro,

os mais conhecidos eram: Bar São Paulo, Ponto Chic, Bar Jaú, King’s Bar, Caju, Predileto, Café

Goiano...

A tradicional Quermesse de São Benedito acontecia anualmente. Eram muitos

dias de uma grande festa. A Festa das Nações, em praça pública, também era

muito tradicional. Conjuntos musicais de Barretos animavam as boates semanais

e nossos carnavais de clube: Night and Day e The Kick-Backs eram os mais

famosos. O carnaval de rua — um dos melhores de todo o estado — tinha

como atração mais importante a escola de samba Estrela D´Oriente.

Também, nas noites barretenses, não faltava a seresta.

Perspectiva da área central de Barretos na década de 1950. Destaque ao prédio do 1º Grupo Escolar,

à cúpula da Catedral, ao Sindicato Rural, ao Grêmio Literário e Recreativo, ao Café Ivaí e

à Praça Francisco Barreto (arquivo do Museu “Ruy Menezes”)

Outros acontecimentos importantes marcaram a década de 50. A inauguração

do hipódromo do Jockey Clube, um dos melhores do estado e o lançamento

do álbum comemorativo do 1º Centenário da Fundação de Barretos,

sob responsabilidade de José Tedesco e Ruy Menezes, o grande jornalista.

Em 1955 foi fundado o Clube Os Independentes por vinte jovens idealistas e

sonhadores. Uma nova era para a cidade. Barretos, que por muitos anos foi

conhecida como a “capital da pecuária brasileira”, é famosa hoje como a “capital

do rodeio do Brasil”; isso devido à realização de históricas Festas do Peão

de Boiadeiro que começaram a acontecer no ano de 1956. Hoje, a Festa do Peão

acontece em recinto próprio — o Parque do Peão — idealizado em 1973. Recinto

este que é utilizado durante o ano todo para visitação e grandes eventos.


150

HISTÓRIAS (E NOVAS HISTÓRIAS) DA MINHA CIDADE

Outro grupo importante que surgiu em Barretos na década de 50 foi

o Núcleo de Universitários de Barretos – o NUB. Quase todos os estudantes em cursos

superiores passaram a morar em cidades grandes, como Rio de Janeiro, São

Paulo, Ribeirão Preto, Campinas, entre outras. Nas férias escolares, esses

estudantes voltavam a Barretos e, através do NUB, movimentavam a cidade

com eventos sociais, culturais e esportivos.

No Brasil, a década de 50 foi historicamente marcada pelo surgimento

da Bossa Nova, em 1958. O novo som, a nova batida — a nova música do Brasil.

Por Nivaldo Gomes

NOVAS HISTÓRIAS DA MINHA CIDADE

Talvez eu, aos 41 anos, não tenha tantas histórias para contar como o

meu pai, que já tem seus felizes 86. Muita coisa mudou! Os barzinhos de hoje,

em sua maioria, duram poucos anos e acabam não se tornando referências

históricas. As boates, as serestas, os bailes e o carnaval não existem mais em

nossa Barretos. Hoje, as turmas se reúnem aos domingos na Região dos Lagos,

na casa de amigos, onde tenha uma churrasqueira, ou pedem comida por

aplicativos de celular, ficando, assim, na comodidade de suas casas.

O único cinema da cidade, no shopping, raramente lota. Peças de teatro,

quase não acontecem por aqui. A meu ver, a Internet distanciou as verdadeiras

amizades; as redes sociais fazem com que muitas pessoas vivam de

aparência; o espetáculo ao vivo perdeu espaço para a Netflix. As cartinhas

de amor perderam espaço para as mensagens de WhatsApp. Telefone perdeu

a sua principal função, que é telefonar. Hoje, é usado para muitas outras coisas,

entre as quais distrair crianças ou nos afundar em notícias negativas.

Hoje, está quase todo mundo sem tempo. Gastamos nossa saúde pra ganhar

dinheiro e gastamos nosso dinheiro para recobrar a saúde.

Dizem que a vida é para quem sabe viver, mas ninguém nasce pronto.

A vida é para quem é corajoso o suficiente para se arriscar — e humilde o

bastante para aprender. Em meio à pandemia do Coronavírus, confinados em

casa aprendemos a ajoelhar-nos diante do invisível: estamos nos distanciando

ainda mais uns dos outros para aprendermos, na dor da solidão, a importância

do coletivo. Também para sabermos valorizar um abraço, o que não é

possível nos contatos virtuais: esses não são suficientes para aquecer um coração.

A lição da regeneração ficará de herança para as próximas gerações.

Nasci no Chão Preto, na terra de Chico Barreto, administrada hoje pelo prefeito

Guilherme Ávila. Aprendi a amar essa cidade, casei com meu amor, com a minha

Renata. Sinto saudade da minha mãe, dos eternos amigos do extinto Soares

de Oliveira, mas me orgulho em ser “júnior” e carregar eternamente comigo o


NIVALDO GOMES E NIVALDO GOMES JÚNIOR 151

nome do meu honrado pai. Só saio daqui, da terrinha, para viajar, mas sempre

volto bem rápido.

Seus cantos... seus encantos... Suas esquinas... (talvez a mais famosa

seja o Café Ivaí).

Suas obras, seus buracos. Seu verde, suas cinzas de fuligem.

Suas novas grandes avenidas. Suas ruas numeradas, seus extintos pontilhões.

Tem a torcida organizada torcendo pelo Becão, na certeza de um dia ser

um time campeão. Suas dezenas de personagens que marcam uma geração

(talvez o Milão, hoje, seja o mais representativo). As eternas disputas políticas,

onde hoje um está com um, mas amanhã o um é contra o um, fazendo, assim,

com que nossa querida Barretos não seja tão grandiosa quanto merece.

Mas os poucos prédios aqui existentes e sua cultura de cidade de interior

fazem com que Barretos seja a melhor cidade do mundo para se morar.

E não há instituto de pesquisa no planeta que me faça mudar de ideia.

Por Nivaldo Júnior

Nivaldo Gomes é arquiteto, pai do Marcelo e avô do

Pedro Henrique e da Mariana.

Nivaldo Júnior é jornalista e fotógrafo


FU T EBOL – MEMÓR IA 1965

O emblemático episódio

do Trem da Fome

Patrício Augusto dos Santos Reis

O Touro do Vale, em partida pela fase de classificação em 1965. Da esquerda para direita, em pé: Salvador

(entrevistado por Paulo Baroni), Antôninho (entrevistado por Marco Baroni), Condinho, Zé Maria, Xisto e

Lourenço; agachados: Cabeça (massagista), Zezinho, Geada, Vanderley, Adésio e Rodolfo.

(Acervo Patrício Augusto – reprodução Correio de Barretos)

E

m 1965, no quinto ano após o seu nascimento, fruto de uma fusão

entre Barretos Futebol Clube e Fortaleza Esporte Clube, o Barretos Esporte

Clube, depois de ter disputado dois rebolos e escapar do rebaixamento, finalmente

montou um grande esquadrão capaz de levá-lo às finais do Cam-


FUTEBOL – MEMÓRIA 1965: O EMBLEMÁTICO EPISÓDIO DO TREM DA FOME 153

peonato Paulista da Primeira Divisão, que dava acesso à Divisão Especial, a

principal do futebol paulista.

A fase de classificação foi muito disputada, mas o BEC sobrepôs-se

diante dos adversários. Em vinte jogos disputados venceu 12, empatou quatro

e perdeu quatro. Marcou 42 gols e sofreu 23, ficando com um saldo de

19. O campeonato começou em 27 de junho de 1965, quando o BEC foi derrotado

por 3 x 1 para o Batatais. A fase de classificação terminou em 13 de

novembro, em Rio Preto, quando o BEC empatou com o Rio Preto em 0 x 0.

Naquela época, a classificação era medida pela equipe que tivesse o

menor número de pontos perdidos — diferente de hoje, que é feita por pontos

ganhos. O BEC foi o primeiro colocado da série Carlos Nelli, com 12 pontos

perdidos, seguido do Santacruzense com 16 (segundo lugar), Francana e

Batatais, 17 (terceiro), Corinthians de Prudente e Tupã, 19 (quinto), Votuporanguense,

19 (sexto), Taquaritinga e Rio Preto, 24 (sétimo), Osvaldo Cruz

e Batatais, 26 (nono).

Assim, chegou à final, no Estádio do Pacaembu, frente ao Bragantino

em plenas condições de conquistar o título, numa melhor de três – uma vitória

e um empate eram suficientes para conquistar o acesso.

Em preparação para as finais, o Barretos alojou-se na sede do Corinthians,

o Parque São Jorge, durante 13 dias, ocupando o ginásio local até a

data do primeiro jogo, permanecendo por lá também no intervalo entre primeiro

e o segundo jogo.

Foi naquele final de ano próximo que a torcida barretense protagonizou

um de seus mais emblemáticos episódios: o Trem da Fome. Para chegar

à capital paulista e torcer para o Touro do Vale no segundo jogo, o torcedor

barretense superlotou vários carros de passageiros da então Companhia

Paulista de Estradas de Ferro. Muitos que lá estiveram lembram-se do fato

com muita tristeza, pois o Touro do Vale sucumbiu diante do Bragantino, o

conhecido Massa Bruta.

É uma história com uma pitada de humor e horror devido à passagem

dos coletivos em cada estação ferroviária, cujos pontos de venda eram

saqueados para matar a fome da galera. Ávidos e famintos, os barretenses

aproveitavam-se do momento de paradas dos coletivos, esperando a liberação

da linha. Vidros de salsichas e latas de bolachas foram os comestíveis

preferidos da torcida.

Porém, a partir de um determinado momento, as estações passaram a

ser avisadas com antecedência e os pontos de venda fechavam suas portas.

“Numa cidade, o bar estava fechado e próximo a estação havia um pé

de manga, cujas frutas ainda não estavam maduras. Mas, teve gente que

comeu manga verde mesmo”, lembra-se um torcedor que pede para não ser

identificado.


154

PATRÍCIO AUGUSTO DOS SANTOS REIS

A equipe do BEC de 1965, no jogo frente ao Rio Preto, em casa (29/8). Da esquerda para direita, em pé:

Sidney Cotrim (técnico), Salvador, Antoninho, Xisto, Condinho, Zé Maria e Tirí (entrevistado pelo repórter

Marco Baroni). Agachados: Cabeça (massagista), Zezinho, Geada, Vanderley, Rodolfo e Gessi.

Neste jogo, Adésio estava fora devido a uma hepatite. (Acervo Patrício Augusto)

OS JOGOS FINAIS

No primeiro jogo das finais, disputado em 18 de novembro, o Barretos

perdeu por 1 x 0, gol do ex-palmeirense Hélio Burini, aos 15 minutos do segundo

tempo. Naquela oportunidade, o BEC queria que o jogo fosse realizado

mais adiante, o que lhe daria tempo para recuperar jogadores que estavam

contundidos. “O Bragantino, porém, forçou a barra e conseguiu a marcação do

jogo, o que não foi bom para nós”, relatou-me o diretor de futebol da época,

José de Carvalho, “Tinoco”. Naquela oportunidade, o BEC formou com Xisto,

Condinho, Antoninho, Salvador e Lourenço; Zé Maria e Adésio: Zezinho, Geada,

Vanderley e Rodolfo. O Bragantino jogou com Darci, Roberto, Ivan, Walter e

Geraldo; Del Pozzo e Hélio Burini; Nardinho, Norberto, Nivaldo e Wilson.

Na segunda partida, precisando ganhar para provocar o jogo extra, o

Touro do Vale esteve à frente do placar por duas vezes e acabou cedendo o

empate, que deu o título ao rival. Vanderley marcou o primeiro para o BEC

num chute de fora da área, mas Lourenço (contra) empatou para o Braga.

Após a cobrança de um escanteio, por Zezinho, Vanderley, de cabeça, recolocou

o Touro do Vale à frente do marcador.

Entretanto, a três minutos do final, Nivaldo empatou o jogo. No ataque


FUTEBOL – MEMÓRIA 1965: O EMBLEMÁTICO EPISÓDIO DO TREM DA FOME 155

do Bragantino, a bola saía pela linha de fundo em lance favorável ao Barretos.

Mesmo assim, Xisto foi para bola com objetivo de detê-la. O goleiro objetivava,

segundo contou Tinoco, ter a bola na mão para ganhar tempo.

“O goleiro me disse que o zagueiro Lourenço, batedor dos tiros de meta,

estava visado pelo árbitro e não tinha a manha de fazer de cera”, conta.

“Então, ao invés de deixar a bola sair para nossa equipe fazer a reposição

no tiro de meta, queria mantê-la em jogo. Ocorre que, ao ir para a jogada, a

bola bateu no seu ombro e voltou para o campo e o Massa Bruta aproveitou-se

do lance empatando a partida”, descreve Tinoco, conforme o relato do próprio

Xisto. Minutos depois, o jogo estava encerrado e o Bragantino foi o campeão,

subindo para a Especial Paulista.

O terceiro jogo era tudo que o Barretos queria. Entendem os dirigentes

e os esportistas que vivenciaram a época, que o adversário estaria sem condições

físicas e técnicas para suportá-lo, diferente do BEC, que estaria inteiro.

Menos de um mês depois, as equipes encontraram-se novamente em jogo

amistoso, com o Barretos goleando o Bragantino por 5 x 0.

O BEC de 1965, no Paulista de acesso,

em números; jogos finais aconteceram no

Pacaembu, em SP

Patrício Augusto dos Santos Reis é jornalista profissional diplomado

pela UNAERP (Universidade de Ribeirão Preto). É cronista esportivo desde 1982,

quando ingressou na Rádio Barretos.

Depois atuou nas emissoras locais de rádio e na TV Barretos (Vale TV).

Atualmente, é colunista colaborador semanal do Jornal O Diário e trabalha da Secretaria

Municipal de Relações Institucionais e Comunicação da Prefeitura de Barretos

como agente de Comunicação Social, tendo ingressado em 1º de março de 1988


A classe operária em Barretos:

Q

algumas considerações e

possibilidades de pesquisa

Priscila Ventura Trucullo

uando aceitei escrever um texto para o livro Barretos em 3ª pessoa, deparei-me

com uma questão sempre relevante para historiadores: quais são as

problemáticas do presente que justificam o olhar sobre o passado? Qual história

é relevante para compreendermos a realidade social da nossa cidade?

Na atualidade, historiadores, cientistas sociais e pensadores da área

de ciências humanas, em especial intelectuais e militantes do campo político

da esquerda, indagam-se sobre as causas das dificuldades de mobilização da

classe trabalhadora, levantando problemas como a alienação, a despolitização

e uma intuitiva ausência de consciência de classe. 1 A problemática nos leva a

resgatar o materialismo histórico 2 enquanto base teórica, para compreendermos a

realidade que nos desafia, pois, “a questão está [...] em como o desenvolvimento e a expansão

da nova economia industrial afetou a classe operária, pois eles a afetaram de várias maneiras” 3 .

Apesar disso, nos deparamos com uma incômoda ausência de trabalhos científicos

de maior fôlego sobre a formação da classe trabalhadora em Barretos.

Meu interesse sobre este tópico remonta a 2011, quando escrevi o capítulo

A pecuária e a moderna tecnologia dos frigoríficos para o livro Descobrindo Barretos.

No entanto, sua denotação mais generalista e seu caráter didático não me

levaram a aprofundar o tema em questão, o que não impediu o contato com

alguns trabalhos, donde percebi várias possiblidades de pesquisa. Neste sentido,

destaco o trabalho único da historiadora barretense Célia Regina Aiello,

Perfil dos Operários do Frigorífico Anglo de Barretos (1927-1935), dissertação de mestrado

defendida na UNICAMP em 2002.

Aiello tinha uma preocupação em perceber o grau de politização e organização

do operariado ainda na origem de sua formação. Tanto que, ao lançar

mão da análise de fontes jornalísticas, observa a convocação de operários

na imprensa local 4 , o que resultaria na participação destes em uma greve


A CLASSE OPERÁRIA EM BARRETOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES (...) 157

pela jornada de trabalho de 8 horas em 1911. Neste mesmo ano, grande

parte dos trabalhadores filiaram-se ao Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil.

Operários da área de construção civil e carpintaria do frigorífico.

O grupo de trabalhadores destinado à construção e ampliação do espaço fabril parece ter sido uma constante.

Fotografia de 1920 ou 1930, aproximadamente. Fonte: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”

A organização junto a sindicatos e/ou associações de classe são indicativos

de uma germinal formação da consciência de classe ou, ao menos, de

uma identidade proletária 5 “em relação à existência de um interesse comum” 6 , pois tais

associações surgiram com a função de ajuda mútua, prestando socorro no

caso de acidentes de trabalho, doença, falecimentos e na velhice dos trabalhadores.

Sintoma disso é a existência, em 1916, da União Operária Barretense, que no

ano seguinte aparece como Sociedade Operária Internacional. Outros exemplos são:

a Propaganda Portuguesa (1916); Sociedade Italiana (1917); Sociedade Recreativa dos Empregados

da Companhia Paulista (1917); Sociedade Sírio-Libanesa (1917); União dos Empregados no Comércio

(1914); Sociedade Cosmopolita Dançante e Familiar de Barretos (1919), dentre outras,

que tornaram-se espaços de sociabilidade das classes trabalhadoras, bem

como de discussões políticas e ideológicas. Além da organização classista,

percebe-se o agrupamento de caráter étnico ou nacional, decorrente da diversidade

dos grupos humanos que compunham a população no período

Neste sentido, a autora demonstrou como a grande afluência de imigrantes

7 e migrantes 8 vindos das regiões cafeeiras para a cidade, ainda no

início do século XX, logo após a instalação da Companhia Agrícola e Pastoril (1913)


158

PRISCILA VENTURA TRUCULLO

— primeira indústria de carne frigorificada do país — influenciou na constituição

e organização do proletariado em Barretos. Sua análise atenta, dá-nos

conta da grande rotatividade dos empregados, os impactos da desigualdade

de gênero na divisão do trabalho, o emprego de menores e os conflitos entre

brasileiros e estrangeiros, que seria a causa de uma greve em 1931 9 .

Destaca também a importância da introdução de preceitos tecnicistas

de caráter taylorista quando a empresa é transferida para o capital britânico

em 1923 — passando a nomear-se Frigorífico Anglo S/A — inserida em uma

tendência, em âmbito nacional, de monopolização estrangeira do mercado

de carnes por trusts. Este processo revelou uma intensa disciplinarização e

repressão promovida pela fábrica, muitas vezes auxiliada pelo poder público,

haja vista as constantes visitas de agentes do Departamento de Ordem Política e Social

(DEOPS), durante o governo Vargas em Barretos.

Operárias do frigorífico no pátio da empresa. Algumas utilizam uniformes.

As mulheres trabalhavam, principalmente, em setores como o de embutidos, conservas, embalagens e

descarnação. Década de 1930. Fonte: Arquivo do Museu “Ruy Menezes”

O mérito deste trabalho também está em utilizar como método a história

oral 10 , recolhendo depoimentos de antigos trabalhadores, em especial

os que estiveram empregados nas décadas de 1960/70 e que eram filhos

de operários que haviam trabalhado no frigorífico nas décadas anteriores e

morado na vila operária. A partir destes depoimentos, percebeu-se que nenhum

dos antigos trabalhadores disse ter conhecido a fábrica inteira, deduzindo

que a divisão do trabalho gerava também uma divisão dos próprios operários,

que tinham dificuldades de se organizar.


A CLASSE OPERÁRIA EM BARRETOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES (...) 159

Em outro importante trabalho acadêmico, o historiador Humberto Perinelli

Neto,

[...] Amparado numa etnografia histórica, busco[u] salientar a ambivalência contida

neste espaço fabril, posto que é possível notar a convivência de traços industriais e

das antigas fazendas de café, as preocupações sanitárias e marcas do trabalho escravo,

bem como notar a presença de dispositivos disciplinares e a ressignificação dos

“espaços vazios” pelos operários. 11

Podemos perceber que o autor utilizou como aporte metodológico a

análise das fontes fotográficas, que lhe serviram como evidências da ressignificação

dos espaços promovida pelos operários, como forma de burlar

dificuldades em um contexto repressivo. Observação esta que pode ser extravasada

para o espaço da própria vila operária, sua disposição enquanto cidade

disciplinar 12 , bem como a constituição de uma cultura operária, expressa pelas

práticas de lazer próprias do operariado, como o clube de futebol e o cinema.

Há que se levar em consideração, portanto, que a classe operária se

constitui não somente em relação à uma cultura militante, mas também enquanto

artífices de uma cultura operária, donde ganham destaque as celebrações, os

rituais, o lazer, entre outros.

Reconhecer a existência de ambos aspectos implica enfrentar a difícil tarefa de articular

a visão da classe operária como totalidade cultural consolidada, com práticas,

símbolos e instituições próprias claramente diferenciadas, como na ênfase de Hobsbawm,

com o desenvolvimento do processo cultural que institui a consciência de classe,

processo esse marcado pela multiplicidade de experiências, pela flexibilidade dos costumes

e pela circulação de valores, como na análise de Thompson. 13

É este o desafio a ser enfrentado: desvendar a constituição histórica

da classe trabalhadora em Barretos; não só do operariado, mas de trabalhadores

do campo, comércio e serviços e suas consequências estruturantes

para a cidade, como a expansão da área urbana 14 , o aumento populacional,

a diversificação das composições classistas e suas formas de organização.

Neste sentido, recentemente, um pesquisador do Serviço Social analisou

as relações de trabalho e saúde nos frigoríficos de Barretos, e demonstrou

um aprofundamento da exploração do trabalhador, gerando impactos negativos

como o aumento dos problemas de saúde e a depreciação dos direitos

trabalhistas 15 . No entanto, ainda percebemos uma grande lacuna a ser

preenchida pelos historiadores, preocupados em compreender e transformar

a realidade. Nestas breves páginas, não tive a intenção de encerrar o assunto,

mas apenas privilegiar o trabalho de historiadores locais, apontar possibilidades

de pesquisas e, talvez, provocar sua curiosidade acerca do tema.


160

PRISCILA VENTURA TRUCULLO

_________________

1 A discussão teórica acerca dos conceitos marxistas de classe e consciência de classe é profícua e perpassa

vários autores da história e das ciências sociais. Um dos entendimentos mais recorrentes é aquele dado pelo

clássico A formação da classe operária inglesa de E. P. Thompson, segundo o qual “A classe acontece quando

alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade

de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos

seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens

nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são

tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a

experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe”. THOMPSON, E. P.

A formação da classe operária inglesa, v. I, A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 10.

2 A concepção materialista da história nos mostra que em “cada fase histórica se encontra um resultado material,

um somatório de forças de produção, uma relação historicamente criada entre indivíduos e a natureza e daqueles

entre si, que cada geração recebe da que a precedeu [...] partimos do homem realmente ativo, para, com base

no seu processo real de vida, mostrarmos também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse

processo de vida [...] Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”.

GARDINER, P. Marx: a concepção materialista da história. In: ___ (org.) Teorias da história. 4 ed. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 158-159.

3 HOBSBAWM, E. O fazer-se da classe operária. In: ___ Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história

operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 282.

4 “Convidam-se as classes operárias todas a comparecer hoje as 12h do dia à Rua Tiradentes em frente à ferraria

Mantoni”. O Commercio 6.8.1911 In: ARAÚJO, C. R. A. Perfil dos Operários do Frigorífico Anglo de

Barretos (1927-1935) 2003. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2003.

5 ARAÚJO, C. R. A. Op. cit; p. 80.

6 BATALHA, C. H. M; SILVA, F. T.; FORTES, A. Cultura de classe: identidade e diversidade na formação do

proletariado. Campinas: Unicamp, 2004, p. 12.

7 Destaca-se entre os imigrantes a presença dos lituanos nas primeiras décadas do frigorífico. Alvos recorrentes

da vigilância de agentes federais, chegaram a sofrer deportações. ARAÚJO, C. R. A. Op. cit.; p. 80-8; 100-1.

Ver também: WELCH, C.; GERALDO, S. Lutas camponesas no interior paulista: memórias de Irineu Luís

de Moraes. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

8 Entre estes migrantes destacaram-se os baianos. Centenas foram contratados pela família Prado para exercer

atividades mais penosas e de baixa remuneração, como o desmatamento e limpeza das terras. In: ARAÚJO, C.

R. Op. cit; p. 77-8.

9 “No ano de 1933 [...] foi fundado o “Sindicato dos Trabalhadores em Frigorífico”, hoje, “Sindicato dos Trabalhadores

nas Indústrias de Alimentação de Barretos”. O sindicato foi prontamente reconhecido em 31 de maio

de 1933 pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado por Getúlio Vargas [...] o que diminuiu a autonomia

dos trabalhadores em relação as suas reinvindicações, que passaram a ser ‘mediadas’ e ‘medidas’ pelos

representantes do capital e da ordem pública” In: ARMANI, K; FERNANDES, S.; TINELLI, R.; TRUCULLO,

P. Descobrindo Barretos (1854-2012). Barretos: Liverpool, 2012, p. 234. Sobre a atuação do Sindicato da

Alimentação, ver também: MENEZES, B. A. Nossa Luta: PT em Barretos-SP. 2 ed. S/E. Barretos: ?, p. 34-6.

10 Sobre os depoimentos colhidos pela historiadora: “[...] É evidente no discurso dos operários o agradecimento

aos antigos patrões, paternalistas. Todas histórias são contadas com emoção e fazem parte de um rico acervo

da memória popular que certamente merece maior atenção e cuja recuperação é parte importante da história do

município.” ARAÚJO, C. R. A. Op. cit.; p. 67.

11 PERINELLI NETO, H. Espaço(s) fabril(is) e tempos sociais diversos: etnografia histórica, particularidades

da modernidade brasileira e o Frigorífico de Barretos (1909/1931). p. 2. Acesso em: https://www.iau.usp.br/

sspa/arquivos/pdfs/papers/01523.pdf


A CLASSE OPERÁRIA EM BARRETOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES (...) 161

12 O conceito é da historiadora Margareth Rago: “Nesta utopia reformadora, a superação da luta de classes

passava pela desodorização do espaço privado do trabalhador de duplo modo: tanto pela designação da forma

de moradia popular, quanto pela higienização dos papéis sociais representados no interior do espaço doméstico

que se pretendia fundar. A família nuclear, reservada, voltada para si mesma, instalada numa habitação

aconchegante deveria exercer uma sedução no espírito do trabalhador, integrando-o ao universo dos valores

dominantes”. RAGO, M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar – Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1985, p. 61.

13 BATALHA, C. H. M; SILVA, F. T.; FORTES, Op. cit.; p. 13.

14 Neste sentido ver o trabalho de HOFT, R. O processo de urbanização em Barretos (1910-1930). 2009.

Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdades Integradas FAFIBE: Bebedouro, 2009.

15 REMIJO, A. P. A situação da classe trabalhadora nos frigoríficos de Barretos: antagonismo da superexploração.

2013. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis,

2013.

Priscila Ventura Trucullo é historiadora e professora de história da rede

pública do estado de São Paulo. Desenvolveu pesquisas no campo da história local de

Barretos, memória e modernização


Museu Ruy Menezes

por ele mesmo

Raquel Milagres de Mattos

T

alvez você ache que eu sou muito velho. Mas se conhecer a minha história,

verá que sou mais antigo do que pensa. Meu corpo é antigo, mas minha

alma é atemporal. Tenho histórias e segredos que muitas pessoas jamais

imaginaram. Vou abrir as portas do meu passado e te levar a tempos muito

antigos, onde eu fui concebido pela primeira vez nessa cidade, por pessoas

que tinham um bom objetivo em mente: guardar histórias da nossa gente

para que, hoje, você possa conhecê-las.

Paço Municipal – década de 1910/1920, ainda sem as águias. Acervo: Museu Ruy Menezes

Eu nasci em uma escola — o Colégio e Escola Normal Estadual Mario Vieira Marcondes

(também conhecido por Estadão), pelas mãos do professor Raul Alves

Ferreira. Foi ele quem primeiro pensou em mim e se juntou a outros profes-


MUSEU RUY MENEZES POR ELE MESMO 163

sores para que eu acontecesse. E assim foi feito. Depois de muitas reuniões,

conversas informais e todo tipo de debate, em 1961 eu fui apresentado ao

mundo pela primeira vez. Naquela época, eu ganhei o nome de Museu Histórico

e Pedagógico Ana Rosa, em homenagem à esposa do fundador da nossa cidade,

Francisco Barreto. Era tempo do nascimento de vários museus pelo estado

de São Paulo com essa denominação. A minha não era oficial, mas fazia jus

ao meu conteúdo. Fiz tanto sucesso logo na minha chegada, que várias pessoas

me trouxeram presentes que eu guardo comigo aqui até hoje, como a

cruz (que dizem que foi da sepultura do Chico Barreto, mas eu não sei, não...).

Recebi até carta do Diretor do Serviço de Museus do estado, Vinício Stein

Campos, parabenizando o professor Raul pelo meu nascimento. Achei fantástico!

Está guardadinha aqui comigo, para quem quiser ver.

Só que o tempo passou e eu cresci — claro, e não cabia mais na minha

casa. Eram tantos os presentes doados que não tinha espaço para mais

nada. Daí o professor teve a ideia: vamos entregar o museu para o município.

E em 1973, depois (de novo) de muita conversa, debate, questionamentos,

eu acabei me mudando. Vim pra esse prédio que é mais antigo do que

qualquer pessoa que você conheça! Mas ele é muito importante, sabe? Ele

era o Paço Municipal, por onde vários prefeitos passaram. Ele foi inaugurado em

1907. Muito antigo. Quem fez esse prédio lindo foi o então prefeito Antonio

Olympio. Tem registro no jornal O Sertanejo (que também é antigo, de 1900,

mas essa informação saiu no dia 2 de setembro de 1906) e eu também o

tenho! Mais tarde, ele ganhou as duas águias que encimam sua entrada e

passou a ser conhecido como Palácio das Águias, numa referência ao Palácio da

República, no Rio de Janeiro, onde ficava a sede do governo federal naquela

época; nesse mesmo ano, ele também ganhou o busto da República, que está

até hoje no nosso salão principal. E mais uma curiosidade sobre esse prédio

tão importante e interessante: ao redor dele existem 17 janelas, sabe para

quê? Entrar luz e vento. Quando o prédio foi inaugurado, não havia energia

elétrica em Barretos (ela só veio em 1911); então precisava desse tanto de

janelas para as coisas poderem acontecer lá dentro. E, agora, esse prédio tão

importante seria a minha casa. Só minha.

Eu já era crescido e precisava do meu espaço.

Mas eu vim em definitivo só no dia 6 de fevereiro de 1979, quando

renasci nessa casa nova, com uma festança. Até o bispo da cidade, Dom Antonio

Maria Mucciolo, veio me abençoar. Tenho várias fotos para mostrar. O

povo todo na porta pra me ver. Que festa! Vieram várias pessoas importantes,

como o prefeito da época, o Melek Zaiden Geraige e a dona Lydia Scanavino

Scortecci — essa é a minha mãezona; sempre cuidou de mim, desde

que eu nasci e, quando eu fiquei grande, foi ela que me acompanhou e fez a

minha mudança — entre muitos outros.


164

RAQUEL MILAGRES DE MATTOS

Inauguração do Museu Ruy Menezes, em 6 de fevereiro de 1979.

Discurso do Prefeito Melek Zaiden Geraige. Acervo: Museu Ruy Menezes

Todos os meus presentes — que continuavam chegando — estavam em

todos os lugares. Naquela época, era assim: a gente mostrava tudo o que

podia. Ah, e meu nome havia mudado também: agora eu era o Museu Histórico,

Artístico e Folclórico do Município de Barretos. Alguns anos depois, eu ganhei as cores

pelas quais todo mundo me conhece até hoje: branco com detalhes em amarelo.

Com o tempo, fui me tornando ainda mais importante. Sempre que

alguém precisa de uma informação antiga é a mim que recorre, seja para

fazer trabalho de escola, seja por curiosidade. Tenho uma coleção de jornais,

fotografias e documentos de fazer inveja a muito museu grande. Tudo bem

guardado, conservado, documentado. E, também, quando as pessoas querem

ver como seus antepassados viviam, é pra cá que eles vêm. E eu recebo todo

mundo. Como eu te disse lá no começo, eu tenho coisas muito antigas, que

contam a história da cidade e de seus habitantes e também um pouquinho da

história do país. Na exposição de longa duração, há algumas salas que nunca

saem de lá, devido a sua importância histórica, como a sala dos movimentos

militares (conhecida como Sala da Guerra, uma das mais procuradas pelos visitantes);

a do poeta Nidoval Reis, que nasceu no distrito de Laranjeiras, quando esse

ainda pertencia a Barretos; dos primeiros habitantes da cidade – os tropeiros

— e das companhias de reis, tão tradicionais aqui em Barretos. Minha

coleção de jornais é incrível e tem muitos dos periódicos que já rodaram na

cidade e que já não existem mais, como o Correio de Barretos, que pertenceu ao


MUSEU RUY MENEZES POR ELE MESMO 165

meu patrono, Ruy Menezes.

Essa história de que quem vive de passado é museu, é a maior balela.

Eu tenho coisas muito atuais, exposições lindas de arte, de fotografias, de

objetos, tenho eventos, diversão e educação para todos os gostos.

Mas uma coisa especial aconteceu em novembro de 1988. Entusiasmados

com a nova Constituição Federal, que tinha sido promulgada no mês

anterior e que elevava a cultura a um nível ainda maior, o prefeito Milton

Ferreira resolveu que eu seria tombado! Mas não é tombar de ir ao chão,

não! É dizer que eu estava protegido, que não poderiam me tirar daqui nem

mexer na minha casa. E assim foi feito: no dia 10 de novembro de 1988,

saiu a lei nº 2240 do meu tombamento municipal. Pronto. Agora eu era intocável.

E eu ainda mudei de nome (de novo) em 1994. Depois do falecimento

do jornalista (uma entre tantas coisas que ele fazia) Ruy Menezes, em 1992,

passei então a ser o Museu Histórico, Artístico e Folclórico Ruy Menezes (ou Museu Ruy

Menezes para os chegados). E esse é o nome que eu carrego até hoje.

De lá para cá foi tudo só alegria — mais ou menos; já tive meus percalços,

nada que não pudesse ser resolvido, mas isso não vem ao caso. O que

importa mesmo contar é que hoje eu tenho um grande acervo, graças a todos

os presentes que já recebi e, se você quiser consultá-lo, ele está disponível.

São milhares de fotos, documentos, jornais, objetos de vários tipos.

Hoje tem muito movimento por aqui. Há muito em exposição, mas tem

coisas que precisam ficar guardadas por um tempo. Coisas que já sofreram

muito ao longo dos tempos e que, agora, não podem ficar em exposição para

não se estragarem de vez. Mas eu tenho tudo registrado aqui.

Gostaria que você viesse me visitar de vez em quando. Às vezes, eu

tenho umas coisas bem diferentonas que as pessoas trazem aqui pra casa

para eu exibir. E, aí, eu fico ainda mais importante.

Se você nunca veio, acho que está mais do que na hora de vir me ver.

E eu tenho um segredo para te contar: cada vez que você vem aqui, você vê

as coisas de um jeito diferente.

Não é magia, mas é quase. Vem descobrir!

Raquel Milagres de Mattos é museóloga e gestora do Museu Ruy Menezes

desde 2012, quando se mudou para Barretos, mas trabalha com museus desde 2006,

ainda como estagiária no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.

Além do museu, trabalha com escrita criativa e revisão de textos


Retalhos do passado

Sada Ali

N

Parte do centro de Barretos na década de 1910, onde nota-se a estrutura urbana,

o fluxo de pessoas e as casas comerciais (arquivo do Museu “Ruy Menezes”)

uma casa com comércio para a Rua 4, vivia uma família composta

por dez filhos e seus pais; um imigrante libanês e a esposa nascida em terras

mineiras, que por força do destino e desejo dos avós, fazendeiros naquelas

terras, decidem-se a fazer morada em terras paulistas. Vendem a fazenda,

trocando o leite pelo café, como diziam à época. Mal sabia ele ‘onde estavam amarrando

os bigodes’. Minas Gerais, de povo acolhedor e de terras próprias, para São

Paulo, de povo culturalmente menos afetuoso, mais reservado, muito distante

da acolhida oferecida em terras mineiras. Os ricos contos de réis da venda

da fazenda em Minas nada significavam em terras paulistas; e o rico avô, de

fazendeiro nobre para um reles empregado em terras alheias. E assim, em

visitas a essas terras, onde a família mineira passa a trabalhar, o imigrante

mascate conhece a pequena mineira, tímida, de fervorosa fé e caráter. Se

apaixona pela bela morena e pede sua mão em casamento. Passado algum


RETALHOS DO PASSADO 167

tempo de vida em comum, dos inúmeros filhos nascidos, o mascate decide

fixar o comércio ambulante nessa casa do início da narrativa — a da Rua 4.

Ali, com o pequeno comércio e a lida materna na rotina do lar, encaminham

os filhos aos estudos que a eles fora negado. A mãe tentara estudar

numa escola pública, a léguas de distância da fazenda onde residiam,

atravessando porteiras, pulando cercas, cruzando pastos sob a força do sol,

chuva, frio. Seu sonho era se tornar uma PROFESSORA — repetido, assim,

PROFESSORA, enchendo a boca para falar. A vida a permitira seguir apenas

até o terceiro ano. Algo semelhante acontecera ao imigrante que, ainda com

menor conhecimento que a esposa, aprendera apenas a escrever números;

nenhuma letra, NADA. Todas as suas clientes eram donas Marias, mas seu sorriso,

sereno e humilde, era cativante e conquistava a confiança sem precisar

escrever sequer uma letra. Era um tempo onde a palavra dita valia a vida,

onde se vendia fazendas sem cartório, sem papéis, pela honra do nome. O

caráter era moldado no olhar dos pais e o fio do bigode lavrava sentenças.

Nesse quintal que parecia tão imenso florescia o abacateiro, mangueira,

goiabeira, bananeira; o persistente imigrante insistia em colher produtos

da estação: milho, que era servido assado na brasa, em bolos, pamonhas e,

para acompanhar, o arroz e feijão; plantava também verduras, que davam

gosto de se ver e comer. Ali florescia alho, couve, alface, cenoura, numa variedade

de canteiros preparados por ele que, até hoje, persiste na memória

dos que o viram. Braço na enxada cavoucando a terra, numa prova de determinação

e resistência: braço-cavouco-enxada-terra, em sucessivas enxadadas, até

compor aquele belo e bucólico cenário de cores, sabores, vida.

Monet não pintaria cena mais bela!

Numa das laterais da casa, uma cerealista, ou como diziam, máquina

de fazer arroz: era sempre uma alegria ver a máquina limpando o cereal —

de um lado arroz, do outro a casca. Que avanço em tecnologia! Era inspirador!

Aquela parede alta fornecia a sombra necessária para o cultivo da bela

e variada horta. Na outra lateral da casa, um terreno baldio, muito extenso

que recortava a quase totalidade esquerda do quarteirão, um terreno onde o

mato, as árvores, cresciam desordenadamente. Bem ao fundo, num cantinho

minúsculo vivia o seo Américo, um antigo boiadeiro que, tendo vivido a lida

das comitivas, já cansado e mais idoso, fixara residência naquele pontinho

de areia, num mar de oceano chamado Terra.

Dizem que quem bebe das águas de Barretos não se esquece jamais...

Seo Américo era contador de histórias, ele próprio era a história. Chapéu,

botas, calças rancheiras, cabelos encarapinhados e brancos, com bigode

também branco contrastando com a cor preta da pele e o berrante, seu único

bem em toda essa terra. Seo Américo, além de contador de histórias, pagava

guaraná — pra alegria da criançada, que só bebia do líquido quando estava


168

SADA ALI

doente. Eram os tempos!

Quem era mais doce? A bebida ou o seo Américo?

A comitiva seguia pelo estradão, rompendo um sem fim de terras cercadas por mourões de

pau e arame. Tropa e gado num regurgito de pó, sombras e cores. O berrante ecoando pelas planícies e

vales e a boiada avançando lentamente, cortando extensões descampadas, cruzando vilas e pequenas

cidades separadas por quilômetros de beleza campestre.

Um boi burla a vigilância, galga a cerca rompida e some na mata ao redor. Ao sinal de perigo, o

ponteiro infla o peito, a boca enche e espreme o ar em suspiros, dando tom e ritmo ao vento soprado

no chifre curtido. O toque do berrante avisa a tropa; o rebatedor parte ao encalço do fujão. Momentos

de caça e o ruminante retorna, num destino tangido, rumo ao matadouro. Couro branco, ‘ouro branco’,

como repetia Coronel Bartolomeu, lá pelos fins-do-mundo das terras do seu domínio. ‘Meu ouro

branco’ – dizia, num rompante de orgulho de fazendeiro nobre e abastado, dono de terras herdadas

dos ancestrais; léguas espoliadas dos verdadeiros senhores do lugar. Ofuscados pela fuligem da poeira

da estrada, entre nuances verdes, azuis e tons da terra, o ouro branco mesclava-se, indo longe,

perdendo-se de vista naquela opulência única de carne, couro e patas, a encher ainda mais os ricos

bolsos do invasor. Pairando acima dos pensamentos e inquietações de cada homem, uma revoada de

nhambus recortava, em sombras, o ritmo lento da tropa.

Às tardes de sol incandescente sobrepunham-se noites enluaradas, argentando tudo ao redor,

refletindo na malemolência dos corpos cansados da lida da boiada. A comitiva recuperava as forças

num repouso pela vida, enquanto boiada rompendo estradão ao encontro da morte. Vida de gado!

Ao alvorecer, o orvalho no capim, café no bule e tropeiros prontos para a partida. O cozinheiro, já

distante com suas trempes, panelas de ferro e parafernálias presas às cangalhas, em movimentos

contínuos até a hora do novo pouso, sempre próximo a um açude; um ponto de água para a lida na

cozinha. Ah, as mulas! Rabos trançados em rodilhas, numa exibição de delicadeza, persistência e resistência,

impondo ritmo e vencendo a quase totalidade dos quilômetros que separavam a fazenda do

coronel Bartolomeu, do frigorífico da cidade de Barretos. Três meses cortando o estradão, vencendo

paisagens inóspitas e as variações do tempo da natureza. O gado, mais magro e afeito ao ritmo tangido

de viagem, necessitaria ser alocado nas invernadas para engorda. Após esse tempo, seria levado

ao abatedouro, à Companhia Frigorífica e Pastoril, primeiro frigorífico do país. E, naquele ritmo de

viagem, na manhã seguinte adentrariam o corredor boiadeiro, última etapa até Barretos, onde, sem

sons, enfileirados em trincheiras, teriam as carnes dependuradas, varais de açougue, prontas para

o comércio. Um princípio de piedade envolve a comitiva, desenlace dos últimos meses de convívio

junto aos animais, dicotomia entre a vida e morte prestes a ocorrer. A viagem, já se tornando uma

imagem-miragem, mesclando poeira, sol, mugidos e sangue.

A barriga roncando sinaliza o tempo de repouso. O cozinheiro ‘queimara o alho’ e o feijão tropeiro,

arroz carreteiro, paçoca de carne de sol estavam de lamber os beiços. Deleitam-se ao primeiro

bocado e a boca saliva satisfeita em resposta. Cospem a saliva excedente, levantam-se e seguem na

ronda ao redor do acampamento.

A noite passa lentamente, tendo por companhia o bule de café, os mugidos dos animais, o luciluzir

dos pirilampos, o coaxar insistente de alguns sapos numa lagoa próxima, o sobrevoar de uma

coruja solitária. Aos que dormiriam no primeiro turno, um gole da cachaça do alambique, bebida nas


RETALHOS DO PASSADO 169

guampas, cabeça no travesseiro feito de sela e do pelego, a cama. Nessas horas, o olhar recaía naturalmente

ao céu, tapete de estrelas. As vozes intensas do dia iam murchando em resmungos. O silêncio

dá lugar à cadência da natureza a embalar segredos e sonhos. Nenhum dos homens ousaria diminuir

a virilidade falando de amenidades tão singelas quanto a beleza do luar, meditar sobre aquela singularidade

de tempo que habitaria eterno lugar dentro dos seus corações, ou refletir na temporalidade

da vida; uma vida de feita de esperas, seguidas esperas, até um breve instante em que nada mais se

poderia esperar. A espera jazendo consumada.

Ao alvorecer, cavalos encilhados, gado contado na certeza de que nenhum ficaria pelo caminho,

e a rotina de levantar o que sobrara do acampamento. Homem e natureza, constituição do

mesmo universo e o ponteiro à frente, conduzindo pelos últimos quilômetros de cavalgada. Em quatro

horas avistam, através do corredor boiadeiro, a próxima cidade. Barretos descortinava-se no horizonte.

A tropa corta a cidade. Aquela passagem das comitivas traduzia-se em espetáculo à parte e a

Estrada Boiadeira era orgulho para os moradores da cidade.

Acenando nas janelas as mulheres se debruçam, esperando passar o último dos tropeiros.

Tudo as atraía: a beleza da capa, o chapéu, as botas, a arma presa na guaiaca, o porte, a virilidade. Os

tropeiros, acostumados a rudez da vida em meio aos cerrados e matas, abrindo caminhos formando

vilas, cidades por onde passavam, sentiam predileção especial por esses momentos. O ego se inflando;

enchiam as panturrilhas. Meses longe de casa e o desejo se tornando latente — mas, em Barretos do

Bico do Pavão, não sairiam enquanto não tivessem dado vazão a todos os sentidos.

Coreto da Praça Francisco Barreto no início do século XX (arquivo do Museu “Ruy Menezes”)

Na força da narrativa, se conseguia enxergar o seo Américo ainda jovem,

entrando pela cidade e carregando aquele seu berrante:

À noite, o lusco-fusco, um universo longínquo de astros crescendo ou diminuindo sob a copa

dos chapéus e da intensidade do olhar. Àquele vislumbre da hora vespertina o desejo intumescido nas


170

SADA ALI

virilhas, provocando latências e visões de panturrilhas, espartilhos, lábios e seios. A hora convida ao

prazer mas, antes, a fé no divino. Antes da parada obrigatória no famoso bordel “Bico do Pavão”, o

momento era de dar graças. Na Praça Francisco Barreto prendem os animais. A molecada, em grupo,

se aproxima. Um trocado para uma casquinha de biju e os cavalos escovados e brilhantes ao fim da

missa. O pároco termina e retornam à praça lotada. As mães, divididas entre as brincadeiras dos

pequenos e as tentativas de flerte das filhas maiores. Um único olhar valia mais do que qualquer

punição anunciada. Os sorrisinhos afetados eram recolhidos e a expressão do rosto retornava ao

pretenso tédio.

Neste vai-e-vem, o footing prosseguia, sendo a maior atração da Praça Francisco Barreto, mas

distante dos desejos daqueles homens que queriam mesmo era circular entre os movimentos de ancas,

cafungar nos cheiros nos cangotes, sentir os gemidos e ritmos ao pé do ouvido e além. O mundo

girando em sua rota e o Bico do Pavão circulando em outra, onde o céu não era feito de estrelas, mas

de explosões de meteoritos.

Ah, seo Américo! Que saudade do não vivido, de vida no paraíso, girando

feito caleidoscópico. Memórias foscas feitas de desenhos sobre a areia

na proximidade do mar. Tudo fluído, volátil, derretendo feito sorvete ao sol,

incorporado por dentro como as sinapses em ondas neurais.

Ação, movimento, geração de vida. Um tempo de regras simples, de ser

assim ou ser assado, de seguir sem muitas inferências ou expectativas de

mudanças.

Ah, esse meu Barretos de outrora! A eterna Terra do Chão Preto, do vento

gelado, da florada do ipê, da Festa do Peão e do Berrantão.

Barretos, um orgulho do noroeste paulista.

Sada Ali nasceu em Barretos. Lançou sua obra bipartite “Perfume dos

Laranjais”em Barretos, Ribeirão Preto, Uberaba e São João del-Rei/MG (vencedora

de edital da UFSJ), além das Feiras do Livro. Ainda lançou em Florianópolis (Livraria

Catarinense) e em São Paulo (Bienal, Livraria Cultura e Casa das Rosas). No exterior,

sua obra esteve na 107 Foire de Paris, na França e London Book Fair (Inglaterra).

Ainda em terras francesas, pelo Ministério da Cultura, Sada lançou em Lyon (2013).

A convite, também levou “Perfume” a Portugal (2016), quando lançou em Gaia e

Porto. Titular da cadeira 1 da ABC, cujo patrono é Antônio Gonçalves Gomide


Se essas paredes falassem...

A

Shirley Spaolonsi Pignanelli

expressão usada no título, muito conhecida popularmente, carrega

consigo todo um conjunto de interpretações — irônicas algumas; plenas de

sabedoria, outras. Porém, na maioria das vezes, insinuam um sentido mais

ou menos picante. Mas se as paredes deste meu texto falassem, com certeza

elas responderiam aos ecos de centenas de vidas que ali deixaram as marcas

de sua infância; revelariam segredinhos inocentes, cochichados, com as mãos

em concha junto ao ouvido de companheiros curiosos, ávidos por novidades;

e ecoariam, felizes, os risos despreocupados de quem tinha um mundo todo

pela frente para ser vivido na doce ilusão de que o tempo seria infinito.

Estou me referindo às velhas paredes do prédio de dois andares, que

fica em Barretos, na Rua 22, no meio do quarteirão compreendido entre as

Avenidas 9 e 11, número 1259, onde funcionou, desde 1938, o Grupo Escolar

“Professor Fausto Lex”, conhecido como Segundo Grupo, enquanto o Grupo Escolar “Dr.

Antonio Olympio”, que existia desde 1912, era chamado de Primeiro Grupo. O

prédio pertencia, e ainda pertence, à Prefeitura Municipal da cidade. O nome,

que foi conferido à escola, em 1952, é uma homenagem a Fausto Lex, professor

nascido em Amparo, estado de São Paulo, e que lecionou por alguns

anos em Barretos, para onde se mudou em 1908. Participante ativo da vida

intelectual da cidade, o professor Fausto Lex foi um dos fundadores do Grêmio

Literário e Recreativo de Barretos, instituição centenária e de grande expressão em

nossa cidade.

Por uma dessas surpreendentes coincidências da vida, quando eu cursava

a Escola Normal no Instituto de Educação “Dr. Paraiso Cavalcanti”, em Bebedouro,

estudei no livro Biologia Educacional, de autoria do Dr. Ary Lex, filho do professor

Fausto Lex. Mal sabia eu, então, que viria a lecionar em escola com o

nome de seu pai. Tive a satisfação de conhecer pessoalmente o Dr. Ary Lex

quando ele esteve em Barretos para uma palestra. Em minha memória afetiva,

estão guardadas com carinho lembranças de fatos e momentos que vivi

nessa Escola, onde lecionei de 1960 até 1976, ano em que houve uma reestruturação

do sistema educacional e foram criadas as Escolas de Primeiro Grau,


172

SE ESSAS PAREDES FALASSEM...

que seriam destinadas a crianças da pré-escola até a oitava série, unificando

os curso primário e secundário. Nesse ano, eu e mais outras colegas fomos

remanejadas para a Escola Estadual de Primeiro Grau “Prof a Paulina Nunes de Moraes” e

o antigo Grupo Escolar também foi transformado em Escola Estadual de Primeiro

Grau “Professor Fausto Lex”.

2º Grupo Escolar, em 1939. (Fonte: Arquivo do Estado de São Paulo)

Se as paredes desse querido Grupo Escolar, paredes velhas e desgastadas

já nessa época, falassem, com certeza também pensariam e certamente se

lembrariam, emocionadas, de um tempo em que as crianças respeitavam os

adultos, especialmente os professores, levantando-se, cerimoniosas, sempre

que o Diretor ou uma visita inesperada adentrasse a sala de aula. Falariam

também das comportadas filas de alunos que se formavam no pátio antes do

início das aulas, mantendo um braço de distância do coleguinha da frente,

disposição que nem sempre era seguida com exatidão; mas a verdade é que

as filas ensinavam às crianças o sentido da ordem e da disciplina, indispensáveis

para um mundo de paz. Era bonito ver aquele ondular de saias azuis pregueadas

e o caminhar concentrado dos meninos em seus uniformes, também

em azul e branco, num singelo caleidoscópio de duas cores.

Na sala de aula, em carteiras de madeira também já muito desgastadas

pelo uso contínuo, dispunham seu material na prateleira que ficava

sob o tampo, tampo este que continha uma pequena cavidade redonda para

os tinteiros (que já não eram mais utilizados, substituídos que foram pelas

esferográficas). Os alunos sentavam-se em duplas a princípio, mas logo passaram

a ocupar carteiras individuais. Os cadernos também refletiam ordem

e capricho, impecavelmente encapados com papel impermeável (cujas cores


SHIRLEY SPAOLONSI PIGNANELLI 173

identificavam a série a que o aluno pertencia) e continham uma etiqueta na

capa com o nome da atividade a que se destinavam: caderno de Ocupação, de Tarefas,

de Ciências, etc. Nessa época, não se falava série e, sim, ano: primeiro ano,

segundo ano e assim por diante, numa linguagem direta e simplificada. Os

livros não continham imagens fartamente coloridas como os de hoje, mas a

imaginação, correndo livre e solta, supria essa falta.

A leitura individual de trechos em voz alta era matéria obrigatória. A

tabuada também era repetida em voz alta, em ritmo alegre e cadenciado, e

ensinada de mil maneiras criadas pelos professores para que o cálculo se

fixasse em suas memórias infantis, preocupação quase inexistente hoje pelo

surgimento de calculadoras que fazem tudo em poucos segundos.

O material pedagógico era precário e ficávamos à mercê de nossa própria

criatividade: flanelógrafos (um quadro recoberto por flanela, onde fixávamos

gravuras com uma lixa colada no verso), cartazes em cartolina feitos

pelo próprio professor, com algo que facilitasse o aprendizado do dia e pouca

coisa mais. O máximo à nossa disposição, na escola, era uma caixa com sólidos

geométricos de madeira, um conjunto de gravuras para inspirarem as

redações (presas em um cavalete), mapas quase se desfazendo e alguns objetos

como conchas marinhas e pequenos animais fossilizados para ilustrarem

as aulas de Ciências. Esse material ficava na antessala do gabinete dentário,

onde, na época, o Dr. Dirceu Baroni prestava serviço.

Os trabalhos dos alunos eram levados para serem corrigidos em casa,

onde também eram preparados os planos de aula, que eram denominados Semanários

e que o próprio diretor devia verificar, pois a função de coordenador

pedagógico só seria criada mais tarde.

Nada de cursos de atualização ou material de suporte que tornassem

as aulas mais atrativas. No entanto, uma mudança significativa que ocorreu

enquanto eu ainda estava no Fausto Lex me aflora à memória: a implantação

do sistema chamado de “rodízio”, para os alunos de terceira e quarta séries,

isto é: uma professora se encarregaria das aulas de Matemática e Ciências,

durante metade do tempo, enquanto outra ficaria com Língua Portuguesa e

Estudos Sociais no tempo restante, revezando-se em duas salas, o que, além

de outras vantagens, facilitava a transição dos alunos para a quinta série,

onde teriam que se adaptar a vários professores.

Voltando às gravuras expostas em um cavalete, lembro-me de algumas

dessas ilustrações: uma garotinha correndo de alguns gansos, outra mostrando

seus surrados sapatos para o sapateiro com uma carinha triste, um

grupo de crianças encarapitadas sobre uma porteira de fazenda e outras

cenas das quais não me recordo mais.

Tempos românticos, mas tempos difíceis. Tempos em que a merenda escolar

era servida apenas aos mais carentes, o que os discriminava e rotulava,


174

SE ESSAS PAREDES FALASSEM...

dando um aspecto vexatório às filas que se formavam para a chamada “sopa”.

Tempos em que havia aulas, normalmente, todos os sábados e, do corredor

central do estabelecimento, podíamos avistar a rua e pessoas livremente se

dirigindo para festas de fim de tarde, enquanto permanecíamos dentro das

salas de aulas... Mas, por outro lado, tempos em que o antigo curso primário

era tão valorizado que festividades caprichadas eram preparadas ao final da

quarta série para a entrega solene de diplomas.

Ah, se essas paredes falassem... Ressoariam, nos recônditos de seus

velhos tijolos, que mãos anônimas colocaram em pilhas simétricas, as vozes

esquecidas de mestres dedicados que ali deixaram um pouco de suas vidas,

trabalhando assoberbados com classes, geralmente, superlotadas. Tantos

rostos e nomes me afloram à lembrança! Impossível nomear todos, assim

como não posso nomear todos os rostos de alunos com os quais convivi e que

deixaram marcas profundas em minha vida, algumas delas em forma de bilhetinhos

carinhosos escritos com amor e respeito, por mãos infantis de letra

incerta, e conservados, até hoje, em minha pequena caixa de recordações.

Ah, se essas paredes falassem... Também cantariam, compenetradas,

os hinos que as crianças entoavam com seriedade no galpão da escola: Hino

Nacional, Hino à Bandeira, Hino da Proclamação da República, ensinados em sala de aula

com a preocupação de que todas as frases e palavras soassem corretamente

e que, costumeiramente, vinham transcritos na contracapa das brochuras.

Brochuras muitas vezes compradas apressadamente na Papelaria do Deuro, que

ficava quase em frente ao Grupo, local onde hoje funciona uma gráfica.

Lembro-me de ter ensinado também o Hino a Barretos, composição musical do

Professor Aymoré do Brasil e letra escrita pelo Dr. Osório Faleiros da Rocha

e que, na sua primeira estrofe, diz:

Por Barretos, bandeirante,

Desbravador do sertão!

Pela Pátria, avante! Avante!

Levantado o coração!

Não há divisa mais bela,

Mais nobre, mais varonil:

Sejamos a sentinela

Avançada do Brasil.

Cantávamos também o Hino ao Grupo Escolar “Professor Fausto Lex”, escrito pela

Dra. Vera Sonia Abrão, que adaptou uma letra à melodia da canção “Cisne

Branco”, Hino Oficial da Marinha Brasileira (composição de Antonio Manoel do Espírito

Santo e letra de Benedito Xavier de Macedo).

É... “Antigamente a escola era risonha e franca” — lindas e verdadeiras palavras

que encontramos na velha poesia “O Estudante Alsaciano”, do poeta português


SHIRLEY SPAOLONSI PIGNANELLI 175

Acácio Antunes.

Ah, se essas paredes falassem... Também repetiriam as noções de contabilidade

que eram ensinadas aos alunos no curso noturno do conhecido

“Ateneu Municipal” ou Escola “Sinomar Macedo Diniz”, hoje extinto, enquanto o antigo

Grupo Escolar “Professor Fausto Lex” foi transferido e funciona, atualmente, no bairro

Nadir Kenan, com o nome de Escola Municipal Professor Fausto Lex. Os cursos do

Ateneu eram de nível técnico, com excelente qualidade; muitos dos contabilistas

de hoje, respeitados em nossa cidade, ali se formaram. O Ateneu tinha

uma Banda que se apresentava nos desfiles da cidade e seus instrumentos

eram guardados no porão do prédio, sob as salas de aula, porão esse que nos

causava receio pelos escorpiões que ali foram encontrados, certa vez. Outros

insetos asquerosos, com certeza, também passeariam livremente nesses

porões, pois me lembro de uma vez em que fui pegar um pacote de folhas do

armário e senti uma barata vindo junto, o que me fez jogar todas as folhas

no chão e sair correndo. Se pudessem rir, as paredes, certamente, ririam com

gosto desse momento...

São muitas lembranças para estas poucas páginas. “É que a memória da gente

guarda lembranças demais”, já nos disse Gabriel Sater, compositor popular. Lembranças

que me emocionam muito quando encontro, casualmente, antigos

alunos, hoje homens e mulheres adultos, com família e profissões definidas, e

que me dizem saudosos: “A senhora foi minha professora”. É comovente e muito gratificante

saber que deixei marcas na história de vida destes alunos e que as

velhas paredes do Grupo Escolar “Professor Fausto Lex” também guardam o eco da

minha voz passando lições, de cultura e de vida, aos meus jovens aprendizes.

Ah! Se essas paredes falassem...

Fachada atual do prédio da Rua

22, onde funcionou o Grupo

Escolar “Professor Fausto

Lex” (acervo da autora)

Shirley Spaolonsi Pignanelli nasceu em Garça, SP, mas reside em

Barretos desde 1960, onde lecionou até se aposentar. Tem formação em Ciências

Sociais e Pedagogia e escreveu as obras: “A quem interessar possa”,

“A quem interessar possa 2” e “E a semente germinou...”


Silvestre de Lima: as multifaces

do personagem que

transformou Barretos

S

Sueli de Cássia Tosta Fernandes

“Os homens passam depressa. É preciso registrar-lhes os feitos

para que a sua memória fique e seja respeitada”. Eugenio Egas.

ilvestre de Lima, que tanto honrou e honra a cidade de Barretos, foi

aqui “artista dos sete instrumentos”, exercendo com competência e vivacidade as

funções de farmacêutico, político, advogado, poeta, jornalista, entre outras. O

seu protagonismo em diferentes áreas assegurou a ele diversas homenagens.

Ele é nome de rua e patrono de escola estadual. Ou seja, é um nome razoavelmente

familiar para o barretense. Talvez o que a maioria desconheça é o

que foi feito por ele em benefício da cidade para ser objeto de homenagens e

que, aqui, será sucintamente comentado.

Ele é o “pai” da imprensa barretense, que nasceu oficialmente em 31 de

março de 1900, tendo-o como redator-chefe do jornal “O Sertanejo”, o primeiro

jornal editado e impresso na cidade. A importância histórica deste jornal

se revela não só por principiar a imprensa local, mas por se constituir um

importante veículo de diálogo entre a cidade e o resto do país, conforme defendido

por ele em artigo despedida do jornal:

“[...] desde o aparecimento da imprensa local se iniciou para Barretos uma nova era.

Município remoto e até então dos mais obscuros, com uma população mal afamada,

como indolente, atrasada e desordeira, Barretos daí para cá passou a ser mais e melhor

conhecida, reabilitou-se do mau nome antigo, reivindicou, pela crescente divulgação

das suas riquezas naturais, o lugar a que tinha direito na comunhão municipal do

Estado.” 1

O jornal expunha notícias nacionais e internacionais, análises críticas

1 O Sertanejo, Barretos, 15/Mar/1903, pág. 1. Coleção Carmem Nogueira. Acervo: MRM. (grafia de época preservada)


SILVESTRE DE LIMA: AS MULTIFACES DO PERSONAGEM QUE TRANSFORMOU BARRETOS 177

da política, além de trazer os aspectos e os cheiros do local, dava voz a sua

gente, concedendo ao semanário textos próprios de barretenses, entre eles

Jesuíno de Melo, que registrava as memórias dos primeiros moradores e Almeida

Pinto, que publicava crônicas sobre o cotidiano da cidade de maneira

bem-humorada e rimada.

Outra característica interessante do hebdomadário é a presença de uma

mulher, a jovem Noemi Nogueira, que traduzia obras célebres e, entre todo

esse turbilhão de novidades, ainda havia espaço para as poesias de Silvestre,

que incontestavelmente fizeram a história do jornalismo barretense. De voo

célere, alcançou as principais capitais, sendo bastante elogiado por colegas

da imprensa carioca, berço do jornalismo no Brasil, com os quais aprendeu o

ofício e se moldou jornalista. O escritor Arthur Azevedo, um dos fundadores

da Academia Brasileira de Letras, em “O Paiz”, saudou-o festivamente

“Quem é vivo sempre aparece. Acabo de receber da cidade de Barretos (Estado de São

Paulo) o 1º. Número d’O Sertanejo, periódico hebdomadário que tem como redactor-chefe

Silvestre de Lima, meu velho e affectuoso companheiro de vida litteraria, estimado

poeta que há muito tempo não dava um ar de sua graça, e de quem eu não recebia, há

não sei quantos anos, a mais ligeira notícia” 2 .

Outro trecho relevante da escrita de Arthur aponta para a maneira

como a cidade era vista

“Não me interessa tão pouco outras colunas de prosa, aliás bem escripta, que lá vem

n’O Sertanejo, cujo merecimento litterario excede, evidentemente, a media do jornalismo

da roça” 3 .

Como visto, Barretos era uma cidade essencialmente rural, até então

conhecida por atos de violência e a qualidade de suas pastagens. Com o

pioneirismo de Silvestre, tem-se, através da introdução da imprensa, uma

leitura urbana de um espaço rural, com destaque para as potencialidades do

local, atraindo assim novos olhares sobre a cidade, que contribuíram para a

sua modernização.

Silvestre estudou no Rio de Janeiro, onde se encantou com o jornalismo,

abraçando-o apaixonadamente e fazendo deste ofício sua profissão, fato que

certamente o influenciou na inauguração da imprensa barretense. Ainda na

capital, habituou-se às lutas políticas e às facilidades proporcionadas pela

modernidade, fatos que o levaram a ingressar na política local, passando a

atuar na melhoria das condições da cidade e na higiene do espaço urbano, o

que incluía a instalação de Posto Zootécnico, do primeiro grupo escolar, iluminação

pública e água encanada, entre outros.

2 O Paiz, Rio de Janeiro, 09/Abr/1900. Acervo BN. (grafia de época preservada)

3 Idem. (grafia de época preservada)


178

SUELI DE CÁSSIA TOSTA FERNANDES

Fotos da Inauguração do Posto Zootécnico, 1911, gestão de Silvestre de Lima.

Fonte: Illustração Paulista, 1911, ed. 0034. Acervo da Biblioteca Nacional.

No campo político, enquanto viveu no Rio, foi uma voz incisiva contra

a escravidão e pela defesa da República.

Em Barretos, ingressou na política em 1892, um ano após a sua chegada.

Foi vereador, intendente (equivalente a prefeito — reeleito por várias

vezes) e deputado estadual. Como prefeito, impulsionou o crescimento da

cidade, merecendo destaque a introdução de dois símbolos de progresso: o

trem (1909) e o frigorífico (1913).

O trem e o frigorífico foram duas “modernidades casadas” introduzidas em

Barretos pelas mãos do Conselheiro Antônio Prado, presidente da Companhia

Paulista de Estradas de Ferro e amigo de Silvestre, que na condição de prefeito advogou

com denodo pela causa, impedindo que “incidentes” obstruíssem essas

conquistas tão importantes na história do desenvolvimento da cidade.

O trem entrou em Barretos, em 25 de maio de 1909, como extensão

dos trilhos de Bebedouro. A chegada do trem mobilizou grande parte da população

local na ornamentação da cidade e na acolhida da comitiva que veio

em vagão inaugural. Fato que impressionou tanto as autoridades quanto os


SILVESTRE DE LIMA: AS MULTIFACES DO PERSONAGEM QUE TRANSFORMOU BARRETOS 179

jornalistas da comitiva, que assim registraram a recepção:

“A cidade está toda engalanada, apresentando um aspecto surpreendente de beleza

[...] Todas as casas das ruas principais ostentam as suas fachadas iluminadas com

balões venezianos. O povo enche as ruas erguendo vivas ao coronel Silvestre de Lima,

à Companhia Paulista, ao governo do Estado de S. Paulo e à imprensa”. 4

A conquista de um meio de transporte que tornava menos penosas as

viagens, aliada à instalação de uma grande empresa, foram os fatores determinantes

para consolidar Barretos como destino de imigrantes de diferentes

nacionalidades. Neste contexto, escritores de viagens 5 descreviam uma cidade alinhada

a um projeto modernizante, destacando as potencialidades do frigorífico,

e, assim, realizavam uma excelente propaganda da cidade. Com a intensificação

da imigração, começava um novo ciclo na ocupação da cidade. Assim, a

cultura, os hábitos e os costumes foram sofrendo influências dos estrangeiros

que aqui se estabeleceram. A cidade, aos poucos, foi perdendo a imagem de

“roça”, resultado desse encontro do homem local com o imigrante na conjuntura

de modernização da cidade. A fisionomia urbana se transformava.

O fato é que a chegada do trem, em maio de 1909, impulsionou a cidade

para uma nova era — e Silvestre logo tratou de promover a integração da

cidade a um sistema mais civilizado, higienizada-modernizada, qualificando

a cidade para o futuro.

A questão da iluminação da cidade afligia Silvestre desde 1896, quando

preocupado com o mau uso dos postes e com a má qualidade dos lampiões

a querosene, chegou a propor o “Regulamento para Iluminação Pública da Vila” 6 , que

estabelecia obrigações para a empresa contratada no sentido de garantir

qualidade no serviço prestado. Porém, à medida que a cidade crescia, as necessidades

de se melhorar a tecnologia aumentavam. Até que, em 1911, na

gestão do prefeito Silvestre de Lima, a energia elétrica finalmente foi inaugurada.

Tratava-se de uma termoelétrica.

Outra modernidade implantada na gestão de Silvestre de Lima foi o

abastecimento de água potável da cidade. Até 1910, os moradores tinham as

seguintes opções para obter água: construir cisternas em seus quintais ou

buscar água nos córregos da cidade. A higiene pessoal era realizada por meio

de jarros de água, que serviam como lavatórios. Logo, não é difícil imaginar

o que o sistema que conduzia a água do córrego Aleixo até as torneiras das

residências causou nos moradores: sem dúvida, foi um incremento e tanto.

Evidentemente, tratava-se de um sistema precário e de acordo com as

4 Correio Paulistano, 26/Maio/1909. Acervo BN.

5 Procurar por: Vittório Buccelli, D’Oro dello Stato di S. Paolo, 1911.

6 Ata da sessão legislativa de 18/06/1896. Acervo da Câmara Municipal de Barretos.


180

SUELI DE CÁSSIA TOSTA FERNANDES

técnicas disponíveis na época, o que ao longo do tempo foi sendo aprimorado.

Como Silvestre teve uma profícua participação no desenvolvimento da

cidade, acabei me estendendo neste aspecto, mas é importante resgatar um

pouco de sua vida pessoal: ele foi presença marcante na vida intelectual e

social da cidade, participou da introdução dos ideais maçônicos em Barretos

e da fundação do Grêmio Literário e Recreativo. Ainda teve tempo para cuidar do

corpo e da alma dos barretenses, ora por meio de remédios ora por meio de

poesias. Como homem público, conquistou o respeito até de adversários, merecendo

por parte de Osório Rocha, em 1950, a seguinte homenagem:

“[...] afetuoso reconhecimento por tudo quanto desinteressadamente nos deste, o levantamento

de nosso nível social, a fundação da nossa imprensa, o conhecimento que

deste ao Brasil e ao estrangeiro das nossas possibilidades e, sobretudo, as tuas lições

de civismo, pundonor, magnanimidade e altruísmo!” 7 .

De fato, foi uma figura bastante estimada e solicitada, tanto por autoridades

quanto por humildes, tanto que o Correio Paulistano escreveu que só faltou

a ele “fazer as funções de padre, ator, fotógrafo, dentista e parteiro” 8 . Se bem que, cá entre

nós, tendo ele cursado dois anos de Medicina, tenho minhas dúvidas se ele

realmente não realizou nenhum parto na cidade.

FONTES

Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Nacional: Correio Paulistano, 07/05/1902 e 26/05/1909,

O Paiz RJ, 09/04/1900 e Illustração Paulista, 1911, ed. 0034. Acervo do Museu Histórico, Artístico

e Folclórico Ruy Menezes: O Sertanejo, Barretos/SP, 31/03/1900 e 15/03/1903. Documento datilografado

por Osório Rocha.

Acervo da Câmara Municipal de Barretos: Ata da sessão legislativa de 18/06/1896.

7 Documento datilografado pertencente ao acervo do Museu Ruy Menezes.

8 Correio Paulistano, 07/05/1902, pág. 02, ed. 13903. Acervo BN.

Sueli de Cássia Tosta Fernandes é membro da Academia Barretense

de Cultura, ocupante da cadeira nº 05, cujo patrono é o jornalista Paulo Bezerra de

Menezes. Vegetariana. Apaixonada por gatos, cães, plantas, viagens, livros e pelo ato

de pesquisar — em especial, a vida e a obra de Silvestre de Lima


É

Resenha de um imigrante

libanês em Barretos 1

Zaiden Geraige Neto

preciso poder de síntese. A história é longa, mas há regras claras

para ela, pois foi encomendada, tanto quanto ao tema como quanto à forma.

Minha amiga Karla Armani foi quem estabeleceu sobre o que eu deveria escrever,

conforme recomendação do presidente Merenda!

Então, vamos lá!

Foi numa pequena aldeia do Líbano que a história começou. Postada

numa elevação e com ruelas cheias de aclives e declives, tem, ao longe, uma

planície onde a terra preta recebe sementes de frutos, cereais e fumo. No

norte do país, já perto da Síria, no caminho de Homs, fica Miniara, na província

de Akkar, Líbano.

De lá vieram os meus quatro bisavós paternos. De lá, também, veio meu

avô paterno (Zaiden, aqui apelidado como Isidoro. Não sei o motivo até hoje),

sendo minha avó paterna já nascida em Barretos, onde vive a maior parte

da nossa família, ou, pelo menos, estão enterrados os nossos antepassados.

Como viviam no Líbano? A aldeia era pequena; na verdade, sobreviviam,

pobres, mas com dignidade, até que a primeira guerra (1914/1918) arrasou

com tudo, forçando a imigração que se ensaiara no começo do século. Entretanto,

a partir de 1914 ela teve um aumento significativo e engrossou de

forma assustadora a partir de 1918.

Foi ela – a guerra – o grande fator da travessia que os libaneses fizeram,

saindo do Mediterrâneo e navegando pelo Atlântico até o hemisfério sul.

Entre a fome, no inverno rigoroso, e a esperança que significava o Brasil,

a opção foi fácil — mas a vida seria mais difícil. Vinham eles de uma região

que ainda lembrava as Cruzadas. Eram conhecidos como “turcos”, embora

dos turcos tivessem ódio, pela dominação brutal e inumana que exerceram

1

Parte desse texto foi baseada em anotações de meu pai, Mélek Zaiden Geraige, e também em informações

a mim passadas por meu primo, Jorge Luís Abrão e por minha mãe, Ana Rosa Meinberg

Geraige.


182

RESENHA DE UM IMIGRANTE LIBANÊS EM BARRETOS

naquelas plagas. Eram, historicamente, os inimigos dos cristãos e, dizia-se,

comiam carne humana. Fruto da implacável propaganda orquestrada pela

Igreja Católica desde a Idade Média, aquelas pessoas que falavam uma língua

esquisita e cheia de “rala-rala” sofreriam a discriminação dos nativos. Afinal,

eles representavam a “verdadeira civilização”, a começar pelo “caráter cristão”

da vida que levavam. Esqueciam-se de que o próprio Cristo nasceu lá,

exatamente: naquela terra disputada à espada de ferro rijo, forjada nas terras

orientais e bem mais leve que a ocidental, que mais parecia um porrete.

Contam, até, que Ricardo Coração de Leão fez uma demonstração a Saladino

(Saleh Ud Dinn Ayoub), batendo sua espada, com forte pancada, sobre uma

madeira, quebrando o lenho. O muçulmano tomou da cabeça de uma jovem

o seu véu e soltou-o, do ar para o chão. No meio do caminho o aparou com a

espada e o fino véu se abriu em dois, com seu próprio peso.

A diferença é sutil e notável, fazendo boa leitura dos fatos.

Enfim, a barreira da língua foi vencida, embora as letras “p” e “v” continuassem

a ser pronunciadas como “b”, e o uso dos verbos dispensasse a

conjugação correta, a comunicação tornara-se possível. Cada um de per si, mas

unidos, ajudaram-se mutuamente e criaram famílias; estas famílias foram

crescendo e, pouco a pouco, eram assimiladas ou foram se assimilando.

Intensa troca de costumes: estranheza numa hora, boa receptividade

noutra. Mas, ganhavam, já, algum dinheiro. E a fome não estava à vista nem

amedrontava.

Neste clima e dessa forma, meu avô Zaiden (Isidoro) chegou ao Brasil,

em 1924, aos doze anos de idade, vindo com a mãe (bisavó Helena) e a irmã

gêmea Zehie (Maria), para descer em Santos. Seus demais irmãos eram Rosali,

Ayed (Abrão), Sultan, Abdo El Carim, Othman e Gaze (o famoso tio Rose

Abrão). Todos, menos os gêmeos Zaiden e Zehie, nasceram em Barretos.

Aqui, conheceu minha avó Nabia (Maria), cujos irmãos eram: Chafik,

Nadim (falecido quando criança), Nadime, Zuleika, Leila e Neuza, todos nascidos

em Barretos.

Uniram-se, portanto, as famílias Geraige e Thomé, todos de ascendência

libanesa cristã, mas mantinham excelente relacionamento com todos os libaneses

de outras religiões. Na verdade, tratavam-se como irmãos, talvez porque

tenham vivido de forma contemporânea a desgraça da fome e da guerra.

Aqui, uma curiosidade. Há 22 países considerados “árabes”. Mas o que

é ser árabe? É uma etnia? Antigamente, consideravam-se árabes os povos

localizados na extensa faixa de terras denominada Península Arábica. Hoje, a

definição mais aceita é a que conceitua como árabes todos aqueles povos que

têm como primeiro idioma a língua árabe, ou seja: não se trata de etnia. Por

exemplo, os libaneses descendem, etnicamente, dos Fenícios, antigos navegadores;

já os demais povos árabes, como sauditas, iraquianos, jordanianos


ZAIDEN GERAIGE NETO 183

etc. têm outras etnias, não tendo, portanto, nenhuma relação genética (no

sentido étnico, claro) com os libaneses; por outro lado, os países do norte da

África, como Egito, Marrocos, Líbia etc., não são considerados árabes, mas

apenas arabizados, sendo o “mouro” o resultado do cruzamento de povos árabes

que vieram do Oriente com os negros africanos.

Foram esses indivíduos que conquistaram a Península Ibérica (Portugal e Espanha)

e lá ficaram por diversos séculos. Da mesma forma, o Irã não é um país

árabe. É persa, lá fala-se outra língua e têm-se outros costumes; e a Turquia

também não é árabe. É otomana, com língua e costumes diferentes, com origem

na região da Anatólia.

Meu avô e seu irmão Ayed (tio Abrão) sempre trabalharam juntos — do

início até a morte —, somando-se, depois, os demais irmãos. Meu avô começou

a fazer bicos, trabalhando ora numa coisa ora noutra, até que aprendeu

a ser sapateiro, fazendo botinas. Depois montaram, no distrito de Ibitú, um

pequeno comércio chamado de “secos e molhados”, onde se vendia de tudo. Passando

algum tempo, montaram máquina de beneficiamento de arroz, posto

de gasolina e se tornaram proprietários de terras.

Foto com documentos contábeis das empresas de Zaiden e Ayed Geraige. (Fonte: arquivo do autor)

A máquina de beneficiamento de arroz funcionou, primeiramente, em

diversos lugares do Bairro Santa Helena, fixando-se na Rua 28 com a Avenida 27


184

RESENHA DE UM IMIGRANTE LIBANÊS EM BARRETOS

e depois na Rua 30, onde hoje provavelmente é o “Lojão da Construção”. Ainda na

Rua 30, meu avô e tio Ayed adquiriram a área onde estava edificado o sobrado

amarelo e lá construíram vários barracões, instalando balança para pesagem

de caminhões, além do comércio de combustíveis (posto de gasolina).

Há quem diga que a praça lá localizada recebeu o nome de Santa Helena

em homenagem à mãe deles (Helena, minha bisavó), tendo eles feito a doação

da área para a construção da praça.

Praça Santa Helena, cujo terreno foi doado pelos irmãos Zaiden e Ayed Geraige.

O nome (dizem) é uma homenagem à mãe dos doadores. D. Helena. (Fonte: arquivo do autor)

Meu avô materno, Carlos Meinberg (Carlito), se tornou cliente de meu

avô Zaiden (Isidoro) na máquina de beneficiamento de arroz. Ele entregava

lá as produções que cultivava na Fazenda Barreiro Grande (Colômbia) e na Fazenda

do Poço (Alberto Moreira). Minha mãe, Ana Rosa, tornou-se amiga de minha tia

Munira, única irmã de meu pai, casada com tio Aymar Zatiti e mãe de meus

primos Vera Helena e Márcio. Daí foi um pulo para os dois começarem a namorar

e depois se casarem, em 15 de maio de 1965. Contava meu pai que no

casamento deles meu avô já estava doente, com problemas renais — morreu

com apenas 54 anos.


ZAIDEN GERAIGE NETO 185

A casa da Avenida 29 (sobrado branco), número 1174, entre as ruas

26 e 28, foi construída pelo meu avô Zaiden (Isidoro) e lá passamos a maior

parte de nossas vidas, eu e meus irmãos Ana Helena (Lelê) e Antônio Carlos

(Cacaio).

Só temos a agradecer a Barretos por ter acolhido tão bem nossa família!

Zaiden Geraige Neto é nascido em Barretos. Graduado, mestre e doutor em

Direito pela PUC/SP, com MBA pela FGV.

Ainda na área, é professor de Mestrado e Doutorado. Na Literatura, produz em duas

frentes: obras jurídicas e de ficção. Finalista do Prêmio Jabuti


Mais um pouco de História...


MAIS UM POUCO DE HISTÓRIA 187

Recortes de jornal

anunciando a primeira

execução do Hino Barretense.

Fonte: Jornal de Notícias, São

Paulo/SP, 25/8/1950, p. 6

Arquivo da Biblioteca Nacional.

Quando Barretos comemorava seus 96 anos de

fundação oficial, em 1950, a cidade ouvia pela primeira

vez o seu Hino.

Anos antes das comemorações oficiais do primeiro

centenário da fundação de Barretos, que ocorreria

em 1954, a cidade já sentia o clima de construção de

memórias, tradições e símbolos que pudessem integrar

e trazer identidade ao seu povo. Um exemplo disso foi

o Hino Barretense, cuja letra se sintoniza com o discurso

bandeirantista paulista dos anos 1950.

A letra do Hino foi escrita pelo advogado, jornalista

e memorialista Osório Faleiros da Rocha.

Já a melodia tem autoria do professor e maestro

Aymoré do Brasil, que vivia em Barretos desde 1940.


188

MAIS UM POUCO DE HISTÓRIA

Por Barretos bandeirante,

Desbravador do sertão!

Pela Pátria, avante! Avante,

Levantado o coração!

Não há divisa mais bela,

Mais nobre, mais varonil:

Sejamos a sentinela

Avançada do Brasil.

Hino Barretense

L E T RA: Osório Faleiros da Rocha

MÚSICA: Aymoré do Brasil

O sol ardente o prado e as

searas doura,

As bênçãos do senhor vêm com

o orvalho,

protegendo os rebanhos e a lavoura

Os lares, os estudos e o trabalho!

Por Barretos bandeirante,

Desbravador do sertão!

Pela Pátria, avante! Avante,

Levantado o coração!

Não há divisa mais bela,

Mais nobre, mais varonil:

Sejamos a sentinela

Avançada do Brasil.

ROCHA, Osório (in memoriam). Reminiscências,

volume III. Ribeirão Preto: Cori - Arte e

Programação Visual, 199(?), p. 158-159.

Deus nos guie e conserve sempre

unidos,

Como suas ovelhas o zagal.

Sem distinção de credos e partidos,

Pugnemos pela glória nacional!

Por Barretos bandeirante,

Desbravador do sertão!

Pela Pátria, avante! Avante,

Levantado o coração!

Não há divisa mais bela,

Mais nobre, mais varonil:

Sejamos a sentinela

Avançada do Brasil.


MAIS UM POUCO DE HISTÓRIA 189

Fragmento de fotografia da área central de

Barretos

(fonte: Arquivo do Museu Histórico, Artístico

e Folclórico “Ruy Menezes”)


190

MAIS UM POUCO DE HISTÓRIA

O Brasão

O Brasão de Barretos foi elaborado no contexto das

comemorações do 1º centenário da fundação de Barretos,

no ano de 1954. A Comissão Central dos Festejos Comemorativos do

1º Centenário da Fundação de Barretos, através de sub-comissão,

abriu concurso para a escolha de um escudo representativo

das “tradições de Barretos”.

Em 1º de abril de 1954, foram julgados oito trabalhos,

sendo o escolhido o brasão apresentado pela jovem

Maria Luísa de Queiróz Barcelos, sob o pseudônimo de

Lusíada, quando ainda contava com 20 anos de idade.

Deste modo, o “Álbum Comemorativo do 1º Centenário da Fundação

de Barretos”, organizado naquele ano de 1954, estampava

já em sua terceira página, o brasão de Barretos,

descrevendo suas principais referências — que dentre

tantas se destacam: o símbolo do Divino Espírito Santo; a

fazenda “Fortaleza” dos Barreto; a fortificação da cidade

a partir da participação dos soldados constitucionalistas

na guerra paulista de 1932; a mecanização da lavoura do

município (com seus principais produtos: arroz e milho)

e o verbete latim Frates sumus omnes (Somos todos irmãos),

na intenção de promover identidade e espírito fraterno

ao povo barretense; tão característico daquele contexto

de criação de memória coletiva à cidade.

As explicações heráldicas do brasão também foram

esmiuçadas no álbum comemorativo.

(Fonte: MENEZES, Ruy; TEDESCO, José. Álbum Comemorativo

do 1º Centenário da Fundação de Barretos, 1954, p. 3. Arquivo

do Museu Histórico, Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”).


MAIS UM POUCO DE HISTÓRIA 191

Maria Luísa de Queiróz Barcelos (1933-1993), autora do brasão.

(Fonte: Jornal O Diário, 15/6/1993, Pasta 26 do arquivo documental do

Museu Histórico, Artístico e Folclórico “Ruy Menezes”)


192

MAIS UM POUCO DE HISTÓRIA

A Bandeira

Criada após concurso em junho de 1974, na gestão

do Prefeito Ary Ribeiro de Mendonça, a bandeira municipal

de Barretos é de autoria de Luiz Antônio Furlan.

À época, Furlan era estudante do 5º ano de Engenharia

da “FEB” (hoje Unifeb), e foi selecionado pela comissão

técnica como vencedor entre os 79 projetos apresentados.

Para tal, utilizou o pseudônimo Aristélio Andrade.

As cores da bandeira seguiam o brasão: vermelho,

verde, amarelo e branco.

Nota-se a estrela branca em destaque no mapa do

estado de São Paulo como marco geográfico da posição do

município de Barretos.

(Fonte: Pasta 99 do acervo documental do Museu Histórico Artístico

e Folclórico “Ruy Menezes”).


MAIS UM POUCO DE HISTÓRIA 193

Bandeira oficial (acima) e projeto original (abaixo)

apresentado pelo autor, Luiz Antônio Furlan, em junho de 1974


Prefixo Editorial: 66961

Número ISBN: 978-65-991598-1-7

Título: Barretos em 3ª Pessoa

Tipo de Suporte: Papel

C

M

Y

CM

MY

CY

CMY

K

Essa obra foi impressa em Triplex Supremo LD

Branco 250 g/m2, Orelhas: 40 x 70mm,

4x0 cores (CAPA) e em Polen Soft Creme (MIOLO),

pela


Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!