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Vidas Quebradas: reflexos do crack

por Reginaldo Osnildo

por Reginaldo Osnildo

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Vidas quebradas: reflexos do crack



Reginaldo Osnildo

Vidas quebradas: reflexos do crack

1ª edição

Florianópolis

Diretoria da Imprensa Oficial e

Editora de Santa Catarina

2014


Edição da Diretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina

Projeto gráfico e diagramação

Heloisa de Oliveira Ganzo

Revisão

Jaqueline Sinderski Bigaton

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na publicação – CIP – Brasil

Arquivo Público do Estado de Santa Catarina

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Giovania Nunes (CRB-14/993)

Diretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina

Rua Duque de Caxias, 261 - Saco dos Limões

CEP 88045-250 - Florianópolis - SC


Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, a Deus.

Aos agentes penitenciários que me forneciam folhas e canetas. Em

especial ao Paulo de Bem. Aos reclusos na época, Carlos José Santos (Pé de

Cabra), Paulo Roberto da Rosa (Paulinho) e Rogério Fernandes Gonçalves

(Buchecha), que me aguçaram as ideias e me incentivaram.

E ao governo do Estado de Santa Catarina por este projeto, sem o qual

nada estaria concreto realmente.



Dedicatória

Dedico este projeto, em especial, aos meus falecidos pais:

Tereza Maria Lopes e Osnildo Orlando Barbosa.

Para a tia Albertina e o tio Laudeli. Meu irmão, Íon

Cézar Cardoso. Meu padrasto, Márcio Cézar. Minha

esposa, Rosicléia Duarte de Moraes,

e minha enteada, Adrielly Moraes.

Jamais esqueceria Eloisa Kniss e minha avó, Maria

Pascoalina, responsável pelo batismo

da personagem central.



Sumário

Apresentação.............................................................................11

Maria Pascoalina........................................................................15

Inocêncio dos Anjos...................................................................23

Pós-Inocêncio.............................................................................31

A vida e m... do Playboy............................................................ 35

O Surdo e o Mudo.....................................................................43

Reintegração..............................................................................49

Soldado usuário.........................................................................57

Soldado do morro......................................................................63

Mais um José.............................................................................69

Vitór... ia ....................................................................................75

O ban... ban... ban... bandido ................................................... 81

Jesus dos Santos Emanuel.......................................................... 85

Reflexões de uma cidadã........................................................... 91



Apresentação

Vidas quebradas é um projeto pessoal, realizado no interior da

Penitenciária de Segurança Máxima de São Pedro de Alcântara. A convivência

nesse ambiente hostil e triste fez com que eu idealizasse este livro, com o

intuito de transmitir um pouco do que presenciei e percebi.

Muitas das personagens foram criadas com base em pessoas

verdadeiras, com personalidades similares ou distintas. Algumas, como a

própria Maria Pascoalina, que surgiu em homenagem à minha falecida avó

paterna, e o Surdo, homenageando um falecido amigo chamado Rafael, que

era mudo de nascença e consumia crack.

Lenilson é a mescla de muitos que conheci durante os anos em que

permaneci preso; Capitão é uma caricatura da sociedade, corruptível. Outros,

criei a partir de relatos fornecidos por meus colegas de cela, como a Vitória

e o José.

Com muita dedicação, este livro foi escrito. Trata-se de uma ficção

com apelo social, baseado em um cotidiano transtornado por um mal cada

vez mais comum: as drogas.



Não Calar

Há uma regra fundamental quando se vive como nós estamos

a viver - em sociedade, porque somos uns animais gregários - que é

simplesmente não calar. Não calar! Que isso possa custar em comunidades

várias a perda de emprego ou más interpretações já o sabemos, mas

também não estamos aqui para agradar a toda a gente. Primeiro, porque é

impossível, e segundo, porque se a consciência nos diz que o caminho é este

então sigamo-lo e quanto às consequências logo veremos.

José Saramago



Vidas quebradas: reflexos do crack

Maria Pascoalina

Meu nome é Maria Pascoalina, sou psicóloga efetiva do sistema penitenciário.

Nos meus primeiros dias como funcionária em um estabelecimento

penal de cidade grande, em um estado rico e bem estruturado deste belo país

chamado Brasil, deparei-me com a face deformada da sociedade.

Ao entrevistar alguns reclusos do complexo penitenciário ao qual, na

época, fui designada, compreendi. Senti impotência, em meio a tantas coisas

que anteriormente me eram alheias. Surgiu-me a ânsia de reformar o mundo,

lutar por um ideal de libertação, ensinar sobre, e mostrar para muitos o que

diariamente passa despercebido: o crime.

O que é o crime?

Sentimos o crime quando somos atingidos diretamente por ele; ao

chegar ao lar e perceber que algo foi furtado, ao sermos assaltados no semáforo

ou perdermos alguém para as balas perdidas. É, infelizmente, enquanto nada

disso nos atinge, ignoramos a existência desse briaréu moderno, mas ele está

ali, agarrando e devorando dezenas e centenas de milhares de vítimas, por

diversas formas diferentes. E uma dessas formas é o crack.

As entrevistas, em questão, tinham como objetivo analisar o

comportamento, as futuras metas e a mente de alguns presos que haviam

alcançado o período regulamentar para benefícios de progressão de regime.

Dependia, em parte, de minha análise para que tal fosse concedido.

Eis que, analisando a dicção, a postura, o passado e os pensamentos de

alguns deles, cheguei a uma conclusão: o mal do século é uma pedra. Apenas

isso, uma pequena pedra de crack. Aquele que não usa, talvez venda; o que não

vende, talvez carregue; o que não carrega, de alguma forma está envolvido,

seja como participante ativo ou passivo, ou, ainda, como nós, vítimas dessa

catástrofe social.

15


Reginaldo Osnildo

***

Antes de passar no concurso público para o cargo que agora exerço,

habituei-me a registrar, com um pequeno gravador portátil que possuo, tudo

que julgasse importante. Nesse meu primeiro dia de serviço, estava com ele

funcionando a todo vapor. Quase tudo que foi conversado, naquela pequena

sala que me foi fornecida para o exercício da função, consegui registrar.

Naquele momento não me passava pela mente transformar o meu

trabalho em um livro aberto ao público, até porque não imaginava o que me

esperava. Porém, trago hoje a você, um dos maiores interessados nessa questão

demasiado polêmica, minha análise sobre a situação e alguns depoimentos

recolhidos naquela sala, nos poucos minutos que tive de conversa com cada um.

Reforço que, para facilitar o seu entendimento, prezado(a) leitor(a),

tendo em vista que os mesmos possuem toda uma linguagem para se

comunicar nesse mundo paralelo, substituí as gírias complexas que foram ditas

pelos presos por palavras de compreensão popular, no entanto, alguns erros

modestos de pronúncia em suas falas permaneceram propositalmente – nada

que pudesse dificultar a compreensão –, corrigi apenas os erros mais grotescos.

Transcrevi as entrevistas com o intuito de transmitir o cotidiano de

alguns desses supostos perturbadores da ordem, não cabe a mim julgá-los

pelo que já haviam ou estavam cumprindo, mas algo neles era comum e é esse

algo que tenciono mostrar-lhe. A sequência em que os depoimentos foram

colhidos não condiz exatamente à ordem com a qual foram enumerados nesta

narrativa, no entanto, assim dispostos, podem ser melhores compreendidos.

Espero, através dessas vivências alheias que, como eu, você possa

entender que existe um mal bem próximo a nós que precisa ser combatido.

Sou uma simples psicóloga, e esta obra foi a maneira que encontrei para

chamá-lo(a) para a batalha. Tenciono que, ao final da leitura deste livro,

você tenha uma posição convicta de como deve agir em relação à essa droga

mortal. Não está em mim guiá-lo(a) ou dizer como deve agir em relação a

tudo que será aqui mencionado; simplesmente espero, com muita convicção

e fé, que você compreenda que o mal está próximo. Não ignore, procure uma

maneira de lutar, use sua sabedoria e tenho certeza que encontrará algo com

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Vidas quebradas: reflexos do crack

que lutar nesta guerra. Venceremos se nos unirmos pelo bem maior.

Independente de sua classe social, de sua religião, de sua cor ou

idade, você não está escape do crack; não feche seus olhos para o que está

acontecendo; o que aconteceu na vida dessas pessoas aqui citadas pode

acontecer com você, direta ou indiretamente.

Não está em mim criticar, porém, tenho visto muitas campanhas

alertando para o não uso dessa droga da morte. Apoio integralmente essa

nobre iniciativa, no entanto, não acontece o mesmo com os que já são

usuários – compreendo que a prevenção é o melhor remédio, mas, não

podemos ignorar a doença; se assim fizermos, ela se propaga.

Talvez nossos governantes pudessem ampliar os programas de

reabilitação para os viciados; quem sabe uma reformulação na justiça,

abrangendo melhor a questão; investimentos na informação para alertar

o povo seriam bem-vindos e programas sociais para melhor tratar os

necessitados seriam também de bom grado.

Bem, melhor que eu pare um pouco, por enquanto, sobre essas análises

políticas e sociais, caso contrário, tão cedo não exponho o que realmente é

importante no momento: a realidade dos excluídos e suas vidas quebradas.

Com o decorrer da leitura você entenderá melhor o porquê deste

termo, excluídos.

Vamos lá...

Não coloquei data, mas estávamos na primeira década do século XXI.

***

“Hoje é o meu primeiro dia como efetiva naquela penitenciária, confesso

que estou com um pouco de medo, mas vamos lá, seja o que Deus quiser.”

Lembro que era bem cedo quando gravei essas palavras, o sol ainda

não havia nascido e eu já estava de pé, tamanha era minha ansiedade.

Para chegar até esse cargo estudei muito, completei a faculdade,

trabalhei por um tempo em um colégio infantil por contrato, passei no

concurso e fui submetida a alguns testes extras depois. E, com a graça de

Deus, tudo deu certo.

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Reginaldo Osnildo

Cheguei bem cedo; o porteiro do complexo pediu minha identificação.

Enquanto estava do lado de fora, nada podia ver, a não ser um enorme portão

de aço e um muro maior ainda – imenso, colossal, gigantesco. Haviam guaritas

postas em cada extremidade do muro que avistei; só depois que pude tomar

conhecimento que nas laterais e nos fundos do complexo também existiam

guaritas, mas, no primeiro momento, pouco percebi.

Liberada minha entrada, o portão se abriu, não muito, apenas o

suficiente para minha passagem. O primeiro passo que dei para o interior

daquele estabelecimento me abalou a estrutura, senti como se um cobertor

peludo e molhado tivesse sido colocado sobre meus ombros, não sei como

descrever melhor essa sensação, a dificuldade para o meu caminhar era

imensa, como se uma barreira em minha mente tivesse sido criada, minha

vontade era fugir, como se eu fosse a criminosa. Senti medo daquele lugar,

muito medo.

A primeira impressão que tive naquele princípio de caminhar foi de

estar em uma gigantesca colmeia. A parede que avistei no momento inicial

de reconhecimento me passava a impressão de um enorme favo de mel, não

em sua doçura, mas, por seus pequeninos compartimentos, ou habitat, que

poderiam ser comparados aos cubículos que aparentavam os lares das larvas

de abelhas, que foram desocupados e adocicados pelo pólen. O sol, surgindo

lentamente por trás do imenso paredão repleto de janelinhas, cobria a brancura

da muralha com o dourado de seus raios, assimilando-o ainda mais à cor do

mel. Os zumbidos das falas dos presos, que já estavam acordados naquele

momento, juntavam-se entre si e a distância, na qual eu me encontrava das

conversas paralelas, não me permitia compreender; no entanto, o som que

ouvi naquele momento era de gigantescas abelhas operárias.

Melhor não sei explicar, a sensação foi surpreendente, se um dos agentes

prisionais não tivesse surgido e perguntado se eu estava perdida, teria eu ali

permanecido por dias, sem me movimentar. Catatônica, foi assim que fiquei,

como se tivesse voltado para minha infância, quando brincava com minhas

coleguinhas de estátua. Uma voz em meu subconsciente deu o grito e paralisei.

Segui o agente prisional que se dirigiu a mim. Antes de adentrar ao

monumental empreendimento ressocializador, paramos no refeitório, onde

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Vidas quebradas: reflexos do crack

nos foi servido um café matinal reforçado. Todos me cumprimentaram e

parabenizaram pelo meu primeiro dia, alguns me deram conselhos diversos

sobre não confiar nos presos e jamais ficar sozinha com um deles. Ouvi e

guardei, poderia me ser útil.

***

“Não posso me esquecer de jamais ficar sozinha com um preso e não

confiar neles. Estou apavorada!”

Gravei isso, no banheiro, enquanto lavava meu rosto para tentar

acordar daquele pesadelo momentâneo. Hoje compreendo que um pouco

foi mitologia, impregnada em meu subconsciente pelas lendas urbanas que

circulam na sociedade.

Trocaram-se os plantões, apresentei-me aos demais que substituíram

os agentes da noite anterior, e, só depois de estabilizados, cada um em seu

posto, me mostraram o local que trabalharia nos dias seguintes. Tratava-se

de uma pequena sala com duas cadeiras e uma mesa entre essas, havia um

arquivo de metal com quatro gavetas desocupadas e algumas prateleiras fixas

nas paredes que rodeavam o recinto, além de quatro pequeninas entradas de

ar na extremidade superior oposta à porta.

Quando perguntei aos funcionários o que havia acontecido com

a psicóloga anterior, emudeceram. Fiquei imaginando mil e um possíveis

acontecimentos trágicos, novamente meu subconsciente criando situações

baseado em fofocas.

***

“Sinceramente, me decepcionei. Esta sala está parecendo uma tumba.

Aqueles quatro buracos, de dez centímetros de raio, creio eu, no alto da

parede, jamais substituirão uma janela. Está abafado!”

No momento que gravei isso, não tinha conhecimento que minha sala

estava sendo reformada; essa saleta citada seria apenas provisória.

Em relação à minha antecessora, sei que ela afastou-se por problemas

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Reginaldo Osnildo

particulares referentes à saúde, nada mais descobri desde então.

Meus primeiros momentos naquela penitenciária foram torturantes.

Arregacei as mangas e limpei todo aquele ambiente tenebroso. Enquanto

limpava, meu colega de serviço, que era o assistente social do referido

complexo, me explicou rapidamente como deveria proceder dali em diante,

me entregou algumas folhas e saiu. Terminei a limpeza e, só então, dei a

atenção devida ao conteúdo.

***

“Tenho em minhas mãos a ficha carcerária de diversos detentos; hoje

mesmo preciso fazer um relatório especificado sobre cada um deles. Devo

lembrar-me de trazer um vaso de flores para melhorar o ambiente.”

Analisei minuciosamente cada folha. Em seguida, chamei um agente

prisional e solicitei que me trouxesse os presos que especifiquei em uma folha

de papel, que viessem um após o outro.

Meu serviço estava apenas começando.

Sentada, permaneci aguardando. Sem saber o que esperava, fiquei

desenhando um psicopata em minha mente. Até aquele momento meu

psicológico estava travando, não conseguia pensar positivo, somente

calamidades e tragédias.

Eis que surgiu.

Liguei o gravador.

Desliguei.

O agente prisional colocou o preso na cadeira, em frente à mesa, e

saiu. Imediatamente levantei-me e o segui. Perguntei-lhe por que havia me

deixado sozinha com o preso e ele respondeu:

– Pois é, dona, não sabia que psicóloga tinha que ser contratada com

segurança particular anexado ao pacote. Façamos assim, hoje você se vira,

amanhã o próximo plantão te arruma um guarda-costas, certo?

Dito isso, desapareceu por entre os corredores gradeados.

Retornei à sala com meu pânico redobrado, talvez até triplicado.

Em meus primeiros minutos no complexo fui aconselhada a jamais

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Vidas quebradas: reflexos do crack

ficar só com um deles e, de repente, ali estava, completamente desamparada.

Analisando a ocasião, atualmente compreendo que um pouco foi fantasia

minha. Porém, confesso, meus colegas poderiam ter sido mais compreensivos,

especialmente aquele brutamontes ignorante que, aliás, hoje é muito amigo

meu, mas, naquele momento, deixou a desejar.

Sentei em minha cadeira e observei o preso que ali foi colocado para

que conversássemos. Perguntei se poderia gravar a entrevista, ele consentiu.

Tratava-se de um homem de aproximados cinquenta anos, baixa

estatura e porte físico atlético. Em sua ficha constava a idade, seu delito –

tráfico de drogas –, bom comportamento registrado até então, não possuía

advogado e não recebia visitas de familiares.

Foi ótimo ter conversado com ele primeiro, era um homem simples e

bem educado, isso desmistificou meus anseios.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Inocêncio dos Anjos

– Qual o seu nome? – perguntei, mesmo sabendo a resposta, apenas

para confirmação, evitando assim erros na análise.

– Inocêncio dos Anjos, senhora. – respondeu ele.

Enquanto falava, sua cabeça permanecia abaixada, não sei dizer se por

vergonha ou respeito. Prossegui:

– Você sabe por que está aqui, Inocêncio?

– Sei, sim. É para saber se estou apto a voltar para a sociedade, senhora.

– respondeu ele, ainda com a cabeça baixa.

– Pois bem, se você não conversar comigo olhando diretamente nos

meus olhos, creio que não poderei ajudá-lo muito. – disse isso com muita

dificuldade, porém, em tom enérgico.

Imediatamente ele ergueu seus olhos, compreendeu que a liberdade

dele em parte dependia daquela entrevista, desculpou-se. Disse a ele que

não era preciso desculpar-se, que estava ali para ajudá-lo e bastava que

conversássemos, nada mais. Esclareci-lhe que, o que não quisesse falar ou

responder, não seria obrigado. Ele sorriu e seu sorriso me acalmou.

– Pelo que foi preso, Inocêncio? – para algumas das perguntas que fiz,

já possuía resposta, no entanto, precisava deixá-lo à vontade e isso era um

começo.

– Tráfico de drogas, senhora. Fui preso dirigindo um carro, forrado

com crack, de um estado a outro. – disse ele.

– Tem advogado? – perguntei.

– Não. A droga não era minha propriedade, apenas receberia um

dinheiro para transportá-la. – respondeu.

– Quer me contar o que aconteceu? – indaguei-o.

– ...

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Reginaldo Osnildo

– Inocêncio, posso ajudá-lo muito. O que me diz? – insisti.

Ele pensou um pouco e iniciou seu relato.

Antes de ser preso por tráfico de drogas e estar sozinho

nesta penitenciária, eu era alguém, um cidadão de bem, honesto

e trabalhador. Passei muitas dificuldades em minha vida, porém,

adquiri um lar, conquistei minha esposa e fui abençoado por

Deus com duas filhas lindas. Com muito suor e sacrifício,

consegui comprar os bens necessários para o dia a dia, sustentei

minhas filhas e eduquei-as. Nunca deixei faltar nada dentro de

casa. Vi minhas filhas crescerem e casarem.

Pouco tempo antes de minha decadência, fui procurado

por um rapaz da comunidade onde moro, queria que eu

guardasse armas e drogas, recusei com muita prudência,

tinha medo de sofrer represálias por parte dele. Depois desse

dia, sempre que esse indivíduo me via, cumprimentava-me e

me aliciava, pedia que, assim que eu mudasse de ideia, eu o

procurasse. Sempre recusei.

Aconteceu que, minha esposa resolveu, certo dia, fazer um

check-up geral em sua saúde e foi constatado um tumor maligno

no abdômen. O tratamento era caríssimo, mas resolvemos de

imediato começá-lo. Vendi um veículo que possuía para dar de

entrada e parcelei o restante. Passei a ir para o serviço a pé ou de

bicicleta, fiz esse sacrifício de todo meu coração.

Mas sabe como é, senhora... Nem sempre as coisas

ajudam. Eu era funcionário em uma metalúrgica automotiva

e recebia um salário suficiente para me equilibrar, não era

uma vida complicada, tão pouco fácil demais. Encaixamos as

parcelas salgadas do tratamento, com muito amor, no nosso

orçamento. Infelizmente surgiu a crise.

Triste hora para esses bancos mundiais entrarem em

falência. A indústria no qual eu trabalhava era uma multinacional,

dormi empregado e acordei, dia seguinte, no meio da rua. Todos

os nossos planejamentos foram por água abaixo, inclusive a

questão da saúde de minha esposa.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Entrei com um processo na justiça requerendo os valores

rescisórios de meu contrato trabalhista, com o dinheiro da saída

poderia quitar as parcelas restantes e manter o bem-estar de

meu amor. Só que os executivos dessa empresa evaporaram,

senhora. Fiquei transtornado. Com algumas economias que

ainda restavam passamos um mês, veio outro e as contas

começaram a surgir, eu não podia perturbar minha esposa. ela

precisava de paz. Por um bom tempo procurei por serviços

informais, mas sabe como é, senhora... Essa crise foi uma

“marolinha” que alcançou muita gente, não só eu.

Um dia, quando caminhava completamente desgostoso

da vida, sem esperança e entristecido, encontrei-o, acredito que

o mais certo é dizer que ele me encontrou, o aliciador.

– Meu caro, Inocêncio. Como vai, amigão? – ele me

cumprimentou.

– Terrível, meu caro, terrível! – desabafei.

– Em que posso ajudar, companheiro? – me perguntou.

Tive a impressão de ter visto um brilho em seus olhos, mas, no

momento, não me impressionou muito, eu tinha muito com o

que me preocupar.

– Estou procurando serviço, somente isso! – falei e

tentei me desvencilhar da armadilha que ele estava montando.

Quando dei alguns passos rumo ao meu lar, ele me

chamou. Por bom senso, resolvi não ignorá-lo. Foi quando ele

jogou a frase chave:

– Sei como você pode salvá-la!

Minha primeira vontade foi agredi-lo, porém, essa

frase foi a melhor maneira de me persuadir, tudo até aquele

momento me levou a tal conversa. Quando me dei conta, estava

pronunciando uma palavra que dizia tudo:

– Como?

Ele me abraçou e começou a caminhar comigo, meus

passos eram automáticos. Sem perceber de que forma, quando

dei por mim estava em uma residência, sentado no sofá, rodeado

por vários malandros armados e recebendo instruções.

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Reginaldo Osnildo

Fui contratado!

Naquele dia, recebi como instrução o simples fato de

levar uma mochila de onde estávamos até a cidade vizinha,

recebi o dinheiro para a passagem de ônibus e o pacote. Alguns

tapinhas nas costas foram o incentivo final.

Instantaneamente me vi dentro do coletivo com o

endereço nas mãos. Não conseguia pensar. Cheguei ao destino

sem ao menos ver o que a mochila continha; acreditava que

seria melhor se não soubesse, pelo menos por desencargo de

consciência. Embaixo do endereço existia anotado um número

de celular, fui até um telefone público e efetuei a ligação a cobrar.

Fui atendido por uma mulher do outro lado da linha, ela

pediu que eu esperasse em uma pizzaria próxima; o lugar era

tranquilo e sempre foi utilizado para essas ocasiões. Encontrei o

estabelecimento com facilidade, entrei e aguardei. Sem demora

alguma chegou a mulher, sentou-se à minha frente, pegou a

mochila e pediu para que eu esperasse ali mesmo, solicitou

uma pizza ao garçom, algo para beber e quitou. Feito isso,

desapareceu.

A pizza surgiu acompanhada de um refrigerante, estava

tranquilo e resolvi me alimentar, após o primeiro pedaço de

massa mastigado comecei a me indagar o que a mochila

continha e, antes de completar meu pensamento, ele surgiu. O

aliciador me entregou um envelope com a quantia combinada,

me acompanhou na refeição e, em seguida, despediu-se:

– Até a próxima, Inocêncio.

Pensei que não teria próxima, mas disse-lhe:

– Até!

Com o dinheiro que consegui naquele serviço, quitei

contas e as parcelas que estavam atrasadas do tratamento,

ainda sobrou para comprar mantimentos para nos manter por

um tempo. Novamente saí para procurar oportunidades, nada

encontrando.

O tempo passou e novas contas começaram a surgir.

Minha esposa foi internada para completar a quimioterapia e eu

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Vidas quebradas: reflexos do crack

me vi em apuros financeiros. Por todo lugar que eu caminhava,

eu o via. Cheguei a imaginar que ele me seguia, mas não. Eu

havia sido aliciado uma vez pelo destino e esse mesmo destino

o colocava novamente em meu caminho.

Um dia, em meio a tantas tribulações, fui procurá-lo,

desabafei sobre minha situação e disse a ele o valor que me

faltava, ele sorriu e falou que tinha o serviço ideal para mim,

uma viagem. Em apenas poucas horas, conseguiria o valor que

me perturbava e me sobraria um pouco ainda para manter-me.

Aceitei.

Hoje me arrependo, senhora. Por diversas vezes, minhas

filhas ofereceram-me ajuda, e eu, orgulhoso que só, recusei.

Veja como é as coisas, para aquele criminoso da comunidade

não conseguia dizer não. Novamente não quis saber o que

estava levando; lembrar que o ajudava já me transtornava, saber

como, iria me abalar ainda mais.

Desta vez foi um carro o que transportei. Ele me

entregou uma passagem de ônibus, a documentação de um

veículo, sua chave e um endereço com nome e telefone. Levoume

na rodoviária e me disse que aguardaria na mesma pizzaria

da cidade vizinha.

Em poucas horas cheguei ao destino, tranquilo, efetuei

um telefonema e apareceu um mecânico em um guincho, levoume

até ali perto e me mostrou o veículo. Era um popular, desses

de fácil acesso a quase todas as classes sociais. Embarquei, após

constatar que o tanque estava cheio, e peguei o caminho de

volta. Na metade do percurso, passei a ter a impressão de estar

sendo seguido, no entanto, não me preocupei, não sabia o que

estava transportando e isso me manteve calmo.

Estacionei o automóvel na lateral do estacionamento;

adentrei e sentei na mesma mesa do encontro anterior. O local

estava movimentado e o garçom demorou um pouco para

atender-me. Quando ele notou a minha presença, perguntou o

que eu queria, aleguei apenas esperar por alguém e pedi-lhe um

refrigerante. Sem demora, fui servido.

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Reginaldo Osnildo

Ali, naquele ambiente, me senti à vontade, relaxei.

Enquanto degustava o líquido que me foi entregue, observei

rapidamente os demais que estavam no espaço. Em algumas

mesas mais afastadas de onde me encontrava, havia uma ou

duas famílias, não sei ao certo, eram mais de quinze pessoas,

tinha idosos, crianças e alguns jovens, comemoravam algo.

Do meu lado esquerdo, dois homens vestidos de preto

conversavam em tom de voz reduzido. No meu lado direito, um

casal; o homem devia ter seus quase sessenta anos e a moça que

o acompanhava, em torno dos trinta. Sem contar os garçons

que eram no total de três, os entregadores de pizza que iam e

vinham constantemente e as pessoas que não pus reparo.

Pois é, senhora, dois, dos que estavam nesse local, eram

policiais civis e estavam investigando há tempo o aliciador. Eu,

bem inocente, não desconfiei de nada. Inocente entre aspas,

senhora. Eu era um criminoso naquele momento, só depois,

refletindo, que fui me dar conta das minhas atitudes. Antes que

eu terminasse minha bebida não alcoólica, ele chegou, sentou

na minha frente e sorriu, perguntou se eu havia pedido algo

para comer, diante da minha negativa, chamou o garçom.

O senhor e a moça que estavam do meu lado direito se

levantaram. Nesse exato momento, o garçom fez um sinal para

que o aliciador aguardasse, quando ele olhou novamente para

mim e sorriu, o casal sacou de armas e gritaram enfurecidos,

disseram ser policiais e nos mandaram deitar no chão. Todos

que estavam ali presentes nos olharam, um dos dois homens

que estavam no meu lado esquerdo desmaiou, o outro gritava

desesperado por ajuda, sua voz era de um tom melífluo e seus

gestos gritantes e afeminados.

Deitei-me e fui algemado, ele também. Deitado no chão,

escutei ele me dizer para que eu assumisse, do contrário, minhas

filhas não seriam poupadas. Não abalei-me, mas entendi. Fomos

levados para fora, uma grande operação havia sido montada.

Uma ambulância levou o homem desmaiado, ainda pude ouvir

algo sobre princípio de enfarte, o companheiro dele chorava.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

A operação tinha como principal objetivo impedir nossa

fuga. Como missão secundária, averiguar todo o local próximo,

a pizzaria foi revirada e as famílias que comemoravam algo

foram importunadas, e todos os presentes tiveram que ser

minuciosamente revistados.

O carro que eu transportei foi arrombado por policiais,

a rua transformou-se em um campo de guerra. Tumultos

causados por curiosos precisaram ser contidos pelas viaturas

que foram chamadas para o reforço de pessoal. Os funcionários

do estabelecimento não escaparam do fatídico. Três policiais

da equipe de narcóticos, acompanhados de cães farejadores,

adentraram no recinto tendo esse totalmente desocupado.

Um dos investigadores que estava grudado ao veículo

que eu trouxe, gritou aos demais:

– Encontrei!

Havíamos sido separados, eu estava no compartimento

traseiro de uma viatura próxima ao carro, o aliciador foi levado

por outra para o distrito policial. Quando o policial deu o grito

de alerta, o carro foi cercado. A mulher que havia me dado

a voz de prisão e me algemado levantou a porta traseira da

viatura ao qual eu estava retido e perguntou se tudo que foi

encontrado era meu. Em suas mãos tinham placas de drogas.

Imediatamente surgiu a imagem de minha esposa e filhas em

minha mente; temendo pela vida delas, confirmei com um

aceno de cabeça. A policial fechou a porta traseira da viatura

com toda força que possuía, o barulho da batida ecoou por

alguns minutos em minha mente.

Assumi tudo senhora, dentro do carro tinha quarenta

e sete placas de crack, totalizava quase cinquenta quilos. O

aliciador foi liberado e eu fiquei autuado em flagrante. Naquele

momento eu engolia meu orgulho. De lá até agora passei por

muita coisa, apanhei da policia e apanhei de bandidos. Eu não

sou criminoso, senhora. Não conhecia as regras deles, isso me

atingiu muito no começo, aprendi a dançar conforme a música.

Depois de uns dias, minha esposa veio me ver, chorou

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Reginaldo Osnildo

muito, disse que não me abandonaria, mas estava muito triste

com minha atitude. Disse também que minhas filhas dificilmente

me perdoariam, pediu que eu refletisse e que tivesse paciência, o

tempo cuidaria de tudo.

Fui condenado alguns meses depois, minha esposa

parou de fazer o tratamento e acabou falecendo dias após o

meu aniversário; o câncer, que estava sendo tratado à base

de quimioterapia, alastrou-se depois que o tratamento foi

interrompido; minhas filhas me escreveram uma carta na qual

disseram que jamais me perdoariam.

Lágrimas...

Perdoe-me senhora... Sei que esses problemas particulares

são meus... Agradeço por ter me ouvido... Nestes três anos que

estou preso, foi a primeira vez que desabafei após a morte de

minha amada... Sabe de uma coisa, senhora? Se arrependimento

matasse... Eu faria parte da estatística.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Pós-Inocêncio

Depois desse desabafo, reconfortei-o, fiz anotações favoráveis em sua

ficha carcerária, que seria anexada ao seu exame criminológico. Dei a ele a

minha palavra, se dependesse apenas de mim, ele seria solto.

Que coisa, não? O que um homem, ou uma mulher, não é capaz

de fazer por quem ama? Não quero justificar o erro dele, erro é erro, mas

que fiquei abalada com sua história, fiquei. Lembro-me que, depois dessa

entrevista, não demorou muito e ele saiu, foi liberto.

Simpatizei com seu Inocêncio, compreendi a atitude dele, mesmo

não aprovando. Não era certo ele querer ajudar sua esposa com a vida ou a

desgraça de outros cidadãos. Tudo bem, ele estava carregando sua cruz, que

Deus o abençoe, nem sei como ele está hoje, oro para que esteja bem. Prometi

que iria chamá-lo novamente, para uma conversa sobre seus problemas. Após

ter me despedido de seu Inocêncio, o agente levou-o e veio com o seguinte.

Era um jovem bem vestido e perfumado, nesta penitenciária não era

obrigatório o uniforme, tinha um sorriso bonito e emanava simpatia. É... As

aparências realmente enganam. Não simpatizei com ele naquele momento,

sentou-se na cadeira e espreguiçou-se, seu sorriso maroto foi desmanchado

para me dizer gracinhas, sorte minha que o agente prisional ainda estava

presente. O preso foi repreendido sem que eu precisa-se me manifestar.

Aliviei-me ao perceber que ele entendeu o recado.

A ele não pedi, simplesmente comuniquei que iria gravar a conversa.

Falei a ele que o que não quisesse que fosse gravado, bastava não dizer.

Comuniquei que estava ali para ajudá-lo e a liberdade estava nas mãos dele.

Indaguei seu nome, ele permaneceu em silêncio. Respirei fundo e me levantei,

ele apenas me observou, abri a porta e lhe falei:

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Reginaldo Osnildo

– Se você não gosta da liberdade, dê o espaço desta cadeira em que está

sentado para quem quer sair deste lugar!

Não fui ignorante, pois não sou assim, mas minhas palavras soaram

firme. Tocar na palavra liberdade mexeu com ele. Desculpou-se e prometeu

colaborar. Esqueci-me de desligar o gravador, mais tarde quando escutei

isso, me impressionei com a atitude que tive; a conversa com seu Inocêncio

me fortaleceu de alguma forma, compreendi que nem todos tinham mentes

criminosas e cada qual precisava ser tratado a sua maneira. Com esse tinha

que ser assim, firme.

Vou trocar seu nome por um apelido; ele é filho de uma pessoa

importante da sociedade. Mesmo tendo a autorização dele, identificá-lo me

traria complicações, chamá-lo-ei de Playboy.

Fiz as perguntas de praxe e conduzi a conversa a uma situação que ele

se sentiu à vontade para abrir-se. Contou-me seus anseios e seus erros; alguns,

mais graves, não detalhou, outros brandos, gesticulou, minuciosamente

relatando. Peço que me desculpe por ter omitido algumas partes da gravação,

essa foi a condição dele para autorizar-me a revelar sua história.

Talvez você tenha me entendido, erroneamente, quando falei que

não simpatizei com ele. Sinceramente, me compadeci de sua situação, mas

simpatia foi o que senti por seu Inocêncio, sofredor que cometeu erros e se

arrependeu. Esse jovem, além de não ter se arrependido, revelou-me sentir-se

superior ao cometer seus delitos. O Playboy sempre soube da minha opinião,

conversei diversas vezes com ele depois desse dia, não posso ser hipócrita ao

ponto de dizer a mim mesma que ele poderia mudar por vontade própria,

nesses casos somente o poder de Deus para modificá-los. Observe algumas

palavras dele:

– Pois é, senhora. Cometi tudo isso aí por causa da pedra, depois que

eu conheci essa droga maldita, sinto-me diferente.

– Qual é a sensação? O que leva você a fumar ou a querer muito fumar?

– A sensação é inexplicável. Vejamos, imagine que você está no meio

do Saara, percorreu a metade dele debaixo do sol quente a cinquenta graus e,

de repente, surge um oásis. Aí você bebe um pouco de água e... A sensação é

quase isso, só que melhor. Agora volte dez minutos antes de achar o oásis e

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Vidas quebradas: reflexos do crack

terá uma grande vontade de beber água. O crack se assemelha. Só tem uma

coisa, senhora, aqui no Brasil não temos Saara, mas temos a pedra. Depois

que fumou a primeira... Se for preciso atravessar o deserto inteiro para fumar

outra... Acredite, não só a pessoa consegue o feito, como faz em tempo

recorde. É uma verdadeira maldição!

– Como assim uma maldição?

– Senhora, já viu filme de zumbi? Ou melhor, sabe esses filmes

dramáticos que o homem ou a mulher fazem de tudo para agradar o outro...

Pôxa! Como posso explicar? Eu troquei minha família pelo crack. Preciso

explicar mais?

– Esse assalto, pelo qual você foi condenado, foi por causa do crack?

– O assalto? É uma longa história senhora, mas vamos lá...

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Vidas quebradas: reflexos do crack

A vida e m... do Playboy

Já disse, não me arrependo do que fiz e se precisar faço

de novo. Se eu quiser fumar e não tiver dinheiro, vou à luta,

desse mesmo jeito. A senhora quer saber? Vou contar desde

que me lembro...

Meus pais são proprietários de uma rede de

hipermercados, espalhados pelo Brasil. Nunca faltou nada para

mim, exceto afeto. Fui criado por empregados. Meu pai é um

“corno manso” e minha mãe uma “vagabunda”! Desculpe,

senhora, desculpe.

Fui criado à revelia e sem carinho. Nasci em um mundo

egoísta; todos ao meu redor me bajulavam por eu ser filho de

magnata, sempre desprezei a todos que andavam comigo por

esse motivo. Essas pessoas da classe alta são muito cheias de

hein, hein, hein! Não é meu mundo.

Com treze anos comecei a fumar cigarros no colégio.

Em três meses de vício, já havia me enturmado com uns rapazes

do colégio vizinho ao meu; era, na realidade, uma escola pública

com boa estrutura, porém, diferentíssima da minha, que tinha

muita pompa. Nunca fui muito a favor dessas frescuradas.

Então, me envolvi com essa molecada e comecei a

faltar às aulas para divertir-me com eles. Fumávamos cigarros,

desvendávamos o princípio da adolescência e, às vezes, íamos

ao bairro vizinho para jogar futebol, na periferia. Nesse bairro,

conheci a maconha e a bebida. Em pouco tempo troquei meus

novos amigos...

Eu não ia mais à periferia divertir-me em uma “pelada”

com os companheiros, e sim para me enturmar cada vez mais com

aquelas novas amizades. Em tempo recorde, já sabia manusear a

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Reginaldo Osnildo

droga e, por ter conhecimento com contas, fui convidado para

auxiliar na contabilidade em um ponto de drogas.

Vivia dois mundos. Em casa, fingia-me bonzinho para

que os empregados nada dissessem aos meus pais; na rua,

mostrava-me maléfico para adquirir respeito entre meus novos

companheiros. Passei a andar armado.

Além da contabilidade, comecei a levar drogas para o

colégio. Induzi muitos a usar; as meninas me olhavam diferente,

me viam como o maioral. Na realidade, eu era o mesmo, só o que

mudara foi o fato de eu ter me tornado maconheiro. Quando eu

não levava maconha para o colégio, os novos adeptos vinham

“intimar”, queriam de qualquer maneira “fumar um”.

O tempo me levou a traficar no interior do estabelecimento

educacional, cheio de pompa. Tornei-me a mancha negra do

local. Ainda menor, fui preso na sala de aula com um revólver.

Meu pai nem apareceu na delegacia, me mandou um advogado;

depois dessa prisão sosseguei um pouco. Quando eu digo que

sosseguei, senhora, foi só de vender. Fumar maconha e beber,

não parei, já fazia parte do meu sangue.

Anos depois, já tendo alcançado a maioridade,

frequentando boates e noitadas, conheci a cocaína. Estava com

um grupo de amigos, e uma das meninas que nos acompanhava

serviu-se daquele pó. Fiquei curioso e pedi a ela para

experimentar, ela me disse que não tinha mais e o “papelote” (ou

peteca) era caríssimo. Mostrei a ela muito dinheiro e perguntei

onde comprar. Foi então que ela me puxou pelo braço...

Não preciso dizer o que aconteceu, não é, senhora?

Acordei na tarde do outro dia em um motel com essa

moça, e eu não era mais o mesmo. A cocaína me dava muita

disposição, ficava elétrico e eufórico. Eu bebia muito e o pó

cortava o efeito da bebida; para mim, só isso já era o suficiente,

mas vinha acompanhado de outras sensações e tudo o mais.

Eu não trabalhava, senhora. Lembra que eu disse que

meu pai tem muito dinheiro? Então, não vendi cocaína, mas me

envolvi novamente com outro grupo de pessoas; aos poucos,

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Vidas quebradas: reflexos do crack

meus companheiros de baladas foram sendo, entre aspas,

substituídos. A noite tornou-se uma festa constante e eu, aos

poucos, perdia a mínima responsabilidade que me restava. Meu

pai me deu um carro bom, e um dia, sem dinheiro para usar,

na madrugada, penhorei o carro por alguns papelotes com o

traficante. Meu carro foi usado para cometer uma chacina.

A polícia chegou até o veículo e acabou mordendo

um dinheirinho de meu pai para abafar o caso. Ele me tirou

o carro. Nessa época estava amasiado; meu pai me cortou as

finanças e ela me abandonou. Passei a viver sozinho, consegui

um emprego em um escritório, como auxiliar administrativo, e,

por um tempo, endireitei-me.

Nesses tempos de vacas magras controlei-me. Reduzi o

consumo de álcool e só cheirava cocaína nos finais de semana.

Minha mãe se tornou atenciosa ao perceber minha melhora.

Sabe aquela atenção a distância? Tipo... Serviço de atendimento

ao consumidor? Ela me ligava só para fazer sugestões e

reclamações. Descontrolei-me depois de um tempo e voltei a

usar cocaína todos os dias, até que... Conheci o crack.

Senhora, essa droga é horrível. Não horrível de usar,

se fosse ruim, ninguém mais usava. Ela é ruim nas suas

consequências; em pouco tempo, me vi no fundo do poço.

Certa vez, com vontade de usar cocaína, saí pela

madrugada com muita “instiga”. Infelizmente, o ponto onde

eu comprava drogas estava cercado pela polícia, desviei e fui

parar em outra comunidade, observei um grupo que estava

alvoroçado e percebi que eles usavam algo. Mostrando dinheiro,

facilmente me enturmei.Ensinaram-me como fumar e boom,

explodiu em mim a catástrofe.

Naquela noite, fumei todo meu dinheiro e tudo que

vestia, saí dali, de manhã, com uma calça de moletom, cortada

na altura do joelho, fazendo um quê de bermuda, deram para

que eu não andasse pelado, até minhas meias levaram. Não fui

roubado, não, senhora. Vendi tudo para fumar e, se tivesse mais

para vender, o faria.

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Reginaldo Osnildo

Nesse mesmo dia, fui trabalhar, estava novamente

diferente. Pela manhã inteira fiquei pensando no crack, essa

droga é maldita por causa disso, domina nossa mente. No

horário do almoço voltei para o beco onde havia passado a

noite e fumei mais. Boom, não fui trabalhar na tarde desse dia.

Não demorou muito e perdi o emprego. Aos poucos perdi tudo

que tinha. Perdi não, vendi.

Quando as vacas realmente emagreceram mesmo, isso

em questão de meses, pensei em roubar. Desempregado não

tinha como conseguir dinheiro. O primeiro lugar que roubei

foi uma das casas de praia de meu pai, convidei alguns de meus

novos amigos e, planejado tudo, fizemos a “limpeza” na casa.

Desse dia em diante, boom, transformei-me novamente.

Toda vez que eu queria usar crack e não tinha dinheiro,

saía para roubar. Nunca fui corajoso, senhora, simplesmente

passava uma propaganda enganosa de bandido mal. Na

realidade, a coragem só me surge quando eu não tenho crack

para fumar, fico revoltado. Agora, quando uso, fico assustado;

penso que meu pai vai aparecer a qualquer momento e passo

um tempão espreitando, no aguarde. Ele nunca vem! Na real,

acabo pagando para me sentir assim, essa é minha viagem.

Já te contei algumas coisas que fiz, não vá contar para

ninguém senhora, por favor... Senão... É mais cadeia para mim.

Sabe esse assalto que estou preso? Fui assaltar um

homem certa vez, munido de uma faca, só que, ao me aproximar,

percebi que era um colega dos meus tempos de escola, na

adolescência, filhinho de papai. Me tratou excepcionalmente

bem e me convidou para entrar em seu apartamento, consenti.

Eu estava bem vestido e ele não notou a faca. Quando eu falo

que essa droga é maldita, acredite, senhora!

Subi até seu apartamento, em nenhum momento tinha

outro pensamento que não fosse o crack. Cada passo que dava,

a vontade de fumar aumentava; meu intestino remexia-se em

meu interior, só no desejá-la, e eu imaginava o que ele teria de

bom para que eu pudesse vender. Estava ansioso, eu queria

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Vidas quebradas: reflexos do crack

sair o quanto antes dali e fumar, fumar, fumar... Eu queria

fumar o crack!

Quando entrei no seu lar, fiquei abismado. Tinha tanta

coisa de valor, senhora. Bastou que ele fechasse a porta e eu

avancei sobre ele. Dei uns tapas e joguei-o ao chão. Ele pensou

em gritar, puxei a faca, silenciou. Tranquei a porta e retirei a

chave; a alguns passos de nós, avistei o telefone, retirei o fio

da parede, do aparelho, e amarrei-o. Percorri o recinto para

averiguá-lo, retornei com um pano e um lençol, reforcei as

amarras e abafei sua boca. Feito isso, arrastei-o até o banheiro

e o larguei lá.

Me senti dono de tudo! Fui ao seu quarto, onde achei uma

mochila e uma bolsa. Vesti algumas peças de roupa e coloquei

outras na mochila. Achei, em uma gaveta, alguns relógios,

correntes e pulseiras de prata e uma corrente de ouro, um

notebook e uma câmera digital. Foi só. Na sala de estar. coloquei

o aparelho de DVD na bolsa, coloquei também alguns litros de

destilados importados, escoceses e muito mais. O celular que

ele jogou sobre o sofá, peguei. Caminhei por toda casa e nada

mais me interessou, exceto um quadro pendurado na parede e o

tapete, decidi que, se não encontrasse dinheiro, os levaria.

Fui até o banheiro e perguntei sobre dinheiro; ele

balançou a cabeça negativamente. Havia perfumes em uma

prateleira fixa na parede sobre a pia, trouxe todos, senhora.

Depois de colocá-los na bolsa, enrolei o tapete, era muito

lindo, a senhora ia gostar. Continuando, a casa era minha, eu

que mandava ali, fixei-me no quadro, decidi levá-lo; quando o

retirei, foi que avistei o cofre.

Irado, corri até o banheiro e o enchi de cascudos. Não

foi nada agressivo, foi mais para assustá-lo. Depois do susto

que dei nele, perguntei a senha, ele arregalou os olhos. Sorri

maleficamente e debochei dele, sentei no chão ao seu lado, com

a faca na mão, e o apavorei. Permaneci por dez minutos fazendo

pressão psicológica em sua mente, mostrei a ele os prós e os

contras de se apegar ao dinheiro, ele cedeu.

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Reginaldo Osnildo

Tirei a mordaça e ele me ditou a senha desejada, anotei

no celular que era dele e corri para a sala. Estando aberto o

cofre, encontrei em seu interior muito dinheiro, senhora. Joguei

tudo na mochila; tinha até uns documentos, trouxe junto. Não

queria perder tempo. Assim que peguei o conteúdo do cofre,

saí. Ignorei o quadro jogado no chão, também deixei o tapete.

Desci as escadas com a bolsa nas mãos e a mochila nas costas.

Em meu semblante havia um sorriso, mesmo que maligno. Em

meu pensamento, a vontade de fumar. Eu iria fumar muito.

Infelizmente fui preso, senhora. Não desfrutei de nada.

Na hipervontade de fumar, deixei-o sem a mordaça e com a

porta do banheiro aberta. Arrastando-se, ele conseguiu pedir

ajuda e chamar a polícia. Fui pego a três quarteirões da casa

dele, caminhando rumo ao ponto de drogas.

Me espancaram e me levaram ao distrito policial. A

vítima apareceu e me reconheceu. Ele veio com uma ideologia

de bom moço, me falou que, se eu me internasse em uma

clínica, ele retirava a queixa. Eu aceitei.

Ele pegou o celular que eu havia subtraído e fez uma

ligação. Fiquei observando-o, ele estava a uma distância razoável,

mas eu não podia ouvi-lo. Nos primeiros momentos dessa

ligação, gesticulou e falou de maneira que passou a impressão

de tentar convencer alguém, me olhava e apontava para o teto.

Momentos depois, ficou de costas para mim, pareceu estar

discutindo. Desligou o celular e permaneceu por segundos

parado, pareceu-me que estava refletindo. Deduzi que ele estava

conseguindo a internação para mim.

Veio em minha direção. Algo em mim queria lutar

naquele momento, surgiu-me uma esperança. Pela primeira vez,

alguém se importou comigo realmente, mesmo eu tendo feito

tudo que fiz, ele quis me ajudar. Parou na minha frente. Eu

estava algemado, fiquei olhando-o com cara de bobo. Ele disse:

– Me desculpe, falei com seu pai e ele disse que você

precisa aprender a lição...

Me iludi!

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Vidas quebradas: reflexos do crack

– Não vou retirar a queixa, sinto muito. – ele concluiu e

retirou-se.

Havia fantasiado oportunidades, senhora; ninguém

jamais realmente me amou. Sabe quando eu me sinto bem? Só

quando estou drogado de crack! Estralado! Nunca irei largá-lo!

O crack é minha família. Eu amo o crack e ele me ama. Já falei, se

precisar roubar de novo para fumar, sai da frente...

Como disse, não coloquei tudo o que ele falou, mas creio que seja

suficiente para você, leitor(a), compreender um pouquinho de sua história

trágica. Alguns delitos que ele me contou, e que não anexei nesta transcrição,

assemelham-se a esse, pelo qual ele foi condenado. Não havia detalhes de

nomes, tão pouco de locais específicos. Mesmo que algum leitor me aponte o

dedo, me julgando, quem sabe até criticando-me pelo fato de não expor esses

crimes, ressalto que, no momento em que esse projeto estava sendo passado

para o papel, a minha intenção era apenas revelar o que o crack fez na vida

desse jovem promissor, e não investigar delitos alheios.

Ainda enquanto este projeto estava sendo passado para o papel,

o jovem, com qual eu não havia simpatizado no primeiro encontro, foi

assassinado por policiais em uma residência de pessoas de bem, assaltando-a.

Assisti todo o drama pela televisão.

O playboy que contou essa história realmente chegou ao fundo do

poço; faltou alguém disposto a estender-lhe a mão. Tendo invadido essa

residência meses após sair da cadeia, apossou-se de uma faca e fez a família

que ali residia como refém.

Se eu tivesse me esforçado mais para ajudá-lo, quem sabe não teria

revertido esse papel que ele desempenhou. No fundo ele era uma pessoa boa,

infelizmente deixou se influenciar por ideologias negativas.

A polícia invadiu o local e não pensou duas vezes. Ele não foi

identificado, talvez a pedido de seus pais. Eu o vi no monitor da minha casa

com a faca na mão, segurando uma mulher pelo pescoço. Reconheci-o. Foi a

última vez que o vi.

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Reginaldo Osnildo

Mesmo sabendo que ele não está mais entre nós, fisicamente, acredito que

esta frase é impactante e, como eu escreveria para que ele lesse, escrevo agora para

que sirva para outro playboy que esteja se iludindo com essa droga devastadora.

Caro Playboy, se você estivesse lendo, veria que cumpri minha palavra,

na esperança que tivesse largado esse vício.

Muitas vezes, procurar entender resolve mais que acusar.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

O Surdo e o Mudo

O seu Inocêncio e o Playboy foram os únicos que transcrevi, um após

o outro. Todos os demais, que agora citarei, foram ouvidos alternadamente e

organizados na sequência seguinte para melhor compreensão.

O Surdo e o Mudo eram dois jovens franzinos que foram presos no

mesmo artigo: furto. Um realmente era surdo-mudo e o outro participou da

entrevista como porta-voz.

Essa conversa eu não pude gravar. Foi minha última oitiva e todas as

minhas fitas estavam preenchidas, porém, por lembrar cada momento dessa

tão delirante ocasião, posso narrar detalhadamente.

Já cansada de um dia inteiro, estressante, de serviço e tendo ouvido

antes dessa, um bambambã, não acreditei ao ver dois rapazes entrarem

algemados, juntos, pelo tornozelo. Restava-me apenas um nome para ser

entrevistado. Desengonçadamente, passei a palma das mãos sobre os olhos,

pensando se tratar do cansaço. Enganei-me. Realmente eram dois.

A dupla permaneceu em pé, fiquei, por segundos, com minha

consciência em órbita, sem compreender a situação, chamei o agente

prisional, o Brutamontes; lembra? Então, ele veio, olhou-me e, sem nada

responder, saiu e retornou com uma cadeira, deixou-a e desapareceu pelo

mesmo corredor anteriormente citado.

Ao perguntar qual dos dois era o meu entrevistado, Surdo apontou

para seu parceiro e disse:

– É ele, dona!

Surdo, era o vulgo que esse jovem possuía. Por estar sempre junto

com seu companheiro, que é surdo-mudo de nascença, recebeu essa

nomenclatura diferenciada. Cabe ressaltar que, em todo o complexo,

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Reginaldo Osnildo

só o Surdo entendia o Mudo e vice-versa. Só para constatar, o complexo

penitenciário em que fui efetivada possuía, nada mais, nada menos, que

dois mil reclusos, sem contar os funcionários. Senti-me frustrada por não

conhecer a Libras (Língua Brasileira de Sinais). Sorte que o Surdo estava

ali, e de surdo nada tinha.

Prossigamos. Mesmo algemados com “marca-passos”, sentaram um

em frente ao outro, de maneira que o Surdo me ouvia e, com as mãos livres,

gesticulava para o Mudo, esse, após compreender, respondia em gestos, e, em

seguida, Surdo dirigia-se a mim.

Por ter os dois presentes em minha saleta, além da vida do Mudo,

conheci também a trajetória do Surdo. Ambos nasceram na mesma

comunidade e se tornaram órfãos. Quando muito jovens, ainda crianças, os

pais de ambos foram assassinados em uma mesma chacina. Cada um, a seu

tempo, foi levado para a mesma instituição governamental. Lá se conheceram

e formaram uma bela amizade que se perpetuou através dos anos.

Ainda quando crianças, em torno de seus nove para dez anos, de acordo

com o que se recordam, fugiram do ambiente no qual residiam e foram viver

nas ruas. Inicialmente, como pedintes, sobreviviam de esmolas. Na realidade,

nessa atividade, Surdo é que desempenhava melhor papel. Mudo sempre o

acompanhava com seu olhar de necessitado, olhar esse que não precisava ser

interpretado; podiam observar em sua face, eu pude observar.

Por muito tempo morando nas ruas, conheceram todos os tipos de

pessoas. Um protegia o outro dos demais moradores de rua. Conheceram

a cola de sapateiro; na realidade, Surdo conheceu primeiro e Mudo o

acompanhou. Surdo era o irmão mais velho de Mudo nessas situações.

Mudo se espelhava em tudo no Surdo. O que Surdo dissesse, com as mãos

ou com o olhar, Mudo obedecia. Mesmo tendo essa autoridade total sobre as

atitudes do amigo, Surdo não se prevalecia dele, pelo contrário, o pouco que

tinham era dividido em iguais partes. Depois da cola, se perderam no crack.

Como sempre, o primeiro a experimentar foi Surdo, Mudo o acompanhou na

viagem. Amigos unidos, irmãos pelo destino, dominados pelo vício.

Depois que passaram a consumir o crack, seus laços se reforçaram.

Percorriam bairros inteiros, de cidade em cidade, atravessaram estados,

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Vidas quebradas: reflexos do crack

sempre pedindo. Sobreviviam com a ajuda da população, vez ou outra

recebiam um não, normal, quem pede precisa se acostumar com a negativa

alheia também.

Segundo nosso amigo Surdo, ainda nesse tempo que pediam, não

estavam totalmente possuídos pela droga, mas depois do primeiro furto, tudo

mudou. Certo dia, contou-me Surdo, enquanto caminhavam por uma dessas

cidades que tanto percorreram, pararam em frente a um portão colossal em

uma casa magnífica. O proprietário estava a aparar o gramado e sua esposa a

regar flores, as crianças brincavam pelo quintal.

O proprietário do monumental e espetacular imóvel paralisou ao

observá-los q distância. Desligou sua máquina de cortar grama e caminhou

até eles. Mudo, agarrado nas grades do portão da residência, com uma mão

em cada barra de ferro vertical, a face entre as mesmas, observava para

dentro de tão caloroso lar, o ambiente familiar era agradável e demonstrava

carinho e afeição. Tendo visto Mudo a analisar sua propriedade, o homem

excomungou-o, ao contrário de Surdo, ele realmente era surdo e não entendeu

a reação do cidadão.

E o Surdo, que observou a propriedade por relances, continuou

a caminhar a passos lentos, não ouvindo os brados desse pai de família

enfurecido. Quando percebeu, Mudo estava recebendo uns “tabefes”.

Correndo para interceder, gritou que seu irmão era deficiente, nada adiantou.

Foram acusados de larápios e ambos apanharam sem nada ter feito. A esposa

desse homem impediu que as agressões prosseguissem e pediu que fossem

embora. Foram sim, mas não muito longe.

Pela primeira vez, em seus corações nasceu-lhes o sentimento de

revolta, nada fizeram, no entanto foram agredidos de igual forma. Ainda não

tinham alcançado a adolescência, faltando, a ambos, poucos meses. Essa

agressão foi o divisor de águas, até então, usavam o crack, moravam na rua,

mas eram dignos e pacíficos.

Fico imaginando, jovens que têm lar e pais para impedi-los de cometer

loucuras, pais esses que dão afeto e instrução e nada deixam faltar em casa,

enlouquecem. O que podemos dizer sobre essas duas vítimas da catástrofe

social? O que você acha que fizeram?

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Reginaldo Osnildo

Voltaram ao escurecer, defecaram no gramado e, com as mãos,

espalharam nas paredes da residência. Mudo achou tudo muito divertido,

por ele fariam isso todas as noites, por todo lugar que passassem. Quando

me contou isso, Surdo gargalhou. lembrando-se da cena. E o pior; mesmo

dizendo que ele fez errado, não controlei meus risos. Deus me perdoe, mas,

imaginando a cena, achei muito engraçado.

No movimento desse vandalismo, percorrendo de um lado ao outro a

casa, encontraram uma abertura. Mudo gesticulou dizendo que foi ele quem

encontrou a janela aberta. Lavaram as mãos e resolveram entrar. Segundo

contou-me Surdo, já no interior da residência, perceberam que estavam em

uma espécie de depósito com centenas de garrafas deitadas, deduzi se tratar

de uma adega de vinhos, mas ele não soube me responder.

Pois bem, os dois juntos caminharam pelos corredores da enorme

propriedade, desvendando cada aposento. No abrir de portas, agiam com

extrema cautela e, percebendo o caminho livre, entravam. Estando no interior

da casa, a festa foi feita.

Ainda com muito cuidado, procuraram por qualquer coisa que os

agradasse. O primeiro perímetro averiguado por eles, após a adega, segundo

nosso amigo, que de surdo nada tem, assemelhava-se a uma sala de cinema,

o seguinte foi um enorme salão com mesas e depois havia um bar. Passaram

por um quarto desocupado, sem muito luxo e por um quarto com pessoas

dormindo, provavelmente esse era dos empregados. Disseram-me que nada

viram que pudesse agradar e, mesmo com o ambiente à meia luz, a janela

estava aberta e a lua cheia refletia seus brilhos noturnos para o interior,

puderam ver que não era o agressor dormindo.

Após isso, entraram em outros corredores. Foram à cozinha, onde

se alimentaram muito – nessa parte da história, Mudo se empolgou. A cada

parte que Surdo me contava, ele me transmitia, quase que simultaneamente,

os sinais que permitiam ao Mudo participar da compreensão do assunto. Fez

gestos de glutão e, pelo que entendi, muita coisa foi parar em seu bolso para

depois. Surdo me disse que era chocolate, comeram muito chocolate naquele

dia, ou melhor, naquela noite.

No quarto das crianças não quiseram entrar, apenas se maravilharam

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Vidas quebradas: reflexos do crack

da porta com tantos ursos de pelúcia e brinquedos. Ficaram encantados

com tanta coisa, mas não mexeram em nada ali. Já no aposento do casal,

Surdo entrou e foi pegando o que entendia por objetos de valor; trouxe

um par de sapatos masculinos, a carteira e um celular. O casal dormia. Não

levaram muitos objetos, porém, a facilidade que encontraram para fazê-lo

transformou-os completamente naquela noite.

Ao sair dali, foram à procura de um ponto de drogas, onde venderam

os furtos para usar. Na carteira do cidadão havia uma quantia equivalente a

três salários mínimos, todo o dinheiro foi para o consumo do crack. Nova

transformação ocorreu-lhes. Até então, fumavam desbaratinadamente, vez ou

outra. Depois desse evento, passaram a fumar compulsivamente, a toda hora.

Estagnavam em um local por um tempo e furtavam diversas

residências. Escolhiam outro local e idem. Assim, novamente, percorreram

muitas cidades. No princípio da mudança, saíam a pedir, e as casas que não

os ajudassem tornavam-se alvos do desejo compulsivo. Depois de um tempo,

apenas decidiam os alvos, as escolhas eram feitas por diversos fatores – grau

de dificuldade, possível lucro e rota de fuga eram os mais influentes na decisão.

Especializaram-se. Tornaram-se adultos, e o consumo excessivo da

droga, aliado à má alimentação, não permitiu o desenvolvimento corporal

dos mesmos, por isso, tornaram-se homens franzinos. Os dois foram presos,

juntos, pela investigação da Polícia Civil. Suas estaturas e habilidades não

permitiam a prisão em flagrante. Foram filmados pelas câmeras de um

condomínio, já em idade adulta, e isso lhes rendeu alguns anos de reclusão.

Surdo continuou fumando crack. Mudo, no momento da entrevista,

falou-me em gestos que quase morrera de overdose. Sua interpretação foi tão

real e dramática, seu desespero era tão visível em seus olhos, que compreendi

quando Surdo me disse que o amigo havia dado um tempo.

Na malandragem é comum dizer que o malandro não para com um

vício, ele dá um tempo, mas, pelo que vi, Mudo parou, ficou com tanto medo

da morte que não usou mais desde então. Quando já estava terminando a

conversa, Surdo me disse que havia sido condenado por tráfico dentro do

sistema penitenciário, por isso, apenas Mudo estava ganhando o benefício da

progressão de regime.

47


Reginaldo Osnildo

Mais tarde, procurando entender como a justiça condenava alguém

deficiente, descobri que os dois foragiram-se da delegacia depois de presos,

isso fez com que fossem condenados à revelia.

Movimentei alguns palitos e consegui a liberdade para o Mudo.

Encaminhei-o a uma instituição especializada onde ele poderia aprender

a sobreviver honestamente na sociedade. Lá, conseguiu uma profissão e

encontrou pessoas com os mesmos problemas, ressocializou-se.

Para minha tristeza, meses após essa entrevista, Surdo foi encontrado,

no cubículo onde morava, suspenso pelo pescoço, com as pernas inertes. A

princípio, suicídio. Sei que Surdo não seria capaz de se enforcar, acredito que

ficou devendo drogas. Às vezes, um ligado ao outro. Infelizmente, nada posso

confirmar, são apenas especulações.

Uma vez encontrei Mudo na rua, ele estava acompanhado de uma

oriental muito linda, os dois sorriam e conversavam sem nada dizer, observei-o

de longe e sorri também. O pouco que consegui fazer por ele, foi muito.

Vez ou outra, ainda me lembro do que espalharam naquela parede. Sei

que fizeram errado, mas quando recordo começo a rir sozinha. E isso ocorre

com frequência. Ainda me dói o coração lembrar que não consegui ajudar

Surdo, que Deus o tenha em bom lugar!

No Brasil e no mundo existem muitos Surdos que ouvem bem, e

mesmo assim, não querem escutar. Aconselhei-o a parar com o crack, não

me ouviu. Mudo, sem me ouvir, já havia aprendido. No Brasil e no mundo

existem muitos Mudos que querem parar com o vício, mas não sabem se

expressar, ou, quando o sabem, não os compreendemos. Se nos esforçarmos

um pouco, o que se faz de surdo não morrerá e o que não consegue falar, se

tornará alguém.

48


Vidas quebradas: reflexos do crack

Reintegração

Você amigo (a), já ouviu falar sobre centro de recuperação de

drogados? Se ainda não, por que o desinteresse? Se já tem conhecimento, o

que fez para ajudar? Já passou pela sua mente que um ex-usuário de drogas

pode ser um criminoso a menos nas ruas?

Talvez, se nos importássemos mais com os problemas que nos cercam e

nos empenhássemos em modificá-los, poderíamos caminhar mais tranquilos,

sem medo das balas perdidas, dos assaltos, até mesmo sem medo das drogas

aliciando nossos filhos, amigos e irmãos.

É compreensível o fato de quase sempre estarmos de mãos atadas

quando se trata da luta pela liberdade social. Você já pensou quão bom seria

se, neste exato momento em que você está lendo este livro, tivesse a pura

convicção que não existe crime ao seu redor?

Não amigo(a), não estou fantasiando. Extinguir a criminalidade por

completo é quase que impossível. Eu sei e você sabe disso. O homem é um

ser de natureza frágil e falha. Corruptível. Mas o que você tem feito para

colaborar na luta por essa “paz mundial”?

Talvez você pense que nada pode fazer, e talvez esse pensamento

derrotista esteja tão impregnado em sua mente que já faça parte do seu dia a

dia, mas, pergunto-lhe: e se a rua em que você mora for interditada? Você e

os demais moradores encontrarão um tempo para se mobilizar? Chamarão as

autoridades? Imprensa? E se o seu time de futebol local classificar-se para a

final do mundial? Reunirá amigos para torcer pelo mesmo objetivo? Pois é! O

crime e o crack incomodam mais que uma rua interditada e dão mais alegria

quando vencidos do que um título mundial de futebol. Nenhum de nós está

livre de se tornar vítima dessa catástrofe social.

49


Reginaldo Osnildo

Estou chamando sua atenção para esse assunto porque no decorrer

das oitivas, conversei com um rapaz e o caso dele me foi curioso. Achei

interessante expô-lo.

Caio Silveira é seu nome, usuário compulsivo de crack, foi preso

furtando a bolsa de mulher dentro de um hipermercado. Antes desse delito,

Caio nunca tinha efetuado semelhante ato. Nem ladrão ele é, mas foi preso no

desespero da abstinência. Perguntei-lhe:

– Pelo que você foi preso, Caio?

– Furto, senhora! – respondeu-me ele.

– O que furtou? – insisti.

– Uma bolsa feminina. – concluiu ele.

– Por quê? – tornei a insistir.

Entristecido, ele me respondeu com lágrimas tentando escapar de

seus olhos:

– Faltou-me apoio, senhora.

Indaguei-lhe qual o apoio que ele esperava encontrar e disse-lhe

que ficasse à vontade em falar, que, na medida do possível, iria ajudá-lo. Foi

quando ele contou-me:

Senhora, antes de ser preso, eu estava internado em um

centro de recuperação. Desde os dezessete anos que fumava

essa droga maldita...

Na época da entrevista, Caio estava com trinta anos, era um rapaz

forte, mas sua aparência nos passava uma noção de idade acima dos quarenta.

A droga acabou com ele.

Jamais havia roubado uma agulha sequer de alguém. Em

compensação, todo dinheiro que conseguia, proveniente do

meu suor, ia para o consumo dessa.

Um belo dia... Belo entre aspas, senhora. Força de

expressão, a senhora sabe, né? Para o usuário não tem dia

belo! Pois é, eis que um dia conscientizei-me de meus erros,

após refletir sobre minha vida resolvi abandonar o vício. Eu

50


Vidas quebradas: reflexos do crack

estava me acabando, aos poucos, eu acelerava meu processo

de envelhecimento, sentia-me enfraquecido e desnorteado,

meu psicológico estava totalmente abalado e já havia perdido

todas as pessoas que me amavam. Perdi não senhora, troqueios

pelo vício.

Nessa crise de identidade que enfrentei, criei forças e

optei pela mudança. Saí à procura de centros de recuperação

especializados, até os de menos aptidões me seriam de grande

auxílio. Penei muito, percorri estados, senhora. Precisava de

um apoio, de uma palavra amiga, e vamos e viemos, como está

difícil conseguir isso nos dias atuais.

Mas consegui. Aqui perto encontrei uma casa de

apoio aos dependentes químicos, havia alimentação, me

forneceram roupas, estudos, ensinam profissões das mais

variadas: marcenaria, olaria, serralheria, jardinagem etc. Tratase

de um ambiente administrado por uma organização não

governamental empenhada na ressocialização. O trabalho dos

internos e as doações feitas por pessoas de boa vontade, que

ainda acreditam em um mundo melhor, quitam os custos da

manutenção.

Após seis meses internado, tornei-me o mais antigo dos

que ali estavam para se reabilitar. Vi muitos chegarem, trazidos

por seus pais ou amigos, e não permanecerem dias. O local era

um campo aberto, mais precisamente um sítio, não havia muros,

não me sentia preso, pelo contrário, jamais me senti tão bem

em minha vida. Tornei-me monitor, não estava sendo tratado

como ex-usuário, e sim como um novo ressocializador. Sentiame

orgulhoso, era um exemplo vivo de recuperação.

Mesmo recebendo muitos elogios dos paraninfos

e filantropos que ali iam para tomar conhecimento dos

resultados, eu não me sentia totalmente livre do vício. Sabia

que não estava preparado, é fácil você ficar afastado por um

tempo da droga e se recuperar fisicamente, o difícil é você

deparar-se com ela e vencê-la. Sinceramente, senhora, tenho

medo do crack.

51


Reginaldo Osnildo

O que me abalava no internamento era ter a certeza de

que não poderia vencê-lo. Com muita luta, estava conseguindo

me dominar, até que...

Nesse momento, Caio chorou. [narrador]

... fecharam a clínica e nos colocaram para fora com tudo.

Fiquei abismada e perguntei: [narrador]

– Quem fechou?

– A prefeitura, senhora. – respondeu-me.

– Mas por que fizeram isso? – indaguei, inconformada.

O porquê, ao certo, não sei dizer. Acontece que surgiu

um grupo de engravatados, acompanhados da polícia, estavam

com uma ordem de despejo e falaram para o encarregado da

clínica algo sobre reintegração de posse. Até acredito que fosse

possível que o terreno fosse público, talvez um erro no cartório,

sei lá. Não é minha especialidade.

Uma coisa eu sei, senhora, ali nenhum interno estava

sendo sustentado pelo governo ou prefeitura, fosse o caso. A

questão é que não estava rendendo lucros para o “leão”. O

que não dá lucro, hoje em dia, é considerado perda de tempo.

A senhora consegue me compreender? O governo municipal

não investia nesse tipo de iniciativa e impediu quem estava se

empenhando.

Veja bem, senhora, analise minha situação: saí de meu

estado e cidade natal em busca de melhores condições de vida.

Encontrei, depois de muito sacrifício e procura, um ambiente

onde podia me regenerar, meus dias foram preenchidos com

muita paz e sabedoria. Aos poucos fui acreditando em minha

reabilitação, e, aos poucos, adquiri confiança, fiz novos amigos

e planejei expectativas para meu futuro. Tornei-me novamente

alguém, nasci de novo.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Quando fecharam o centro de recuperação, juntamente

com os outros internos, fui largado ao relento. A propriedade

foi destruída depois de todos os móveis e eletrodomésticos

terem sido jogados para fora. Das pessoas que estavam ali para

tratarem seu vício, um pouco mais da metade morava por perto,

os demais eram de outros municípios ou estados, assim como

eu. Desses, quase todos tinham para onde retornar, exceto eu e

mais dois, que fomos recolhidos nas ruas por almas bondosas.

Muitos, nesse dia, não foram para seus lares.

Consegui um lugar para passar algumas noites, aceitei

só por aquela em questão. No dia seguinte, pus-me a caminhar.

Esse companheiro que me apoiou nesse momento difícil era

interno também, já havia passado por ali várias vezes e nunca

conseguiu se controlar.

Esse era meu maior medo naquele momento. Acabei

cedendo. Ele chegou, apareceu com a droga mortal e... Boom!

Usei.

Por essa razão, saí novamente a caminhar sem rumo.

Fiquei tanto tempo me purificando espiritualmente, trabalhando

meu psicológico e acabei sendo derrotado. Depois de ter

caminhado um pouco, veio a fissura, uma vontade incontrolável

de consumir novamente. Vendi tudo ou, melhor, o pouco que

possuía. Estava desesperado em um curto espaço de tempo.

Com trocados insuficientes para comprar outra pedra,

entrei no hipermercado, onde fui preso. Minha intenção não era

furtar, mas, sim, comprar cigarros e algo que pudesse mastigar.

O cigarro eu solicitaria para a atendente na hora de sair, o

alimento procurei pelos imensos corredores.

Pelos corredores, minha mente trabalhava em função do

crack, fiquei muito tempo sem usar, mas o fato de ter consumido

novamente me retransformou. Eu queria fumar, precisava,

meu corpo pedia, minha mente gritava por mais uma “bola”.

Enquanto minhas pernas prosseguiam e meu coração pulsava,

meus pensamentos estavam fora do corpo, estava mecanizando

meus gestos.

53


Reginaldo Osnildo

Avistei aquela bolsa! Nunca havia roubado antes, mas

sabe como é o vício, senhora? É, talvez não saiba. Espero

sinceramente que não. Estar viciado nessa droga maldita é

não controlar os próprios instintos. Assim como os veículos

só funcionam com combustíveis, a pessoa passa a depender

do crack para prosseguir vivendo. Ele domina suas ações, você

passa a querer o crack de qualquer forma, a qualquer custo, toda

hora. A vida se movimenta em torno daquele intenso desejo e

nada tem mais valor. O valor supremo torna-se o crack.

Pois bem, senhora, quando eu avistei aquela bolsa sobre

o carrinho de compras parado no meio do corredor, tive a

impressão que ela me chamava. Não medi as consequências, na

realidade, só imaginava a quantidade de drogas que conseguiria

fumar. Sabe quando ocorre nos desenhos infantis de algum

personagem cobiçar algo e ver na situação uma oportunidade

de ganhar dinheiro, aparecendo cifrões em seus olhos? É, acho

que nos meus brilhavam montanhas de pedras de crack.

Não consegui me controlar, fui impulsivo, a droga

me controlava a distância, tornei-me uma marionete dessa

epidemia. Saí correndo do estabelecimento comercial com

a bolsa debaixo do braço, não consegui disfarçar que estava

roubando. Sabia que estava fazendo errado, sentia que todos

me olhavam, mas a droga me dominou por completo.

Caio chorou novamente.

Fui preso no estacionamento, em fuga. Na verdade, dei

apenas alguns passos para fora do hipermercado. Quando me

pegaram, me bateram muito. Agora estou aqui, senhora, na sua

frente. Eu tentei, Deus sabe que tentei. Se pudesse, acredite,

parava de fumar. Preciso de ajuda, senhora, e rápido. A senhora

consegue me internar?

54


Vidas quebradas: reflexos do crack

Consegui. Caio Silveira foi transferido, depois de quarenta e cinco

dias, para uma clínica particular, por ordem judicial, após atenderem minha

solicitação. Quando estava saindo de transferência, fez questão de mandar-me

um recado, estava escrito assim:

Muito obrigado por ter me auxiliado, senhora.

Não se esqueça daquele projeto, faço questão que

meu depoimento sirva para alertar muitas das tantas

pessoas que estão se perdendo nesse vício. Para

aqueles que estão usando, que abandonem. Para

aqueles que nunca usaram, que nem pensem em

fazê-lo. Espero que consiga alertá-los. Conte comigo!

Novamente agradeço. Fique na paz de Nosso Senhor

Jesus Cristo!

Caio Silveira.

Que a paz esteja com você, Caio.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Soldado usuário

Surpreendi-me com o primeiro que entrevistei após o almoço,

tratava-se de um ex-policial e estava preso por tráfico de drogas. Enquanto

aguardava por ele, sem saber qual sua condição, refletia sobre a última

conversa que tive pela manhã. Fiquei pasmada com a crueldade relatada por

um soldado do tráfico. Isso estava na minha mente, ardia em brasas.

Fazia anotações e raciocinava, enquanto a porta de meu escritório

temporário estava aberta. No refeitório solicitei ao Brutamontes que me

trouxesse o próximo detento da lista assim que estivesse disponível para

fazê-lo. Aguardei. Em meio a tantos pensamentos conflituosos sobre assunto

tão complicado, que relatarei no próximo capítulo, vi uma cena que confundiu

ainda mais meus pensamentos.

Alguns minutos após ter me sentado e recomeçado minha análise,

o agente prisional surgiu. Trazia consigo um homem troncudo e de bigode

volumoso. Sua cara era carrancuda e seu olhar desconfiado. Essa figura estava

sem algemas e falava com o funcionário em um tom de muita liberdade. Antes

de retirar-se, e essa foi minha surpresa, o agente prisional Brutamontes bateu

continência ao preso e esse lhe disse:

– Dispensado, soldado!

O homem era um ex-capitão da polícia. Não é necessário dizer qual

era seu batalhão, até porque de nada nos seria útil. Ele, quando em serviço,

combatia o narcotráfico. Irei denominá-lo por sua antiga patente, Capitão.

Aliás, era assim que era chamado pelos presos e pelos agentes prisionais, esse

era o motivo da continência e o da minha surpresa.

Capitão contou-me que se especializou em manusear armas e

investigar quadrilhas do tráfico. Um ótimo atirador enquanto profissional

a serviço da sociedade. Por ter um bom diálogo e facilidade de se infiltrar,

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Reginaldo Osnildo

constantemente negociava com os traficantes antes de prendê-los.

Geralmente, fazia-se passar por varejista nesse ilícito comércio,

por negociante de armas e, certas vezes, por ladrão. Sempre à frente dessas

operações, realizava-as com sucesso, nunca precisou efetuar um tiro.

Tornou-se um mito.

Certa vez, assumiu um caso especial por sua dificuldade em elucidação.

Nesse caso, o Capitão precisou se passar por usuário de crack. O crack nessa

época, disse-me ele, estava surgindo das profundezas.

– Provavelmente, dona Maria, em outro local já existisse, mas no meu

batalhão surgiu como novidade. Sabe como é, dona, tudo que não se conhece,

não se deve tocar. Um bom policial investiga antes de agir. Foi o que fiz!

Segundo ele, esse foi seu erro fatal.

Dona Maria, eu aluguei um quarto em uma pensão da

comunidade onde estava investigando e consegui um serviço de

servente de pedreiro, informalmente. Decidi me ocupar desse

caso por, no mínimo, dois meses. Trabalhei para pedreiros do

bairro e, aos poucos, fui me enturmando. Passei a frequentar os

bares que eles frequentavam e a jogar futebol com esses novos

companheiros. Criei uma vida paralela à minha realidade, se é

que me compreende. Conforme avançava um passo em direção

aos meus alvos, ali permanecia.

Através dos pedreiros, conheci usuários de cocaína e

me envolvi. Saíamos, no início, juntos para baladas noturnas

e boates adultas. Desses, conheci uns metidos a malandros.

Sabe aqueles palermas que andam armados na comunidade

para impressionar as meninas ou oprimir os humildes? Esses

eram assim! Eles que me apresentaram o crack. Colhi algumas

amostras e levei para a análise. Fingi-me usuário e me envolvi

em outro grupo. Era nesse que eu queria ter chegado.

Passado mais de três meses dessa tal investigação, eu

estava no meio dos noias, consumidores. Na primeira semana,

me obriguei a comprar droga no ponto de venda, a tão falada

boca de fumo. O esquema era complexo e precisava ser

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Vidas quebradas: reflexos do crack

analisado minuciosamente. Certa vez, um soldado do tráfico,

armado, desconfiou de mim; para não morrer, fumei uma na

frente dele e ele me liberou. Passei a me vestir mal e a fumar

uma todas as noites. Erro fatal.

Naquela primeira pedra de crack que fumei, me

senti muito amedrontado pela situação que vivenciei. Uma

adrenalina fora do comum me apoderou, peguei gosto pela

tal. Nos dias seguintes, com um desejo ardente, passei a fumar

incessantemente, minha razão tentava me dizer que era puro

ofício. Tentei me enganar. E por um tempo consegui.

Efetuamos aquela enorme prisão com sucesso, ninguém

foi ferido e muita coisa foi apreendida. Pensei, naquele

momento, que o esforço valeu a pena. Fui muito aplaudido

por meus companheiros pelo brilhante desempenho que

obtive, porém, o preço foi caro, minha liberdade. Tornei-me

dependente sem saber.

Depois dessa firma ilegal, surgiram outras com o mesmo

propósito, e outras, e mais ainda. Sempre em nome da lei,

efetuei prisões e mais prisões.

Certa vez, abordei um usuário, ele carregava algumas

pedras de crack nas mãos. Dei-lhe uns puxões de orelha, uns

gritos no ouvido e dispensei-o. Era um humilde trabalhador

sofrendo pelo vício. Confisquei sua droga e coloquei no portaluvas

da viatura, ali ela permaneceu. Nesse dia, no fim de meu

turno, levei meu parceiro para casa e fui embora com o veículo.

Minha esposa me aguardava com o alimento sobre a mesa.

Chegando a minha casa, parei a viatura no lado de fora,

em frente ao portão, mexi no painel para ver se não havia

esquecido nada; fui direto ao porta-luvas. Inconscientemente

eu estava sendo comandado por algo. Peguei-as. Não cheguei

nem mesmo a entrar em meu lar. Fumei todas e saí muito louco

a procurar por mais. No outro dia, dei uma boa desculpa para

minha esposa e tudo ficou bem. Hoje ela não está mais comigo.

Não consegui resistir, dona Maria. Quando eu as vi,

tremi. Meu corpo pediu por elas. Meu pensamento dizia não. O

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Reginaldo Osnildo

desejo foi mais forte. Eu sabia que não devia. Sempre sabemos,

dona, não podemos experimentar a primeira. Depois de usar

pela primeira vez não adianta correr, não terá mais onde se

esconder, ela te segue por todos os lugares. A droga se une aos

seus pensamentos e passa a controlá-los. Ela torna-se parte de

seu ser, o seu corpo torna-se escravo dela. Ela nos faz acreditar

que é a própria essência de nossa existência, e que precisamos

consumi-la para melhor viver. É uma realidade imensamente

triste e é extremamente difícil resistir.

Veja bem, dona Maria, eu não prendia mais os pequenos

traficantes, confiscava suas drogas para usar. Os grandes

traficantes me pagavam propina e eu consumia mais. Outras

drogas, eu apreendia e levava para amigos que fiz no submundo.

Montei um negócio paralelo.

O crack me transformou, relaxei nas investigações e fui

afastado temporariamente por distúrbios de personalidade.

Agiram errado, passei a ter mais tempo para fumar. Dominei

pontos de droga e treinei recrutas para que roubassem os

concorrentes, rivais. Tornei-me um deles, com apenas uma,

cheguei ao ponto de me tornar o que tanto lutei para vencer.

Tornei-me o inimigo da sociedade quando fumei o crack pela

primeira vez.

Quando percebi que estava sendo investigado, deixei de

me envolver pessoalmente e deixei meus recrutas administrando,

acompanhava tudo de longe. Meu telefone foi grampeado, as

ligações que recebia e efetuava foram responsáveis por minha

prisão. Sabe quem comandou a operação que me prendeu,

dona? Meu antigo parceiro.

Rastreando meus telefonemas, chegaram ao local

onde eu receberia o dinheiro de meu gerente, meu braço

direito no esquema criminoso. Montaram uma operação

tão bem estruturada que eu não seria capaz de imaginála

até aquele momento. Sabendo de minhas habilidades e

capacidades pensaram que eu fosse reagir. Sempre fui uma

pessoa de bem.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Aquela pedra de crack que fumei, naquela noite, diante

do soldado do tráfico, foi uma sementinha de maldade plantada

em meu coração. Conforme eu fumava, me tornava mais e mais

espiritualmente cego. Inverti valores por completo. Tornei-me,

com o perdão da palavra, um lixo de pessoa.

Somente no momento que me deram voz de prisão é

que percebi aonde havia chegado e no que tinha me tornado,

não me agrediram e não reagi. Pior que isso, senti em seus

olhares o sentimento de pena para comigo. Eles, sem nada me

dizer, me disseram o quanto eu havia me tornado um fracasso.

Minha colaboração foi plena, entreguei tudo o que tinha e

assumi minha participação. Sou homem, dona, precisei arcar

com meus erros. Fui exonerado.

Perguntei:

– Você se arrepende disso tudo?

Respondeu-me com outra pergunta:

– Como assim, dona?

Reformulei minha pergunta:

– Você se arrepende de ter cometido crimes?

Eis que:

– Me arrependo de ter fumado a primeira pedra de crack, junto dela

veio o pacote completo da desgraça. Se eu pudesse voltar atrás... Como não

posso, resta-me recomeçar. Você vai me ajudar nisso, dona?

Conclui:

– Tranquilize-se. Dependendo de mim, você recomeçará sua vida em

breve. No que eu puder auxiliar, assim o farei. Se você fosse dizer algo para

alguém que nunca usou o crack, o que diria?

Inconscientemente, o projeto deste livro estava se formando na minha

mente, essa pergunta que fiz me faz pensar que eu premeditava esse projeto.

Incrível, mas não sonhava com este livro até então.

– Diria o seguinte: amigo, ou amiga, você sabe que se amarrar uma

enorme pedra grandiosa no corpo e mergulhar no oceano irá morrer.

Concorda? Pois bem, a menor pedrinha de crack, quando consumida uma

61


Reginaldo Osnildo

única vez, que seja, te leva a um lugar mais profundo que o ponto mais

obscuro desse oceano. Se não quer chegar ao fundo desse poço, não use crack!

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Soldado do morro

Depois da conversa que tive com o Playboy, que Deus o tenha, algo

em mim ordenou para que gravasse todas as seguintes conversas, ainda bem

que isso eu fiz. Na última entrevista, antes do horário de almoço, entrou em

minha pequena caixa de fósforos, usada como ambiente temporário, um

homem de muletas; ele não possuía metade da perna esquerda e caminhava

com dificuldades. Sentou-se. Comecei:

– A conversa será gravada, tudo bem?

Ele nada disse, apenas acenou sua cabeça afirmativamente.

Depois desse seu silêncio, iniciou-se a mais terrível conversa que já

tive com um ser humano, acompanhe esse ping-pong de perguntas e respostas

e tire suas próprias conclusões:

– O que aconteceu com sua perna?

– Tiroteio.

– Pelo que você está preso?

– Homicídio.

– Está muito tempo preso?

– Anos.

– Tem família?

– Não!

– Pelo que matou?

– Guerra.

– Se arrepende?

– Não!

– Usa drogas?

– Crack!

– Muito tempo?

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Reginaldo Osnildo

– Bastante.

– Por que não larga?

– Impossível.

– Por quê?

– Gosto.

– Tem para onde ir?

– Não!

– Para onde vai?

– Mundão.

– E depois?

– Fumar.

– Você quer fumar ainda?

– Sim!

– Está pensando nela agora?

– Acertou.

– Com que dinheiro vai comprar?

– Trabalhando.

– Tem profissão?

– Segurança.

– Já trabalhou onde?

– Boca.

– Boca? Que boca?

– Tráfico.

– O que fazia?

– Proteção.

Marcas de tiros em seus braços eram visíveis.

– Foi lá que recebeu os tiros?

– Sim.

– Teve alguma morte?

– Duas.

– Quem foram? Pode dizer?

– Polícia.

– Por quê?

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Vidas quebradas: reflexos do crack

– Mistério.

– Essa sua guerra começou por quê?

– Dívida.

– Dívida?

– Cobrança.

– Vieram cobrar dinheiro seu?

– Cobrei.

– E aí?

– Matei!

– Por dinheiro?

– Vingança.

– Vingou o quê?

– Honra.

– Foi desonrado?

– Muito.

– Como?

– Roubado.

– O que te roubaram?

– Crack.

– Matou com arma de fogo?

– Facada.

– Quantas?

– Uma.

– Foi acidental?

– Não.

– Por que matou, então?

– Vício.

– Você não fala mais do que uma palavra?

– Falo.

– E por que não me explica melhor?

– Dor, senhora.

Dito isso, ele se levantou e ergueu sua blusa. Seu corpo tinha dezenas

de perfurações cicatrizadas, todas as lesões foram ocasionadas por projéteis

65


Reginaldo Osnildo

de armas de fogo. Sentou-se e bateu com a muleta no maxilar inferior e disse:

– Platina.

Desconversei, me senti constrangida com a cena que presenciei,

mesmo sabendo seu nome, prossegui:

– Não perguntei seu nome.

– Lenilson.

– Do quê?

– Santos.

– Algo mais?

– Castro.

– É só?

– Só!

– Quer ajuda, Lenilson?

– Sim.

– O que quer?

– Liberdade.

– Você me dá sua palavra de que não vai mais cometer crimes?

– Não.

– Por que não?

– Fumo.

– Você fuma? O que isso te faz?

– Descontrole.

– Por quê?

– Sobrevivência.

– São muitas guerras?

– Muitas!

– O que espera do futuro?

– Nada.

– Como assim, nada? Não pensa em ser melhor?

– Não.

– Não desista do mundo. A sociedade pode ajudá-lo, você não crê

nisso?

– Não.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

– Por quê?

– Realismo.

– Você não acredita em mim?

– Não.

– No que acredita?

– Nada.

– Toma remédios?

– Sim.

– Para quê?

– Distúrbios.

– Que tipo de distúrbios?

– Bipolar.

– Você tem isso?

– Não!

– Então, por que toma?

– Substitui.

– Só pensa em drogas?

– Só no crack, senhora.

Quando ele me disse essas últimas palavras, emudeci. Não consegui

mais falar, meu raciocínio paralisou. Anotei algumas palavras em sua ficha e

dispensei-o. Fui almoçar.

No refeitório, junto dos meus companheiros de profissão, perguntei o

porquê de aquele homem estar preso. Contaram que ele abriu o abdômen de

seu amigo. Esse havia engolido pedras de crack para não dividir com Lenilson,

e foi assassinado por ele, que queria fumar a qualquer custo. Desde então,

Lenilson ficou assim.

Contaram que Leni, como era conhecido em sua comunidade, era

soldado do morro. Matava a pedido do traficante local. Era muito eficiente

nisso. Ainda menor de idade, executou entre vinte e trinta pessoas; o número

é incerto. Boatos, espalhados pelo vento, dizem que é muito mais do que isso.

A maioria foi para cemitérios clandestinos ou cremados clandestinamente.

Soube que os tiros que Leni recebeu foram em um duplo homicídio.

Ele estava com o traficante e outro soldado quando a polícia invadiu a casa, os

67


Reginaldo Osnildo

dois foram mortos, mas Leni sobreviveu. Não se sabe como, mas os policiais

dessa operação desapareceram. No dia dessa conversa Leni completava doze

anos preso; para não mandá-lo diretamente para a sociedade, solicitei uma

transferência para ele terminar sua pena em um hospital psiquiátrico. Ainda

hoje essa conversa mexe com minha mente, é impossível prever até que ponto

o crack pode levar alguém.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Mais um José

Olhando em seus olhos, perguntei:

– Seu nome?

Respondeu:

– José Raimundo Correia.

Continuei:

– Idade?

Continuou:

– Vinte anos.

Respirei fundo e insisti nas perguntas:

– Por que está preso, José?

Com a maior calma do mundo, ele me disse:

– Tráfico e porte de arma.

Tentei pescá-lo:

– O que você possui?

– Como? Não entendi. – me disse confuso.

Reformulei a pergunta:

– O que você conquistou com o tráfico?

Sua resposta me trouxe muita reflexão:

– Eu vendia para sobreviver, pagar contas de água, luz e aluguel. Moro

com minha mãe, meu pai me abandonou quando eu ainda era pequeno. Um

dia eu cansei de ver minha mãe sofrendo para me sustentar. Comecei a pegar

pequenas quantidades. Repassava aquela cota diária no beco e ia para casa.

Tendo o dinheiro do patrão na mão, tá tudo certo, tranquilidade total.

– E quando não paga o patrão? – perguntei.

– Aí, o bicho pega! Já vi muitos morrerem ao meu lado. Sem contar os

que não morreram do meu lado, mas sempre me acompanharam na correria,

69


Reginaldo Osnildo

e morreram. É frequente, pequenos traficantes usam a droga e ficam devendo

por isso. Aí, é sem chance! Morre pelo crack! Tem aqueles usuários que, depois

de perderem seus empregos e familiares, não conseguem mais dinheiro para

fumar. Aí eles vendem para manter o vício. Esses geralmente não roubam.

Mas tem aqueles que, depois de perder tudo, caem na ladroagem!

– Você já roubou? – insisti.

– Eu não uso crack, sobrevivo dele, não quero viver para ele. Já vi

usuário fazer coisa feia por causa do crack. Sem falar na prostituição. Vi muitas

meninas inocentes se perderem nas esquinas da vida por essa droga maldita.

Usou uma, já era! Perdeu!

– Por que estava armado? – perguntei.

Ele foi sincero:

– Proteção!

Tentei me aprofundar:

– Se protegia de quem?

Sua resposta foi vazia:

– De tudo e de todos!

Estava perdendo a conversa, ele pareceu não gostar de detalhar, fiz

uma pergunta simples e comum:

– Você tinha paz?

– Nunca se tem paz nessa vidinha! Ou você se cuida muito bem, ou

morre. O usuário pode te matar para usar a droga. O traficante do outro beco

te mata se vender menos que você. Hoje em dia, por incrível que pareça,

tem até policial matando, não são todos, mas tem sempre um ou outro mau

caráter fardado. No submundo, o mais ligado ainda corre o risco. Imagina se

eu ia dormir no ponto. Queria viver, por isso tinha arma!

– Você tem pena dos usuários? – tentei ver seu interior.

– Cada um escolhe o seu caminho. O que eu posso dizer é: não use. Se

eu não vender, tem quem venda. Eu preciso me alimentar e o que não falta é

comprador.

Ainda analisando-o, perguntei:

– Você não pensa em trabalhar?

Ele se indignou:

70


Vidas quebradas: reflexos do crack

– Trabalhar no quê? Cadê a oportunidade?

Para acalmá-lo, mostrei preocupação:

– É tão difícil assim?

– Não terminei meus estudos. Sei que um pouco é culpa minha, mas

se o governo não me deixasse passando fome, eu teria continuado a estudar.

Desde muito cedo, saía para vender balas na sinaleira, entreguei panfletos e

capinei quintais pela comunidade. Raciocine: desde pequeno eu estava sendo

excluído. Enquanto famílias tinham o que comer e podiam colocar suas

crianças nos colégios, eu ia pra peleja. O que aconteceu? Fui marginalizado!

As crianças, com melhores condições que as minhas, cresceram e estão com

os melhores empregos. Para ser sincero, estão com quase todos os empregos.

Enquanto eles se especializavam, eu brigava por um prato de comida. Cansei!

Minha mãe começou a fraquejar. Sabe como é a idade, né?

Estava comovida, mesmo assim prossegui:

– Você tem irmãos?

– Graças a Deus que não! Já pensou? Mais um nesse sofrimento.

Quando minha mãe ficou doente, precisou de remédios. Aonde que eu ia

arrumar dinheiro? Foi a pergunta que eu me fiz. Procurei o traficante; sabe

aquele que domina um território? Fui até ele. Expliquei minha situação e

pedi ajuda. Não fui aliciado, eu o procurei. Muitos jovens de hoje procuram

a malandragem para se enturmar, ganhar nome ou dinheiro. Muitos nem

precisam, mas querem estar na moda, usar roupas boas, frequentar as baladas

frequentadas por todos e tudo o mais que os outros fazem. Eles são iludidos

pela falsa sensação de poder. Sinceramente! Se eu não precisasse, não estaria

nessa vida. Me diz: quem vai me ajudar? Você?

Ele foi sarcástico, mas eu estava decidida:

– Eu posso te ajudar!

– Como me ajudaria? – perguntou ele, surpreso.

Sabia que podia trazê-lo para o lado do bem, ele não era uma má

pessoa. Indaguei:

– Do que você precisa mais?

– Preciso que ajude minha mãe! Entrei nessa para ajudá-la, agora ela

está lá, sozinha. Está passando mais dificuldade ainda. Sabia que trabalhando

71


Reginaldo Osnildo

aqui na cadeia eu consigo mandar dinheiro para ela? Loucura! Se eu tivesse

conseguido um trabalho assim, não tinha sido preso, mas foi só na cadeia que

eu consegui um emprego. Você acha que a vida é justa?

– Sim, eu acho! – respondi, bambaleando.

– Achar não é ter certeza. Se você tem dúvidas, imagine eu? – ele disse

isso com uma tristeza no olhar.

Fui direta:

– Você quer mudar de vida, José?

– Se eu tivesse um emprego decente, com que pudesse ajudar minha

mãe e sobreviver humildemente, não mexeria mais com drogas. Acredite, se

eu trabalhasse honestamente, seria um traficante a menos nas ruas. Você, que

faz parte da sociedade, se importa com a minha sobrevivência?

Respondi:

– Eu me importo, José. Vou te ajudar!

Desacreditando, ele me disse:

– Até agradeço. Não vou é me iludir. Para a sociedade, eu sou apenas

mais um José...

Consegui com que o serviço social da comunidade onde José morava

desse auxílio a sua mãe. Providenciei livros didáticos para ele e encaminhei

um ofício a um Centro Estudantil de Educação, explicando sua situação e

pedindo ajuda. Para sua liberdade, José ganhou uma bolsa de estudos, com

materiais inclusos, em um curso profissionalizante. Conquistei seu emprego

para quando saísse e larguei tudo em suas mãos. Coube a ele a escolha.

E ele escolheu certo. Saindo da cadeia, foi direto ao emprego e

confirmou sua vaga. Dias depois, passou a frequentar o cursinho e, aos poucos,

adquiriu gosto pela leitura. Vez ou outra ele me escreve cartas, respondo-as

elogiando seu desempenho e dizendo que continuo acreditando nele. Ele

tem meu número de telefone e não mora tão longe. Escreve as cartas para

mostrar o que tem aprendido. Aprendeu muito.

Em uma de suas cartas, escreveu-me isso:

72


Vidas quebradas: reflexos do crack

Querida Maria Pascoalina,

Muito obrigado por ter acreditado em meu potencial.

Minha mãe melhorou muito, a alegria que

ela sente por me ver longe da desgraça a curou. Se

existisse no mundo mais pessoas como você, interessadas

em guerrear contra o crack, pacificamente,

com sabedoria e amor, o crack não teria mais

valor. Se uma Maria, todo dia, ajudar um José em

situações semelhantes, o mundo se tornará melhor.

Perdoe-me por não ter acreditado antes em sua benevolência,

espero que compreendas as infinitésimas

vezes que fui ignorado e menosprezado pela sociedade.

Só mesmo uma alma como a sua, para usar o

amor ao próximo com tanta simplicidade e eficiência.

Agradeço a Deus por ter conhecido você. Minha

mãe lhe agradece muito, manda um abraço muito

carinhoso e deseja muita paz e harmonia para você

e seus familiares.

Carinhosamente, de seu amigo,

um novo José.

* Fiquei pensando, dona Maria... Quantas vidas deixaram

de ser prejudicadas com a minha mudança...

Você imagina?

Assim como José, também penso nisso. Infelizmente, eu não

possuo a resposta. E você? Tem noção de quantas vidas deixam de ser

prejudicadas quando ajudamos um José qualquer?

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Vitór... ia

Vitória, na realidade, era o nome fictício de Vitor Rhamia. Esse, ou

essa, se encontrava preso por assalto. Quando Vitória me apareceu aquele

dia, toda siliconada, de calças justas e camiseta mostrando o umbigo, não

acreditei. Realmente, veria muitas coisas ainda. Seu cabelo era raspado por

normas do complexo, esse era coberto por um lenço rosa, combinando com

sua calça e detalhes da camiseta. Figura surpreendente essa Vitória. Já foi logo

me perguntando:

– Qual é o babado amiga?

Sorri e fiquei a observá-la.

– Gostou? Me custaram os olhos e não foram os da cara. – disse-me

ela, em pé, referindo-se aos seus seios e nádegas.

Pedi-lhe educadamente:

– Sente-se, Vitor, por favor!

– Não, menina, meu nome é Vitória. Já fui Vitor um dia. – retrucou ela.

– Desculpe-me! – sua espontaneidade me deixou sem jeito. – Sente-se,

Vitória, por favor.

– Obrigado, menina. – disse-me ela, sentando graciosamente.

– Me chame por Maria. – foi minha vez de retrucar.

– Tudo bem. – assentiu.

Iniciei:

– Pelo que foi pres...a?

Ela, sem perceber minha dúvida, respondeu suspirando:

– Assalto, Maria. Fui presa por assalto.

Prossegui:

– O que roubou?

– Faço programas, sou uma profissional do sexo, especialista do

75


Reginaldo Osnildo

amor, modéstia à parte. Saio com homens para conseguir dinheiro, preciso

sobreviver e sustentar meus vícios. Cada bofe que me procura... – suspirou.

– Não são todos os homens que são realmente homens. Em um desses

programas, assaltei o homem que estava me acompanhando. Sempre

carrego uma lâmina na boca, conhece essas giletes de barbeiro? Uma

dessas. Ele foi agressivo e resolvi assustá-lo, não tinha interesse nos seus

pertences. Modestamente, sou bem requisitada. Se eu te contasse alguns

dos meus amantes, cairia seu queixo! Pois bem, levei seus pertences pessoais

e, a alguns metros depois, joguei fora. Utilizei a lâmina, colocando-a em

seu pescoço, colada à artéria principal, dominei-o. Incrível como muitos

homens se transformam nessas horas.

Risadas sutis.

– Foi isso, levei o que tinha e saí andando. Fui presa num posto de

combustível. Aqui estou, simples assim. O susto me saiu caro. Mas tá bom,

logo acaba. Até fiz novos amiguinhos.

Risadinhas, novamente.

– Permite-me uma pergunta indiscreta? – insisti.

Ela me disse:

– Pergunte, menina. Desculpe... Maria.

Prossegui:

– Quando você... Sabe?

Ela sabia:

– Me transformei?

Confirmei:

– É! E por que essa escolha?

A culpa é do crack, Maria. Quando eu tinha lá pelos

meus dezenove aninhos, conheci essa droga. Ainda era Vitor,

um garotão bem apessoado. Gostava de meninas como você,

e tinha uma namoradinha. A droga consumiu-me tudo, perdi

coisas e pessoas. Ao recordar, me abala, sinto falta. Quando

perdi o amor de meus pais, me marginalizei. Passei a viver em

albergues públicos e casas de amigos. Troquei muita coisa por

essa droga.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Certo dia, quando não tinha dinheiro, me prostitui.

Fiquei algumas horas importunando o traficante local, queria a

todo custo fumar. Ele desceu suas calças e eu entendi o recado.

Fiz sexo oral nele, naquele dia, para fumar crack. Foi automático.

O crack manda mais nessas horas.

Frequentemente, quando não tinha dinheiro, voltava até

ele e repetia o ritual. O crack, Maria, o crack foi o divisor de águas

em minha vida. Em uma ocasião, quando esperava repetir o

ritual amoroso, fui surpreendida. Ele queria minha virgindade, se

é que me entende. O incrível é que barganhei só um pouco, cedi

por duas pedras de crack.

Feito isso, passei a viver somente nessa função. Esse

meu homem foi preso, me vendi para muitos outros depois.

Embarquei na vida de orgias, mas permaneci no crack só até

conhecer a Mãe.

A Mãe foi um travesti que me mostrou as manobras

desse mundo obscuro. Ensinou-me a caminhar, a me vestir

e me maquilar. Mãe era cafetina de um bando de meninas.

Enturmei-me com elas, todas eram travestis. Foram elas

que me livraram do vício do crack. Hoje, fumo só uma taba,

cigarro de maconha, de vez em quando pra relaxar. É meu

calmante natural. Geralmente as pessoas começam fumando

maconha e se perdem no crack. Eu comecei no crack e hoje

não o fumo mais.

Não aconselho maconha pra ninguém. Vício é vício e

faz mal sempre! Até mesmo nosso alimento diário, quando o

transformamos em vício, nos faz mal, imagine as drogas.

Estava muito curiosa e não resisti:

– Você não tem saudade de ser homem?

– Não, Maria! – respondeu-me ela, com convicção. – Adoro ser Vitória,

é um nome poderoso. Sou mais mulher que muitas mulheres e mais homem

que muitos homens. Maria, Vitória é p-o-d-e-r-o-s-a!

Gargalhadas.

77


Reginaldo Osnildo

– E esse silicone? – perguntei.

Eufórica, ela me disse:

– Ah! Você gostou, é?

Disse que admirava a coragem dela e ela prosseguiu sua narrativa.

Passei a trabalhar para a Mãe e a estudar, formei-me

em massoterapia. Antes da cirurgia, eu trabalhava dobrado.

Durante o dia, Vitor, nas noites, Vitória. Aprendi a economizar

e consegui o dinheiro necessário para a operação; de quebra

consegui, sem levantar suspeita, uns dias para me recuperar.

Sem que ninguém soubesse, viajei para outro estado e fiz a

cirurgia com o melhor no ramo.

Foi só colocar silicone, Maria. Multiplicaram-se dezenas

de vezes os meus amantes. Larguei a massoterapia e me tornei

profissional do amor, com horários marcados antecipadamente;

minha agenda vivia cheia. Se não fosse aquele homem ignorante,

eu já estaria na Europa agora. Estaria p-o-d-e-r-o-s-í-s-s-i-m-a!

Precisava perguntar:

– Se arrepende de ter usado crack?

– Sim! – sem pestanejar, ela exclamou.

Insisti:

– Mesmo acontecendo essa mudança radical em sua vida?

Ainda com firmeza e confiança, respondeu:

– Ainda assim, Maria!

Perguntei-lhe o motivo. Ela prosseguiu:

O usuário sofre muito, todos acusam e poucos

procuram entender. Quando o ser humano usa essa droga, não

tem controle total sobre suas atitudes. Geralmente é induzido

a fumar pelos outros, “os amigos”, aqueles mesmos “amigos”

que, depois de te verem na sarjeta, te abandonam e debocham

da tua situação.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Amigo de verdade faz o que a Mãe fez por mim, te

alerta, te ensina e te apoia. Depois que eu estava completamente

perdida, no fundo do mais profundo dos poços, agonizando, a

Mãe me ajudou a dar a volta por cima. Ela estendeu a mão e

me levantou.

Afinal, quem fuma o crack não vive, agoniza; a vida está

sempre por um fio. Se eu pudesse dizer algo aos que usam...

Pensando bem, para esses é mais difícil de dizer qualquer coisa.

Se eu pudesse dirigir minhas palavras a todo aquele que conhece

um usuário, seja o viciado homem ou mulher, pediria para que

o ajudasse. Uma simples conversa. Devemos lutar por eles,

mostrar que é possível uma vida nova. A vida é feita de altos e

baixos. Precisamos estender as mãos e ajudá-los a levantar.

Se minhas palavras pudessem chegar aos ouvidos

daqueles que estão pensando em usar, ou, ainda, no ouvido

daqueles que vão se deparar com essa droga na caminhada da

vida, diria primeiramente às meninas que o mundo está cheio de

homens lindos no puro suco da juventude. Digam não ao crack!

Não queiram ser o que eu vi por essa vida. Fumando crack, a

mulher perde o valor. Todos a desprezam, inclusive ela mesma.

Já vi amigas se venderem por uma raspa de cachimbo.

Sabe, Maria, quando fazemos brigadeiro e fica aquela doçura

grudada na panela? Já vi mulheres se venderem por algo

parecido, mil vezes pior para a saúde. Mulher tem que se

valorizar!

Sou Vitória porque larguei o crack! No ouvidinho dos

gatinhos, falaria bem suave, para enlouquecê-los, mas diria

umas verdades: se você não tem medo de nada na vida, garotão,

é o mais bonito e mais inteligente, e eu sei que é, por que se

perder no crack? Seja um homem vitorioso por não usá-la. Se

quiser entrar para o nosso time de p-o-d-e-r-o-s-a-s, não use o

crack, não é preciso! Procure a vitória dentro de você, sem crack,

e encontrará! Acredite nisso!

Você acha que eles se derreteriam com essa minha voz

sensual, Maria?

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Reginaldo Osnildo

Vitória aprendeu a lição da maneira mais amarga, ela não foi presa por

culpa do crack, nesse assalto, mas foi o crack que iniciou o molde do seu forte

temperamento.

A vitória é vivida com a vida. Os derrotados, como muitos usuários

assim são tratados, precisam de um incentivo para se igualar a Vitória.

Depois desse dia, não tardou em ganhar sua liberdade. O que anda

fazendo, não sei, mas seu pensamento é o certo.

Ajudar é a melhor prevenção. Todos merecem uma chance. E a vitória

pode estar em um simples gesto.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

O ban... ban... ban... bandido

Mencionei esta conversa no início da história do Surdo e do

Mudo. Trata-se da situação de um cidadão que domina o tráfico de

drogas da região, ele é o verdadeiro bambambã das pedras de crack.

Não vou citar suas características físicas por questão de segurança,

tanto minha quanto de meus familiares, assim como manterei seu

nome incógnito por esses motivos. Chamarei ele de Alguém.

Alguém domina toda a distribuição de crack na região, ele é o

fornecedor, o articulador e o general de todos os criminosos que trabalham

com a droga da morte.

Não citando seu nome e alguns trechos omitindo, eis parte da conversa:

– Você está preso por quê?

– Tráfico.

– Com que quantidade?

– Não fui preso com nada, tá me tirando pra idiota?

– De maneira alguma...

– É bom mesmo, eu lá sou homem de carregar prêmios? Fui preso por

gravações e filmagens.

Alguém é o topo da pirâmide, na sociedade clandestina, do submundo

das drogas. Começou nesse mundo paralelo ainda criança. Nessa idade,

permanecia nos pontos mais altos dos morros ou em becos estratégicos das

“baixadas”, com sinalizadores e foguetórios. Sua primeira função foi alertar os

traficantes da chegada de viaturas e gangues rivais.

Na época que Alguém era “olheiro”, vigia, dos pontos de drogas, o

crack não estava tão disseminado na sociedade e a criminalidade não era tão

compacta e complexa como nos dias atuais.

Na medida em que Alguém crescia, sua posição na hierarquia do tráfico

81


Reginaldo Osnildo

aumentava. Adolescente, tornou-se vendedor de pequenas quantidades, em

seguida, recebeu uma arma e tornou-se soldado.

O soldado do tráfico, geralmente, é aquele mais disposto, alerta e

inteligente. São escolhidos por sua tenacidade e coragem. Nem sempre

iniciam com conhecimentos de armas e táticas; no decorrer das experiências

criminosas é que adquirem, ou não, essa habilidade de guerrilha. Na falta das

qualidades necessárias ou de contingente baixo, qualquer associado pode

ser recrutado a soldado. Inclusive crianças. O soldado torna-se o defensor

da droga e dos pontos de venda. Alguns soldados tornam-se sanguinários e

são comumente designados para execuções e linhas de frente nas guerras do

tráfico.

Alguém se tornou cruel nos tempos de soldado da localidade onde

vivia, passou a ser o braço direito dos gerentes das bocas e dos chefões da

época. Fazia cobranças e efetuava pagamentos, conheceu toda a mecânica

do esquema ilícito. Ensinava os novos recrutas com as poucas táticas que

dispunha e algo mais que aprendera. Especializou-se em fazer lavagem

cerebral nos novos adeptos, conquistava-os com a ilusão de fama e poder.

Conforme os gerentes dos pontos de drogas foram sendo

presos, Alguém colocava seus recrutas de confiança para administrar.

Inconscientemente, Alguém estava se tornando o líder supremo.

Na briga pelos pontos de droga da região, os chefões de Alguém foram

mortos, morreram junto desses alguns aliados e recrutas. Alguém se tornou,

da noite para o dia, a voz mais forte da torre de comando. Era o que estava

mais alto na pirâmide hierárquica, além de ser o mais preparado para exercer

a função. Depois que Alguém assumiu o comando da distribuição das drogas,

trouxe o crack com força total. Em cada ponto de drogas sob seu comando,

espalhado na sociedade, foi distribuída essa droga mortífera. Muitos de seus

rivais na venda de entorpecentes se viciaram, sendo mortos ou presos. Muitos

de seus aliados também se viciaram, contraindo dívidas exorbitantes. Alguém

os executou.

Aos poucos, Alguém colocava pessoas de sua confiança no poder. Até

alguns de seus antigos inimigos se associaram a ele. Alguém montou uma

gigantesca rede de distribuição e seu atual inimigo passou a ser a sociedade.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

A meta de Alguém sempre foi adquirir poder e riqueza, mesmo que para isso

precisasse sugar a essência de todos os cidadãos de bem.

Foi o que aconteceu. A sociedade, sem saber os planos de Alguém,

talvez até sabendo e ignorando suas capacidades, não percebeu que o crack

estava perto de suas casas, colégios e praças. Quando acordaram para a

realidade, Alguém já havia disseminado essa droga como uma epidemia.

O crack dominou porque a população não estava imune, ou protegida;

agiu igual a qualquer doença que se propaga quando estamos debilitados.

Por esse motivo, Alguém se ofendeu quando perguntei a quantidade

de drogas com a qual fora preso. No seu ponto de vista, quem manuseia a

droga são os “laranjas”, funcionários, ele manuseia somente os lucros.

– O que você vendia?

– De tudo, mas a fonte do dinheiro é o crack.

– Você não tem pena dos usuários?

– Tá de bobeira? Cada um escolhe seu caminho. Não coloco arma na

cabeça de ninguém para comprar droga minha, eles compram porque querem.

– Compram porque estão viciados.

– Aí! Tu usa? Tu não usa, então, fizesse a escolha certa. Se vicia o boca

aberta que quer experimentar. A droga tá nas ruas como o veneno tá nos

mercados. Vê se todo mundo sai por aí tomando veneno?

– Não sai bebendo veneno, mas morre igual.

– Dona! O que mata não é o crack! O que mata é a maldade que o crack

injeta, é a pressão psicológica que a polícia causa nos traficantes, é a “fissura”

dos usuários, é o sistema, dona. O sistema é que mata os outros.

– Como assim, o sistema?

– O sistema é um monstro que se alimenta de maldades. Se você

parar de fazer maldades, não cairá nas garras do sistema, simples assim. O

que o crack faz é estimular o mal. Ele aliena as pessoas, tanto viciados quanto

vendedores.

– Aliena de que forma?

– Tipo assim, o usuário, se preciso for, mata pra usar. Eu que não uso,

mato o usuário que me deve ou me entrega para a polícia. Tem aqueles que

matam para ficar com a fonte de dinheiro. Sem contar a polícia, que mata para

83


Reginaldo Osnildo

proteger a sociedade, e os cidadãos, que matam em legítima defesa.

– O que é a fonte de dinheiro?

– A fonte de dinheiro é aonde se concentra a maior parte dos usuários;

se não tiver usuário, não tem comércio de drogas. É tão simples, matemática

básica: dois mais dois é igual a quatro.

Alguém morreu nas garras do sistema no mesmo dia em que tivemos

essa conversa. Ele teve uma crise e foi encaminhado ao hospital, mas não

resistiu. Toda a maldade cultivada durante sua vida foi agravante para sua

morte, por ataque cardíaco.

Não coloquei seu nome por não ter sua autorização para fazê-lo.

Alguém morreu, mas sempre terá outro alguém em seu lugar. Dois mais dois

é igual a quatro. O controle da epidemia está em cuidar dos doentes, foi a

mensagem que captei de Alguém. Simples assim.

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Vidas quebradas: reflexos do crack

Jesus dos Santos Emanuel

Enumerei a situação do jovem Emanuel, como gosta de ser chamado,

para ser o último a ser apresentado, pela lição de vida que nos transmite. Não

tanto a sua, que é de um vitorioso, mas a de sua mãe, Sofia de Jesus, que se

tornou o assunto mestre em nossa conversa. Acompanhe:

– Seu nome?

– Jesus dos Santos Emanuel. – respondeu-me o jovem franzino que

estava sentado à minha frente. – Pode me chamar de Emanuel, senhora.

– Muito bem, Emanuel, por que está preso? – perguntei.

– Tentativa de homicídio, senhora. – sua voz saiu em tom muito baixo,

envergonhado.

– Por que você tentou matar alguém? – perguntei surpresa.

– Foi o crack, senhora. – ele me disse, ainda envergonhado.

Exclamei:

– Você também, Emanuel?

Percebendo minha reação, ele respondeu, com voz firme desta vez:

– Não fumo mais, senhora. Me arrependi de meus atos, por favor, não

me recrimine.

Senti seu drama em seu semblante. Falei-lhe:

– Desculpe, Emanuel. Quer me contar o que houve?

A ponto de chorar, ele revelou:

– Dei uma facada no braço de minha mãe...

Levantei da cadeira indignada e olhei para o teto, respirei fundo e

controlei meu sentimento. Minha vontade era gritar com ele, sua aparência

frágil me deixava forte, e o que ouvi me revoltou. Brandamente o reprimi:

– Da sua mãe, Emanuel?

– Já me arrependi, senhora. Deus é testemunha. – ele me convenceu.

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Reginaldo Osnildo

– Tudo bem. Quer contar-me? – insisti.

– Com doze anos de idade, quando saía, depois da aula, com meus

amigos para empinar pipa, conheci o crack. Depois disso, só desgraça. – me

disse ele.

***

Sofia de Jesus é uma brasileira que paga seus impostos com

compromisso e lealdade a seu país. Sofredora, como a maioria das mães

brasileiras é, digo isso porque, para ser mãe, hoje em dia, neste turbulento

país, é preciso suportar o sofrimento da insegurança. Ela criou seu filho com

muito carinho, amor e educação. Pelo menos tentou.

Da noite para o dia, viu seu pequeno filho chamado Jesus,

carinhosamente chamado por ela de Manú, mudar de personalidade. Ele

tornou-se impaciente e rebelde e, aos poucos, foi desistindo dos estudos.

Como uma mulher virtuosa e sábia que é, desconfiou que algo estava errado,

e passou a cuidar com mais zelo das atitudes do seu pequeno Manú. Tarde

demais, ele já havia experimentado o crack.

Em pouco tempo o pequeno Manú tornou-se desleixado e

completamente revoltado, envolveu-se com outros elementos de mesma

personalidade do bairro e, como a maioria dos usuários, passaram a fazer arruaça.

Sofia continuou trabalhando honestamente, sempre tentando ajudar

seu filho. Manú vivia as noites inteiras na rua. Sofia não conseguia dormir

em paz, vez e outra ia à sua procura pelos becos, vielas e praças da localidade.

Emanuel tornou-se adolescente. Sofia conseguiu convencê-lo a trabalhar aos

dezessete anos, pelo menos isso, já que não tinha mais gosto pelos estudos.

Emanuel foi, porém, todo seu dinheiro era para o crack.

Sofia não desistia.

Ele permaneceu trabalhando. Com a insistência de sua mãe, se

internou em uma clínica. Durante o tempo em que ficou internado, um

período de seis meses, seus companheiros no uso da droga foram dispersos.

Alguns deles foram mortos pelos cobradores do tráfico, outros foram presos

vendendo ou roubando para fumar.

86


Vidas quebradas: reflexos do crack

Dona Sofia apegou-se à espiritualidade, frequentando denominações

religiosas que desconheço. Emanuel não especificou. Em contato direto com

Deus, adquiriu mais força para lutar nesta batalha interna, incessante, e vencer

a guerra que travava por seu filho Manú.

Quando Emanuel saiu da clínica, estava com dezoito anos e

desintoxicado das propriedades maléficas da droga. Seu serviço lhe

aguardava, voltou a ser o rapaz simpático e carismático como quando mais

jovem e inocente.

Sofia aprofundou-se na espiritualidade, em agradecimento ao que

Deus havia feito em sua vida. Decidiu retribuir a benção conquistada.

Tempos depois, seu filho retornou ao vício. Foi pior dessa vez,

roubou tudo que possuíam dentro de casa para fumar. Quando digo tudo,

refiro-me desde a torneira de metal do banheiro até as telhas da pequena

garagem da residência. Quando não havia mais nada para ser vendido, Sofia

tentou conversar com seu filho, esse, revoltado por não ter a droga que tanto

precisava, agrediu-a com a faca que tinha em mãos e fugiu em seguida.

Sofia saiu atrás dele com seu braço cortado na altura do bíceps, sangrando

muito, desmaiou. Sobreviveu porque foi levada pelos vizinhos ao hospital.

Perdeu parte do movimento do braço atingido, em consequência do ataque.

Emanuel foi preso, Sofia decidiu que assim seria melhor, pelo menos

seu filho ficaria longe das drogas. No decorrer das visitas que fazia na

penitenciária, fez com que seu filho compreendesse sinceramente seus erros.

Ele se arrependeu. Converteu-o para sua crença.

O ataque que sofreu fez com que fosse aposentada em seu serviço. Com

seu filho preso e convertido, tinha todo o seu tempo livre, sem preocupações.

Resolveu se preocupar com os outros usuários. Saía a caminhar pela cidade

onde morava e pelas cidades vizinhas, pedindo auxílio para sua luta contra o

vício do crack.

Certo dia, conversando com um influente empresário do ramo de

automóveis, explicou seu objetivo, disse-lhe que tinha a intenção de recuperar

dependentes químicos do vício do crack. Pediu-lhe uma colaboração

financeira, garantiu-lhe resultados, e fez com que visse as vantagens de não se

ter usuários nas ruas.

87


Reginaldo Osnildo

O empresário fez um acordo com dona Sofia. Pôs ela dentro de seu

veículo e saíram de carro pela cidade. Quando pararam em uma esquina, o

empresário lhe disse:

– Dona Sofia, está vendo aquele rapaz?

– Sim, vejo.

– Se você convencê-lo a se internar para fazer o tratamento, não só lhe

ajudo financeiramente, como também entro nesta guerra pacífica.

Sofia de Jesus conseguiu.

O jovem era filho do empresário, há mais de oito anos estava vivendo

nas ruas sem entrar em contato com a família. Seu pai frequentemente o

observava a distância, sem se aproximar. Acompanhou-o todo esse tempo de

longe. Naquele dia viu-o entrar no carro junto com Sofia, e o melhor, disposto

a recomeçar.

O homem forneceu um terreno para dona Sofia. Juntos buscaram

por mais ajuda e, em pouco tempo, construíram um enorme alojamento

com cozinha e uma pequena sala de aula munida de biblioteca. Inicialmente

o filho do empresário ficou em uma clínica particular, porém, terminado o

alojamento, mudou-se para lá e ajudou a construir as demais partes do centro

de reabilitação. Novos internos chegaram. Sofia buscou alguns na rua, outros

eram filhos de seus vizinhos, parentes de amigos e indicados pelos paraninfos

e mantenedores do local.

Dona Sofia tornou-se uma grande amiga, vez ou outra encaminho um

preso daqui para ela. Emanuel também foi para lá quando saiu, os anos que

esteve preso foram os mesmos que Sofia levou para construir sua obra.

***

– O que você fará quando sair?

– Vou ajudar minha mãe. – me disse ele.

– Gostaria de conhecê-la.

O que levou Emanuel à mudança foi o amor incondicional de sua mãe

por ele, assim como o amor incondicional do empresário por seu filho perdido

no mundo. Ambos os pais aguardaram pacientemente pela reviravolta na vida

88


Vidas quebradas: reflexos do crack

de seus filhos.

Sofia saiu ao mundo querendo ajudar os outros quando viu seu

filho realmente disposto a mudar. O empresário, ao perceber a vontade de

mudança em seu filho, acreditou que é possível reverter a situação.

Atualmente, os quatro trabalham voluntariamente na luta contra o

crack. Os dois jovens se recuperaram, constituíram família e são cidadãos de

bem. A clínica conta, ainda, com mais oito monitores, ex-usuários, e abriga

mais de oitenta internos. Há projetos para ampliação.

O número de vagas é limitado, porém, as poucas sementes plantadas

são suficientes para dar ótimos frutos no futuro.

Imagine quantas pessoas cada ex-usuário deixa de aliciar, reduzindo

o aumento de dependentes. Quantos homicídios e latrocínios são evitados,

reduzindo a taxa de mortandade causada por eles. Quantos furtos e assaltos

não são realizados, reduzindo a criminalidade. Quantos pontos de tráfico

deixarão de vender, por falta de ter quem comprar e quantas famílias se

reestruturarão, propagando o amor.

Às vezes, o que nos falta é iniciativa!

89



Vidas quebradas: reflexos do crack

Reflexões de uma cidadã

Tendo ouvido o Surdo e o Mudo, arrumei a papelada com todas as

anotações feitas e encaminhei todas as possíveis manifestações que podiam

ser feitas em prol dos mesmos. Encerrado meu expediente, me despedi dos

agentes prisionais e outros companheiros e fui embora, rumo ao lar. Passei o

dia inteiro nessa grande batalha psicológica; assimilei, em poucas horas, os

tormentos e problemas de tantos reclusos.

O sol se deitava do outro lado do portão, o céu estava avermelhado,

poucas nuvens persistiam em ficar. Quando olhei para trás, esperando que o

portão se abrisse, vi a muralha com seus quadradinhos acesos. Depois de um

dia inteiro de sofrimento, com certeza estavam refletindo sobre seus erros.

Ou será que não?

O portão se abriu e fui para casa com minha mente borbulhando em

reflexões. Todos esses problemas foram causados, direta ou indiretamente,

pelo crack. Além desses que apresentei, conversei com estelionatários e

criminosos sexuais que nada tiveram de influência pela droga em questão.

Todos estavam carentes de ajuda, cada um precisava ser ajudado à sua

maneira. Essa é a questão! Que atitude tomar quando estamos sozinhos nessa

situação? Como ajudar aqueles que foram abandonados pela sociedade?

Gostaria de ter a força de Sofia de Jesus. Como não tenho, passei a noite inteira

acordada, refletindo. Conforme soluções iam surgindo, eu fazia anotações.

Mas, como ajudar aqueles a quem não conheço? O pouco que ajudo é

muito para eles, mas e os outros? E aqueles usuários que querem largar o vício

e não tem a quem recorrer? E os pequenos traficantes que estão nessa vida

para sustentar suas famílias? E aqueles pequenos flagelados que vivem nas

ruas? E a falta de clínicas? Como conscientizar a população? Como uni-los

em um único ideal?

91


Reginaldo Osnildo

Toda essa confusão em minha mente foi o resultado do impacto

que aquele primeiro dia de serviço me causou. A descoberta da verdadeira

realidade, que não está tão encoberta quanto pensamos. Surgiram várias

dúvidas, mas apenas uma resposta.

Informar e transmitir a vivência dessas vidas quebradas pelo crack.

Se eu escrevesse um livro sobre a vida dessas pessoas, será que conseguiria

fazer com que os leitores tomassem conhecimento do que o crack é capaz de

causar? Talvez sim.

Só que surgiu um problema: a autorização dos detentos. Se eu

conseguisse a permissão de todos, poderia fazer com que os cidadãos de bem

se unissem, não apenas para acusar, mas para lutar pacificamente. Para pedir

soluções aos políticos, para fazer com que a sociedade se mobilize em prol de

um único objetivo: vencer o crack.

Nada pode nos impedir de pensar no crack, nos seus usuários, nas

consequências que o crack deixou em nossa sociedade, e no que ainda pode

causar se empurrarmos com a barriga. O crack não é a única causa da violência,

mas é um de seus aceleradores, propulsor da tão temida criminalidade que

nos causa tanta insegurança. É óbvio que, se eliminássemos o crack de vez

do mundo, o crime continuaria a existir, porém, acredite, é estatisticamente

comprovado que o crack dissemina o mal.

Não conseguindo dormir naquela noite, saí bem cedo, e antes do

horário já estava na penitenciária. O segundo dia não foi tão apavorante

quanto o primeiro. Lá chegando, procurei por Brutamontes e pedi que me

levasse na cela de todos os presos para quem precisava pedir a autorização.

Como bom cidadão que ele é, explicada a situação, me acompanhou.

O primeiro da lista que fiz era o bambambã, que, lamentavelmente,

faleceu durante a madrugada. Só depois de um tempo foi

que optei por mudar seu nome e contar de igual forma sua história.

José morava no mesmo cubículo que Alguém, disse-me que tentou salvá-lo,

mas não adiantou, perceba suas palavras:

– Conte comigo, senhora. Quero ajudar com o relato da minha vida.

Deus quis levá-lo. Assim como Alguém, desta vida ninguém leva nada. Fique

com Deus, senhora.

92


Vidas quebradas: reflexos do crack

Falei com Vitória e ela ficou deslumbrada com a ideia. Já estava

acordada quando cheguei à porta da cela, se eu não dissesse estar com pressa,

me tomaria o dia todo. Consegui sua permissão. Nosso amigo Emanuel

estava no cubículo ao lado e gritou afirmando apoio total; Vitória fez muito

escândalo, quando percebeu que ele havia escutado a conversa toda. Mais

uma autorização concedida.

Procurei seu Inocêncio, ele apoiou a ideia. Caio também, e me

mandou, posteriormente, uns comentários extras que postei no livro entre

as conversas.

O Playboy me autorizou, mas com uma condição, e sendo seu pai

muito influente, concordei, trocando seu nome real por um fictício. Prefiro

assim.

Para conseguir a autorização de Lenilson, aquele da platina no maxilar,

tive que prometer-lhe uma transferência, foi o mais difícil de conseguir, só

depois de três dias pude confirmar a vaga no hospital psiquiátrico, tive que

fazê-lo assinar um documento. Não confio nele.

O Capitão ficou meio desconfiado, mas autorizou, me disse apenas

que omitisse o nome dele e o batalhão que trabalhou. O restante liberou. Ele

sabia que eu não exporia sua vida abertamente, permitiu que eu usasse o que

julgasse necessário.

Restaram-me o Mudo e o Surdo. Na realidade, para convencer o Mudo

bastava convencer o Surdo. Foi o que fiz. Como já era de se esperar, os dois

moravam juntos. Ao me ver, sorriram muito, nem foi preciso convencê-los.

Quando os vi, senti um enorme bem estar e retribui o sorriso, derreteram-se.

O incrível nesses dois é que eles haviam se tornado um só. Se não tivesse visto

o Mudo bem, atualmente, não descansaria. Ainda me corta o coração lembrar

a morte do Surdo.

Tive que fazer tudo isso às pressas, o mal-humorado do Brutamontes

queria ir para casa, tinha terminado seu plantão.

Espero que as histórias aqui relatadas tenham cumprido seu objetivo,

que elas tenham logrado êxito em seu real propósito. Depois dessas, escutei

muitas histórias da vida real, são muitas as vidas quebradas pelo crack.

93


Composição e impressão

ESTADO DE SANTA CATARINA

Secretaria de Estado da Administração

Diretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina

Florianópolis - SC (48) 3665-6200

O.P. 4982


Cem Cópias Sem Custo

Esta é mais uma obra publicada por meio do projeto Cem Cópias

Sem Custo, Lei nº 15.019, que criou o programa de incentivo à

produção literária e cultural, permitindo ao escritor catarinense,

ou aqui radicado há mais de três anos, publicação de obras a

custo ZERO.

A Lei prevê ainda que 30% de cada 100 cópias impressas serão

doados às bibliotecas e escolas públicas, visando permitir e

estimular a leitura e a correta aplicação da ortografia da nossa

língua pátria.

Este programa vai tornar as obras e os autores conhecidos de um

público importante que está despertando para o sabor da leitura.

E, certamente, despertará nesses leitores o sabor da escrita.

100

CÓPIAS

SEMCUSTO

LEI Nº 15.019


A Doença de Alzheimer

Ana maria Pereira Peixe

A História da Escola da Seta

Vera Lucia Vieira Rodrigues

(Organizadora)

As Aventuras de Queno e

Guará

Kátia Eli Pereira e João

Fernandes da Silva Júnior

Biblioteca Escolar:

Conquistando respeito e

admiração

Raquel Pacheco

Brincando de Poetizar

Vilmar Machado Euzébio

Celulose Irani, um marco

no desenvolvimento do

Oeste Catarinense

Arlete Maria de Quadros

Dragão Oculto

Clara Irmes Macário

Estado, Constituição e

Cidadania

Elenir Cericatto

Estruturalismo na

Microfísica da Educação

Tarcísio Voss

Gato & Sapato

Marta Eliane S. Carvalho

Jazz, Cinema & Utopia

Carlos Holbein Antunes de

Menezes

Livro do Tempo

Rita Cornejo

Poemas Reunidos

Vagner Antonio Hartcopf

Por aí... uma aventura

solitária

Ronei B. Amandio

Prisioneiros do Passado

Therezinha Cacilda Monteiro

Mann

Química Mágica – a

experimentação

Pedro Penteado do Prado

Último Refúgio

Therezinha Cacilda Monteiro

Mann

Versos em você

Michell Foitte

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