À preguiça de meus ancestrais

MARIANNA CAMARGO jornalista
CRÔNICA
À preguiça de meus
ancestrais
Gostaria de escrever mais, sobre muita coisa, sobre
o que me interessa e o que me indigna, sobre o
que me assalta distraidamente, sobre inutilidades,
mas tenho preguiça. Herdei essa carga genética do ¼ de
sangue português que corre em minhas veias. Por que o
português, ora, pois? Porque fiz a estatística por exceção:
tirando os impetuosos bascos, os inflamados italianos e os
destemidos holandeses, sobra quem? Nossos aprazíveis
conterrâneos, sim senhor.
Não deve ser apenas por isso. Vivi minha infância
alternando entre os Campos Gerais, na sua calma absoluta,
redes e um calor paralisante - clima praticamente à
Caymmi - e São Bernardo do Campo, no ABC paulista, ao
lado das metalúrgicas e das avenidas e da poluição. Essa
disparidade marcou também meu ritmo: preciso correr na
velocidade das vias paulistanas, mas imediatamente me
vem à memória meu balanço pendurado nas gigantescas
mangueiras do interior. Para que pressa?
Na aridez da terra vermelha ou do concreto cinza,
as palavras pairavam no ar, como se pudesse assoprá-las
como bolhas de sabão. Precisava que elas estivessem sempre
ali, ao meu lado, nos desenhos, passando pela leitura
e depois à escrita, precisava delas para lembrar de mim.
E ela sempre vem, urgente e precisa, como se não
pudesse esperar por mais nada. Apenas a palavra, aniquiladora
como um golpe de Muhammad Ali, te derrubando
a nocaute, letra por letra. E nesta hora acontece
o encontro de todos os meus ancestrais e das paisagens
ora sutis, ora inúteis. Avassaladora preguiça, com todo
o sangue te dedico as suas horas nas minhas memórias,
impressas, para sempre.
março de 2010 | IDEIAS 39