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Revista Terceiro Ato

De festivais a espetáculos, de bastidores a palcos, de pesquisas a crônicas. Os mais diversos temas sobre o panorama do teatro de Santos e Região compõem a edição temática da Revista Terceiro Ato. A revista foi concebida ainda nos bancos da Universidade Santa Cecília em 2014, como Trabalho de Conclusão de Curso da idealizadora e editora, Rafaella Martinez Vicentini. Na ocasião, o projeto recebeu conceito 10 da banca avaliadora e foi apresentado no XXXVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, em Minas Gerais. "Muita coisa mudou de quando a revista foi planejada até o lançamento hoje, principalmente na valorização da cultura. E não deixa de ser simbólico o fato de chegarmos em 2020 amparados pelo Poder Público para publicar nosso registro sobre a história de luta e resistência que envolve o teatro e o fazer artístico de um modo geral na Baixada Santista", enfatiza Rafaella. Ao todo, são 84 páginas que abordam em diferentes gêneros literários desde o estímulo de Pagu a uma geração de jovens às artes cênicas até as pautas do teatro na cena contemporânea. Antes previsto para ser lançado no Teatro Guarany, com uma tiragem de 500 exemplares, a atual conjuntura demanda que a Terceiro Ato seja partilhada inicialmente no mundo online. A publicação conta com textos de Nina Gagli e Lincoln Spada e colaboração de Anna Amex e Sandro Lopes. A Revista Terceiro Ato é uma obra contemplada no Facult 2017 pela Prefeitura Municipal de Santos via Secretaria de Cultura.

De festivais a espetáculos, de bastidores a palcos, de pesquisas a crônicas. Os mais diversos temas sobre o panorama do teatro de Santos e Região compõem a edição temática da Revista Terceiro Ato.

A revista foi concebida ainda nos bancos da Universidade Santa Cecília em 2014, como Trabalho de Conclusão de Curso da idealizadora e editora, Rafaella Martinez Vicentini. Na ocasião, o projeto recebeu conceito 10 da banca avaliadora e foi apresentado no XXXVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, em Minas Gerais.

"Muita coisa mudou de quando a revista foi planejada até o lançamento hoje, principalmente na valorização da cultura. E não deixa de ser simbólico o fato de chegarmos em 2020 amparados pelo Poder Público para publicar nosso registro sobre a história de luta e resistência que envolve o teatro e o fazer artístico de um modo geral na Baixada Santista", enfatiza Rafaella.

Ao todo, são 84 páginas que abordam em diferentes gêneros literários desde o estímulo de Pagu a uma geração de jovens às artes cênicas até as pautas do teatro na cena contemporânea.

Antes previsto para ser lançado no Teatro Guarany, com uma tiragem de 500 exemplares, a atual conjuntura demanda que a Terceiro Ato seja partilhada inicialmente no mundo online.

A publicação conta com textos de Nina Gagli e Lincoln Spada e colaboração de Anna Amex e Sandro Lopes. A Revista Terceiro Ato é uma obra contemplada no Facult 2017 pela Prefeitura Municipal de Santos via Secretaria de Cultura.

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Revista Terceiro Ato

Edição temática | 2020

Panorama do Teatro

na Baixada Santista

■ Entrevistas ■ Festivais

■ História ■ Bastidores

■ Crônicas ■ Pagu e etc.

Crédito da foto: Eduardo Amaro


TERCEIRO SINAL

Baixada Santista rica em artistas,

palco de cenas teatrais e saraus,

cidades à beira mar com

intento de performar através

de manifestações artísticas e

exegéticas.

Encenar, comunicar, interpretar,

fazer sonhar, surgir a

lança da esperança. Destarte,

fazer Arte! Litoral em coral faz

poesia de sua maresia.

Somos cultura, tradição, povo,

dom, tom, histórias, resistências,

crônicas, belezas cênicas,

canções, livros, danças, ações

e representações. Teatro te tira

da casca, tira de casa e dá asas.

A Terceiro Ato dá voz a

todos nós que em alguma parte

temos ARTE. Compreender o

Teatro te adiciona ao gênio e

ao oxigênio,

este AR TE INSPIRA

este AR TE EXPIRA

AR TE mantém,

persevera,

persiste,

insiste.

ARTE!

Texto: Nina Gagli

foto: Sander Newton


EDITORIAL

“a mais humana e a mais efêmera

das artes”

Eu me apaixonei pelo teatro

na faculdade. Foi

na Sanatório Geral de Artes

Visuais, quando escrevi uma

grande reportagem sobre o

Festival Santista de Teatro

e conheci seus bastidores. E

foi ‘perdida’ pelas coxias do

Guarany e do Coliseu, nos cafés

do antigo Espaço Aberto

e na luta então em vigor dos

artistas locais contra a municipalização

da Cadeia Velha

na hoje, infelizmente fechada,

Vila do Teatro que me

encontrei em sua rica história

e passei a ver nuances de

Pagus, Plínios e Soffredinis

pelas esquinas da vida.

O teatro foi então meu

norte no jornalismo e se

transformou em meu TCC:

essa revista que seis anos

depois chega até você, leitor.

Em um primeiro momento,

ela foi concebida e sonhada

à seis mãos: as minhas e as

das jornalistas Mayara Sampaio

e Nathamy Lopes. Com

ela, fechamos nossa carreira

universitária com a alegria

do dez e seguimos viagem

para Uberlândia, onde ela foi

classificada como o melhor

trabalho da categoria revista

do Estado de São Paulo

e apresentada no XVIII IN-

TERCOM – Congresso de

Ciências da Comunicação da

Região Sudeste em 2015.

Cinco anos depois, os

tempos são outros. E não

deixa de ser simbólico o fato

de chegarmos em 2020 amparados

pelo Poder Público

– a Terceiro Ato foi contemplada

pelo 7º Concurso de

Apoio a Projetos Culturais

Independentes no Município

de Santos, com o Fundo

de Assistência à Cultura (Facult)

– para publicar nosso

registro sobre a história de

luta e resistência que envolve

o teatro e o fazer artístico

de um modo geral na Região.

Hoje o Teatro não é apenas

uma coisa em minha

vida: ele é tudo! E a Terceiro

Ato foi sonhada e produzida

para valorizar essa arte.

Escrevo a história da Articulação

do Fazer Teatral na

Região desde o Festival Nacional

de Teatro de Estudantes

até o atual Movimento.

O jornalista Lincoln Spada,

que durante anos se dedicou

à manutenção de um

espaço jornalístico para o

teatro dentro de seus blogs

‘O Palco Santista’ e ‘Revista

Relevo – as artes sem superfície’

assina quatro crônicas

sobre dias fatídicos de teatro

santista, como o espetáculo

que deu início à criação do

Gapa/BS e a encenação com

pessoas em situação de rua

dirigida por Zéllus Machado

e Maria Tornatore em 2001.

Já a educadora Nina Gagli

escreve sobre pautas identitárias

no palco, com entrevistas

com a atriz Renata

Carvalho, Christian Malheiros

e Tamirys O’hanna.

Em tempos de ataques à

cultura e retrocessos, vamos

forçar a caminhada para

frente. Em tempos de violações

de direitos, iremos lutar

a cada dia mais para difundir

a cultura e a história.

Acreditamos que todo teatro

é político, pois provoca profundas

transformações no

espectador. E queremos que

a Terceiro Ato também seja

política, com o objetivo de ultrapassar

as barreiras e fazer

refletir. Evoé! ■

Rafaella Martinez Vicentini.

Jornalista, artista e uma eterna

sonhadora que acredita na

arte que faz acordar os homens

e sonhar as crianças,

como diria Drummond.

Foto: Paulo Von Poser

Revista Terceiro Ato ■ 3


SUMÁRIO

Ficha Técnica

Interartes

5 ■ Discos, filmes e livros

Panorama

6 ■ Teatro nacional

38 ■ Manufatura de

monólogos

39 ■ Críticas

História

18 ■ Movimento teatral

24 ■ TEP/Unisanta

57 ■ Cadeia Velha

79 ■ Diário cênico

Entrevistas

27 ■ Atores

31 ■ Da Baixada Santista

para o mundo

44 ■ Dramaturgos

46 ■ Bastidores do palco

Calendário

10 ■ Festivais

30

71

14 ■ Encenações

Esquete

23 ■ Homenageados

30 ■ Atores de TV

49 ■ Diretores em SP

Segmentos

50 ■ Linguagens cênicas

54 ■ Artes integradas

Ambientes

59 ■ Teatros de Santos

62 ■ Palcos fechados

63 ■ Espaços cênicos

68 ■ Espaços formativos

71 ■ Projetos itinerantes

Perfil

42 ■ Miriam Vieira

66 ■ Tanah Correa

67 ■ Kadu Veríssimo

74 ■ Sérgio Mamberti

23

Rafaella Martinez

Vicentini, 28 anos, de

São Vicente (SP).

Graduada em Jornalismo

(Unisanta), foi

editora e jornalista do

Diário do Litoral, onde

também atuou como

repórter de Cultura. Na área

de comunicação, teve experiência na

produção de jornais da TV Tribuna.

Integra o Teatro a Bordo (projeto de

itinerância de espetáculos, oficinas e

contação de histórias pelo País).

Lincoln Spada, 28 anos,

de Santos. Jornalista

(Católica Unisantos) e

ator pós-graduado em

Gestão Cultural. Criou

os sites O Palco Santista

e Revista Relevo

e já foi repórter cultural

em A Tribuna, Expresso

Popular, Diário do Litoral e colunista

na CBN Santos. Desde 2009, realiza

assessoria para festivais e, escritor,

já colaborou em revistas literárias.

Nina Gagli (Maria Carollyna Gagliardo

Victor), 30 anos, de São

Paulo e caiçara de Santos.

Advogada e Filósofa

(ambos via Católica

Unisantos). Educadora

que atua em Santos e

São Vicente contribuindo

no processo de aprendizagem

das novas gerações,

e que tem experiência em pesquisa

histórica e novas mídias, respectivamente

em edição de artes cênicas,

e no site de cultura Revista Relevo.

Poeta nas horas vagas

A Revista Terceiro Ato é uma realização

da jornalista Rafaella Martinez Vicentini

| Mtb.: 79116/SP

Contato: rafaella.reporter@gmail.com

Telefone: (13) 99104-5335

Colaboradores:

Anna Amex e Sandro Lopes

4 ■ Revista Terceiro Ato


InterArtes

FILMES

‘Birdman’ (2014), de

Alejandro Iñárritu. Com

Michael Keaton, Zack Galifianakis

e Edward Norton.

Após recusar blockbusters,

um ex-intérprete de super-

-herói busca retomar o auge

dirigindo um texto consagrado

para a Broadway. Melhor

Filme do Oscar 2015.

‘Jogo de Cena’ (2006),

de Eduardo Coutinho.

Com Marília Pêra, Andréa

Beltrão e Fernanda Torres.

Documentário mistura a realidade

e dramaturgia com

atrizes desafiadas a apropriar

das histórias de demais

entrevistadas.

Discos

‘Ópera do Malandro’

(1979), de Chico Buarque.

Um clássico do principal

compositor de teatro musical

brasileiro, inspirado em

Brecht e Kurt Weill, reúne

vários intérpretes nacionais.

‘Company - Original

Broadway Cast’ (1970),

de Stephen Sodheim.

Nenhum outro compositor

revolucionou a estética

dos musicais atuais quanto

este no ‘musical conceitual’.

Reúne orquestra e nomes

como Jones e Elaine Stritch.

Quando o Teatro se

faz elo com outros

segmentos

‘Ricardo III - Um Ensaio’

(1996), de Al Pacino. Com

Alec Baldwin, Kevin Spacey

e Winona Ryder. Documentário

com cenas de bastidores,

montagem teatral e

entrevistas com nova-iorquinos

sobre a obra-título

de Shakespeare.

Por Dino

Menezes.

Com mais de

30 prêmios,

artista multimídia

(artes

cênicas, visuais,

audiovisual, música e

literatura) participou de festivais

no Brasil e no exterior.

‘De Tempos Somos - Um

Sarau do Grupo Galpão’

(2017), do Grupo Galpão.

Revisitam números

musicais de sua trajetória e,

como sarau, mostra maturidade

ao fazer uma polifonia

como uma aula sobre a multiplicidade

de habilidades do

artista brasileiro.

Por Marcelo

Marinho de

Melo. Pós-

-graduado

em História

da Arte e

com Licenciatura

em Música,

é professor e diretor teatral, com

trilhas em diversos espetáculos.

Livros

‘Improvisação para o

teatro’ (Ed. Perspectiva),

de Viola Spolin.

Uma bíblia dos educadores

em jogos dramáticos,

é um manual para atores,

professores e alunos sobre

a arte do teatro, baseada

nos princípios de

Brecht e Stanislavski.

‘Para trás e para frente’

(Ed. Perspectiva),

de David Ball. Além de

ser um guia para a leitura

de peças teatrais, ajuda a

compreender o trabalho

da direção cênica.

‘Panorama do Teatro

Brasileiro’ (Global

Ed.), de Sábato Magaldi.

Fundamental para conhecer

a história do teatro!

Por Vanessa Ratton.

Jornalista,

escritora infantil,

poeta e dramaturga.

Mestre

em Comunicação

e Semiótica

e pós-graduada em

Teatro Brasileiro, leciona

teatro no SESI e no SENAC,

onde coordenou curso técnico

de formação de ator.

Revista Terceiro Ato ■ 5


Panorama

Os jogos de

luzes em

nossos Brasis

Texto: Lincoln Spada

Muitos são os espetáculos

em listas dos principais

prêmios do segmento

artístico, predominantes em

festivais e circuitos ao longo

de 2019. No entanto, o inconsciente

coletivo permite

correlacionar estéticas, temas

e recortes destas obras.

Assim, a proposta desse

prólogo é apresentar um

panorama nacional das tendências

e influências do teatro

brasileiro contemporâneo

que, consecutivamente,

já estão a ecoar nos grupos

e nas casas de espetáculo da

Baixada Santista.

Black power biográfico

| Coletivos e artistas

negros se destacaram recentemente.

O ano de 2018

marcou a chegada retumbante

de ‘Elza’, musical

que já circulou em capitais

e atraiu mais de 110 mil espectadores,

e foi premiado

com APCA (dramaturgia),

Cesgranrio (direção e categoria

especial), Reverência

(dramaturgia, direção, espetáculo

e categoria especial) e

Shell (música).

A ordem cronológica é

ignorada pelas sete atrizes-

-cantoras que se revezam

entre ‘Lata D’Água’, ‘Se acaso

você chegasse’, ‘Maria da

Vila Matilde’ e ‘A Mulher do

Fim do Mundo’. Marcada

por uma série de tragédias

pessoais, da morte dos filhos

Peça ‘Elza’ | Crédito da foto: Léo Aversa

e de Garrincha à violência

doméstica e à intolerância,

a jornada da cantora é contada

com alegria a partir de

suas reviravoltas e renascimentos,

sob autoria de Vinícius

Calderoni e direção de

Duda Maia.

Também o carioca Coletivo

2ª Black ainda em 2018

foi premiado com um Shell

(inovação) por criar um espaço

de encontro, pesquisa,

troca de saberes e apresentações

de experiências com

6 ■ Revista Terceiro Ato


Panorama

artistas negros. A pauta

identitária ganha força com

indicações de outros musicais,

como ‘Dona Ivone

Lara - Um Sorriso Negro’ e

‘Novos Baianos’ para o Prêmio

Aplauso. Entra na lista

‘Madame Satã - Um Musical

Brasileiro’ e ‘Prot(agô)

nistas - O movimento negro

no picadeiro’, estes reverenciados

pelo crítico teatral

Miguel Arcanjo Prado com

troféus em 2019.

O primeiro é um musical

do belorizontino Grupo

dos Dez, em que Taiguara

Nazareth protagoniza na

atual versão sobre a vida do

emblemático transformista

carioca João Francisco

dos Santos, sob a direção de

João das Neves e Rodrigo

Jerônimo. Já ‘Prot(agô)nistas’

reúne 22 artistas dirigidos

pelo circense Ricardo

Rodrigues, onde abordam

a dança Gumboot entre números

de acrobacia, malabares

e clowns, além de

debater sobre o racismo e a

questão da negritude.

Peças ‘Prot(agô)nistas - O Movimento negro no picadeiro’ (Foto acima

de Mariana Ser) e ‘Gota D’Água {Preta}’ (Foto abaixo: Sérgio Silva)

O diretor teatral Jé Oliveira (Foto abaixo: Sérgio Silva)

O atualíssimo Chico

Buarque | A mais notada

produção em temporada no

País é ‘Gota D’Água {PRE-

TA}’. A obra foi contemplada

pelo Prêmio Miguel Arcanjo

Prado (espetáculo),

indicado no Prêmio Aplauso

Brasil, APCA e Shell (espetáculo,

musical e inovação).

A montagem do premiado

ator, diretor e dramaturgo


Panorama

No holofote, o diretor do Teatro Oficina, Zé Celso Martinez | Crédito da foto: Edson Lopes Jr.

Jé Oliveira – fundador do

Coletivo Negro – mostra a

versatilidade do artista ao

longo de sua carreira, que

transita entre diferentes ritmos,

como rap e MPB.

Inspirado originalmente

no mito de Medeia, o musical

então escrito por Chico

Buarque e Paulo Pontes, em

1975, ganha uma releitura

com elenco predominantemente

negro, misturando

clássicos do Chico com estilos

da periferia, como o funk

e o hip hop. A musicalidade

ancestral e a influência das

religiões de matriz africana

compõem a escolha político-

-estética da obra que se conecta

ao momento político

do país em meio à metáfora

de uma traição conjugal, reforçando

as desigualdades

raciais e sociais.

Outra obra de Chico também

ganhou a ribalta nos

últimos anos, pelas mãos do

Teatro Oficina: ‘Roda Viva’.

Com direção de Zé Celso

Martinez, a montagem narra

a ascensão e queda de Benedito

Silva, transformando

por um anjo e um demônio

num herói pop, o cantor de

sucessos Bem Silver, fruto da

indústria cultural e com sua

genialidade pautada nas mídias.

Para se manter no auge,

molda-se em Benedito Lampião,

cantor de música nordestina

e, mais tarde, é sucedido

pela sua esposa Juliana.

A peça questionadora de

Chico (1986) foi escrita durante

o ápice da ditadura militar,

em uma dramaturgia

que se relacionava com a icônica

montagem antropofágica

de Zé Celso em ‘O Rei da

Vela’. Agora é a televisão que,

retratada como a opressora

do protagonista no mundo

showbiz, divide a vilania com

as fake news da Internet pelos

celulares. O Teatro Oficina

chegou também nos últimos

anos a estar em cartaz com o

seu outro clássico citado, ‘O

Rei da Vela’.

Holofote nos monólogos

| Outras questões

sociais também pautaram as

casas de espetáculo, como o

tema da imigração em ‘Um

Panorama visto da ponte’.

8 ■ Revista Terceiro Ato


Panorama

Peças ‘(In)justiça’ (foto acima de Caroline Ferreira) e ‘Todas as

coisas maravilhosas’ (foto abaixo de Jorge Bispo)

O texto de Arthur Miller ganha

versão local com direção

de Zé Henrique de Paula

e contracenado por Rodrigo

Lombardi e Sérgio Mamberti.

Em cena, a Nova York

dos anos 20, onde a tensão

entre americanos e italianos

arrematam em mais violência

nos subúrbios. O drama

é ampliado porque chegam

parentes da família principal

de modo ilegal no país.

A montagem foi laureada

com os prêmios Saci, ABCT

(ambos na categoria ator) e

Shell (direção).

O mesmo debate social

também se faz presente em

‘(In)Justiça’, do Teatro Heliópolis,

indicado no Aplauso

Brasil (espetáculo). Em

um tribunal, o que está por

detrás de um veredito? Um

ensaio cênico que reflete sobre

aspectos do sistema jurídico

do País. No enredo,

o jovem órfão involuntariamente

comete um crime. A

partir daí, o conflito do que

vem a ser justiça, desde a

praticada pela sociedade até

nos tribunais, permeia texto

em processo colaborativo do

elenco com Evill Rebouças e

direção de Miguel Rocha.

O assassinato de Marielle,

o rompimento da barragem

de Brumadinho e o incêndio

do Museu Nacional

ganham contornos pessimistas

no monólogo ‘Sísifo’,

protagonizado por

Gregório Duvivier,

que divide a autoria

com o diretor

Vinícius Calderoni.

Discussões filosóficas

alcançam o

mito grego, agora

contemporâneo,

em que o herói repete

a rotina de

carregar uma pedra

morro acima

só para vê-la rolar

e gerar um recomeço perene.

A produção foi indicada

na Aplauso Brasil (dramaturgia).

Outra obra de um ator

só é ‘Todas as coisas maravilhosas’,

indicada no Shell

(direção e ator). No palco,

Kiko Mascarenhas celebra

35 anos de carreira numa

peça em que, ao retornar

aos sete anos, o seu eu-lírico

elenca compulsivamente

uma lista de coisas que fazem

a vida valer a pena. A

razão é a das mais nobres:

demover a sua mãe deprimida

da ideia de cometer suicídio.

Com texto de Duncan

Macmillan e Joe Donabue,

adaptado por Diego Teza e

direção de Fernando Philbert,

a peça numa linha de

teatro do oprimido de Boal

busca com as plateias encontrar

argumentos para viver

o hoje. ■

Revista Terceiro Ato ■ 9


Intercâmbios entre modos

de fazer: nossos festivais

calendário

Texto: Rafaella Martinez

Aligação da Baixada Santista

com as artes cênicas

é antiga, assim como a vontade

de encurtar as distâncias

entre os fazedores de arte e

o público. Lar do mais antigo

festival de teatro ainda em

atividade no Brasil, a Baixada

tem papel de destaque também

por abrigar o primeiro

festival de cenas do país e a

cada dois anos cruzar os limites

nacionais e promover uma

verdadeira festa ibero-americana

de artes cênicas. Competitivos

ou não, cada festival

cumpre com maestria seu

papel de disseminar a arte,

formar público e promover a

troca entre fazedores de teatro

de todos os cantos.

FESTA - FESTIVAL

SANTISTA DE TEATRO

A mais tradicional FESTA

do teatro santista teve início

em 1958, pelas mãos de

ninguém menos que Patrícia

Galvão (leia mais na reportagem

‘Articulação do fazer

teatral', página 18). Considerado

o mais antigo evento

do gênero no Brasil, o hoje

Festival Santista de Teatro

foi responsável por diversos

capítulos da história cultural

Miriam Vieira na peça ‘Geração Trianon’, da Cia. Pernilongos

insolentes pintam de humor a tragédia (foto: Wilson Melo)

da região. O mais importante

deles foi o de fazer com que

o teatro santista ganhasse

projeção nacional. Ao longo

de seis décadas de existência,

seu maior objetivo ainda

se mantém vivo: promover

intercâmbio e troca de experiência,

rejeitando a mera

mercantilização da arte.

Mais do que promover o

encontro e debate de ideias

com grupos de outras regiões,

o festival fez com que a

cidade se tornasse um laboratório

de novos profissionais

e revelou grandes nomes

da dramaturgia brasileira.

Um dos grandes personagens

dessa história foi

Silvio Roupa, falecido em

dezembro do ano passado.

Em entrevista ao programa

Memória-História Oral, da

Fundação Arquivo e Memória

de Santos em 2018, ele

destacou os primórdios da

antiga Federação de Teatro e

do FESTA.

“Partiu do Oscar Von Pfuhl

a ideia de formação de uma

Federação do Teatro Amador

de Santos. O Greghi Filho

também abraçou a ideia

10 ■ Revista Terceiro Ato


calendário

e daí nasceu a federação. Nós

participamos do 1º FESTA e

ganhamos com o grupo ‘Os

Independentes’ com ‘A Farsa

dos Meninos Bonitos’. Nesse

tempo fiz bastante pelo teatro.

Lutei muito pelo Teatro

Municipal, pois na época tínhamos

teatro, mas não podíamos

usar. Foi uma batalha

com a Patrícia Galvão e

com a Rosinha Mastrângelo,

uma n'A Tribuna e outra n'O

Diário, e na época eu trabalhava

na atual Secretaria de

Cultura. Batalhamos mesmo

até conseguir o teatro que

está aí, o que para nós foi a

glória, o resultado da nossa

grande luta”.

Também integrante dessa

história, Maria Aparecida

Celestino conta com entusiasmo

suas lembranças do

festival.

“O FESTA era a festa anual

do teatro. Todo mundo se

preparava para ele. Antes

houve um festival de teatro

organizado pelo jornal ‘O Diário’.

Muita gente acha que o

teatro é aquilo que se faz na

televisão. É preciso mudar

isso, levar as pessoas para o

teatro e admirar o trabalho

do ator. O FESTA incentiva

isso. Quanto talento não

existe por aí que está afogado?

O teatro é uma escola de

vida e a oportunidade que

temos de viver outras vidas”,

conta.

A atriz Liliane São Paulo (à esq.) na peça ‘É Doce ou Salgado?’

durante o FESTA (foto: Luiz Guilherme Santos)

Vall Carthom, integrante

da Cia Teatral Saga, participa

do festival desde 1992. "No

41º FESTA, em 1999, minha

parceira Rosangela Oliveira e

eu tivemos o prazer de levar

de volta aos palcos o teatro

feito por crianças. Isso fez as

salas de aulas incentivarem

as crianças a fazerem teatro

e o FESTA acabou criando

então a categoria mirim. O

festival proporcionou muita

coisa boa, como a questão de

trocarmos informações com

grupos de outros lugares",

finaliza.

O festival mudou com o

tempo o modo de fazer: deixou

de ter caráter competitivo

em 2009 e em 2011, voltou

a ser nacional, recebendo

apresentações de todo o País.

No mesmo ano, recebeu do

Ministério da Cultura a Ordem

do Mérito Cultural, que

contempla personalidades,

grupos artísticos, iniciativas

e instituições que se destacam

por suas contribuições à

cultura brasileira.

MIRADA - FESTIVAL

IBERO-AMERICANO DE

ARTES CÊNICAS

Em 2010, a cena teatral da

cidade foi reforçada com a

criação do Mirada, o Festival

Ibero-Americano de

Artes Cênicas, que reúne a

cada dois anos companhias

de diversos países da América

Latina, mais Portugal

e Espanha - as duas nações

ibéricas. Em cinco edições,

foram apresentados 404 espetáculos,

de 15 países.

“Em um mundo sacudido

Revista Terceiro Ato ■ 11


por frequentes crises socioeconômicas

e humanitárias,

os espaços dedicados ao encontro,

ao intercâmbio, à

reflexão e ao debate coletivo

precisam ser conservados e

estimulados. A manutenção

de uma agenda de festivais e

eventos diversos, conectando

e envolvendo diferentes

pontos do continente, reverbera

uma pauta urgente e

necessária e é dentro desse

contexto que se insere o Mirada,

corroborando a longa

tradição de efervescência

cultural da cidade”, destaca

Danilo Santos de Miranda,

diretor do Sesc São Paulo.

Para ele, o objetivo do

festival também é “fortalecer

o compromisso com a rica

diversidade ibero-americana,

estimulando o aprofundamento

das relações entre

os povos desse corredor sociocultural,

repleto de afinidades

e particularidades”.

FESCETE - FESTIVAL

DE CENAS TEATRAIS

O FESCETE surgiu em

1997, a partir da necessidade

de incentivar os alunos

do TESCOM a crescerem e

explorarem novas estéticas.

Foi então que Pedro Norato

e Karla Lacerda decidiram

pedir para as turmas pinçarem

cenas de espetáculos e

apresentarem como trabalho

de conclusão de curso.

calendário

Espetáculo 'Mucho ruído por nada' encenado durante o MIRADA

de 2018 | Crédito da foto: Matheus José Maria/Sesc SP

Já no primeiro ano, a

ideia ultrapassou as paredes

do TESCOM e foi aberta para

outros grupos de teatros da

região, seguindo para os teatros

Rosinha Mastrângelo

e do Sindipetro, ocupando

outros espaços tradicionais

da cidade. Hoje o festival

investiga estéticas e integra

todas as linguagens da arte

(dança, música, arte audiovisual,

teatro, artes plásticas

etc.) abrindo espaço para

participação de estudantes,

amadores e profissionais.

No gênero (Festival de

Cenas), o FESCETE é pioneiro

no Brasil, onde homenageia

personalidades santistas

que contribuem com

o fazer artístico e conta com

a participação de profissionais

de diferentes segmentos:

teatro, dança, música,

poesia, literatura e artes

visuais, além de promover

mostras, cursos, workshops,

performances, exposições, e

concurso de poesia estudantil

e universitária.

Na visão de Pedro Norato,

o FESCETE tem como

pilar a formação e o fomento

do teatro. “Começamos

a dar palco para grupos e

artistas reconhecerem seus

trabalhos. Essas cenas são

como defesas de teses para

mostrar para outros grupos.

Uma vez que conseguimos

ter três olhares diferentes

para essa cena (as visões dos

avaliadores), conseguimos

dar uma devolutiva aos grupos

para que eles possam

agregar mais valores para o

espetáculo que será produ-

12 ■ Revista Terceiro Ato


calendário

zido”, conta.

O evento busca também

conscientizar com campanhas

sobre o Desenvolvimento

Sustentável e a

Ecorresponsabilidade.

“Qualquer forma de manifestação

artística é fantástica,

e conseguir nos

dias de hoje fazer a cidade

respirar 15 dias de manifestações

artísticas e receber

artistas que já estão no

cenário nacional para dialogar

com quem está começando

são as grandes conquistas

do festival. A troca

e a formação de novos grupos

e plateias são coisas

fanstásticas que conquistamos

ao longo desses 24

anos”, completa.

FESTES - festival

de Estudantes de

Santos Paschoal

Carlos Magno

O FESTES surgiu em 2006 e

recebeu o nome do diplomata

e teatrólogo em homenagem

ao centenário de seu nascimento.

Criado por iniciativa

da Secult Santos, o festival

tem como objetivo estimular

o interesse pelas artes, promover

o resgate dos antigos

festivais e ampliar a produção

artística na cidade.

O evento acontece tradicionalmente

sempre no mês

de outubro e é voltado para

escolas particulares, estaduais

e municipais (de ensino

médio e técnico), sediadas

em Santos e Região.

Artistas de Arcoverde (PE) realizam sessão ao ar livre durante

o Fescete em 2019 | Crédito da foto: Bruna Quevedo

FESTAC - Festival

de teatro de cuba-

tão

Mais tradicional festival de

teatro de Cubatão, o FESTAC

foi criado em 1989 e tem

como objetivo descentralizar

de espetáculos a atividades

formativas em bairros da

Cidade, além de gerar o intercâmbio

entre produções

artísticas da região, e formar

novas plateias.

O festival é realizado em

revezamento de associações

culturais locais com os coletivos

da Cidade.

FestKaos - Festival

teatro do kaos

Retomado em 2019 após

cinco anos de paralisação,

o Festival Teatro do Kaos,

de Cubatão, reúne diversos

grupos regionais e nacionais

em Cubatão com programação

gratuita.

O festival visa valorizar

o fazer teatral, promover

a troca de experiências e a

formação de plateia. Assim,

difundindo as artes cênicas

para diferentes públicos.

“O teatro me ensinou a

pensar no meu semelhante.

E todo o teatro que faço é

pensando no bem de todos,

por isso, tudo que um dia

sonhei, virou e continua virando

realidade”, destaca o

idealizador da mostra, Lourimar

Vieira. ■

Revista Terceiro Ato ■ 13


calendário

A tradição das

grandes encenações

Destaques da encenação vicentina (da esq. à dir.), marissol dias no núcleo indígena; o padre representado

por Rodrigo Caesar e o núcleo dos navegantes liderados por Martim Afonso de Souza.

Ao lado, de traje verde, o diretor Lucas Magalhães | Crédito de fotos: Cássio Moraes

Texto: Lincoln Spada

Se os festivais artísticos

disputam os palcos e as

plateias de Santos, coube às

cidades vizinhas protagonizarem

em relação a um calendário

de encenações como

principais apresentações cênicas

a fim de agregar os artistas

da Baixada Santista. A

mais destacada é a Fundação

da Vila de São Vicente, criada

em 1982 e nominada como

a maior do gênero em areias

de praia do mundo, segundo

o Guinness Book. São geralmente

1 mil participantes, entre

elenco e equipe técnica do

projeto, que segue de outubro

a janeiro até a temporada de

apresentações na semana de

aniversário da primeira cidade

do Brasil, 22 de janeiro.

Concebida numa soma de

esforços dos coletivos vicentinos,

no final dos anos 90

passa a ser adotada no calendário

municipal e, consecutivamente,

organizada pela

Prefeitura via Secretaria de

Cultura. É nessa década que,

reformulada, ganha proporções

turísticas à medida que

se apropria de arquibancadas,

maiores estruturas,

holofotes e elenco de celebridades

para os papéis principais.

A cada ano, a história

da chegada de Martim Afonso

na praia do Gonzaguinha

é contada sobre uma distinta

perspectiva. Ou até linguagem,

como musicais.

Tendo como narrativa o

14 ■ Revista Terceiro Ato


calendário

Bacharel, Lucas Magalhães

dirigiu pela primeira vez a

encenação em 2019. “A experiência

em si foi um misto de

criatividade, frio na barriga,

preocupação, mas, claro, um

prazer imensurável ao ver o

espetáculo daquela magnitude

sendo gerado por nós. Em

suma, foi incrível”. A bagagem

de assistente de direção

nos anos anteriores permitiu

avanços. “Pude escutar de algumas

pessoas do elenco que

a encenação, esse ano, estava

mais coreografada, pois ensaiamos

bastante e buscamos

desafiar o elenco nesse aspecto.

Foi um espetáculo pensado

minuciosamente para isso

e, por conseguinte, para atingir

o público no aspecto mais

sensível possível”.

Na trajetória, o tradicional

evento já foi prestigiado

por governador, ministro e

consulados, além dos mais

de 25 mil espectadores anuais.

Na praia, dezenas de

celebridades estrelaram,

como Caco Ciocler, Camila

Morgado, Emanuelle Araújo,

Felipe Simas, Helena Ignez,

Henri Castelli, Matheus

Nachtergaele, Murilo Rosa e

Oscar Magrini. O casal Bartira

e João Ramalho por anos

foi repetido pela vicentina

Marissol Dias e Júlio Rocha.

Atualmente, o evento é gerido

pela Adesaf - Associação

de Desenvolvimento Econômico

e Social às Famílias.

Cinquentinha

na ativa

Já a montagem mais antiga

em atividade na Baixada

Santista é a Encenação da

Paixão de Cristo de Cubatão,

criada há 51 anos por jovens

locais da Paróquia Nossa Senhora

da Lapa e que hoje é

produzida pela Associação

Incena Brasil. Recebendo até

4 mil espectadores em sessão

única, o evento ocorre no

CSU - Parque do Trabalhador.

“São mais de 200 pessoas

envolvidas entre atores

profissionais, voluntários,

técnicos e produção. A participação

da comunidade é

voluntária e elas são inseridas

nas oficinas de interpretação,

maquiagem artística e

objetos e adereços cênicos”,

diz a presidente da associação,

Rose Vieira.

Ela ressalta o espetáculo

contar com intérprete de Libras,

audiodescrição e acessibilidade

para pessoas com

deficiência. Com presença de

atores profissionais, o espe-

Revista Terceiro Ato ■ 15


Imagens da 50ª Encenação da Paixão de Cristo de Cubatão

Crédito das Fotos: Thaty Santana

Na foto abaixo, destaque para Imperatriz Leopoldina em

Caminhos da Independência | Crédito: Teatro do Kaos

calendário

táculo que já foi protagonizado

por mais de 30 anos por José

Augusto Silvério, o Zito, hoje

abre seletiva para definição do

papel principal. Nas recentes

edições, contou com artistas

convidados de fora da região,

sob direção geral de Cibelly Piacentini,

como Sérgio Mamberti

(Herodes) e Leonardo Miggiorin

(Pilatos). Se a encenação

vicentina ganhou uma casa de

memórias no Parque Cultural

Vila de São Vicente, a cubatense

rendeu um livro de Welington Borges.

Independência

ou morte

Outra encenação tradicional é a Caminhos

da Independência, realizada

pelo Teatro do Kaos em sua sede no

Largo do Sapo durante a primeira semana

de setembro. “A primeira edição

foi em 2002, com texto de Cícero Gilmar

Lopes, direção de Tanah Correa

e o Alexandre Borges fazia o D. Pedro

1º”, explica o idealizador do evento e

diretor do Kaos, Lourimar Vieira. A

narrativa sempre foi no mesmo espaço

- às vezes ao ar livre, às vezes sob a

lona circense - enquanto se construía

o teatro em si.

O evento que já está inserido no calendário

municipal narra a breve passagem

de Dom Pedro 1º, na véspera

da independência, por Cubatão, logo

no mesmo largo e arredores, onde visitou

um casal de amigos. Carlos Casagrande,

Gabriel Braga Nunes, Juan

Alba, Monique Alfradique, Nuno Leal

Maia já foram convidados para papéis

principais. No último ano, a ótica fe-

16 ■ Revista Terceiro Ato


calendário

minina remodelou a história,

com direção de Miriam

Vieira, texto de Dione Carlos

e Maria Leopoldina interpretada

por Tamirys O’hanna

- todas as artistas já premiadas.

Ambas as montagens

cubatenses são custeadas

pela Ecovias via Lei Rouanet.

Uma via-crúcis

popular

Por sua vez, a ‘Rua da Amargura’

ocorre desde 2007 em

circulação nas semanas de

Páscoa e seguintes pelas praças

de São Vicente. Organizada

pelo coletivo de artistas

da Cidade, atualmente a

montagem com mais de 70

atores, entre membros de

grupos locais e amadores, recebe

o nome de ‘Via Dolorosa

- A Paixão de Cristo’, sempre

com texto do Jobson Ricciardi

e direção de Rodrigo Caesar

e Lucas Magalhães.

Em 2019, foram 1 mil espectadores

para assistir à

obra que passa pela Praça

Tom Jobim, Instituto Histórico

e Geográfico de

São Vicente e até na

Praça João Pessoa a

cada semana. O próprio

elenco - entre

artistas e coro cênico

- costuma criar e reciclar

o figurino e o cenário

dessa tragédia

com final feliz, segundo

Rodrigo. “Porque,

diferente das Paixões de Cristo

que acontecem na maioria

das igrejas, nosso Jesus

nasce, cresce, é crucificado e

ressuscita no mesmo dia! Porém,

cantamos músicas que

fazem parte do repertório da

Igreja, e algumas músicas do

cancioneiro popular”.

A preparação sempre inicia

após a Encenação de São

Vicente, seguindo até a Páscoa.

A pesquisa do grupo é de

uma estética de circo teatro

e teatro de rua. “As pessoas

de idade diziam que, antigamente,

em época de Semana

Santa, os circos de bairros

paravam suas apresentações

para representar a Paixão. E

eu sempre quis fazer algo

que se aproximasse desse

momento: o palhaço fazendo

Judas, a bailarina dando

vida à Madalena, esquete de

músicas populares, principalmente

de Vicente Celestino,

e por aí vai”.

Outras obras

Em simultâneo, os jovens

‘Rua da Amargura’ (foto acima) e teatro

no Humaitá (foto abaixo) | Crédito

das Fotos: Cássio Moraes

da Paróquia São José de Anchieta,

no Humaitá, realizam

há 29 anos a Encenação da

Paixão, Morte e Ressurreição

de Cristo num campo

de futebol em frente à igreja,

recebendo 4 mil fiéis, em

arquibancada e estrutura

apoiada pela Prefeitura. Exceto

em 2000 não houve a

temporada cristã, que conta

com, pelo menos, 200 pessoas

envolvidas, entre cantores,

dançarinos, atores e

parte técnica.

As encenações têm em

comum serem gratuitas ou

com 1 Kg de alimento não-

-perecível ou leite em pó a

ser destinado para o Fundo

Social de Solidariedade da

cidade. Outros municípios

também nos últimos anos

estão investindo via apoio

público realizar um evento

desse porte, seja um feriado

cívico, seja para uma montagem

religiosa. ■

Revista Terceiro Ato ■ 17


Texto: Rafaella Martinez

Berthold Brecht, um dos

mais aclamados nomes

do teatro mundial afirmou

certa vez que todo teatro é

um ato político, pois provoca

reflexões para quem o assiste.

A política está intrinsicamente

ligada à raiz das representações

teatrais: ainda

na Grécia Antiga, o teatro era

usado para expor os problemas

enfrentados pela Pólis.

Os autores mais renomados

também abordaram temas

do cotidiano em suas obras,

provocando profundas reflexões

no espectador.

Na Baixada Santista, a

articulação do fazer teatral

passeia pelas vielas da história.

Seus protagonistas

encurtaram as distâncias

entre a região e os grandes

polos de produção nacional.

Levantaram a voz contra

perseguições. Foram presos

e torturados. Mas também

produziram feitos significativos

e consagraram a Baixada

Santista como um dos maiores

polos de cultura do Brasil

– e do mundo.

Ao longo dos anos, as representações

teatrais tiveram

papel fundamental para

ARTICULAÇÃO DO

FAZER TEATRAL

a construção do caráter combativo

do povo da região. Foi

no palco do primeiro teatro

oficial de Santos, o Guarany,

que ocorreram diversos movimentos

da abolição da escravatura

e em defesa da

República. Em uma de suas

histórias mais emblemáticas,

durante a estreia da peça 'A

sombra da Cabana', do poeta

e advogado José André

do Sacramento Macuco, um

escravo recebeu sua carta de

alforria, que foi paga com o

dinheiro da bilheteria.

Em outra ocasião, o doutor

Carlos Garcia realizou

ali uma conferência sobre

as vantagens de um governo

republicano, em janeiro de

1886. Além da importância

para a arte e para a história,

HISTÓRIA

foi no teatro que surgiu o tradicional

Banho de Doroteia,

no carnaval de 1920. 'Fando

e Lys', de Arrabal, peça-chave

do teatro resistência, teve

sua estreia nacional na cidade.

‘As confrarias’, de Jorge

Andrade, também teve sua

única montagem nacional

em Santos.

Ainda no ano de 1966,

Paulo Lara e Greghi Filho

fundaram o TIC - Teatro Íntimo

de Comédia. Instalado

no prédio do Parque Balneário,

o local contava com apenas

80 lugares. Como cita

Carmelinda Guimarães em

sua obra ‘Memórias do Teatro

Santista’, o TIC “foi a primeira

companhia de teatro

estável de Santos, e a única,

além de ser o primeiro tea-

Em Santos, Pagu na juventude (à esq., foto de acervo familiar) e

já nos anos 50, durante reunião com atores e atrizes (à dir., foto

de acervo da Fundação Arquivo e Memória de Santos.

18 ■ Revista Terceiro Ato


HISTÓRIA

tro a funcionar regularmente

numa cidade de interior”. No

espaço foram montados espetáculos

como 'Toda Donzela

Tem Um Pai que é uma

Fera', de Gláucio Gill (três

meses em cartaz com a casa

lotada de terça a domingo)

e o show 'As Insatisfeitas',

estrelado por Rubinho Gonçalves.

O teatro terminou

por inúmeros problemas,

inclusive a falta de apoio de

órgãos públicos e privados.

Um furacão de nome

patrícia galvão | É

impossível falar do teatro

santista sem citar Patrícia

Galvão, ou simplesmente

Pagu, apelido criado pelo

poeta Raul Bopp. Escritora

e jornalista nascida em São

João da Boa Vista, integrou

o movimento antropofágico,

sob a influência de Tarsila

do Amaral e Oswald de

Andrade, com quem chegou

a se casar. Como escreveu o

jornalista e escritor Sérgio

Willians no site Memória

Santista,

desde

jovem

Pagu foi

considerada

“extravagante”,

demonstrando

u m

comportamento considerado

fora do padrão conservador

da época.

Ingressou no Partido Comunista

Brasileiro (PCB)

em 1931, e chegou a ser presa

em Santos durante um

comício grevista dos estivadores

do porto. Foi encarcerada

na atual Cadeia Velha

por algumas semanas e publicou

romances de forma

clandestina (o conteúdo era

considerado comunista).

Retornou para Santos em

1954, onde viveu até a morte,

em 1962. Na cidade, se

dedicou em especial ao teatro,

particularmente no in-

Plínio Marcos (Foto/divulgação)

centivo a grupos amadores.

Tudo começou em 1958,

com um encontro que reuniu

nomes de peso como o

teatrólogo Paschoal Carlos

Magno (fundador do Festival

Nacional de Teatro de

Estudantes), e jovens que

viriam a revolucionar o cenário

cultural da Baixada:

Plínio Marcos, Wilson Geraldo,

Jansen Cavalcanti,

Fernando Alves, Antônio

Carvalhal, Evêncio da Quinta

e Maurice Legeard.

Com a vontade de fomentar

um festival local e com a

liderança da revolucionária

Patrícia Galvão, o movimento

culminaria com o Festival

de Teatro Amador de Santos,

o FESTA, que anos mais

tarde se tornaria o mais antigo

festival de artes cênicas

do Brasil.

Jornalista do hoje centenário

A Tribuna, Pagu usou

o trabalho para cobrar do

Poder Público apoio para a

cultura local. Com a coor-

Revista Terceiro Ato ■ 19


denação de Luís Carranca,

promoveu a primeira edição

do FESTA dentro do próprio

departamento de cultura do

jornal, onde escreveu: “Caberá

aos poderes públicos

sem olhar a considerações

de ordem política, sem pensar

em aproveitar do estímulo

cultural para se prestigiarem

perante o eleitorado

possível, dar todo o apoio a

esse trabalho, que precisa

do esforço e da cooperação

de todos para poder ser efetivamente

levado a efeito”.

O mundo segundo Plínio

Marcos | O movimento

teatral em Santos

viveu sua efervescência na

década de 60, muito por

conta de a cidade começar a

se destacar como celeiro de

talentos cênicos; a aproximação

com o fazer artístico

de São Paulo e o crescimento

na quantidade de apresentações

após a criação do

festival de caráter regional.

Nesse cenário, um dos nomes

mais fortes

foi o de Plínio

Marcos, escritor

e dramaturgo

santista

presente diretamente

no teatro

atual. Pagu

teria grande influência

na estreia

dramatúrgica

de Plínio Marcos, com

quem manteve uma relação

de amizade e em quem reconheceu

um escritor talentoso.

O dramaturgo nasceu em

1935 e, sem ter frequentado

o ensino formal, tentou inúmeras

profissões, como funileiro

e vendedor de livros,

tornando-se, afinal, artista

circense: o Frajola.

Plínio foi um dos primeiros

a retratar com autenticidade

temas como homossexualidade,

prostituição e

violência. Seus textos trazem

diálogos e situações sempre

cortantes e carregadas de gírias,

oriundas das camadas

sociais periféricas da sociedade.

Entre suas obras mais

conhecidas estão 'Barrela',

sua primeira peça, de 1959,

e 'Dois Perdidos Numa Noite

Suja' (1966), 'Navalha na

Carne' (1967), 'Quando as

Máquinas Param' (1972) e

'Madame Blavatsky' (1985).

Nesse período, o teatro

da Região e do Brasil manteve

uma vertente engajada

HISTÓRIA

contra a exploração política

e social e coube a Plínio ocupar

seu espaço, encontrando

no povo os elementos fundamentais

para a arte.

Morador do Macuco, ele

conhecia a realidade do cais

do Porto, dos arredores do

Mercado e dos becos do Centro.

Deu voz aos marginalizados,

atuando no teatro amador

também com o Sindicato

dos Estivadores, seguindo a

vida artística em São Paulo,

onde faleceu em 1999.

Ditadura: a musa inspiradira

| O Golpe Militar

de 1964 teve profundo

impacto no teatro da Baixada

Santista. Personagem

fundamental desse contexto,

Carlos Pinto precisou

abdicar de sua participação

no movimento sindical e migrar

para a militância cultural.

Em parceria com outros

representantes da classe artística,

fundou a Federação

Santista de Teatro Amador,

da qual foi tesoureiro na primeira

diretoria e nas eleições

seguintes, eleito presidente,

cargo que ocupou por

quinze anos, durante a ditadura

militar.

Em 1968, após a publicação

do Ato Institucional

nº 5, a censura passou a

impedir grande parte das

manifestações artísticas no

Brasil. A Federal Santista

20 ■ Revista Terceiro Ato


HISTÓRIA

de Teatro Amador

assumiu então um

caráter político e

contestador, com

peças audaciosas,

muitas vezes punidas

com castigos

severos. Presidente

da Federação nos anos de

chumbo do regime militar,

Carlos Pinto conta que foi

preso ‘algumas’ vezes, mas

não se arrepende.

Para ele, “a ditadura era

uma musa inspiradora”, que

proporcionou “tempos difíceis,

mas indiscutivelmente

incríveis”. Em entrevista no

ano de 2014, o ex-secretário

de Cultura de Santos disse:

“Havia uma causa pela qual

se levantar e o teatro nada

mais é do que isso, lutar

contra um sistema. Qualquer

espetáculo que apresente

soluções está errado!

O papel da arte é escancarar

o problema e era exatamente

isso que fazíamos. E a população

respondia lotando

as apresentações. Aquele foi

o melhor período do teatro

amador de Santos”.

Na década de 70, com o

esvaziamento proporcionado

pela ditadura militar,

o FESTA foi interrompido,

mas, como destaca o saudoso

Silvio Roupa, os amadores

continuaram a luta por

pautas urgentes, tais como

a construção e a efetiva uti-

Artistas contra o fechamento da Secult, na sessão da Câmara

de Vereadores nos anos 90 (à esq., foto/reprodução), e atual

movimento teatral da Baixada Santista se reune na cadeia velha

durante o FESTA 60 (acima, crédito da foto: adilson félix).

lização do Teatro Municipal

Braz Cubas (inaugurado em

1979), que por anos foi ocupado

apenas por companhias

da capital.

Outro episódio marcante,

já na década de 80, foi a

ocupação da Cadeia Velha

no Governo Maluf, quando

artistas das mais diversas

vertentes fixaram residência

no espaço que até então

permanecia fechado, com

o objetivo de democratizar

seu uso. Como relembra os

diretores teatrais Miriam

Vieira e Sérgio Guerreiro, a

ocupação resgatou também

a estrutura do espaço.

Nesse período, o movimento

também promoveu

caminhadas e apresentações

com o objetivo de alertar sobre

a importância do tombamento

do Teatro Coliseu,

anseio que se tornou realidade

em dezembro de 1989.

Em 1987, o secretário de

Cultura de Santos, Tanah

Corrêa, inicia um trabalho

junto à Federação Santista

de Teatro Amador, presidida

por Naira Alonso. Com

grupos mais amadurecidos,

renasce em 1987, o I Festival

Santista de Teatro Amador,

cuja numeração passou a ser

contada do ponto onde foi

interrompida somente em

1997, graças ao memorável

agitador cultural Toninho

Dantas.

Nos anos 90, a luta

por afirmação | Na década

de 90, a então prefeita

Telma de Souza criou o Projeto

Carlitos, que ministrava

aula de artes para alunos da

rede pública no contraturno

escolar. Muitos artistas hoje

consagrados no cenário cultural

passaram pelo projeto.

Parte dos alunos do projeto

agregou ao movimento

e no final da década lotou as

galerias da Câmara Municipal

de Santos contra a proposta

de extinção da Secretaria

de Cultura.

Revista Terceiro Ato ■ 21


Artistas protestam contra a detenção de Caio Martinez após

peça censurada, em 2016 (crédito da foto: Rodrigo Montaldi)

Já no ano 2000, o FES-

TA promovia um abaixo-

-assinado que requeria que

o Teatro Coliseu recebesse

o nome de Plínio Marcos, o

que não aconteceu.

Outra luta do movimento

foi de 2005 a 2010 para a

criação da Lei nº 2.455, que

alterou o funcionamento do

Fundo de Assistência à Cultura

– Facult e definiu parâmetros

para o apoio oficial

a projetos artísticos independentes.

O edital já proporcionou

a circulação de

dezenas de atividades culturais

gratuitas em espaços

descentralizados de Santos.

Coube ao movimento

também a luta para que

Santos abrigasse uma escola

pública de teatro. Em sua

mais recente ação, o Movimento

Teatral da Baixada

Santista (MTBS) articulou a

ação contra o fechamento, a

municipalização e posterior

ideia de transformar da histórica

Cadeia Velha de Santos

em um Museu. Atualmente

abrigando a AGEM, o

espaço segue com suas celas

impregnadas de arte e cultura,

funcionando como polo

do Projeto Guri e espaço

para ensaios, de exposição e

apresentações teatrais.

Arte contra a barbárie

| No mais recente – e

significativo – episódio da

luta do movimento teatral,

o ator Caio Martinez Pacheco

foi algemado após a

apresentação do espetáculo

‘Blitz - O império que nunca

dorme’, da Trupe Olho da

Rua, no dia 30 de outubro

de 2016, na Praça dos Andradas,

em Santos.

O tumulto começou após

o desligamento do som,

quando os policiais algemaram

Martinez sem falar qual

o crime ele e o grupo teriam

cometido. Pelo Boletim de

Ocorrência (BO), a Trupe

teria atentado contra símbolos

nacionais (bandeira e

hino) e Caio Martinez teria

desobedecido a polícia e resistido

à prisão.

O movimento se

uniu e protestou até

a liberação do artista

no Palácio da Polícia.

O ato levantou o debate

sobre a censura.

Para Caio, o episódio

remontou ao período

da ditadura e disparou

um gatilho de fascismo,

chegando a declarar na ocasião:

“Vivemos hoje um momento

político de quebra da

legalidade e de ascensão do

conservadorismo que legitima

essas ações do Estado

que não tem base jurídica e

que se dão apenas pela perversidade

contra pessoas que

se organizam socialmente. É

triste e revelador de um contexto

local e nacional”.

A ponderação foi reforçada

por Junior Brassalotti,

também integrante do Movimento

Teatral da Baixada

Santista, que enfatizou que,

sobretudo, o pensamento

crítico semeado nas apresentações

teatrais acompanha

o espectador após o fim da

apresentação. Para ele, "se o

público riu em determinada

passagem foi porque pensou.

A política está junto com o

humor o tempo inteiro e ele é

o melhor acesso a ela. Teatro

não foi feito para ser algo prazeroso

e agradável. Não é um

entretenimento barato e sim

um instrumento de guerra". ■

22 ■ Revista Terceiro Ato


Esquete

Os personagens do teatro

Carlos Alberto

Soffredini

(1939-2001).

Autor e diretor

teatral graduado

em Letras,

vencedor do

Prêmio do Serviço

Nacional de Teatro (SNT, 1967).

Pesquisador da cultura popular

brasileira, dirige projeto do gênero

no Sesc (1976-1977) e funda

o Grupo de Teatro Mambembe e

o Núcleo de Estética Teatral Popular.

Escreveu ‘O caso dessa tal

de Mafalda...’, ‘Mais quero asno

que me carregue...’, ‘Hoje é dia

de Maria’. No cinema, roteirizou

‘A Marvada Carne’, de André Kloetzel

(1985, vencedor do Festival

de Gramado). Na SBT, escreveu

a novela ‘Brasileiras e Brasileiros

(1990-1991). Venceu os prêmios

APCA, Apetesp e Mambembe.

Greghi Filho (1937-2001). Iniciado

no teatro por Patrícia Galvão

em 1959, estreou em ‘Fando

e Lys’. Ganhou mais de 20 prêmios,

e se tornou num dos principais

nomes do teatro infantil,

autor de ‘A Farsa do Príncipe Invisível’

e ‘A Procura da Felicidade’.

A sua peça mais famosa foi

a adulta ‘Uma Rosa para Hitler’,

sobre relação abusiva do ditador

e uma judia.

Roberto

Peres

(1945-

2014).

Jornalista,

crítico e

diretor teatral,

dirigiu o Corpo Estável de

Dança de Santos (1991-1996),

a peça ‘Kasato Maru’ (2009), a

Escola de Artes Cênicas Wilson

Geraldo (2010-2014). Foi

coordenador cultural da Bienal

de Artes Visuais, da Pinacoteca

Benedicto Calixto (ambos entre

1993-1995) e do CCBEU (1998-

2004). Premiado pela APCA,

também lecionou em universidades

sobre artes, teatro e cinema.

Roberto

Villani

(1939-2017).

Jornalista, cronista,

autor e diretor teatral, especializou-se

sobre teatro escolar,

lecionando sobre a modalidade

nos anos 70 em colégios e unidades

de jovens infratores na

Baixada Santista. Artista premiado,

iniciou o Teatro Educativo

Roberto Villani, e coordenou

festivais do gênero. Dramatizou

‘Ploc, a borboleta mais linda

que já vi’ e ‘Zanzalá’. Foi secretário

de Cultura de Descalvado.

Textos: Lincoln Spada

Oscar von Pfuhl (1903-

1986). Nascido no Rio de Janeiro,

o médico exerceu a

dramaturgia em Santos, ganhando

destaque a partir dos

60 no teatro infanto-juvenil.

Escreveu ‘A Árvore que andava’

(1960), ‘Dom Chicote Mula

Manca’ (1969), ‘Romão e Julinha’

(1982), entre outros. Em

plena ditadura, seus textos

abordavam sobre a liberdade

de expressão.

Toninho Dantas (1948-

2010). Nascido no Guarujá,

cursou a Escola de Arte Dramática

(USP), atuou nas TVs

Gazeta e Record, em espetáculos

(‘Rasga Coração’ e ‘Revista

do Henfil’) e integrou a

Cia. de Ruth Escobar e o CPT

de Antunes Filho. Em Santos,

dirigiu nos anos 90 as edições

do Festival de Música Popular

Brasileira (Festhamar), do

Festival Santista de Teatro

(FESTA), além dos anos 2000

fundar

o Curta

Santos.

Revista Terceiro Ato ■ 23


Tep/Unisanta,

uma aula de

história

HISTÓRIA

Texto: Lincoln Spada

As dramatizações sobre

o capítulo camoniano

de Inês de Castro e os versos

secos de ‘Navio Negreiro’,

de Castro Alves, foram os

primeiros passos no palco

de uma geração de alunos

do Colégio Canadá que resultaram

na história do mais

longevo grupo cênico em

atividade na Baixada Santista,

o Teatro Experimental de

Pesquisa (TEP/Unisanta),

que alcançou recentemente

o seu Jubileu de Ouro.

Claro que, à época, entre

uma paródia de

‘Romeu e Julieta’

aqui e uma releitura

de ‘Júlio César

e Cleópatra’ acolá,

o coletivo se bastava

como Teatro

e Informação. Um

ano letivo depois,

era a vez de Teatro Amador

Cacilda Becker. No batismo

seguinte, Teatro Verdade de

Informação. As comédias

escapistas até corriam eventualmente

o risco da censura,

conforme cita o fundador

e atual diretor do TEP, Gilson

de Melo Barros.

“Tinha que ir

um censor lá no

Colégio Canadá

e depois dar um

certificado. E de

que a gente estava

proibido. Como é

que pode proibir

o meu escrito?”,

ele comenta em

entrevista à Fundação

Arquivo e

TEP encena peças ‘AcordAmor’

(acima) e ‘A Casa de Bernarda

Alba’ (abaixo, ambos do acervo

TEP/Unisanta).

Memória de Santos. “Foi

quando comecei a perceber

qual era o período que a

gente estava atravessando”.

A caminhada nos palcos se

torna fortalecida quando o

grupo participa de um curso

teatral que origina em ‘Ontem,

hoje e liberdade’.

A peça de André Machado

agrega os estudantes amadores

com outros atores de

Santos fazendo o elenco amadurecer

enquanto TEP, na

segunda metade dos anos 60.

“Junto dos anos 70, foram os

tempos das grandes montagens,

clássicos, em Santos”,

24 ■ Revista Terceiro Ato


HISTÓRIA

TEP no ‘Projeto Limites’ (acima) e encenando ‘Florkactus’

(abaixo, ambos do acervo TEP/Unisanta). Na página seguinte, o

diretor Gilson de Melo Barros (acervo do Curta Santos).

cita Gilson, em relação a ‘A Revolução

dos Bichos’, de George

Orwell, ‘A Casa de Bernard

Alba’, de Federico García Lorca,

‘As Troianas’, de Eurípedes. Em

1978, ‘O Grand Vizir’, de René

de Obaldia, consagra o grupo

no mexicano Festival Cervantino

de Teatro, premiando Nanci

Alonso como melhor atriz do

evento internacional.

É a jovem Nanci quem capitaneará

o grupo a partir dos

anos 70, destacando-se na direção

de ‘Capitães de Areia’,

peça que receberia aval e elogios

do seu autor, Jorge Amado.

Na década seguinte, entre

1987 e 1988, a diretora junto

de outros 70 artistas de Santos

Revista Terceiro Ato ■ 25


HISTÓRIA

decide fazer uma campanha em prol da

saúde de Henfil.

A montagem local de ‘Henfil - A Relativa

Revista’ seria para custear o tratamento

do cartunista hemofílico que foi

contaminado pelo vírus do HIV no hospital.

“Além de ajudarmos nosso amigo,

a peça era um alerta sobre a qualidade do

sangue nos hospitais”, comenta Nanci,

que convidou Gilson para dirigir o espetáculo.

Infelizmente, o desenhista falece

antes da estreia. A peça circula pelo Brasil,

ganhando prêmios em Santos, Ourinhos

e Pindamonhangaba.

A verba arrecadada da temporada,

como também de outros espetáculos nos

anos seguintes, é revertida para o projeto

fundado e até hoje coordenado por Nanci:

o Grupo de Apoio e Prevenção à Aids da

Baixada Santista (GAPA/BS). “As pessoas

sempre se sentiam acolhidas em nossas

sessões, porque falávamos de amor e solidariedade.

E, depois, abordávamos sobre

a prevenção à doença”, relembra Nanci.

Coube a Gilson, nos anos 90, prosseguir

com o TEP, fazendo morada na Unisanta.

Nesta etapa, textos autorais de Gilson

foram encenados no Brasil e no exterior.

Sob a sua direção, ‘Acordamor’, ‘Florkactus’

e ‘Vila Belmiro’, entre outros, tendo

como inovação o Projeto Limites, em que

o elenco levava o teatro para os ônibus

da Cidade.

Em seu histórico de mais de cinco

décadas, numa jornada que ainda promete

muitos passos e aplausos, o TEP/

Unisanta vivenciou ciclos com diversos

artistas, como Christian Malheiros, Domingos

Fuschini, Marco Antonio Rodrigues,

Miguel Hernandez, Silvio Roupa,

Toninho Dantas e Zellus Machado. ■

26 ■ Revista Terceiro Ato


Entrevistas

Da fé cênica ao

olho no olho

o árduo ofício do ator

Texto: Lincoln Spada

Um autor reluz em suas

novelas, o cineasta se

consagra em filmes, mas o

ator se encontra primordialmente

nos palcos. É inestimável

o árduo ofício do

ator, de dialogar diretamente

com o público, a poucos

metros, convidando-o com

a sua fé cênica que o espectador

assuma a imagética do

espetáculo como uma realidade

temporal, um cochicho

intimista de uma narrativa

que lhe abra o imaginário.

Recentemente, uma atriz

praiagrandense conseguiu

gerar essa empatia com a

plateia e o júri em ‘As Sogras’,

em 2019. Ao interpretar

Violeta, Regina Maura

foi a melhor atriz coadjuvante

no 12º Festival Nacional

de Teatro de Governador

Valadares (o FENTA,

em MG). “Estou muito feliz

em todos os sentidos”, ela

disse à Prefeitura de Praia

Grande. “Foi uma surpresa

para mim porque o elenco

é incrível, todos têm muito

destaque e, de repente, duas

atrizes da mesma peça sendo

indicadas já seria maravilhoso.

Ser premiada então,

me deixa emocionada”.

A mesma ansiedade da

artista idosa é partilhada

pelo jovem Marcus Di Bello.

Aos 27, Marcus é arte-educador,

dramaturgo, diretor

teatral e, claro, ator. O chamado

à carreira artística se

deu ainda na infância. “criava

minhas próprias brincadeiras

e sempre fui muito

observador quando era

criança, então acredito que

desenvolvi esse lado da ima-

Rosane Paulo

Rosane, qual a sua primeira

sua memória quanto à decisão

de ser atriz?

Minha mãe me levou para assistir

à ‘Paixão de Cristo’ no cinema,

e me emocionei com o sofrimento

de Maria, muito bem representado

pela atriz. Lembro também de

representar cenas de novela em

casa com as amigas, escrever

e dirigir cenas. Aos 11, de ter me

apaixonado pela Eva Wilma como

atriz [ela protagonizou ‘Mulheres

de Areia’ na TV Tupi], comprando

todas as revistas com alguma matéria

sobre ela ou as gêmeas Ruth

e Raquel. Bem verdade, nos anos

70, fui figurante da novela ‘Éramos

Seis’ [TV Tupi], já que as gravações

eram feitas ao lado do meu colégio.

Aproveitando a sua estreia nas

telinhas, e qual foi a primeira

experiência no teatro?

A primeira vez que subi num palco

foi no Clube Saldanha da Gama,

quando dirigi umas amigas e

apresentamos personagens da

‘Praça da Alegria’ [programa de

Crédito: Márcio Barreto

Revista Terceiro Ato ■ 27


ginação e da invenção nessa

época. Na adolescência, gostava

de escrever poesias e

de criar contos”. Iniciou no

teatro aos 17, à época, para

vencer a timidez.

Experiências do trabalho

coletivo | “Com

o teatro aprendi a lidar com

a introspecção, desenvolvi

minha expressividade e me

tornei mais sensível na relação

com o mundo e com as

pessoas. Fazer teatro é mergulhar

no imprevisível. É

se colocar em risco a partir

do encontro com o outro, é

relacionar diferentes experiências

de vida e perceber

que não estamos sozinhos

no mundo”. Desde 2009,

está na escola teatral Tescom,

onde também aprendeu

as funções de produção

e iluminação.

Envolvido em peças relacionadas

à escola, como ‘Sleep

Mode’, ‘Valsa nº 6’ e ‘Meu

Deus...’, Marcus considera

que a manutenção de uma

jornada num amplo grupo

teatral é uma transformação

constante. “Esse contato

contínuo com diferentes

pessoas foi e continua sendo

essencial para a renovação

do meu fazer teatral e, consequentemente,

da minha

relação com o mundo”.

Para ele, estar em um coletivo

teatral num mundo

Cia do Elefante/Grupo Tescom

em ‘Esta partida não será televisionada’

(Crédito da foto:

Rodrigo Montaldi Morales)

cada vez mais individualista

é revolucionário: “É gritar

para todo mundo ouvir que

é possível confiar no outro e

construir algo juntos”. O teatro

físico, o papel do clown,

linguagens futuristas ou atuação

minimalista já comporam

o vocabulário cênico de

Marcus nos palcos. Uma das

propostas mais pertinentes

humor de TV, criado por Manoel

humor de TV, criado por Manoel

de Nóbrega]. Atuei como Ofélia de Nóbrega]. Atuei como Ofélia e

Velha Surda (risos). Minha mãe

a Velha Surda (risos). Minha mãe

gostava, dava uma força, mas

gostava, dava uma força, mas

nunca permitiu que fizesse parte

nunca permitiu que fizesse parte

de um grupo de teatro, pois naquela

época não era muito bem

de um grupo de teatro, pois naquela

época não era muito bem

visto. Comecei mesmo fazer

visto. Comecei mesmo a fazer

participações em novelas teatros

depois, nos anos 90. Nessa

participações em novelas e teatros

depois, nos anos 90. Nessa

época, como já era mais madura,

época, como já era mais madura,

os diretores sempre me davam os

os diretores sempre me davam os

papéis mais fortes. Minha estreia

papéis mais fortes. Minha estreia

nessa época foi como Medéia.

nessa época foi como Medéia.

Depois interpretei Psiquê, Depois interpretei a Psiquê, a

Bernarda Alba...

Bernarda Alba...

que teatro mudou em você

com

E o que passar

teatro

do

mudou

tempo?

em você

com o passar do tempo?

Essa minha primeira experiência

em

Essa

teatro

minha

me

primeira

mostrou

experiência

que atuar

era

em teatro

muito amis

me mostrou

que uma

que

simples

atuar

imitação.

era muito

Exigia

mais

muito

que uma

mais

simples

do que

pensei,

imitação. Exigia

que esse

muito

deslumbre

mais do que

da

profissão

pensei, e

de

que

atriz

esse

de

deslumbre

televisão era

da

passageiro.

profissão de

Tornei-me

atriz de televisão

uma pessoa

era

passageiro.

mais sensível,

Tornei-me

ativa,

uma

aberta.

pessoa

teatro

mais

nos

sensível,

ajuda

ativa, enxergar

aberta.

mundo

O teatro

de

nos

outra

ajuda

forma

a enxergar

quando

o

promove

mundo de autoconhecimento.

outra forma quando

promove o autoconhecimento.

Como funciona seu processo

Como

criativo

funciona

para

o

um

seu

persona-

processo

criativo para um persona-

gem? Há referências externas,

gem? Há referências externas,

memórias afetivas ou pesquisas

de campo?

memórias afetivas ou pesquisas

de campo?

Sou uma atriz que se entrega

Sou uma atriz que se entrega

totalmente criação de um personagem.

Leio muito, pesquiso:

totalmente à criação de um personagem.

Leio muito, pesquiso:

acordo, durmo, almoço janto acordo, durmo, almoço e janto o

personagem. Sempre me colocando

no lugar dele, observando

personagem. Sempre me colocando

no lugar dele, observando

no dia dia tudo que poderia

no dia a dia tudo o que poderia

caber naquele que irei dar vida.

caber naquele que irei dar a vida.

Vou criado uma atmosfera, um

Vou criando uma atmosfera, um

clima. Tem ambiente, signo,

clima. Tem o ambiente, o signo,

passado que pode ser baseado

o passado que pode ser baseado

em minhas memórias afetivas, em minhas memórias afetivas, a

essência do personagem. Bem, essência do personagem. Bem, o

28 ■ Revista Terceiro Ato


Entrevistas

foi, com outros jovens, conceber antes das Jornadas

de Junho o teatro de rua ‘Esta Partida não

será televisionada’.

Vivências de enfrentar a rua | A obra da

Cia. do Elefante, em 2013, era uma experimentação

vívda do zeitgeist, em vista que manifestações

pleiteando serviços públicos com padrão

Fifa e questionamentos sobre o machismo no

futebol e a higienização urbana para erguer estádios

pautaram a agenda midiática em paralelo

à temporada do coletivo de alunos, ex-alunos

e professores do Tescom. “Nosso objetivo com

esse trabalho era ter autonomia de apresentar

sempre que quiséssemos. A rua nos proporcionou

um olho no olho com o público que nos trouxe

diversos aprendizados”.

Segundo Marcus, “Essa ideia de poder levar o

teatro para todos os cantos nos motivava a estar

em constante movimento”, à medida que adaptavam

a peça pelos bairros de Santos e por cidades

da Região e capital, onde a peça findou temporada

em 2016. De todo modo, considera que “os

reflexos desse processo estão presentes até hoje

em nosso fazer teatral”. Por anos, o artista brilha

com prêmios em festivais, em diferentes papéis,

desde o Fescete até o Curta Santos. ■

Marcus Di Bello no monólogo infantil ‘Cuscuz

com Maçã’ (Foto: Acervo pessoal)

mais importante é acreditar, passando

a verdade ao público.

Quais os papéis ou espetáculos

que mais te marcaram tanto no

palco, como na TV e nas telonas?

Todos os papéis são importantes,

gosto de todos. Porém, tem uns

que marcam mais. Na televisão,

claro, foi a imigrante italiana Mafalda

[Terra Nostra, 1999], que foi de

grande importância como experiência

nesse ano que trabalhei com

carteira registrada no Grupo Globo,

tendo ainda feito outras participações

na casa. No teatro, foi a

Medéia, que interpretei tanto dirigida

por Sérgio Guerreiro, como por

Charles Möeller. Já no cinema, foi

como uma prostituta em ‘Lovi Stori’,

curta dirigido por Dino Menezes

[exibido até no exterior] e onde

ganhei prêmios. Também queria

mencionar uma personagem bíblica,

a Herodíades [na Encenação

da Paixão de Cristo de Cubatão].

Quando leciona, você sempre

estimula exercícios de respiração

aos seus alunos. Como

você descreve a importância

da respiração via diafragma na

interpretação no palco?

Respiração é vida! É um processo

psíquico e fisiológico, involuntário

e voluntário; e temos o controle

de nossa respiração: acelerar,

retardar ou parar. E uso esses

exercícios como técnicas de respiração,

porque podemos assim

diferenciar o tom do choro e do

riso, da palavra e do grito. Enfim,

o controle da respiração é sempre

importante para não perder o fôlego

durante uma frase a ser dita, a

ponto de ser recompor de algum

esforço físico durante a cena.

Revista Terceiro Ato ■ 29


As origens de quem brilha nas telas

Textos: Nina Gagli

Esquete

Os personagens do teatro

Foto: Luiz Carlos Lacerda Foto: Raimundo Rosa Foto: Bruna Quevedo

Bete mendes

(1949-)

“A primeira vez que fui ao

teatro foi em Santos. não

vou conseguir ser nunca essa

atriz que faz teatro, volta pra

casa, e pronto, acabou. Por

mais que queira que minha

vida tenha um ritmo mais

pianinho, nunca conseguiria

me alienar das coisas que

acontecem ao meu redor.

Esse meu lado atriz é um

lado muito mais querido,

tenho de admitir. Mas a política

é também uma paixão,

mas é também uma guerra,

uma luta duríssima”

Em registro no livro ‘Bete

Mendes - O Cão e a Rosa’ (Coleção

Aplauso), de Rogério Menezes,

publicado em 2004

30 ■ Revista Terceiro Ato

Jandira Martini

(1944-)

“O TEFFI - Teatro Experimental

da Faculdade de Filosofia

[da Católica Unisantos,

hoje herdado pelo Gextus]

era um grupo muito sério (...).

Faziam parte a Eliana Rocha,

Carlos Alberto Soffredini, Rubens

Ewald Filho, Ney Latorraca

e eu (...). Estava formada

em Letras e fazia pós-graduação

na área. Foi quando, em

1970, fiz um papel em “Medéia”,

com Cleyde Yáconis no

papel principal. Fui ficando,

ficando... Se não fosse por

isto, provavelmente eu seguiria

uma carreira acadêmica”.

Em entrevista a Clara Monforte

para o Jornal da Orla em 2014.

Alexandre

Borges (1966-)

“Vim de Santos em 1985. Já

fazia teatro infantil lá com

meu pai, o Tanah Corrêa.

Sempre tive o sonho de ser

ator. A família sempre preocupada

(...). Em 1985, tomei

coragem e vim para fazer

um teste com o Antunes

Filho, no CPT [Centro de

Pesquisa Teatral], e passei.

E o grupo Boi Voador era

muito ligado ao Antunes

nessa época. Meu começo

foi ali no Sesc Consolação,

na Rua Dr. Vila Nova”.

Em entrevista ao Blog Miguel

Arcanjo Prado em 2014


Entrevistas

pautas identitárias

em cena

Texto: Nina Gagli e

Lincoln Spada

O

ano de 2019 ressoou as

potencialidades de três

artistas da região que iniciaram

nos palcos locais. O vicentino

Christian Malheiros,

de 19 anos, venceu o Troféu

APCA - Associação Paulista

de Críticos de Arte pelo

longa-metragem ‘Sócrates’,

após ver sua carreira ganhar

destaque internacional

ao ser protagonista da série

‘Sintonia’, pela plataforma

de streaming da Netflix.

Já a santista Renata Carvalho,

de 38 anos, está na

HBO em ‘Pico da Neblina’, de

Christian nas peças ‘Egbé’, da

Wídia Cultural (à esq., DL/Arquivo)

e no sucesso ‘Fedra’ (à

dir, crédito: Edson Kumasaka)

Francisco e Fernando Meirelles,

e Rodrigo Pesavento,

estrelou no filme ‘Os Primeiros

Soldados’, de Rodrigo

de Oliveira, e no videoclipe

‘Das Estrelas’, da banda As

Bahias e a Cozinha Mineira.

Laureada com o 8º Prêmio

Questão de Crítica, consolidou-se

como uma das vozes

da representatividade trans

também nos palcos.

Ela escreveu e estreou

‘Manifesto Transpofágico’,

dirigido

por

Luiz

Fernando

Marques,

a o

mesmo

tempo que está em temporada

internacional com ‘O

Evangelho Segundo Jesus,

Rainha do Céu’, dirigido por

Natalia Mallo e com texto

de Jo Clifford. Por sua vez,

a cubatense Tamirys O’Hanna,

de 25 anos, retornou a

Cubatão após uma meteórica

ascensão, com pesquisas

e estudos na Europa. A sua

retomada a inseriu na atual

única ocupação artística ativa

na Baixada, o Galpão Cul-

Revista Terceiro Ato ■ 31


tural de Cubatão.

Ali, participa da programação

e de espetáculos,

como ‘Vila Parisi’, criação

coletiva do Coletivo 302, e

protagonizando como Imperatriz

Leopoldina a montagem

‘Caminhos da Independência’,

do Teatro do Kaos,

sob direção e texto respectivamente

de Miriam Vieira e

Dione Carlos. Em cartaz em

‘3%’, pela Netflix, participa

de ‘Os 3 Mundos’, produção

da Sesi-SP com direção

de Paula Picarelli e Nelson

Baskerville que ganhou o

Prêmio Shell de Teatro. Pela

peça, Tamirys foi indicada ao

Prêmio Aplauso Brasil. ■

Tamirys O’Hanna:

“Teatro é o meu futuro…”

Arte no andar acima | A

princípio, o teatro não era

a minha primeira opção.

Pensava em trabalhar com

Gastronomia. E aí quando

estava no Libertas, um

[extinto] curso preparatório

para ETEC, eu estava

tentando aprender, mas no

andar de cinema conheci o

Fabiano [Di Melo, diretor

teatral], que dava aula de

teatro. Fiquei interessada,

subi e acompanhei as aulas

e ensaios. Ou seja, caí de

paraquedas, como se os ensaios

altos

dos alunos

no andar

de cima

fossem um

chamado.

A 63 quilômetros | O Teentrevistas

Quando parei para pensar,

já não me imaginava

fazendo outras coisas. Há

questão da minha formação

ser mais conservadora, pela

Igreja Batista. E o teatro

tem esse espaço de discussão

de tabus, imagina, eu,

mulher, preta, lésbica. Bem,

em 2008, o Fabiano me

chamou para o [Teatro do]

Kaos. [Fabiano era um dos

cursos profissionalizantes

de atores no Kaos] Minha

primeira peça era ‘Este Ovo

é um Galo’. E lá no Kaos, o

Douglas [Lima] estava me

incentivando para seguir

esse caminho do teatro, em

fazer a EAD-USP.

Tamirys em ‘3%’ (à esq., Netflix/reprodução)

e, antes, em ‘O Sertanejo e o Tinhoso’, da Cia

Histórias do Baú (à dir., foto/divulgação)

32 ■ Revista Terceiro Ato


Interpreto uma guarda, policial.

Recebemos o texto, há

um período de ensaio, treinamento

com a galera dos

efeitos especiais. Depois rodamos

as cenas meses mais

tarde e há todo um período,

um ano mais ou menos para

editarem, finalizarem e ter o

lançamento dos episódios.

Na trajetória de Tamirys, estudos de Teatro de Formas Animadas

e encenou peças pela Europa (Crédito da foto: CastingLab)

atro do Kaos foi uma porta

de entrada para eu passar

na faculdade [de Artes Dramáticas].

Foi minha primeira

bagagem, consegui o

DRT por causa da formação

lá, com o Lourimar [Vieira,

diretor do Kaos]. Fui da

primeira turma [do curso

profissionalizante], ali que

conheci o [diretor Nelson]

Baskerville e a Cia Mungunzá.

A EAD é o melhor curso

do país, quem não quer ir

lá? Você pode conhecer os

melhores professores. Eu

entendi que aquilo era muito

grande, era a primeira vez

que eu morava fora da cidade.

Eu rompi de certa forma

com a cidade e ali tem grandes

nomes, grandes mestres.

O teatro envolve toda uma

questão de escuta, o teatro

é um mergulho da empatia.

Escolher fazer teatro, escolher

fazer teatro ainda mais

em tempos conservadores...

Porcentagem de streaming

| Por conta da EAD,

recebi o convite dos diretores

do ‘3%’. Eles faziam

audiovisual na USP e nos

chamavam para o teste,

precisavam de pessoas. Disse

que não gostaria de participar,

mais tarde, quando

estavam na Netflix. Só na segunda

temporada (até porque

estava fora do país), Aí

participei da segunda temporada

e da terceira, como a

guarda Marta. Tudo é muito

bem planejado, como uma

grande produção deve ser.

O teatro pede a mão |

A resistência inicial foi com

meus pais, lembro que o

Amauri Alves [então secretário

de Cultura de São Vicente

e diretor da Encenação

da Fundação da Vila de São

Vicente] foi conversar com

meus pais, dizer que o teatro

era meu futuro. Ele tinha me

dirigido na Encenação, foi

um pai para mim, um pai

do coração, e me levou para

participar da encenação

‘Um Porto para o Mundo’

[em Vila do Conde, em Portugal].

Fui fazer a formação

dos coros cênicos, onde é um

trabalho com 400 pessoas.

Fiquei por um ano em Portugal,

onde pesquisei com o

Marcelo Lafontana sobre o

Teatro de Formas Animadas.

Também participei da

companhia do Amauri, onde

apresentamos em algumas

cidades da Europa a peça ‘A

Oca do Curumim’ [teatro infantil

de lendas brasileiras],

fomos de norte a sul de Portugal.

Revista Terceiro Ato ■ 33


Christian Malheiros:

entrevistas

“Tudo o que conquistei é estudo,

vocação e estratégia

Amor à primeira vista |

Sabia que o teatro já era sagrado

desde o primeiro dia

em que pisei, numa turma

do Programa Mais Educação

da EMEF Mário Covas.

Isso foi aos nove anos. Lá

tinha turma de hip hop, de

teatro, e, bem, comecei a puxar

meu bonde. Muito ativo,

fui escondido de minha mãe,

toda quinta e terça à tarde.

Falsifiquei até a assinatura

dela na autorização (risos).

Aí teve um dia que ela me

perguntou o que tanto eu

estudava à tarde, e eu já tinha

que pedir dinheiro para

o figurino da apresentação.

Não consegui esconder (...).

A família em si sempre respeitou

minha decisão.

Herança dos humildes

| Geralmente, em uma família

mais pobre como a minha,

você precisa ajudar em

casa. Eu fazia muitos bicos,

já trabalhei em bar, já vendi

sanduíche na praia, já fiz estágio

no Tribunal da Justiça

de São Paulo (...). Meus pais

vieram de uma origem muito

humilde, sempre quiseram

que a gente estudasse,

fosse alguém na vida. Meu

pai falava: “Estuda para ser

advogado, comprar a sua

casa”. E o que meus pais enfatizavam

muito era para

a gente ter honestidade,

transparência, saber como

tratar as pessoas, nunca pegar

nada de ninguém. “Saiba

sempre entrar e sair pelo

mesmo lugar”. Você pode

amar ou odiar as pessoas,

mas pelo menos, mantenha

a educação, e que você deve

ser a pessoa mais educada,

simpática, linda do mundo.

Vou tentar todo dia |

Costumo dizer uma coisa que

às vezes até discordo (risos).

“95% de tudo o que conquistei

até hoje é estudo, é vocação, é

estratégia. Só 5% é talento”.

Estratégia no sentido de saber

onde você quer chegar.

Você tem que saber. Eu sempre

estudei muito, quando ia

para um lugar, eu sempre

soube quem estava fazendo o

que, como chegar nas pessoas,

quando ia para uma peça

estudava sobre a proposta

do grupo, a sinopse, além da

história do teatro brasileiro.

Por exemplo, a estratégia

traçada para entrar na EAC

[ligações diárias para conseguir

um teste e, em seguida,

pedir apoio para professora

de artes para o teste de apresentar

uma cena]. Vou tentar

todo dia até conseguir.

E sou assim em tudo que

faço, quando estabeleço uma

meta, vou muito munido de

estudos, de força de vontade.

Teatro de raiz e de vocação

| Além da EAC, eu

passei pelo CAMPSV, pelo

TEP, Teatro Wídia, Vila do

Teatro, SESI, o Teatro Genoma.

Na companhias, tem

algo que é comum a todas. É

o teatro amador, o teatro de

raiz. Ali é onde você entende

o que é a profissão, o que

é o fazer esse teatro, onde

você só tem o conhecimento

e a sua vontade de fazer

ao seu favor. Você não tem

patrocínio, não tem incentivo

do poder público, e levo

muito essa relação a sério,

pois como aprendi a dar

valor a profissão. Façam

teatro como vocação. Porque

você só fica no teatro se

você ama. Se você não ama,

vai embora, porque não tem

34 ■ Revista Terceiro Ato


nenhuma coisa atrativa a

não ser a magia do palco.

(...) Eu só sei fazer teatro, é

o que me move, o que me faz

pensar, o que me faz levantar

da cama no dia seguinte.

De contribuir para uma

mudança no mundo. Nessa

questão toda que levo muito

comigo é que o teatro me fez

aprender a ser humano, a

ter um olhar de compaixão

com o outro, com as pessoas.

Filme ou estágio | Olha,

o ‘Sócrates’ foi uma coisa

muito louca. Porque nunca

quis fazer cinema(...). Bem,

vi a chamada do teste de

elenco do ‘Sócrates’ na TV.

E eu já logo critiquei, imagina,

ficar debaixo do sol por

horas pra depois fazer uma

ou outra cena. Não vou, não

quero, não vou fazer. Enquanto

isso, estava dando

aula na rede estadual pelo

Mais Educação, e o Alex

[Alexandre Moratto, diretor

do filme] e a produção do

[Instituto] Querô entraram

na sala procurando o pessoal

para fazer teste no filme.

Todos os meus alunos quiseram

ir. Eu já ia sair. O Alex,

“ah, não vem fazer o teste?

Vem fazer o teste?”. Tá. Fiz o

teste de improviso, aí começaram

a me chamar para

mais um teste, outro, outro,

foi uma bateria. Já estava

exausto! Aí já tinha arranjado

o estágio no Tribunal

de Justiça. Quando

estava indo para

a EAC, recebi uma ligação

do Querô. Era

o Alex. Não comecei

nem a deixar ele terminar.

“Olha, meu

tempo é supercurto,

porque neste horário

da tarde estou fazendo

o estágio”. Aí ele

falou: “O papel é seu”.

Itinerário de

emoções | Gravei

o filme, e foi um presente.

Com ‘Sócrates’, a gente

participou de muitos festivais

em 2018, o filme estreou

em Los Angeles, percorreu

Canadá, França, já se apresentou

em Cuba, já se apresentou

na Grécia. É até um

pouco engraçado no festival

da Alemanha [International

Filmfestival Mannheim-

-Heidelberg], porque só há

quatro prêmios no festival, e

eles dão só para diretores ou

filmes. Não existe um prêmio

específico de ator, mas ganhei

o prêmio. Isso foi muito

bacana. [Christian também

foi premiado no Festival

Mix Brasil de Cultura da Diversidade

e indicado ao Film

Independent Spirit Awards,

principal mostra de cinema

independente].

Uma lembrança que tive

era da Mostra de Cinema

Christian protagonizou a série

‘Sintonia’ (Netflix/reprodução)

de Gostoso, lá em Natal. É

uma ONG, tipo o [Instituto]

Querô, quem faz o festival.

Cheguei na cidade, e parecia

uma celebridade. Aí cheguei

lá e durante a entrevista no

making of, o menino que segurava

a luz [assistente de

fotografia] parou, deu uma

pausa para trocar a bateria

da câmera. Quando me

reconheceu, que era do filme

‘Sócrates’ que ia estrear

mais tarde, o menino chorou.

Menino, uns 20 e poucos

anos. Ele dizia que graças ao

filme ele tinha mudado, que

estava com vontade de mudar

o jeito de lidar com a

família, de ajudar mais os

pais. Ele caiu em prantos.

Aquilo foi tão genuíno, tão

marcante. ■

Revista Terceiro Ato ■ 35


Renata Carvalho,

a Rainha do Céu

“E se Jesus

voltasse agora à

Terra como uma

travesti? Não era

para amar ao próximo

como a si me-

smo?”

Johnny Hooker, em

show em 2018

A quem interessa retratar

a imagem de Cristo como

transexual? Isso é liberdade

de expressão? É arte? É

cultura?”, tuitou o presidente

Jair Bolsonaro sobre ‘O

Evangelho segundo Jesus,

Rainha do Céu’. Protagonizado

por Renata Carvalho, o

monólogo pautou uma via-

-crúcis de debates de inúmeras

pessoas públicas a cada

sessão. Ora censuras, ora o

‘efeito Streisand’ lotando teatros

pela América e Europa.

Na contramão dos tempos

de Madalena, parte do

atual Brasil atirou pedras o

quanto pôde contra a atriz.

Teve deputado ameaçando

processo, juiz proibindo

sessão, prefeitos fechando

portas, sessão sem local revelado,

polícia na plateia.

“O mais surpreendente é

que todo esse ódio vem de

pessoas que se autointitulam

cidadãos de bem e

defensores da palavra de

Deus”, constata a diretora

da obra, Natalia Mallo.

Renata se tornou rosto e

corpo de quem resiste à intolerância

de um país-continente.

Com outras

trans no

auditório da

Universidade

Federal de

Santa Catarina

(UFSC),

disse: “Esse

espetáculo

é atacado

desde sua

estreia, em

2016. Jesus

é a imagem e

semelhança

de todo mundo.

Menos de

nós, pessoas

trans. É ‘inapropriado’,

é

‘sexualizado’.

Isso se deve

entrevistas

à construção social do que

vocês, cisgêneros, imaginam

ser uma travesti. As pessoas

dizem que não são preconceituosas.

Mas quando falamos

‘Jesus travesti’, as máscaras

caem. Isso é fruto da criminalização

da nossa identidade,

dessa construção social”.

Até então, em 2018, a

peça já alcançava 200 sessões

com mais de 16 mil espectadores.

No enredo, “há

releitura da parábola do filho

pródigo, da samaritana no

poço, das bem-aventuran-

Renata Carvalho no monólogo

‘Dentro de mim mora outra’

(Acervo pessoal)

36 ■ Revista Terceiro Ato


entrevistas

A atriz na peça regional ‘Zona!’, de O Coletivo (à esq., crédito da foto: Adilson Félix) e, anos depois,

no espetáculo ‘O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu’ (à dir., crédito da foto: Lenise Pinheiro)

ças”, destaca o filósofo Leandro

Karnal. “A peça é muito

boa, a partir de uma reflexão

correta teologicamente sobre

a predileção de Jesus pela

humanidade pecadora e não

pelos doutores da lei”.

Renata iniciou no teatro

em 1996, quando leu no Diário

Oficial de Santos que

a Secult oferecia um curso

teatral. Três anos depois,

estava no palco do TEP em

‘A Casa de Bernarda Alba’.

Logo, passou a fazer direção

teatral, sendo que em 2002,

fundou a Cia. Ohm de Teatro.

Já em 2009, durante a

cena rodriguiana baseada

em ‘O Delicado’, sob direção

de Maria Tornatore descobriu-se

travesti. Em 2012,

Maria a dirigiria no teatro

biográfico ‘Dentro de Mim

mora Outra’. Produtora de

festivais, como o FESTA e

a Sansex, Renata se dividia

na vocação teatral, com os

ofícios de cabeleireira e maquiadora.

Também foi agente de

prevenção da Secretaria de

Saúde de Santos, no início

da década, onde ainda atuava

em peças de O Coletivo

nas ruas da Cidade. Quase 10

anos depois, o Doutor em Letras

(UFPE) Bruno Siqueira

relata a vivacidade da atriz na

peça que marcou de vez a sua

carreira. “O momento final

da peça é muito emocionante,

na medida em que Renata

Carvalho distribui pão para

a plateia, afirmando ser seu

próprio corpo: um corpo que

comemos e nos saciamos. Pedindo

para que todos se dessem

as mãos em oração”.

Já o crítico teatral Dirceu

Alves Jr., destaca à Veja:

“Em linha dramatúrgica próxima

à de outro solo, ‘A Alma

Imoral’, a peça mistura depoimento

e contação de história

para tratar de opressão

e intolerância, especialmente

a sofrida pelos transgêneros.

O carisma de Renata garante

a empatia do público”.

Complementa-se a crítica de

Caio Luidvik para a Folha de

S. Paulo, que considera que o

espetáculo “além de poético

e envolvente, presta emocionante

tributo ao próprio

Filho de Deus”. Afinal, “sabe

dosar a pregação propriamente

dita com ações físicas,

música e imagens potentes, o

que deve muito à expressividade

da atriz”. ■

Revista Terceiro Ato ■ 37


Panorama

O tear estendido da

nova manufatura

Textos: Lincoln Spada

O

ano de 2019 consolidou

a edição experimental

da Manufatura de

Monólogos, idealizada

pelo programador cultural,

Silvio Luiz, do SESC Santos.

A proposta contemplava

projetos de monólogos

para serem desenvolvidos

inicialmente na Fortaleza

da Barra Grande de Santo

Amaro durante o MIRADA

- Festival Ibero-Americano

de Artes Cênicas, em

setembro de 2018.

A inovação é de que os

núcleos cênicos teriam a

orientação gratuita de Luiz

Fernando Lopes Marques, o

Lubi, e Nelson Baskerville.

Ambos diretores teatrais

santistas, atualmente

estão em cartaz no circuito

paulistano. Por exemplo, Lubi

formou-se na EAD (USP)

e é diretor e co-criador de

espetáculos do Grupo XIX de

Teatro desde 2001. Também

desde 2000, orienta o Núcleo

de Direção da Escola Livre de

Teatro de Santo André.

Entretanto, o número

maior de projetos inscritos

de obras - ao todo, 11, de

Cubatão, Guarujá, Santos

e São Vicente -, obrigaram

a reformulação da

manufatura. A dramaturga

paulistana Dione Carlos foi

convidada a também integrar

o time de orientadores.

“Nesta nova fase, cada

monólogo foi transformado

em um espetáculo teatral”,

descreveu Silvio Luiz.

A estreia de fato da

temporada, que previa um

trimestre de pesquisas, foi

prolongada para fevereiro

de 2019. Além disso, alguns

monólogos se ampliaram

em peças - como ‘Resíduos’.

Logo, a proposta repercutiu

para além das sessões únicas

do teatro do Sesc. Parte dos

coletivos organizaram as suas

peças no Teatro Braz Cubas,

em Santos, na mostra ‘Abril

para Cena’, em referência ao

mês das sessões.

Entre maio e junho,

tiveram produções que

participaram da campanha

de popularização do teatro

no Teatro do Kaos (Cubatão)

e realizaram uma mostra de

apresentações no teatro de

contêiner da Cia. Mungunzá

(São Paulo), núcleo já

dirigido por Baskerville.

Ainda, ‘Benjamin’, da

Cia. Trilha de Teatro, e ‘O

Suicídio mais bonito do

mundo', do Coletivo Valsa

Pra Lua, circularam por

festivais nacionais. Já ‘Não

Ela - Experimento Pudica’

esteve em cartaz no Espaço

Satyros (São Paulo).

Em geral, as peças

também são frutos da

cena contemporânea. As

obras, mesmo aquelas que

se baseiam na literatura,

como ‘Nostalgia do Amor

Ausente’, de Pri Calazans,

têm facetas sobre as

pautas identitárias. As

desiguldades racial, de

gênero e diversidade

sexual estão explicitadas

em ‘Lágrimas de Laura’, da

Cia. Vozavó, ‘Malditas’, de

Malvina Costa e Daniela

Paulino, e ‘Cartas para

Satã’, protagonizado por

Jackson França. A seguir,

resenhas sobre parte dos

espetáculos semeados pelo

projeto do SESC Santos.

38 ■ Revista Terceiro Ato


Nostalgia do Amor Ausente

A expectativa de reencontrar quem ama é um prato de

angústia e poesia. E a atriz Pri Calazans janta conosco

tais fenômenos em ‘Nostalgia do Amor Ausente’. Baseada

no conto homônimo do gaúcho Walmor Santos,

a 830 quilômetros do Teatro Braz Cubas, a peça

aborda a distância de dois anjos amantes. Ou melhor,

almas gêmeas.

A melancolia está entre cigarros, a cadeira vazia, a

luz noir de um ventilador de teto sob o holofote. Ali,

Lúcifer narra a separação divina com Gabriel: exilado

por ter sido mais amado que o Pai. A releitura de fatos

bíblicos - Éden e Quaresma - são ambientes para interpretações

sutis sobre casais desfeitos e, na dramaturgia,

o estigma e a reclusão de homossexuais.

No palco, uma ironia implícita (o anjo caído

como uma mulher) é uma descontrução dos padrões

barrocos (atriz e retrato do amado são negros). A

sutileza não é do romantismo ipsis litteris do conto

teatralizado, pois a força vem do repertório, colorido

pelo piano de Marcelo Marinho. Ponto da diretora,

Déia Oliveira.

O brega e o biscoito fino se entrelaçam no palco.

‘Era pra ser’, de Bethânia, ‘Siga seu rumo’, de Pimpinela,

‘Vá pro inferno com seu amor’, de Milionário

e José Rico, ‘Não’, de Tim Bernardes. Todas as melodias

enaltecem o potencial de Pri em cena, que brilha

quando performática. Se cenas da prosa até ofertam

senso de perdão ao anti-herói, é o musical que nos

aplaca em dores existenciais.

Benjamin, o Filho da Felicidade

Após 130 anos da estreia do primeiro grande palhaço

negro brasileiro, ‘Benjamin - O Filho da Felicidade’

chegou aos palcos por artistas locais na Baixada Santista.

Um teatro de bonecos em miniatura e tamanho

real remetem às cenas do pai capataz e da mãe escrava:

“O destino de negro era fugir”.

Tal máxima ganhar ares ciganos quando o prota-

De cima para baixo, foto das peças ‘Nostalgia do Amor

Ausente’ (Crédito: Lairton Carvalho), ‘Benjamin, o Filho

da Felicidade’ (Crédito: Fausto Franco) e ‘Lágrimas de

Laura (Crédito: Catarina Bertholini)

Revista Terceiro Ato ■ 39


gonista vai ao Circo Spinelli,

mas a peça tem como mote

‘fazer o palhaço’ ou ‘ser o palhaço’.

Benjamin tomou batatas

e tomates até rumar à

segunda opção. Este clímax

é em Santos, numa memória

vexatória sobre a hostilidade

da ilha diante do negro no picadeiro.

O clima perene de circo

vem da vara cênica com

bambolês bicolores evidenciando

de cartolas a discos.

O elenco em quarteto de um

idoso que beira ao Benjamin

(Hugo Henrique) acima de

uma torre ornada de figurinos

mambembes. Números

de clown vão ao piso: o

jovem Benjamin (Jair Moreira)

tem suporte de duas

mímicas (Emanuella Alves e

Kevelin Santos).

Jair é um ótimo anfitrião

e joga bem em cena com

Emanuella. Além das esquetes

de corre-corre ou com

baldes, o riso alcança o ápice

nas imitações do marechal

Floriano e do crítico teatral.

O teatro coincide com o ritmo

da linguagem circense.

Tem direito às ‘Lonas Azuis’,

a tributos artísticos e ótima

interação com o público.

Tudo soa bem-vindo, êxito

da diretora Miriam Vieira.

Entusiasmo maior é que

‘Benjamin’ surpreende por

não remeter a nenhuma das

peças recentes da diretora,

do elenco ou do dramaturgo

Ronaldo Fernandes. Tornam

em memória viva a história

do multifacetado ator, autor,

compositor, cantor, figurinista,

palhaço e produtor cultural

do teatro circo brasileiro.

Lágrimas de Laura

É preciso parir a avó Laura.

Nasce ‘Lágrimas de Laura’,

peça protagonizada por Priscila

Ribeiro, que nos convence

a viajar épocas tão somente

com uma cadeira colonial

e um espelho emoldurado na

vertical, levemente coberto

com uma toalha de renda.

Um manifesto: a força do teatro

está na dramaturgia assinada

pela atriz.

A obra compreende na

matriarca envelhecendo

diante

da narradora.

Reflexões sobre

corpo, força e servidão

atravessam

todo o enredo,

entremeado de

cenas singelas. A

porta-bandeira

durante o hino da

X-9 e a agraciada

durante o ritmo

das orixás. Maior

dor para a plateia

vem da saudade,

Panorama

do banzo, interpretado entre

personagens que podem

ser a avó, a neta, outra, mas

também as demais mulheres

negras.

Fácil se identificar, compreender

a história da senhora

que ensina a lidar com a

dor engolindo o choro. Por

vezes, a artista passeia com o

espelho para o público, ecoando

as suas sentenças, como

“eu acho que o afeto é um hábito”.

O desafio da diretora

Juliana do Espírito Santo é

ampliar o espaço cênico ou a

movimentação da atriz, a fim

também de potencializar a

sua expressão vocal.

Não à toa é marcante

quando o palco se torna num

rito de canções e bençãos de

arruda. Último ato, é uma

verdadeira homenagem ao

Letícia Tavares Homem em ‘Não Ela - experimento

vênus pudica’ (Crédito da foto: Lairton Carvalho)

40 ■ Revista Terceiro Ato


‘Resíduos’ (Crédito da foto:

Bruna Quevedo)

público em geral - em especial

às mulheres negras presentes.

Sem detalhar, a peça

é uma moldura coerente a

dar visibilidade a quem é silenciada

diariamente.

Não Ela - Experi-

mento Vênus Pudica

Chega ao 34º dia “o procedimento

que despe o passado

obsceno de uma mulher para

a plenitude de sua existência”.

E o monólogo ‘Não Ela

- Experimento Vênus Pudica’

logo nos leva à freudiana

pulsão de morte. Fruto da

autenticidade de Letícia Tavares

no trabalho mais maturado

da atriz que já vi em

Plínio Marcos, García Lorca

e musical infantil.

Em um jogo de luzes e

sombras, a peça de plásticos

infinitos é um tratamento de

choque para a plateia. Nas

fileiras, mulheres consentiram

com a personagem, em

lágrimas ao tentar recordar

a cicatriz cesariana. Lá se

vão memórias do primeiro

banho e das incertezas de

quem sente na pele a cultura

maternal vigente.

Entre homens, o striptease

é sucedido por uma repulsa

interna. A atriz relata

uma série de assédios desde

criança por um primo ou

um segurança de mercado,

até fazer oral por quem lhe

prometera amor eterno. “As

coisas foram acontecendo

sem me permitir a sentir”

repercute como síntese das

experiências de afeto de boa

parte das mulheres.

O processo de (des)construção

do papel da mulher na

sociedade corta toda a montagem:

pulverizada de dualidades.

Ora a virgem santa,

ora a femme fatale. E a artista

ocupa e decupa cada lugar-

-tempo do teatro, com direito

a fôlegos, como hablar amores.

Enfim, é uma carga emocional

da personagem que

extravasa a ponto de nos atar

até o fim. À ela, cabe aninhar,

temer ou admirar?

Resíduos

Salgadinhos, pétalas e um

samba-canção de outras gerações.

As dimensões da caixa

preta se emboloram no

cruzamento do que o trio de

atores descarta no decorrer

de ‘Resíduos’. A não-palavra

do elenco é substituída por

um fantástico balé do cotidiano.

Não que sons ilustram

a maioria da peça, mas se cadencia

um ritmo nos passos

dos artistas.

A individualidade no vai e

vem de cada ator tarda os clímaxs:

pontualmente quando

trio ou duplas. Sozinhos, Felippe

Alves, Marcus Di Bello

e Paola Caruso retratam nossas

intimidades, como uma

ida ao cinema ou um desleixo

no quarto. Cabe aqui memórias

da plateia ou uma reflexão

sobre a quantidade de

lixo diário que geramos.

Juntos em cena, a sustentabilidade

é sobreposta pelo

imaginário da plateia. Um

êxodo representado quando

uma deixa a mala, outro

abre os pertences. Noutrora,

a falta de entrosamento

refletida quando revezam

suco e bolachas. O ápice é a

subjetividade do cortejo dos

atores enfileirando cadeiras

a um contragosto de Paola a

se assentar.

Também há risos do público,

durante áudios icônicos

de novela. O jogo lúdico de

emergir o imaginário comum

é o forte da peça dirigida por

Dario Felix. O resultado da

dramaturgia coletiva é uma

evolução de abstrair estéticas

e pautas de elenco (‘Meu

Deus...’) e direção (‘Sleep

Mode’). Uma interpretação

inspirada dos versos de

Drummond: “Se de tudo fica

um pouco, mas por que não

ficaria um pouco de mim?”. ■

Revista Terceiro Ato ■ 41


PERFIL

"Precisamos ter consciência

do nosso papel como artista"

Cria do teatro regional e militante do movimento cultural desde o regime militar,

Miriam Vieira defende a arte ‘que olha nos olhos’ do público – e o faz pensar

Textos: Rafaella Martinez

Foi ainda nos primeiros

anos escolares que

Miriam Aparecida Vieira

se descobriu ‘do teatro’,

embora sonhasse mesmo em

ser professora ou aeromoça.

A primeira direção veio na

1ª série, onde escreveu um

espetáculo sobre Folclore.

“Ela disse: a Miriam vai fazer

teatro. Eu tinha capacidade

de articular, falava alto, não

tinha vergonha, coisas que

faço até hoje”, relembra aos

risos a mulher que esteve

à frente de espetáculos

memoráveis, como ‘Reclame

– uma história de amor’.

Da escola, Miriam rumou

para o teatro na igreja,

onde encenou espetáculos

bíblicos durante o período da

catequese. De lá, migrou aos

13 anos para o extinto grupo

Centauro, da Vila Margarida,

de onde passou a participar

do movimento cultural

organizado de Santos.

“À medida que entrava

no segundo grau comecei a

me envolver no movimento

de teatro. Tudo começou

ali, onde os grupos tinham

pegadas populares em plena

ditadura. Fiz parte do TEMO,

que junto com outros cinco

grupos produziram muitos

trabalhos”, relembra.

Na década de 80, passou

a fazer parte do Movimento

Organizado de Teatro do

Estado e do Movimento

Nacional de Teatro, onde

atuou como secretária e

presidente da Confederação

de Teatro de São Paulo, no

mesmo período que passou

a produzir e atuar na Cia

Pernilongos Insolentes

Pintam de Humor a Tragédia.

“Minha história do

movimento de teatro e

do fazer teatral nunca se

desvinculou. Sempre fiz as

duas coisas juntas: produção

e discussão de uma política

que contemplasse não só a

produção propriamente dita,

mas também a ocupação

pública dos espaços”, conta.

Ainda combatente, ela

afirma que existe hoje

uma ‘realidade perversa’

na produção cultural das

cidades. "À medida que a

gente perdeu espaço nos

lugares oficiais das cidades

fomos indo para locais

alternativos e hoje em dia a

gente não vê produções das

cidades dentro dos palcos

convencionais. Não que não

é importante ocupar todos

os espaços, mas é isso, temos

que ocupar todos os locais.

Não temos que ficar restritos

ao alternativo, precisamos

ocupar os palcos, as ruas e

todas as salas”, afirma.

Diretora de espetáculos

da Cia Trilha e da Pixotes

e Quixotes de São Vicente,

Miriam afirma que acredita

em um teatro que se

comunica com o público,

olhando nos olhos da plateia.

“Tenho uma linha muito

próxima ao popular, que foi o

teatro que eu aprendi a fazer.

Tive grandes professores de

teatro, como Tanah Corrêa,

Neyde Veneziano, Roberto

Marchese e Amauri Alves,

que de uma forma ou de outra

acabaram me influenciando.

Gosto de um teatro que

conversa com a plateia, que

42 ■ Revista Terceiro Ato


PERFIL

Moradora de São Vicente, Miriam se descobriu 'do teatro' ainda na infância (foto: danilo tavares)

vai para plateia e que tem

cena de plateia”, conta.

Miriam afirma também

que o trabalho é diretamente

impactado pelos atores,

que criam junto a estética.

“Eu trabalho muito com

os atores que exercem esse

jogo. Eu como diretora não

faço teatro pós-dramático,

não tenho a concepção de

uma plateia estática. Gosto

também de trabalhos que me

desafiem, como o 'Benjamin'

e 'Reclame...', um espetáculo

onde os atores foram

construindo junto. O ator é

o ser-criador e o diretor nada

mais é do que o organizador

da cena. Eu trabalho com o

que o ator me propõe”.

LINHAS DE TRABALHO

Atualmente, Miriam está na

direção de dois espetáculos

distintos. Em 'Benjamin - o

Filho da Felicidade', promove

a discussão do abandono e

do apagamento dos artistas

negros do país. “É um dos

homens mais importantes,

que fez o circo-teatro e que

morreu a mingua. Só se

aposentou porque um grupo

se reuniu para provar que ele

era artista, que é exatamente

o que a gente vive hoje.

A história se repete, nem

sempre como farsa. É

preciso identificar esses

protagonistas. Nossa linha

é a poética da cena e não o

discurso. Acho que todos os

teatros são válidos, mas eu

optei pela poesia, embora

seja um espetáculo muito

duro”, finaliza.

Já 'O livro proibido de

Madalena' vem da história

de uma mulher que está

no convento obrigada. “É

a discussão da liberdade

da mulher. Por que precisa

ser dentro dos padrões?

Madalena rompe com isso

e ela vai para fogueira, mas

não a personagem e sim

todas as mulheres”, conta.

Com ambas as peças

denunciando problemas

sociais, Miriam afirma que

os tempos são difíceis e a arte

precisa resistir. “Precisamos

ter consciência do nosso

papel enquanto artista nessa

sociedade. Não dá para ficar

calado, vendo os absurdos

que estão acontecendo nesse

país. Não dá para aturar que

se faça no Estado o que bem

entender com a cultura. A

cultura não pertence a eles

e sim ao povo e a quem faz.

Não adianta ditar regras, pois

vamos resistir”, finaliza. ■

Revista Terceiro Ato ■ 43


Entrevistas

Por dentro do subtexto

Texto: Lincoln Spada

Um dramaturgo, um

diretor, um iluminador,

um maquiador, um

sonoplasta, um figurinista,

um produtor ou um

fotógrafo, quando não se há

assistentes para cada uma

dessas funções. Enfim, além

do elenco, faz-se essencial

ter uma verdadeira família

quando uma trupe pretende

levantar uma obra cênica nos

palcos ou nas praças. Autor

de encenações com mil atores

até comédias mais intimistas,

o diretor teatral cubatense

Cícero Gilmar Lopes

reconhece esses desafios em

mais de 30 montagens que

seus textos participaram por

diversas companhias teatrais

da região.

"Quando você conta uma

história, invariavelmente

está defendendo uma ideia,

um ponto de vista. Para que

sua história seja absorvida,

não necessariamente aceita,

pois ou seu público pode

discordar das razões dos

seus personagens", descreve

Cícero. "Mas, para isso ou

aquilo, esse público tem

que ser tocado". Para uma

dramaturgia eficiente,

Cícero (segundo à esq.) escreve e atua em ‘Os Filhos da Política’,

do Grupo Macako que Ri’ (foto: acervo pessoal)

além de elementos técnicos

que facilitem a leitura da

companhia cênica para

a montagem, o enredo

necessita de conflito, além

do respeito à inteligência da

plateia.

"Um texto para teatro

clássico, palco em italiano, é

obviamente mais intimista.

Na encenação, tudo tem de

ser grandioso, a começar pela

interpretação dos atores. O

gesto deve ter uma proporção

maior, passa pela quantidade

de elenco". Assim, as cenas

devem ter volume, multidão,

coro de vozes, ser cheia de

elementos na arena, elenca

o autor de 13 edições dos

Caminhos da Independência,

além de uma versão na

encenação vicentina (2010).

"Particularmente, deixo

muitas dessas indicações no

meu texto, mas é o diretor

que finaliza o espetáculo".

Entre as montagens que

o diretor do grupo Zona de

Arte Macako Que Ri, foi

pertinente a experiência de

escrita colaborativa para

'Os Sapatos que deixei pelo

caminho', junto ao Teatro

do Kaos (2014). "Saí de

um processo solitário",

justifica. "O trabalho nascia

das propostas de cenas dos

atores-criadores, que, por

sua vez, criavam as cenas

baseadas na história do nosso

protagonista [Lourimar

Vieira], uma pessoa viva

e presente no processo do

espetáculo".

Entre biografias

e ficções

Outro diretor teatral

44 ■ Revista Terceiro Ato


Entrevistas

que também percorre a

dramaturgia sobre traços

biográficos é Ronaldo

Fernandes. O artista

pernambucano fez de

Santos um átrio para as

suas peças mais maduras,

'Dentro de Mim mora outra'

(2012) e 'Benjamin - O Filho

da Felicidade' (2018). A

primeira abordou sobre a

transexualidade, dirigida

por Maria Tornatore e

estrelada pela consagrada

atriz Renata Carvalho.

"Penso que ali foi que me

reconheci como dramaturgo

e passei a acreditar que eu

poderia ser uma voz".

A experiência mais

recente na região foi na que

retrata o primeiro palhaço

negro do País, Benjamin

de Oliveira, dos mais

notáveis da modalidade de

teatro circo nacional, mas

marginalizado e esquecido

quando comparado aos

demais artistas. Ao contrário

da primeira peça, onde

tratava diretamente com a

atriz biografada, desta vez

as escolhas dramatúrgicas

eram divididas com a direção

de Miriam Vieira.

É nesta produção que foi

instigado a se rever artista:

"uma consciência de que eu

sendo um dramaturgo preto,

sempre estive a serviço de

uma ideologia branca. (...)

Eu ainda não sabia que

O diretor teatral Ronaldo Fernandes (foto: acervo pessoal)

era preciso usar a minha

negritude para dar voz às

questões da negritude.

Depois do 'Benjamin',

comecei a me perguntar:

quantas dramaturgias

brancas criei? Acho que pra

ser aceito e reconhecido

como dramaturgo, fui

reproduzindo experiências

majoritariamente brancas e

escrever 'Benjamin' me abriu

os olhos para isto".

Em relação às diferenças

de escrever biografias e

ficções, pondera maior

zelo no primeiro gênero:

"Quando se parte da

história de uma pessoa que

de fato existiu, é preciso

ter cuidado, é necessário

respeitar a trajetória de vida

de quem serve de base para

a dramaturgia. É preciso

que lá também estejam as

fragilidades, pois são elas que

criam a identificação. Somos

irmãos nas fragilidades e não

nas fortalezas".

Já na ficção, a sua

base são referências

não necessariamente

de dramaturgos, mas

pensadores, autores ou

pesquisadores que se

conectem com as ideias de

sua trama. Por exemplo, a

escritora infantil Ruth Rocha

em 'Linda Flor' e o filósofo

Nietzsche e o psiquiatra

Daniel Siegel em 'Meu

Deus...'. Embora considere

mais livre a escrita para a

ficção, reconhece que "todos

os meus textos sofrem

influência do processo de

montagem. O encontro do

texto com os atores e o diretor

é um processo vivo, portanto,

transformador". ■

Revista Terceiro Ato ■ 45


Texto: Rafaella Martinez

Vicentini e Lincoln Spada

O

trabalho dos profissionais

nos bastidores

de um espetáculo é maior do

que você imagina. Conheça

a história de alguns desses

artistas das coxias.

“Aprendi a engati-

nhar no palco do

municipal”

Não é errado dizer que Noa

Marchese nasceu no teatro.

O pai, Roberto Marchese,

foi presidente da Federação

Santista de Teatro e a mãe,

a atriz Adna Cruz, hoje atua

como diretora de dublagem.

Dando os primeiros passos

de vida em cima do palco

do Teatro Municipal pouco

tempo após do Regime

Militar, as lembranças de

infância de Noa se misturam

ao clima de tensão em relação

às montagens teatrais dos

pais e dos irmãos de Coxia,

muitos que hoje são colegas

de trabalho.

A primeira ação no

teatro aconteceu durante a

faculdade de Administração

de Empresas. “Costumo

brincar que filhos de artistas

Os bastidores

do palco

vão tentar negar os pais

em algum momento. Só no

meio da faculdade que eu

comecei a pensar que podia

juntar os conhecimentos

administrativos e aplicar na

cultura. Fiz diversos cursos

em três anos, mas ainda

sinto que minha entrada

no mundo cultural veio

das minhas vivências na

infância”, conta.

Hoje diretora da Upah!

– Soluções Culturais, Noa

conta que no início não havia

modelo de negócios nos

quais se inspirar na Baixada

Santista e foi na prática que

mãe e filha aprenderam a

moldar o trabalho. “Tive

a chance de ter reunião

com o Zellus Machado,

Entrevistas

por exemplo, que passou

por lá para deixar vários

projetos antes de falecer,

uma lembrança afetiva

que guardo comigo. Mas

também conheci centenas

de artistas nesse processo,

confirmando a fala de que a

Baixada Santista é um celeiro

de grandes e talentosos

profissionais”, afirma.

Ainda nessa fase, Noa

criou uma Companhia de

Teatro Infantil chamada

Cia da Lua para treinar

a inscrição em leis de

incentivo fiscal. O grupo

acabou conquistando editais

e levando apresentações

para escolas e foi assim que

Noa passou de produtora

para também escritora

de espetáculos infantis.

Nessa época, ela estudou

acessibilidade cultural

e passou a investir em

espetáculos que dialogassem

também com pessoas com

deficiência auditiva, visual

A produtora cultural Noa Marchese (crédito: Fabi Conway)

46 ■ Revista Terceiro Ato


Rodrigo Montaldi Morales (Foto: Platão Capurro Filho)

ou com mobilidade reduzida.

“O primeiro espetáculo

com tradução em LIBRAS

em Santos aconteceu em

2013 no Teatro Guarany,

com a produção da Upah.

Levamos muito a sério essa

questão”, enfatiza.

Hoje atuante em diversas

frentes – que vão do teatro

ao cinema passando pela

música, Noa acredita que

a lógica de um projeto é

aplicada a todas expressões

artísticas. “A transparência

é essencial para atuar nesse

segmento e o pagamento

digno para a mão de obra

artística também é essencial,

pois a pessoa que está

executando um trabalho está

de corpo, alma e mente”, diz.

Se enxergando agora

como artista, ela conta que

exercita todos os seus lados.

“Poder fazer muitas coisas ao

mesmo tempo é o que mais

me encanta nessa área. Um

dia estou focada no teatro,

outro na música e outro no

cinema. Sou plural e grata à

área cultural por me permitir

ser muitas”, finaliza.

“As reações estão

nas ruas”

Rodrigo Montaldi não se

define bem como fotógrafo.

Para ele, a fotografia é uma

forma de registrar o mundo

e contar histórias - e é isso

que ele faz. “Fotografar é

uma forma que encontrei de

fazer um registro histórico

em um congelamento de

imagem”, destaca.

Após atuar no fotojornalismo

e em diversos

projetos de teor educacional e

cultural da região da Baixada

Santista, além de promover

mostras e exposições, ele

se considera um artistas de

múltiplas linguagens.

Para ele, que atua tanto

no palco italiano como em

espaços abertos, ‘as reações

estão nas ruas’. “O teatro de

palco tem barreiras e para

meu ofício de registrar, você

não consegue olhar nos

olhos das pessoas. Já na rua

a paisagem se transforma.

No teatro de rua o grande

personagem é o público”,

afirma.

Iluminar como ato

cênico

Quem compartilha da ideia

de um teatro que evolui a cada

etapa é Juliana Sousa, que

já dirigiu a Paixão de Cristo

de Cubatão, é atriz, arte-

-educadora e desempenha

várias funções, também na

área de iluminação - neste

papel desde 'Bailei na Curva',

do Teatro do Kaos (2000).

"Foi algo que surgiu sem

pretensão alguma. Nasceu do

encontro entre a necessidade

da mão de obra técnica no

teatro, e o meu desejo de estar

envolvida, de alguma forma,

numa produção teatral". Já

que falta mão de obra no

setor na região, com o passar

Revista Terceiro Ato ■ 47


do tempo passou a iluminar

até os Grupos Artísticos de

Cubatão, grupos de dança,

shows musicais e até teatro

de rua.

Premiadíssima na área

desde 'O Guarani' (2003),

ela comenta os desafios de

iluminar espetáculos em

espaços alternativos. Em

'República - Muito mais que

quatro paredes', do Coletivo

302 (2017), imprimiu a sua

identidade na luz em uma

estrutura cênica ousada:

um cubo de alumínio, como

vigas que dividiam o cenário

de um apartamento. "Ele

requer diversas tonalidades

em um espaço com

pouquíssima amperagem

para alimentação dos

equipamentos. Só tínhamos

como optar pelo LED em

toda a composição de luz".

Desde efeitos de DJ com

laser até cordões coloridos

e luminárias precisavam

ser compostos de lâmpadas

LED.

O mesmo modelo foi

revisto no teatro de rua 'Vila

Parisi' (2019, do Coletivo

302), onde nem era possível

contratar um gerador no

local. No cenário de um

laboratório, as fontes frias

de LED com incidências

pontuais de vermelho e

verde. No ambiente da vila,

simular casas com cores

quentes e interruptores,

além de um spot em um tripé

para uso manual de destacar

fases da peça. Ainda, outros

espaços da peça no Cruzeiro

Quinhentista precisaram de

lâmpadas junto a garrafas

coloridas de álcool, ou latas

de alumínio furadas em

meio a um festão de luzes,

respectivamente remetendo

à uma casa de prostituição e a

uma procissão no cemitério.

Enfim, de refletores

artesanais até os de uso para

jardins, de lanternas a elas,

não foram poucas as formas

de que Juliana fez nascer a luz

em diferentes espetáculos.

"Foram esses projetos para

Juliana Sousa (Foto: Acervo pessoal)

Entrevistas

espaços alternativos que me

conduziram a uma pesquisa

de materiais e efeitos talvez

únicos na minha carreira",

comenta entre a rotina de

compreender quantidade de

equipamentos, cabeamento,

dimensões do espaço,

como fixar e alimentar os

equipamentos, entre outros

fatores para composição

da luz. O maior desafio é

a adrenalina de concluir o

tempo de montagem em

tempo hábil para que os atores

façam a marcação, gravem as

cenas e testem os efeitos - em

seguida, as cortinas se abrem

para o respeitável público. ■

48 ■ Revista Terceiro Ato


Esquete

Sucesso além da serra

Os diretores santistas celebrados na capital

Textos: Nina Gagli

Foto: Agência O Estado Foto: Taba Benedicto Foto: Acervo pessoal

Marco Antonio

Gimenez (1955-)

Inicia no teatro paulistano

em 1984. Licenciado em

Psicologia, no Teatro-Escola

Célia Helena foi professor

(1991-2011) e co-diretor

(2001-2004). Foi servidor

da Funarte (1987-1990), secretário

de Cultura de Santos

(1995-96), fundou e foi diretor

artístico do grupo Folias

D’Arte (1998-2010), um dos

grupos que lidera movimento

Arte contra a Barbárie e

resultará no programa de Fomento

ao Teatro para a Cidade

de SP. Hoje dirige o Teatrão

em Coimbra (Portugal).

Venceu os prêmios Molière

(1991) e Mambembe (1996).

Nelson

Baskerville

(1961-)

Graduado na Escola de Arte

Dramática (USP, 1983), lecionou

no Teatro-Escola Célia

Helena (1991-2010). Participou

de mais de 10 novelas

e minisséries, como ‘Pedra

Sobre Pedra’, ‘Éramos Seis’ e

‘Viver a Vida’. No teatro, foi

dirigido por Celso Frateschi,

Bibi Ferreira, entre outros, e

dirigiu desde 2005 mais de

15 peças, como ‘Luís Antônio-

-Gabriela’, ‘17 x Nelson’ e ‘As

estrelas cadentes do meu céu

são feitas de bombas do inimigo’.

Ganhou os prêmios Shell,

Cooperativa Paulista de Teatro

e Governador do Estado.

Neyde Veneziano

(1944-)

Pós-doutora em Teatro

(Itália, 1999), professora

de teatro brasileiro (Unicamp),

autora de livros

desde 1991, encenadora

e diretora teatral. Nesta

função, estreia em 1984

com ‘Balada Feroz’ e ‘Procurando

Firme’ (ambos em

1984). Já dirigiu 40 obras,

desde a Encenação da Fundação

da Vila de São Vicente

(1999) até os grupos

Parlapatões, La Mínima e

Geração Trianon. Especializou-se

nas pesquisas sobre

teatro de revista, manifestações

populares e o

acervo de Dario Fo.

Revista Terceiro Ato ■ 49


Segmentos

O teatro e as

suas múltiplas

linguagens

Texto: Rafaella

Martinez Vicentini

Poucas pessoas frequentam

o centro de Santos

aos domingos à noite. As

ruas, durante a semana

ocupadas pelo vai e vem de

homens e carros, respiram

tranquilas. Um grupo de

aproximadamente 40

pessoas aguarda o início de

uma apresentação teatral.

Sem aviso, uma moradora

de rua surge correndo,

empurrando um carrinho de

supermercado cheio de coisas

aparentemente inúteis.

Em outro ponto, um

bêbado questiona o banco

que teria roubado seu

dinheiro. Deus aparece no

alto da Prefeitura, e uma

mulher é violentada diante

de nossos próprios olhos.

Pouco tempo se passa

e várias outras pessoas

resolveram acompanhar a

movimentação. São aqueles

que pararam e ficaram:

trabalhadores do porto,

crianças abandonadas e

usuários de drogas.

Em uma cena épica

daquele outubro de 2013,

uma pessoa em situação de

rua interage com o contexto

apresentado e a realidade

cruza tão bem cruzado a arte,

que ambas se confundem. O

que nos separa?

A cena narrada acima é

da primeira apresentação do

espetáculo teatral ‘Projeto

Bispo – tratados como bichos,

comportam-se como um’.

O espetáculo ‘de ruas’ como

define um de seus atores,

tinha como objetivo levar os

espectadores a refletir sobre a

loucura humana. Na prática,

exatamente pelo fato de

estar na rua, a peça enxergou

a loucura de várias outras

formas: os atores já foram

ameaçados por autoridades

policiais, a produção já foi

multada e os espectadores

quase foram atropelados.

Dificilmente as questões

citadas aconteceriam caso

o 'Projeto Bispo' fosse

Fora do espaço e

do modelo tradicional,

as múltiplas

facetas da arte

ocupam os espaços

públicos e

resignificam as

cidades

um espetáculo produzido

e encenado no palco

tradicional. “Eu acho que o

ator e o espectador precisam

estar sob a mesma luz,

poucos metros de distância”,

afirma o diretor do projeto,

Kadu Veríssimo.

Há várias diferenças

entre o espetáculo de palco

e as apresentações de rua.

Diferenças além da ausência

de equipamento técnico

ou cenário, pois envolvem

dramaturgia, preparação de

atores, entrosamento de cena

50 ■ Revista Terceiro Ato


Segmentos

e linguagem específica.

Trupe do século 21 |

Além disso, toda a trama

pensada depois de muito

tempo de ensaio pode ser

mudada de uma hora para

outra, sem aviso prévio.

Fora da caixa, qualquer

fator interage com a cena

e os atores jamais saberão

quais são esses fatores até

que eles aconteçam ao vivo

e, nesse caso, a resposta

precisa ser imediata.

A Trupe Olho da Rua

surgiu em dezembro de 2002

com seis integrantes. Cada

um investiu R$ 150 e, com o

montante, passaram janeiro

de 2003 viajando em busca

de público. A experiência

foi tão benéfica que, no

retorno à Santos, a trupe

decidiu dar continuidade

à ideia, investindo na

pesquisa e na linguagem

aberta, própria para a rua.

“Naquela época, parecia que

a população perdia cada vez

mais o interesse no teatro

de palco, mas percebemos

que na verdade, o que estava

acontecendo com o teatro

tradicional não se refletia nas

ruas: lá havia muito público”,

afirma Caio Martinez

Pacheco, um dos fundadores.

Para João Paulo Teixeira

Pires, outro integrante da

trupe, dentre as diferenças

entre o palco e a rua está, por

exemplo, o que diz respeito

ao erro em cena. “Quando se

erra esteticamente no palco,

o artista continua e por vezes

nem deixa transparecer o

erro. Na rua, a resposta é

instantânea: o artista erra e

as pessoas vão embora”.

Essa opinião é

compartilhada pelo ator

Junior Brassalotti. Para ele,

o artista de rua precisa se

reinventar a cada minuto

para manter a atenção do

público. “No teatro de caixa

você está protegido, as

pessoas foram até lá para

te ver, há um respeito. Na

rua ninguém te chamou,

você está invadindo aquele

espaço. A pior coisa no teatro

de rua é você formar uma

roda e ela ir esvaziando”.

coletividade | Ambos

os grupos citados possuem

uma forma diferente da

tradicional para criar a

dramaturgia que será

empregada nos espetáculos:

é uma construção coletiva e

colaborativa. “Percorremos

caminhos diferentes para

chegar à dramaturgia. Desde

2008, por exemplo, nossos

espetáculos se estendem até

a plateia que assume muitas

vezes o papel principal”,

afirma Caio Martinez.

Para Brassalotti, a

dramaturgia da rua é viva, pois

a história está sempre sendo

construída. “Transformamos

a plateia passiva em algo

extremamente ativo. O

público pode ser qualquer

coisa, mas antes precisamos

ter um jogo combinado. A

gente sabe para onde quer

que a plateia vá, se ela vai

ou não depende da nossa

Circularam em praças as peças ‘Hamlet Futebol Clube’ do Teatro do Kaos (crédito: Sander

Newton) e ‘Blitz’, da Trupe Olho da Rua (crédito: Gabriella Zanardi)


competência”.

O conteúdo para rua

também não cabe dentro

da proposta de um ator

convencional. “Na minha

opinião, todo ator de rua

deveria saber dar um

salto mortal”, pondera

Brassalotti. Isso porque a

carga dos espetáculos a céu

aberto exige um preparo

físico maior por parte dos

atores. Na maioria das vezes,

a arte de rua inclui diversas

outras vertentes dentro da

tradicional: os espetáculos

podem ser montados

através do circo, da dança e

da música.

A história do teatro se

confunde com a própria

história do homem.

Suas raízes estão nas

apresentações da Grécia

Antiga, onde a população

expunha os problemas da

pólis e dos cidadãos nos

espaços abertos. Outras

correntes acreditam que o

teatro surgiu com o homem

primitivo, em forma

de danças dramáticas

coletivas. Em ambos os

casos, a arte de usar o corpo

e os gestos para apresentar

uma determinada história

e com ela provocar

sentimentos diferentes na

plateia surge na rua.

Abandonar a caixa |

No Brasil, o movimento

ganhou força e notoriedade

nos anos 80, sendo uma voz

contra a ditadura militar.

Em 1982, Amir Haddad, um

dos expoentes do gênero

no Estado de São Paulo,

decidiu “abandonar a caixa”

e ganhar a rua, acreditando

que o teatro poderia voltar

a ser teatro. Vários grupos

apareceram, seduzidos pelas

possibilidades que a rua

oferecia em detrimento às

dificuldades impostas pelo

poder público para o uso dos

espaços oficiais.

Junior Brassalotti afirma

que o que garante a vida do

espetáculo é a temporada

e, quando nenhum espaço

oficial da cidade oferece

Segmentos

essa possibilidade, a solução

é ir para a rua e criar o

próprio espaço. Para a

trupe, a questão é utópica.

“Santos comporta até 20

apresentações simultâneas

em suas praças”, afirma João

Paulo Teixeira Pires.

Outro fator fundamental

para o teatro de rua é a

linguagem empregada. Por

esse motivo, a dramaturgia

precisa ser uma maneira de

contar uma história com o

corpo através do texto para

um público popular que na

maioria das vezes não tem

o costume de ir ao teatro. “É

preciso um diálogo aberto

para poder falar com todas

as classes”, afirma Caio.

Para quem está na rua, a

função do teatro é ser antena

da sociedade. O produtor

cultural e artista circense

Sidney Herzog acredita que

sair de casa para ir até um

teatro ainda é algo elitista e

que a arte de rua pode mudar

uma parcela da sociedade.

“Para quem passa por uma

Com a peça ‘De Repente Thiago’, da Esquadrilha Marginália de Teatro de Rua (crédito: Eduardo Ferreira)

e a contadora de histórias Camila Genaro (crédito: Rodrigo Montaldi Morales)


Segmentos

praça com uma roda de

espetáculos ou um circo

armado, aquela praça nunca

mais será a mesma para

quem viu. Mesmo que não

tenha mais nada montado

ali, ela tem um outro valor

simbólico”, finaliza.

Um lugar entre duas

linguagens | Aos 19 anos,

o cubatense Matheus Lípari

começou a desenvolver

uma pesquisa sobre o teatro

performático, segmento que

abrange e ao mesmo tempo

renova a arte teatral.

“Minha pesquisa me

fez perceber que posso ser

dono das minhas ações

e criações e que em cena

posso dizer muito sem usar

necessariamente recursos

vindos do texto”, destaca o

ator, hoje com 25 anos.

Uma das técnicas, por

exemplo, dizem respeito

ao uso de luzes em cena.

“A performance é um lugar

livre para criações. No caso

da luz, ela altera o estado de

percepção: pode ser usada

para mostrar caminhos

ou ressaltar a penumbra”,

enfatiza.

Era uma vez | Para quantas

sensações e lembranças essas

três palavras te remetem?

Dos clássicos infantis até as

inúmeras notícias relatadas

nas páginas de um jornal:

viver é a arte de contar

muitas histórias. De vasto

currículo na arte cênica, a

santista Camila Genaro bem

sabe o poder quase mágico

que emana das palavras

contadas. A mulher que se

descobriu artista durante o

magistério entende que o

ofício vai além do tempo que

dura um conto.

“Hoje as pessoas não se

escutam mais. Eu acredito e

vivencio o fato de que quando

estimulamos a imaginação,

ganhamos um fio que irá

conduzir as pessoas de todas

as idades para um lado mais

bonito da vida. Para a leitura,

para a escrita, para a arte de

sonhar... Quando a gente

fala ‘Era uma vez’, estamos

Matheus Lípari no Galpão Cultural (Crédito: Matheus Cordel)

transportando o ouvinte

para um lugar que só existe

dentro dele”, conta.

Através dos tempos,

a tradição oral marcou a

história da humanidade,

estimulando não apenas

o ouvir, mas também

despertando a imaginação

de crianças e adultos.

Apesar de ser um dos mais

antigos ofícios do mundo, a

profissionalização é um dos

obstáculos no caminho dos

contadores de histórias.

Mais do que ter um

papel fundamental na

preservação e transmissão

do saber e das manifestações

da cultura popular, contar

histórias é auxiliar na

reescrita de algumas delas.

“Eu tinha um trabalho

semanal na Gibiteca de

Santos, onde atendia

escolas de regiões

vulneráveis da cidade. Um

dia uma menininha veio

animadíssima falar para

mim que depois de ter

escutado uma das histórias

foi na biblioteca da escola

e pegou o livro para ler

para a irmã mais nova.

Aquilo me emocionou e me

emociona sempre que falo,

pois aquela criança estava

mudando sua realidade,

adquirindo um novo hábito

e transmitindo para a sua

família. É sobre essa magia

que conto”, finaliza. ■

Revista Terceiro Ato ■ 53


Segmentos

Teatro que transborda

Roberto dirige a Cia Dons em ‘64 - O Canto Calado’ (foto acima,

acervo pessoal), enquanto Kelly é arte-educadora (foto abaixo,

de Raquel Siebra)

Texto: Lincoln Spada

Do circo à dança, as

linguagens irmãs-

-siamesas do teatro por

vezes se intercalam nas

produções cênicas. Além

disso, habilidades como a

desenvoltura corporal ou o

bom timbre e afinação em

musicais ganham pontos

entre os atores e demais

fazedores de cultura.

Em uma sociedade pós-

-moderna, que as fronteiras

virtuais e científicas se

reduzem em lufadas, o

mundaréu artístico é ainda

mais abrangente que um

abraço materno: dificilmente

os coletivos não comungam

de outros campos artísticos.

Em Santos há o coro cênico

Broadway Voices, enquanto

na vizinha São Vicente, os

musicais escalam dezenas de

jovens atores na Cia Dons de

Teatro Musical. A direção é do

vicentino Roberto Frantinelli,

de 26 anos, que já cursou no

TeenBroadway, SP Escola de

Artes, Senac SP, CP Teatro

Musical, entre outras escolas

especializadas no segmento.

"O teatro musical me permite

buscar a 'perfeição' como

artista completo, pois me

permite usar teatro, música,

dança e circo, conhecer um

pouco mais sobre o caminho

artístico que quero seguir e

que hoje se tornou minha

profissão".

O seu espetáculo mais

recente foi 'O Canto Calado',

musical que aborda

sobre a ditadura militar.

Tanto essa, quanto

outras montagens

são inspiradas em

uma autodenominada

'insônia criativa'. "Passo

a madrugada criando e,

quando o Sol nasce, já

tenho algo pronto. É

algo muito mágico para

mim", diz o também

diretor da Cia. Lúdicus

de Circo. Outra artista

que permeia ambos

os segmentos é a arteeducadora

santista Kelly

Jandaia, de 33 anos.

"Comecei a minha

carreira artística nas aulas

livres de circo na Cadeia

Velha [em 2005], e, após

oito meses, montamos o

54 ■ Revista Terceiro Ato


Luana Albeniz (Crédito da foto:

Rogério Murilo Mesquita)

grupo teatral Os Panthanas,

que misturava as linguagens

de rua e circo", relembra a

profissional em Educação

Física. "Essa experiência

foi um divisor de águas nas

minhas escolhas", sendo que

hoje, como arte-educadora,

tem como processo criativo

as suas próprias vivências:

viagens, exposições, além de

filmes, séries e livros.

A performer que denuncia

| Por sua vez, a

cubatense Luana Albeniz, de

20 anos, já percorreu países

na Europa e na América

Latina expondo os frutos

das artes visuais, teatro,

performance, circo e dança,

"em que abordo uma pesquisa

relacionando o bambolê e a

dança contemporânea". Ela,

que mais recente assume

uma arte-denúncia, iniciou

os estudos de música e balé

clássico na ETMD - Escola

Técnica de Música e Dança

Ivanildo Rebouças da Silva

(Cubatão), depois a formação

de atriz pelo Teatro do Kaos

(também em Cubatão) e

a Escola de Artes Cênicas

Wilson Geraldo (Santos).

Paralelamente, participou

de atividades formativas

noutras linguagens, como a

Bienal de Performance de

Buenos Aires, a residência

perfomática do Mirada -

Festival Ibero-Americano

de Artes Cênicas de Santos,

convenções de malabares

e circo, entre outros. "Meu

processo e aprendizado

no teatro complementa e

compõe a minha visão como

performer. A relação com o

público e com o meu próprio

corpo, a consciência e o

domínio do meu corpo e voz.

Não tenho apreço em pensar

as artes de forma que não

seja integrada".

Luana é enfática. "Sou

movida artisticamente

pelas minhas inquietudes

internas e sociais, sinto que

explodo se não transbordo

em arte". Foi assim que

criou a performance cênico-

-circense 'Presente - Relatos

de um corpo ausente', entre

a angústia que sentiu com

o assassinato da vereadora

carioca Marielle Franco, um

poema virtual de uma amiga,

fatos da ditadura militar,

e a história por detrás

de 'Menino', clássico de

Milton Nascimento. "Meus

trabalhos se desenvolvem na

imersão de, ao menos, dois

segmentos artísticos".

O ator que dança | E

do Grupo Janela de Teatro,

é que o vicentino Lucas

Onofre, de 27 anos, abriu

seus caminhos para outras

artes cênicas, vivenciando

o Grupo Vigora de Dança, a

Cia 5 e, atualmente, participa

da Cia. Etra de Dança. "O

teatro é primordial para um

artista cênico, em questão

de expressões, estudo,

dramaturgia. Possui um

longo processo criativo e

também caminha lado a lado

com a dança ao meu ver. Um

simples movimento pode ser

considerado uma dança".

Lucas complementa: "A

intenção que você insere

naquele movimento, a forma

como você transforma um

sentimento em movimento,

Revista Terceiro Ato ■ 55


Lucas (acima, acervo pessoal)

e Kathlleen (abaixo, foto de

Harley David Santos)

gesto, é uma dança. O nosso

corpo fala de diversas formas.

Seja pelo olhar como por uma

pirueta. Não consigo me ver

sem essas duas artes juntas,

e por ser ator e performer

busco sempre me aperfeiçoar

em cursos, oficinas e

vivências que me ajudem a

continuar amadurecendo e

me descobrindo como um

artista".

Esta mesma maturidade

vai sendo acompanhada por

outra jovem, a atriz santista

Kathleenn Andrade

Kezerle, de 18 anos. Na

infância, foi Miss Santos

Mirim, 1ª Princesa do

Estado de São Paulo e

modelo pela Agência By

Clô, a partir dos 4 anos.

Logo, passou a fazer

comerciais e campanhas

publicitárias, rendendo

viagens e aprendizados.

Ainda, aos 6 anos, a

sua mãe a inscreveu

simultaneamente nos

cursos de teatro e dança de

56 ■ Revista Terceiro Ato

rua, este aderindo ao Grupo

Adrenalina, dirigido por

Ricardo Andrade.

A miss que improvisa

| Logo se viu desde as

aulas teatrais e de música

na UME Olavo Bilac até

de teatro e jazz no Projeto

TamTam. A partir dos

11, entrou na Tescom,

onde logo no primeiro ano

ganhou o prêmio de Melhor

Atriz no Fescete, em 'Entre

Julietas e Catarinas' (2011).

É nessa última escola que

prefere se especializar no

núcleo de teatro musical. No

ano seguinte, protagoniza

'O Pequeno Imperador' e

'O Príncipe e a Raposa',

ganhando novos prêmios no

mesmo festival.

Em sua carreira precoce,

ainda atuou em espetáculos

de mímica e pantomima,

teatro físico e de bonecos.

Segmentos

Desde os 14 anos desenvolve

a palhaça Dorine. Mas foi aos

15 que debutou sobre jams

de improviso e pesquisas

sobre expressão corporal,

a partir da oficina da arteeducadora

Luciana Raccini.

Desde então, tornou-se

intérprete bailarina da Cia.

Aplauso Contemporâneo,

dirigido por Luciana. "A

companhia valoriza a

diversidade artística que

cada um traz em si, sempre

busca o diálogo entre

dança, teatro, circo e artes

plásticas".

Intérpretes, professores,

músico e fotógrafo

participam em conjunto de

Kathleenn na companhia

de dança. 'Algumas cenas e

várias vidas', 'Estava Cega'

e 'Planet Pink' são algumas

das obras em que a artista

participa. Ela exemplifica

o processo criativo de

múltiplas linguagens:

"O expressionismo,

o teatro do absurdo e

o teatro de máscaras

são pesquisas

frequentes em que

desenvolvo para

meu trabalho como

intérprete-bailarina,

tanto na dança

contemporânea, como

no teatro". Agora,

também sonha em

se aprofundar na

área de fotografia e

videomaker. ■


História

Todos os caminhos levam

para a Cadeia Velha

Texto: Lincoln Spada

O

nascedouro da última

geração do teatro santista

foi a múltipla Cadeia

Velha de Santos, enquanto

epicentro de uma teia de fazedores

culturais, de diferentes

segmentos artísticos,

programas formativos e de

difusão, como festivais, que

avizinhados em datas e celas,

tornam-se naturalmente o

espaço como irradiador das

artes integradas.

O edifício primou pela

trajetória cultural, principalmente

quando se tornou

o único brilho na primeira

década dos anos 2000. Da

decadência até o fechamento

por mais de 10 anos do Teatro

Rosinha Mastrângelo e

a criação da Escola de Artes

Cênicas na década seguinte,

quando é reconstruído o

Teatro Guarany, faz do centro

cultural próximo da Rodoviária

Municipal como a

maior referência para muitos

dos artistas, que, na falta

de espaços públicos em toda

a região, adotam a rua como

linguagem cênica.

Jovens do Projeto Guri (Crédito da foto: Sander Newton)

Atualmente sede da

Agência Metropolitana da

Baixada Santista (Agem), da

regional do Projeto Guri, e de

oficinas da Secult de Santos,

o local tem um versátil repertório

de funções sociais desde

a sua fundação: Câmara

Municipal, presídio, fórum,

Tribunal da Justiça, quartel-

-general e até hospital - durante

epidemias na Cidade

entre 1872 e 1888. Eis a antiga

Casa de Câmara e Cadeia,

mais conhecida como Cadeia

Velha de Santos.

“Ainda mais, porque é

uma construção típica do

Brasil, com pedra, cal, argila,

areia e melado de cana-de-açúcar”,

detalha Luciana

Sans de Menezes, que

arquitetou o projeto do último

restauro do local (de

2011 a 2016) que guarda

muitas memórias em seus 2

mil m², com 20 salas - dessas,

13 ambientes no térreo,

sendo oito celas.

Nos idos de cadeia nova

| “Na verdade, ela era chamada

antes de Cadeia Nova,

porque foi a segunda da Cidade”,

destaca Luciana. O

primeiro presídio de Santos

também concentrava os poderes

Executivo, Legislativo

e Judiciário e foi erguido

ainda no século 19, bem na

Praça da República, mas

demolido em 1870. Assim,

Revista Terceiro Ato ■ 57


Festivais e eventos de economia criativa ocorrem na Cadeia

Velha, como exposições (acima, foto de Sander Newton),

circo e audiovisual (abaixo, foto de Adilson Félix).

os serviços do Paço Municipal,

da Câmara e do Fórum

foram transferidos ao novo

equipamento.

Já em 1820, as lideranças

da futura cidade (a emancipação

seria em 1839) cogitavam

a construção de um

local ampliado, bem no largo

que pertencia aos Andradas.

Em 1831, o projeto original

sem autoria previa a cadeia

nova com dois pavimentos

em todo o prédio, sem os alpendres

(sacadas) no pátio

interno, sequer janela central

na fachada: no lugar, haveria

um brasão do Império.

A princesa e a Pagu |

Com o decorrer das obras,

iniciadas em 1838, o prédio

foi ampliado, até ser concluído

30 anos depois. A demora

está relacionada com a Guerra

do Paraguai. Com os combates,

a economia do Império

previa poucos recursos para

investir, além de transformar

o lugar, entre 1865 e 1866,

em quartel. Somente a partir

de 1870 é que centralizaria os

História

três poderes. A Princesa Isabel

e seu marido visitaram o

local em 1888, após a Cadeia

Velha presidir manifestações

abolicionistas.

Daí a razão da princesa

batizar a plenária de vereadores.

Mas no decorrer do século

20, o espaço perde gradualmente

as funções políticas

e policial. Luciana explica o

funcionamento do espaço:

“Nas Casas de Câmara e Cadeia,

era bem comum que nas

salas do pavimento superior

funcionassem o Legislativo e

o Fórum, e o primeiro andar

fosse reservados aos presos.

O atual jardim central, no térreo,

na época, era o pátio dos

prisioneiros”.

Ali esteve a modernista

Patrícia Galvão. Pagu foi a

primeira mulher presa política

no Brasil, em 1930.

Superlotado, com 300 encarcerados

para 80 vagas, o

prédio se tornou prisão até

1958. Logo, foi desativado,

restaurado e tombado como

patrimônio histórico em nível

federal. Em 1973 e 1974,

o espaço também foi tombado

respectivamente em

níveis municipal e estadual.

A reabertura oficial se deu

em 1984, já como delegacia

regional de cultura. Exceto

durante a reforma entre

2011 e 2016, será o âmbito

que exercerá até os dias

atuais. ■

58 ■ Revista Terceiro Ato


Ambientes

Os palcos regionais

Texto: Rafaella Martinez

O

registro do primeiro teatro

santista data de 1830

na rua do Campo, depois

Beco do Teatro (atual Rua

Riachuelo), em um prédio

que na época pertencia à Santa

Casa da Misericórdia.

Quase todas as companhias

que se apresentavam

na capital vinham a Santos e

para que as famílias pudessem

chegar até o teatro era

preciso que os escravos transportassem

as cadeiras até o

local. Iluminado com velas

de cera e candeias de azeite,

foi neste espaço, considerado

como um “pardieiro” que a

história do teatro santista começou

a ser escrita.

Fechado definitivamente

em 1879 devido às péssimas

condições de conservação, o

local se transformou em armazém

cafeeiro e em loja, até

ser demolido em 1940. Quando

o Beco do Teatro entrava

em sua fase decadente, por

volta do ano de 1876, começou

a ser sentida na cidade a

ausência de um espaço que

garantisse boas apresentações

e comodidade. Foi assim

que começou a ser sonhado o

Teatro Guarany.

Teatro Guarany | Em

7 de dezembro de 1882 foi

inaugurado na Praça dos

Andradas o Teatro Guarany,

primeiro palco da cidade

destinado a grandes eventos.

Em meados da década de 20,

com o surgimento do Teatro

Coliseu, o Guarany entrou em

decadência. Em 1950, passou

por alterações em seu interior,

onde foi instalado um cinema,

um bar e uma loja. Em

1981, pouco tempo antes do

seu centenário, um incêndio

de grandes proporções destruiu

o imóvel.

Em 1994, as ruínas do

imóvel foram arrematadas

por um comerciante por R$

90 mil. Foi somente em 2003

que a Prefeitura de Santos

desapropriou o imóvel e iniciou

um projeto de compra e

recuperação.

No Guarany atual, duas

colunas de ferro e parte da

parede do piso superior remontam

à construção original.

Com capacidade para

340 pessoas, atualmente

abriga também a Escola de

Artes Cênicas Wilson Geraldo,

da Secult. As pinturas são

uma obra à parte. A primeira,

no teto, retrata uma cena do

clássico “O Guarany”, de José

de Alencar. A segunda, pouco

apreciada pelo público em

geral por estar localizada no

foyer do segundo piso, é uma

releitura do artista Paulo Von

Poser para um quadro de Benedito

Calixto.

Artistas e estudantes de artes cênicas no foyer do Teatro

Guarany (crédito de foto: Bruna Quevedo)

Revista Terceiro Ato ■ 59


Teatro Coliseu | O Teatro

Coliseu, tal como conhecemos

hoje, foi inaugurado

em 21 de junho de 1924. Sua

história, porém, data de alguns

anos antes. Em 1887 o

local era um velódromo, que

permaneceu em atividade até

1903. Em 1909 foi inaugurada

no espaço uma edificação

de madeira com capacidade

para 800 lugares, que serviu

para apresentações culturais

e manifestações políticas. A

edificação deu lugar, anos

mais tarde, para um luxuoso

teatro, construído em estilo

neo-clássico.

Ainda na década de 30, o

Coliseu passou a funcionar

também como cinema e cassino,

atingindo seu apogeu

na década de 40, quando recebeu

grandes companhias

em suas instalações. Nos

anos 50, o teatro começa a

perder sua força. Em 1967,

parte da estrutura foi demolida

para a construção de um

posto de gasolina. O início da

exibição de filmes pornográficos

na década de 70 marcou

a decadência do espaço.

Tombado pelo Conselho

de Defesa do Patrimônio Histórico,

Artístico, Arquitetônico

e Turístico (Condephaat)

e pelo Conselho de Defesa do

Patrimônio Cultural de Santos

(Condepasa) no fim da

década de 80, o imóvel passou

a pertencer à prefeitura

Ambientes

em fevereiro de 1993.

Em 1996 foi iniciada uma

reforma que durou uma década,

sendo o teatro devolvido

para a população em janeiro

de 2006. Em abril de 2013 o

Coliseu volta a fechar as portas,

reabrindo onze meses depois,

em março de 2014.

Arquitetonicamente o teatro

mais completo de Santos,

a plateia do Coliseu possui

a forma de ferradura, o que

permite a observação de todos

os detalhes das cenas. O

terraço permite visão privilegiada

do Centro Histórico de

Santos e a cobertura do espaço

possui a elegante forma de

um piano.

Em 2019 o Poder Públi-

Fotos abaixo e ao lado da abertura do 60º FESTA (crédito de foto: Rodrigo Montaldi Morales

60 ■ Revista Terceiro Ato


Ambientes

co anunciou a primeira das

quatro etapas da reforma do

espaço, com investimento de

R$ 6,3 milhões em um convênio

entre a Prefeitura e o

Governo do Estado. A reabertura

deve ocorrer em outubro

e o término total das

obras no final deste ano.

Teatro Municipal Braz

Cubas | Inaugurado oficialmente

em 10 de março

de 1979, ele veio suprir uma

carência cultural na cidade:

na ocasião, todas as casas de

espetáculos existentes eram

particulares.

Em 1983, a delegacia de

cultura de Santos, sob orientação

de Carlos Pinto, promoveu

uma oficina de teatro

no espaço, reunindo os veteranos

do teatro amador. Foi

assim que pouco tempo após

ser inaugurado, o Municipal

passou a ser ocupado pelos

artistas da região.

Fechado em maio de 2009

para reforma, o teatro reabriu

em 2010 com melhorias,

dentre elas a ampliação do

número de assentos dos antigos

544 para os atuais 588

lugares. Em julho de 2014, o

Municipal foi novamente fechado

e reabriu em 2015.

Há um projeto de modernização

do espaço aguardando

recursos. Enquanto não

acontece, a Prefeitura organiza

o espaço.

Outros espaços | Em

Guarujá, o Teatro Procópio

Ferreira foi inaugurado em

15 de dezembro de 1979, passando

por uma ampla reforma

em 20011. Reinaugurado

em abril de 2015, o teatro

ganhou um novo projeto arquitetônico

e teve seu layout

modificado. Ao todo, no ano

de 2019 recebeu 191 espetáculos,

com uma soma total de

público de aproximadamente

36 mil e 900 pessoas.

Outro palco da cidade é o

Anfiteatro Ferreira Sampaio,

anexo da Escola Napoleão

Laureano no Jardim Maravilha.

Ocupado desde 2009,

tem 110 lugares e atende mais

de 300 alunos por mês, distribuídos

em 8 cursos.

Em Praia Grande, o Teatro

Serafim Gonzalez, inaugurado

em 2008, está instalado

no Palácio das Artes,

complexo cultural de seis mil

metros quadrados margeado

pela Mata Atlântica. Capaz

de de receber em um único

espetáculo até 513 pessoas,

o espaço tem mais de 1.300

metros quadrados de área e

formato retangular que permite

uma melhor propagação

do som.

No mesmo complexo, foi

inaugurado em 2014 Teatro

de Bolso Leni Morato. Menor

e mais intimista, quando

comparado com o Serafim

Gonzalez, o palco tem capacidade

para 80 pessoas.

O Centro Cultural Raul

Cortez de Mongaguá, inaugurado

em dezembro de 1996,

abriga o Teatro Municipal

Ronaldo Ciambroni, com

estrutura e capacidade para

320 espectadores. ■

Cortejo das Praiaças no foyer do Teatro Municipal Braz Cubas

(acima, foto de Rodrigo Montaldi Morales)

Revista Terceiro Ato ■ 61


Cortinas Fechadas

Ambientes

Texto: Rafaella Martinez

Locais completamente a-

bandonados, pichados,

depredados e que, inclusive,

colocam em risco a saúde pública.

O cenário pitoresco poderia

compor um espetáculo,

mas embora estejamos, sim,

falando de teatro, corresponde

a uma cruel realidade de

alguns espaços culturais da

Baixada Santista.

Ônibus no lugar de palco

| O estimado Teatro Municipal

de São Vicente nunca

saiu efetivamente do papel.

A obra teve início na gestão

Tércio Garcia, em 2009.

Em 2018, a Prefeitura começou

a construção da nova

rodoviária da cidade na parte

frontal do prédio. Afirmou,

por meio de nota, que mantém

planos de recuperar o

espaço e abrir, futuramente,

o Teatro Municipal. “A área

destinada exatamente ao palco

e à plateia foi preservada

para a instalação do futuro

teatro vicentino”, destacou.

Início da transformação do projeto do teatro municipal de são

vicente em rodoviária (foto: nair bueno)

Da cultura para a saúde

| Após se arrastar por mais

de 30 anos, o que era para ter

sido o Teatro Municipal de

Cubatão, hoje dá espaço para

um Centro de Saúde. Ao longo

dos anos, milhões foram

gastos na obra, que permaneceu

abandonada e ocupada

do início da década de 90 até

a destinação final, em meados

do ano passado.

Em nota, a Prefeitura

afirmou que um novo teatro,

dentro do Parque Anilinas,

será realidade em breve. A

Secretaria de Cultura informa

que, após levantar todo o

descritivo das necessidades

de obras e arquitetônicas do

lugar, será aberto processo

de licitação para contratar

uma empresa que terminará

a obra, realizada com recursos

próprios e parcerias. O

teatro do Anilinas compreende

um espaço dentro do Centro

Multimídia. Contará com

350 lugares na plateia, cumprindo

todas as normas de

acessibilidade e segurança. A

previsão é de retomar a obra

ainda este ano.

A triste cena do rosinha

mastrângelo |O teatro

de arena Rosinha Mastrângelo

foi inaugurado em

1º de setembro de 1992 no

andar térreo do Centro Cultural

Patrícia Galvão. Por

quase uma década o Rosinha

foi ponto de encontro do rock

local, além de palco para o

início da carreira artística de

muitos amadores.

Fechado desde 2009, foram

muitas as promessas e

paralisações de obras. A nova

previsão de entrega é em meados

deste ano, após uma

parceria com a iniciativa privada

que permitirá 100% do

teatro modernizado. ■

62 ■ Revista Terceiro Ato


Ambientes

Espaço é um

lugar praticado

Texto: Rafaella Martinez

A

frase do livro ‘A invenção

do Cotidiano', de Michel

Certeau, define com exatidão

o movimento que gradativamente

ganha espaço no teatro

santista. São muitos os

motivos que podem justificar

a migração da arte cênica

para espaços alternativos.

O diretor André Leahun

lida com teatro em Santos

desde 1985 e viveu essa transição.

Para ele, a insistência e

a persistência são os motivos

que fazem Santos ter um movimento

teatral forte e atuante.

Leahun acredita que a arte

não precisa do espaço físico

teatro para acontecer.

“Ainda está no subconsciente

humano que teatro

é algo elitista, pois a imponência

do espaço tradicional

assusta e nossa sociedade é,

por si só, extremamente preconceituosa”.

Para o diretor,

a classe teatral santista está

modificando essa ideia de

forma inversa: ir até as pessoas

e oferecer a possibilidade

delas conhecerem em diversos

outros espaços as produções

culturais da cidade.

A experiência Tescom |

Localizado na Avenida Conselheiro

Rodrigues Alves, o

TESCOM é um espaço que

reúne as praticas artísticas,

educativas e sociais. Enquanto

coletivo, é oriundo

do Grupo Teatral “Uma Mão

Com Mel” dirigido por Iracema

Paula Ribeiro, tendo

o início de sua carreira em

1976. Atualmente, o espaço

cultural promove encontros,

debates, workshops, projetos

sociais e cursos livres.

Comandada pelos artistas

Pedro Norato e Karla Lacerda,

a escola já preparou mais

de 1000 alunos e mantém

em sua filosofia de trabalho,

um curso voltado para a formação

do ator, atuando com

a expressão corporal, vocal,

técnicas de atuação e estudos,

características para o

profissional da arte.

Sala Iracema Paula Ribeiro do Tescom, onde há mostras e aulas

(foto abaixo, crédito da foto: Denise Braga)

Revista Terceiro Ato ■ 63


17 anos de arte e cultura

em Guarujá | A

Casa3 desenvolve atividades

na área de artes cênicas na

cidade de Guarujá. A escola

surgiu do encontro de três

artistas: Kadu Veríssimo,

Marcelo Wallez e Tânia Mastroeni

que celebraram a amizade

e a profissão, através da

criação do espaço.

Na escola são desenvolvidas

atividades formativas

em cursos de teatro, ballet

(formação), jazz, sapateado,

canto, dança de rua e dança

contemporânea.

Os cursos são livres e despertam

nos alunos a apreciação

estética e cultural, possibilitando

também a entrada

no universo artístico, seja

desenvolvendo carreira em

teatro, cinema ou TV.

Única escola de teatro

em Guarujá, a Casa3 de Artes

proporciona aos alunos

a interação com linguagens

diversas, possibilitando

uma formação mais abrangente

em arte.

Marcelo Wallez e Kadu

Veríssimo, além de gestores

do espaço, são atores e atuantes

no Movimento Teatral

de Guarujá, tendo desenvolvido

em 13 anos de parceria

diversos projetos culturais e

estreado 25 espetáculos.

Ambientes

Teatro à serviço da cidade

em Itanhaém | Há

29 anos, Silvio Luís Guimarães

de Mello une teatro e cidadania

para transformar a

vida de crianças e adolescentes

em situação de vulnerabilidade

de Itanhaém através

do Teatro Galpão.

Trabalhador do teatro há

mais de 40 anos, ele acredita

que o teatro deve transformar

quem o faz e quem o vê.

“Não ministramos apenas

aula de teatro. Trabalhamos

com a educação e com o pensar,

promovemos debates

para que nossos alunos tenham

consciência”, conta.

A sede do grupo – que

ministra aulas para alunos

de 9 a 17 anos de forma totalmente

gratuita – é custeada

por Silvio e sua esposa,

através do trabalho dela e

da venda de livros. Quando

o grupo precisa se deslocar,

começa uma vaquinha para

custear o transporte.

Com um acervo com mais

de 2 mil peças e uma média

de 8 espetáculos por ano, já

passaram pela porta do Galpão

mais de 3.500 crianças

de bairros carentes de Itanhaém.

“Muitas vezes o nosso

trabalho não aparece, pois

é algo desenvolvido para e

com a periferia. Teatro é coisa

séria e que pode mudar realidades”,

finaliza.

Uma morada para cultura

no coração do

Anilinas | Fruto dos anseios

do Coletivo 302, o Galpão

de Experimentos de

Artes é um espaço de congraçamento

social no coração do

Novo Anilinas. Localizado no

final do parque, ocupado anteriormente

para o desempenho

de funções burocráticas,

é fruto de uma parceria com o

64 ■ Revista Terceiro Ato


Ambientes

Poder Público Municipal, que

concedeu a permissão de uso

de ambiente coletivo.

“O Coletivo 302 existe

desde 2014. Somos frutos

do Teatro do Kaos e

após a formação no curso

passamos a nos reunir em

espaços alternativos para

ensaiarmos e percebemos

que precisávamos de um

espaço para os ensaios e

apresentações”, enfatiza

Sander Newton, integrante

do coletivo. Atualmente no

Galpão acontece mostras de

teatro, saraus e encontros.

janela de acesso | Trabalhar

com a inclusão social é o

objetivo da ONG TAMTAM,

que por décadas ocupa o terceiro

piso do Centro Cultural

Patrícia Galvão, em um espaço

alternativo chamado Café

Teatro Rolidei.

A origem do grupo reforça

ainda mais o poder de transformação

que está atrelado

ao teatro: o projeto teve início

na extinta Casa de Saúde

Anchieta, a face santista do

horror que traduzia as clínicas

de saúde mental.

A maior parte dos alunos

possui atestado de capacitação

profissional junto

ao DRT. São profissionais e

como tal precisam evidenciar

isso nos ensaios. Em

cena, narram através de seus

corpos um mundo indigesto,

Coletivo 302 apresenta no galpão cultural de cubatão (ao lado,

foto: jade oliver) ; acima, a professora Fábiola Moraes com alunos

de Artes Cênicas na Casa3 (Crédito da foto: Eduardo Amaro)

arruinado pela ação do homem.

Fora dela, sabem perfeitamente

bem que o teatro

é a ‘janela’ de entrada para

um mundo que insiste em

lhes fechar as portas.

Hoje, 30 anos depois, longe

da Casa de Saúde Anchieta,

mas ainda fiel à origem,

não existe qualquer rótulo ou

estereótipo. O teatro é trabalhado

para pessoas com deficiência

e demais públicos.

"Naquela ocasião, dentro

de um sanatório ou aqui,

vivendo de fato a inclusão,

percebo que apenas a arte

é capaz de resgatar aqueles

que foram deixados para

trás pelo sistema", conta o

fundador Renato Di Renzo.

De mãos dadas em são

vicente | Um ambiente

democrático e colaborativo,

onde artistas das mais diversas

áreas possam desenvolver

seus projetos sem as distrações

de espaços públicos

e a preços populares: essa é

a ideia do espaço ‘Amigos da

Cultura’, em São Vicente

Instalado em um sobrado

na Avenida Capitão Luiz

Hourneaux, 507, no Jardim

Paraíso, o equipamento conta

com palco em três níveis,

biblioteca e salão de balé

no piso superior. No espaço

também são ministrados

cursos de teatro, música,

dança, técnicas de som, luz e

audiovisual. ■

Revista Terceiro Ato ■ 65


Tanah Correa:

“A preparação de um ator exige

uma experiência que só o

palco dá”

Textos: Rafaella

Martinez Vicentini

Quando recorro à minha

memória afetiva,

lembro-me que minhas tias

encenavam pequenas peças

e contações de histórias

dentro de casa. Minha mãe

também cantava óperas e

meu avó pintava e tocava

piano e violão. A maioria

das imagens que tenho

guardadas na mente são de

espetáculos teatrais, logo na

minha primeira infância.

Sempre trabalhei na

área teatral. Comecei no

teatro amador estudantil

e na vida adulta. eu

sobrevivia como técnico de

processamento de petróleo

na refinaria da Petrobras

de Cubatão. Porém, fui

demitido por motivos

políticos e perseguido pelo

DOPS (Departamento de

Ordem Política e Social),

órgão do governo cujo

objetivo era controlar

e reprimir movimentos

contrários à ditadura.

Então decidi procurar

trabalhos na área teatral

em São Paulo. Meu primeiro

emprego remunerado foi

como assistente de direção

do espetáculo ‘O Santo

Inquérito’, com produção

de Flavio Rangel e com a

Regina Duarte no elenco.

Me orgulho de ter

trabalhado com muitos

profissionais do teatro

e acredito que aprendi

muito mais do que ensinei.

Trabalhei

c o m

Umberto

Magnani,

J o ã o

Fonseca,

M a r c o

Antonio

Rodrigues,

Perfil

Renata Zhaneta e com

Plínio Marcos, além é claro,

com meus próprios filhos.

Todos, em algum momento,

fizeram teatro comigo.

Fui um dos

incentivadores da criação

da Secretaria de Cultura

enquanto estava como

assessor do gabinete de

Educação durante o governo

do prefeito Osvaldo Justo.

Uma das nossas maiores

metas foi privilegiar e

apoiar produções da Cidade.

E não somente no teatro,

como também na música,

cinema e dança. Lembro que

mais de 40 grupos estavam

em atividade naquele

tempo. Bem, falavam que

eu era muito populista. Mas,

mesmo se fosse verdade,

acredito que foi um período

positivo pois conseguimos

retomar o FESTA e vários

espetáculos daqui saíram

em turnê pelo País.

É preciso desenvolver

espetáculos de todas as

formas de atuação teatral.

Agora, o teatro começou na

rua. E ele consegue alcançar

alguém que não está com o

objetivo de assistir a uma

peça, mas que acaba se

encantando pelo enredo.

Mas reitero: é preciso olhar

para ambos com cuidados e

critérios iguais. ■

Tanah dirigindo nova versão de ‘Navalha na

Carne’ (acervo/divulgação)


Perfil

Kadu Veríssimo:

“Ator e espectador precisam

estar sob a mesma luz, a

poucos metros de distância”

Nasci em Santos, mas

morei minha vida

inteira no Guarujá. E

lembro que tinha por volta

dos 11 anos quando entrei

em contato com atividades

artísticas através da escola.

Descobri também o gosto

pelo traço. Passei a desenhar

e a escrever bastante.

Busquei estudos na área e

me formei em Artes Visuais

(Unisanta, 2009). Ao mesmo

tempo, comecei a fazer cursos

de interpretação pensando

em ser ator. Mas quis fazer

outras coisas, não parecia

suficiente. Hoje em dia, dirijo

mais do que atuo.

Acredito que, nas artes,

uma atividade complementa

a outra. E quando você está

produzindo um espetáculo.

acaba envolvido com tudo

relacionado a ele. É uma

causa que defendo nas

oficinas que ministro: o

fato de o ator ser também

o criador, um profissional

que deve participar de todo

o processo artístico. Não

não acredito mais naquilo

de ser só ator, ainda mais

se falarmos na questão

financeira. Tem que saber

fazer outras coisas para se

virar no meio artístico.

Quando ando na rua,

tudo para mim vira história

ou personagem. E gosto de

contar a história do outro,

seja ele quem for. Uma das

peças mais desafiantes foi o

'Projeto Bispo', pois aconteceu

no meio de um processo de

amadurecimento. Foram

Kadu, à esq., dirige ‘Zona!’ (Foto: Rodrigo Montaldi Morales)

um ano e dois meses de

processo, uma preparação

considerada até que bem

longa para quem faz teatro

aqui. Outro que mexeu muito

comigo foi 'Camille Claudel'.

que estreou em 2005, foram

quase dois anos de ensaio.

Esses trabalhos, que exigem

mais concentração, estudo e

um mergulho no assunto me

dão muito mais prazer.

Percebo que a presença

do público é maior quando a

peça tem um ator conhecido,

global. O teatro causa uma

dúvida nas pessoas do que

irão encontrar. Então,

quando existe este apelo

televisivo, há mais interesse.

Uma coisa que eu senti

com o 'Projeto Bispo' foi

que muita gente jovem, que

não tinha costume de ir ao

teatro, teve interesse. Rolou

um boca a boca que ajudou

na divulgação. Diziam que

era uma peça estranha. com

gente doida e acontecia no

meio da rua. Essa estranheza

chamou a atenção.

Penso que ator e

espectador precisam estar

sob a mesma luz, a poucos

metros de distância. E o legal

é o imprevisto. Se começa a

chover ou alguém desmaia,

eu não vou fingir que nada

aconteceu. Você aprende a

incorporar essas situações

inesperadas ao o que você

propõe em cena. ■

Revista Terceiro Ato ■ 67


Ambientes

Quando a Pedagogia

alcança o palco

Texto: Lincoln spada

As artes cênicas como

ferramentas pedagógicas

são tão comuns quanto

às encenações infantojuvenis

de fábulas da Disney

nos auditórios escolares.

Jogos de improviso, dramatizações

e técnicas de respiração

e expressão corporal

são algumas das atividades

do teatro que são herdadas

no dia a dia de quaisquer

colégios. Você mesmo se

lembrará de algum fato que

envolva tal fé cênica na sua

antiga sala de aula.

Na Baixada Santista, há

colégios tradicionais em

montagem de espetáculos,

como o COC Novo Mundo

(Praia Grande), o Colégio

do Carmo (Santos) e a Escola

Verde que te quero Verde

(São Vicente). Por outro

lado, também estão abertas

as portas de escolas de teatro,

como a Casa3 (Guarujá),

o Tescom (Santos) e o

Teatro do Kaos (Cubatão).

O panorama chega a universidades

santistas, como

o Gextus na Unisantos, o

TEP na Unisanta e um curso

profissionalizante de

atores no Senac. Ainda, o

Poder Público oferece cursos

livres sobre o segmento.

Em Cubatão, cabe à servidora

pública e arte-educadora

Vanessa Souza idealizar,

conceber e montar

uma sala teatral no Centro

Multimídia do Parque Anilinas,

desde 2014, para lecionar

artes cênicas gratuitamente

para crianças até

idosos - são mais de 100

alunos ao ano. Um dos legados

é a criação no núcleo

Cabras Cegas, de crianças

interpretando peças anti-

-bullying e fábulas, que circulam

na rede municipal

Crédito: Yvonne Guerin

Alan Queiroz

Você leciona teatro há quanto

tempo? E há quanto contribui

no Núcleo de Artes do PDA?

Em média, qual é a faixa etária

e quantidade de alunos ou

turmas?

Leciono teatro há 13 anos, no Palácio

das Artes (PDA) estou desde

2016. Atendemos a partir dos

14 anos, e temos alunos de várias

idades, até com mais de 70. Aliás,

temos muitos alunos da terceira

idade, acredito, que nas minhas

sete turmas, mais da metade são

idosos. Ao todo, leciono para 130

alunos, a mesma quantidade da

Selma Bosch, que também dá aulas

no PDA.

Geralmente, cursos livres têm

grupos muito heterogêneos.

Quais as razões mais comuns

que você observa para alguém

estudar teatro?

Muito heterogêneo, mesmo, em

especial no PDA os motivos divergem

pela idade. Os adolescentes

vêm com o sonho de ser

um ator famoso e global. Mas a

68 ■ Revista Terceiro Ato


Vanessa Souza com alunos na conclusão anual das suas turmas de teatro (foto: Sander Newton)

de ensino.

Já em Praia Grande, há

um núcleo de pesquisa teatral

bem no Palácio das

Artes, em que funcionários

dirigem e ensinam dezenas

de alunos via cursos livres,

em turmas para diversas

faixas etárias. Um dos responsáveis

pelo êxito do

projeto municipal, o diretor

Alan Queiroz, concedeu

entrevista abordando sobre

a trajetória dessa iniciativa

que completa 10 anos.

grande maioria vê o teatro como

uma fuga dos problemas ou como

um momento particular seu, uma

atividade para ativar o corpo ou

o cérebro. Temos pessoas que

antes de começar a fazer teatro

estavam em suas casas com depressão

e hoje passam longe de

remédios.

Nas aulas, como se dá o planejamento

do curso e como

você avalia a evolução dos

alunos?

Costumo planejar de acordo com

a turma. Tem turma que posso

exigir um pouco mais, então trabalhamos

por linguagens. Outras,

que estão “engatinhando”, trabalho

mais o processo de iniciação

com temas e, à medida que evoluem,

passo para as linguagens.

Trabalhamos muito o processo de

construção de personagens nas

mais variadas formas.

Quando alguns começam a se

destacar, são incluídos em grupos

que fazem itinerância. Já os

demais entram em cenas e espetáculos

que ficam em cartaz no

PDA. Todos em algum momento

são inseridos em espetáculos e

passam pelo palco.

Poderia descrever um momento

na classe ou comentário de um

aluno que mais lhe marcou enquanto

docente na área teatral?

Teve uma aluna que relatou que

desde que o marido faleceu, ela

se encontrava em casa deprimida,

por quase cinco anos. Aí a

vizinha dela fez a matrícula dela

no PDA e a “obrigou” a vir. Resultado

é que hoje ela faz parte

do nosso grupo itinerante, fez

turnês com a peça e passa longe

de remédios.

Revista Terceiro Ato ■ 69


Mostra estudantil do Teatro do Kaos (acima, foto de Sander Newton)

e conclusão dos alunos da EAC (abaixo, foto da EAC)

Ambientes

Década de Referência

| Por sua vez, Santos

se tornou referência

com a Escola de Artes

Cênicas Wilson Geraldo,

que já celebrou uma

década formando atores

profissionais da região

no Teatro Guarany.

“Leciono teatro há 31

anos e coordeno a EAC

desde 2015”, comenta a

artista Renata Zhaneta.

“A faixa etária predominante

é de 17 a 22 anos.

As disciplinas são: interpretação,

expressão

vocal, expressão corporal,

história e teorias do

teatro, com avaliações

teórica e prática”.

A implantação do

modelo profissionalizante

veio do saudoso

Roberto Peres, antecessor

de Renata: “Com

isso, a EAC se igualou

aos melhores cursos de

teatro da capital. Nossos

ex-alunos estão

inseridos não só no teatro,

mas também no

cinema e na dança”.

Desde 2016, a escola

está conveniada com o

Sindicato dos Artistas,

propiciando o registro

profissional de ator aos

formandos - atualmente,

há cerca de 120 alunos

com tal formação

gratuita. ■

70 ■ Revista Terceiro Ato


Ambientes

Da Baixada para

os confins do País

Texto: Rafaella

Martinez Vicentini

Cruzar os limites da cidade

e levar a arte para os confins

do Brasil: essa é a sina

de projetos da Região que

utilizam Políticas Públicas

Culturais, tais como editais e

legislações específicas. No total,

cerca de 500 municípios

brasileiros já receberam a visita

do projeto santista Teatro

a Bordo e as apresentações

cênicas do Widia Cultural, de

Santos.

Há doze anos nas estradas,

a ‘Caixola’ de aço do

Teatro a Bordo transporta riquezas

imateriais tais como

apresentações, intervenções

artísticas e oficinas educativas

para regiões de um Brasil

que muitas vezes o próprio

Brasil desconhece.

A ideia de transformar um

contêiner comum em palco,

utilizando os mesmos recursos

cênicos dos espaços convencionais,

surgiu em 2007,

durante um curso de Gestão

Cultural que a atriz Talita

Berthi frequentou. A proposta

final do projeto era mapear

e propor soluções para

as necessidades culturais da

região. “Um dos maiores empecilhos

na Baixada Santista

é a deficiência de espaços culturais

para apresentações. O

uso de espaços alternativos é

uma opção, mas sentia falta

da qualidade técnica e dos

recursos cênicos disponíveis

nos espaços convencionais.

Não fazer a estética própria

do teatro de rua e sim levar o

teatro para a rua”.

A produtora acrescenta

que o uso do contêiner é

baseado principalmente no

fato da caixa de aço ser um

símbolo de troca. “Nessa

nova circulação, não chegamos

com o espetáculo pronto.

Conversamos e conhecemos

a população para poder

assim dar voz ao público, que

está convidado a interferir

na cena”, afirma.

Com o passar

dos anos e após visitar

mais de 400

cidades brasileiras

o projeto passou

por diversas adaptações.

“Hoje, com

o imediatismo,

precisamos pensar

em novos formatos

e em um espetáculo

mais dinâmico.

Uma coisa, no entanto, não

mudou: pelo menos metade

de quem entra na nossa tenda

nunca foi ao teatro e essa

é a magia da itinerância. Precisamos

criar plateias pelo

Brasil e reforçar a importância

da arte. Quando vamos

embora a história fica naquela

praça”, aponta o produtor

Douglas Zanovelli.

Desde 2015 a arte do teatro

a bordo anda de mãos dadas

com a sustentabilidade. O

sol, companheiro de viagens,

é hoje o responsável pela iluminação

cênica do contêiner-

-palco, a partir da instalação

de módulos fotovoltaicos.

“Aliamos passado e presente.

Nos inspiramos nas

trupes de commedia dell’arte,

que cruzaram a Europa

entre os séculos XV e XVIII

em carroças e, muitas vezes,

criavam efeitos de luz em

seus espetáculos com o sol

de mãos dadas com o público e

com a sustentabilidade

(crédito: Sandro Lopes)


refletido em espelhos. Além

disso, a equipe técnica não

precisa se preocupar com a

busca por pontos de energia

em bairros mais afastados

que visitamos. Essa é a função

da arte: apontar novos

caminhos”, pondera Douglas

Zanovelli. “Além de ser

muito inspirador contar com

a presença do sol durante

a noite, estamos utilizando

energia limpa, aliando arte

e sustentabilidade na democratização

do acesso à cultura”,

completa Talita.

Pelo tamanho do projeto,

o Teatro a Bordo funciona

à base de leis de incentivo.

“Como fazer um projeto dessa

estrutura e que seja gratuito

para a população? Ele

sempre foi um projeto pensado

para ser parte de políticas

públicas de democratização

de acesso à Cultura. A

população precisa conhecer

os benefícios da legislação e

também a rigidez dela. Para

ser aprovado e executado, o

projeto passa pela mão de

muita gente e há diversas

prestações de contas, tanto

para o Governo quanto para

Ambientes

o patrocinador. E qualquer

pessoa pode acompanhar

esse caminho que o dinheiro

público faz nas plataformas

digitais”, destaca Talita.

A mesma ideia é defendida

pelo diretor Platão Capurro

Filho, que já circulou por

mais de 50 cidades do Estado

amparado pelos editais

do ProAC – Programa de

projeto Teatro a Bordo leva

artes às cidades (Fotos de

Rodrigo Montaldi Morales e

sandro lopes)

72 ■ Revista Terceiro Ato


Ambientes

Ação Cultural do Estado

de São Paulo. Ele

acredita, no entanto,

que as oportunidades

estão sendo limitadas.

“A verba disponibilizada

não comporta a

demanda de projetos

inscritos. Estamos

acompanhando uma

queda significativa no

número de projetos

aprovados e a junção

de várias categorias distintas

em um mesmo edital. Isso

está dificultando o trabalho

dos artistas”, conta.

Dentre os aspectos positivos,

Platão reforça a importância

de ‘estar onde

o público está’ – e onde a

arte geralmente não chega.

“Sempre procuro levar os espetáculos

para regiões com

baixo IDH, com população

menor que cinco mil habitantes

e preferencialmente

em zonas rurais. A presença

do teatro é algo que impacta

diretamente na vida dessas

pessoas”, afirma.

Desafios | Para possibilitar

a itinerância dos projetos,

cada mecanismo tem suas

contrapartidas e suas próprias

formas de execução.

Enquanto a Lei de Incentivo

à Cultura funciona via renúncia

fiscal – onde pessoas

comuns e empresas podem

abater o valor destinado do

Imposto de Renda -, o ProAC

projeto ‘Meu quintal é maior

do que o mundo’ circulou por

cidades do estado; abaixo, o

diretor platão capurro filho

(fotos de Rodrigo Montaldi)

possui duas possibilidades:

editais específicos ou ICMS,

que também funciona com

incentivos fiscais.

Platão acredita que o principal

desafio após a aprovação

é a conciliação das agendas

com as Secretarias Municipais

e os atores envolvidos,

situações naturais dentro de

projetos itinerantes.

Já Talita destaca a importância

de aliar as expectativas

do projeto com os

anseios dos patrocinadores.

“Entendemos que há um tripé:

Lei, Artista e Empresa. O

patrocinador na maior parte

das vezes tem o desejo de

atuar nos espaços onde está

inserido e dentro desse cenário

buscamos a interlocução

para ir onde geralmente a

arte não chega”, finaliza. ■

Revista Terceiro Ato ■ 73


Perfil

Visitando

o Senhor

Mamberti

Texto: Lincoln Spada

Foto: Raphael Montanaro

A

vizinhança em Santos felicitou

extraordinariamente a amizade

entre uma mulher de mais de

50 anos e um adolescente de 14, 15

no mais tardar. Era o ano de 1954.

“Todo mundo falava que ela era

comunista, porque tinha sido presa

no período da ditadura [de Vargas].

E aquela mulher estranha de

repente apareceu no Clube de Cinema

de Santos, e nos tornamos amigos.

Todo dia que ela ia para o cineclube,

passava em casa para me

buscar”, detalha Sérgio Mamberti

sobre as suas primeiras impressões

de Patrícia Galvão. “Sim, a Pagu foi

minha amiga de infância”.

O relato foi à Leda Nagle no último

setembro, onde abordou sobre

o seu ingresso ao mundo das artes

ao lado do saudoso irmão mais

novo, Cláudio Mamberti (1940-

2001), ator de cinema, teatro e TV.

Filho de um agitador cultural e uma

educadora, Sérgio passou a infância

sendo cativado pelas peças de

Procópio Ferreira, no clube dirigido

por seu pai na Cidade. Cresceu


Perfil

com Bibi Ferreira, Cacilda

Becker, Cleyde Yáconis e

uma geração de grandes nomes

do teatro. Na vida, já se

encontrou com Jean Genet e

os filósofos Jean-Paul Sartre

e Simone de Beauvoir. Mas

confessa que o seu repertório

cultural foi com Monteiro

Lobato, ainda na primeira

infância. “Fui formado no

‘Sítio do Pica-Pau Amarelo’,

que vejo como formação nobre”,

diz à apresentadora.

Daí o seu encanto diante

do papel de um bruxo de três

mil anos: o Victor Astrobaldo

Stradivarius Victorius, o Tio

Victor do célebre ‘Castelo Rá-

-Tim-Bum’.

O programa infantil da TV

Cultura teve estreia em 1994

e já foi exibido em 16 países

da América Latina, a maior

parte via canal Nickelodeon,

rendendo prêmios até em

Nova York. “Foi o meu maior

legado, porque pegou gerações.

É um coisa, assim, das

pessoas me encontrarem e

chorarem: ‘Você faz parte da

minha vida, da minha infância.

Se sou quem sou hoje, é

por sua causa’”.

Sérgio se comove na entrevista.

“Isto é a coisa mais

importante, porque acho que

aí a gente cumpre esse papel,

essa função social do ator”,

enfatizando que o programa

educativo primava pela

formação de cidadãos. Ator

profissional desde 1962 com

‘Antígone América’, reúne

mais de 80 peças, 50 filmes

e 30 telenovelas em sua trajetória,

Sérgio teve outros

personagens marcantes.

Principalmente na TV, desde

que estreou em ‘Brilhante’

no Grupo Globo (1981) como

Galeno Sampaio. Em ‘Vale

Tudo’, foi Eugênio (1988) e

mais recentemente, em ‘Sol

Nascente’, interpretou Manfredo

(2016). Até está em

cartaz na Netflix, como Matheus

na série ‘3%’ (2016).

O diplomata da Cultura

| “E o que é cultura?

Tem uma coisa nos faz como

Com Emilio Orciollo Netto na novela ‘Sol

Nascente’ | Crédito da Foto: Grupo Globo

brasileiros, que é justamente

o cultivar dessa riqueza

das etnias que contribuíram

para a nossa identidade

múltipla. Então, o brasileiro

acolhe quem vem do exterior

e logo a pessoa também

se sente brasileira nessa comunicação

muito cordial.

Sim, a gente tem uma barra

pesada na nossa história,

no tempo colonial, a gente

sabe que tem uma herança

da escravatura que ainda

está muito presente. Mas,

há uma cordialidade, uma

alegria que não se encontra

noutros países”.

Se o sonho de sua família

era que fosse diplomata, Sér-

Revista Terceiro Ato ■ 75


Perfil

gio desempenhou esse papel

a partir da Era Lula. Até o

impeachment de Dilma, foi

titular da secretaria nacional

de Música e Artes Cênicas, a

da Identidade e da Diversidade

Cultural, a de Políticas

Culturais e presidiu a Fundação

Nacional das Artes. Na

Funarte, foi responsável pela

itinerância da entidade pelo

Brasil, alcançando a descentralização

de representações

em quatro das cinco regiões

- exceto o Sul brasileiro.

Já no Ministério da Cultura,

chefiou missões em prol

do intercâmbio cultural com

Com Zé Celso Martinez durante Prêmio Arcanjo de Cultura no

Theatro Municipal de SP (Foto acima: Edson Lopes Jr.) e durante

sessão de ‘O Ovo de Ouro’ (Foto abaixo: Leekyung Kim)

a América Latina - “existe

uma coesão muito nítida do

continente” -, e participou de

todas as reuniões relativas à

proteção e conservação do

patrimônio natural e cultural

realizadas pela Unesco. “Fiquei

seis anos cuidando de

políticas para os povos indígenas.

Não sabia que o Brasil

tinha 227 etnias e 180 línguas

falantes. Depois do meu

trabalho, mais de 100 etnias

foram apresentadas [ao Ministério

da Cultura]”.

O artista e político ressaltou

em entrevista à Carta

Capital, em julho de 2019:

“Fizemos quatro grandes

conferências nacionais, onde

foi criado o Sistema Nacional

de Cultura, e o fomento passou

a ser uma questão fundamental.

Todo um processo

de um SUS da Cultura, tudo

isso está sendo desmontado”.

Como futuro, desafia

que o atual governo retome

as discussões do projeto Pro-

Cultura, estagnado no Congresso

Federal.

Frente contra o desmonte

| “Existe uma política

de extermínio cultural,

de fazer como que a cultura

perca seu papel de agente

transformador, sendo que há

um desmonte sistemático de

todas as conquistas dos últimos

anos”, denuncia o diretor

teatral.

76 ■ Revista Terceiro Ato


O Pós-MinC

Entre maio de 2016 a fevereiro

de 2020, a ex-global Regina

Duarte é o 9º nome entre ministros

e secretários nacionais

de Cultura. Ela sucede Roberto

Alvim, que não durou três

messes no cargo após rápida

ascensão hostilizando publicamente

Fernanda Montenegro,

entre outros artistas. A queda

se deu devido à pressão da

Confederação Israelita, quando

em vídeo institucional, o

ex-secretário fez um discurso

que emulava o nazismo.

“Emular a visão do ministro da

propaganda nazista de Hitler,

Joseph Goebbels, é um sinal

assustador da sua visão de

cultura, que deve ser combatida

e contida”, disse em nota

a entidade. “Uma pessoa com

esse pensamento não pode comandar

a cultura do nosso país

e deve ser afastada do cargo

imediatamente”. Autoridades

do Judiciário e Legislativo estiveram

do mesmo lado da Embaixada

da Alemanha no Brasil:

todos repudiaram a fala que copia

o discurso nazista.

Em menos de um ano, o ministério

foi transferido como braço

do Ministério da Cidadania e

até à época de Alvim, encontrava-se

subordinado ao Ministério

do Turismo, onde o titular

da pasta, Marcelo Álvaro Antônio,

é alvo de investigações em

relação a um eventual laranjal

mineiro do PSL, durante as

eleições de 2018. Na primeira

pasta, a Lei Rouanet foi atualizada

com mais contrapartidas

sociais, embora barrando o

segmento de musicais com o

teto de valores. Mas, em vista

da rede de equipamentos públicos

culturais e as próprias

produções financiadas via Lei

Rouanet terem apelo turístico,

até então a secretaria se configura

ao atual tal órgão.

Como o personagem Tio Victor do clássico programa infantil

‘Castelo Rá-Tim-Bum’ | Crédito da Foto: TV Cultura/Divulgação

Aos 80 anos, o artista não vê

de modo pessimista o futuro

da cultura, embora tenha

perdido prestígio, status ministerial

e várias produções e

artistas tenham sido alvo de

censuras e boicotes em eventos

pelo país.

“A cultura já começou a

ir para as ruas, mas concordo

que tem que avançar mais

(...). Acho que a cultura tem

de assumir essa liderança, e

tem de estar com a classe trabalhadora.

Precisamos olhar

para trás e aprender um pouquinho.

Os estudantes foram

fundamentais (na resistência

à ditadura civil-militar).

E temos os movimentos do

campo, como o MST que é

revolucionário, e o MTST.

Falta juntar tudo isso. Acho

que os elementos estão aí. A

cultura é o elemento aglutinador

desse processo”.

Para a Carta Capital, Sérgio

complementou da tendência

de um desmonte das

políticas culturais desde a

gestão Temer (2016). “Não

acredito que essa tempestade

vai durar muito tempo”,

prevê o santista em conversa

com o jornalista político Bob

Fernandes, em maio de 2019.

O seu anseio era o da retomada

das políticas culturais,

Revista Terceiro Ato ■ 77


Perfil

em especial, a substituição da

Lei Rouanet pelo ProCultura.

“Que procurava contornar

determinadas distorções, que

consideravam fundamentais

para a gente combater, que

era a concentração [de verbas]

no Sudeste”.

No novo programa, “metade

da Lei Rouanet seria

utilizado para editais diretos

(...), e a outra metade as pessoas

podiam utilizar o mesmo

mecanismo atual, mas

com uma pontuação”. A depender

dos critérios de acessibilidade

e contrapartidas,

“a empresa não precisaria

investir nenhum percentual,

ou além de ter o subsídio [renúncia

fiscal], ela teria que

fazer também uma inversão,

utilizando de recursos diretos

[privados]”.

Livro, mostra e espetáculos

| Se não há o que comemorar

na conjuntura política

atual, Mamberti festeja

os seus 80 anos nos palcos.

Na Baixada Santista, foi Herodes

na 51ª Paixão de Cristo

de Cubatão. Na China, interpretou

Sr. Green, no clássico

“Visitando Sr. Green”,

em cartaz há cinco anos sob

a direção de Cássio Scapin,

amigo desde os tempos da

TV Cultura. “Meu personagem

é um velho judeu, que a

mulher morreu e está muito

solitário. Ele vai atravessar a

rua e é quase atropelado por

um jovem executivo, que é

obrigado a prestar serviços

comunitários e vem visitá-lo

sempre às quintas-feiras”,

comenta à Regina Volpato

durante junho de 2019, no

Programa Mulheres.

Ainda, em dezembro estreou

‘O Ovo de Ouro’, sobre

um sobrevivente do campo

de concentração, que relata,

já na velhice a uma repórter,

que participou da cruel função

do Sonderkommando

- grupo de prisioneiros que

trabalhavam nas câmaras

de gás e nos crematórios. A

peça tem direção de Ricardo

Grasson e texto de Lucas

Papp. Nas artes plásticas, reviu

sua memórias na exposição

‘Comandante Mamberti’,

idealizada por Regina Boni.

Também

em breve, o

artista, que

concebeu

uma instalação

no

paulistano

restaurante

Ritz e tem

uma estrela

na Calçada

da Fama

do santista

Cine Roxy,

lançará

sua autobiografia

pela Editora

Sesc, escrita em parceria

com Dirceu Alves.

Nos palcos, o homenageado

com a Ordem de Mérito

Cultural já colecionou

os prêmios Saci (1964), Governador

do Estado de São

Paulo (1969, 1975), Molière

(1975), APCA (1975, 1989),

Mambembe (1995), Sharp

(1995), Lumière (1998), entre

outros. Graduado na Escola

de Arte Dramática da

USP (1961), destaca-se no

teatro com ‘O Balcão’ (1969),

‘Réveillon’ (1975) e ‘Pérola’

(1995). “O teatro se mantém

há mais de dois mil anos porque

não há nada que substitua

essa relação. Não há

Internet, não há tela. É respiração

com respiração. E é

isso que faz do teatro uma

experiência maravilha”. ■

Com Rodrigo Lombardi na peça ‘Um Panorama

visto da ponte’ | Crédito da foto: Alê Catam

78 ■ Revista Terceiro Ato


Diário Cênico

14 de março de 1886

Palco dos Boêmios Libertários

Textos: Lincoln Spada

Foto: FAMS/Divulgação

A

data foi celebrada por

duas mil pessoas no Teatro

Guarany, em vista que

o presidente da Câmara de

Santos, major Joaquim Xavier

Pinheiro, fundou uma

sociedade para comprar escravos

santistas e lhes dar

a alforria nos palcos. Uma

dezena foi liberta nessa

noite, em uma época que já

estavam livres os idosos e

recém-nascidos. Santos era

um município distinto: metade

dos 6 mil habitantes

eram negros; não à toa a cidade

mantinha quilombos,

como o de Quintino de Lacerda,

no Jabaquara, e o de

Pai Felipe, na Vila Mathias.

De acordo com pesquisas

acadêmicas e históricas,

há três versões para a eclosão

de movimentos contra a

escravização de negros entre

as classes mais abastadas.

Alguns indicam um legítimo

anseio de uma geração de jovens

intelectuais pela liberdade

de todos os cidadãos,

outros de que a elite preferia

o embranquecimento demográfico

com a futura vinda

de mão-de-obra europeia

para o país marginalizando

os ex-escravos. Há ainda

quem anote nos quilombos

locais uma forma de apropriação

da elite que colaboraria

aos quilombos em

troca de serviços domésticos

dos supostos beneficiados.

Fato é que ao passar dos

anos, as páginas de jornais

amarelaram convencionando

os movimentos abolicionistas

da Cidade como

representações do mais alto

quilate cívico, afinal, por se

oporem à maior tragédia do

passado nacional. Em 1881,

o mais famoso e descentralizado

coletivo ganhou as ruas

de Santos, a Bohemia Abolicionista.

As reuniões diárias

eram nos bancos dos jardins

ou numa residência na Praça

Rui Barbosa.

O movimento reunia o

ex-marinheiro Eugênio Wansuit

e o advogado Rubim

César, ambos os mais eloquentes

oradores entre os

pares. O motim ideológico

também vinha na forma de

15 jornais, manuscritos ou

folhetins, como O Embrião,

O Porvir e O Pirata. De tons

panfletários, os textos mais

ilustres pertenceram ao poeta

Vicente de Carvalho. A

dramaturgia se fez presente

nos textos de José Sacramento

Macuco, que dá

nome ao bairro santista.

Em 1884, registra-se que

o autor encenou ‘A Sombra

da Cabana’, onde toda a bilheteria

arrecadada financiou

a libertação de um escravo.

Segundo Francisco Martins

dos Santos, em 1939, “a carta

de liberdade foi entregue ao

pobre homem em cena aberta,

no Teatro Guarany, e nessa

ocasião, enquanto Sacramento

Macuco e os rapazes

abolicionistas recebiam delirante

ovação, o dr. Rubim

Cesar pronunciava uma das

suas mais belas [...] e violentas

orações”.

Ao lado da Câmara de

Santos, então na Cadeia Velha,

o Guarany também era

palco da libertação de escravos

por outros coletivos,

associações e grupos locais.

No mesmo ano, durante palestras

sobre a abolição e a

república, outra dezena de

homens e mulheres ganhou

a liberdade. E, durante toda

a década, o mesmo teatro

seria testemunha privilegiada

de alforrias e campanhas

contra a escravização na Cidade.

Revista Terceiro Ato ■ 79


A

Aids assusta moradores

da fictícia ilha de

Tanga, homônima ao único

filme (de 1987) dirigido por

Henrique de Souza Filho, o

Henfil. Ele lutara contra a

hemofilia, a ditadura, porém,

rendia-se, junto aos

dois irmãos, Chico e Herbert

(Betinho), à infecção do HIV

através de uma transfusão

de sangue. Nesta campanha

pela vida, os irmãos foram

os pioneiros a conseguir

a liberação da importação

do antiviral AZT e receber

apoio financeiro de artistas

de todo o Brasil.

A extinta Federação Santista

de Teatro Amador, então

capitaneada por Nanci

Alonso, também se organizava

para lhe enviar verbas.

O então secretário de

Cultura Tanah Corrêa e os

diretores teatrais Domingos

Fuschini, Toninho Dantas e

Paulo César Pereio engrossavam

o coro de atores que

encenavam ‘Henfil - A Relativa

Revista’, com personagens

clássicos do cartunista.

Não vieram boas notícias da

capital paulista: Henfil faleceu

antes da estreia.

Em 13 de fevereiro, em

Cubatão, a resposta não

tardou como homenagem

póstuma. O tema voltava a

ser discutido em encontros

da classe artística no Teatro

Diário Cênico

13 de fevereiro de 1988

Solidariedade

em Revista

Municipal Braz Cubas. O

movimento compreendeu a

necessidade de um trabalho

permanente de conscientização.

Criava-se o Grupo de

Apoio e Prevenção à Aids

na Baixada Santista (Gapa/

BS), do qual é presidido até

hoje por Nanci.

A montagem encenada

pelo amigo Gilson de Melo

Barros (TEP/Unisanta) seguiu

em cartaz por dois

anos. Toda a verba obtida

pelo TEP financiava o Gapa/

BS: premiações e cachês

desse espetáculo, como das

intervenções urbanas e de

uma peça infantil ‘A Princesa

Aurora’. Esta última trata-se

de uma menina enferma

que vivia isolada em seu

reino. Aos moldes de uma

fábula, as crianças aprendiam

a importância da inclusão

nas escolas.

As campanhas preventivas

ganharam a mídia e

contavam com a colaboração

de mais de 100 voluntários,

como os atores Alexandre

Borges, Ney Latorraca,

Sérgio Mamberti. Cartazes,

partidas de futebol, venda

de produtos foram alguns

projetos realizados para subsidiar

a casa do Gapa/BS. O

teatro também apadrinhou

a luta contra a Aids em duas

oportunidades a se destacar.

Nos anos 90, havia até

gincana de arrecadação em

prol à ONG durante o Festival

Santista de Teatro. Nos

últimos anos, cabe ao Fescete

- Festival de Cenas Teatrais

realizar uma campanha

de alimentos enlatados a

serem doados pelos teatros

da Cidade durante o evento

para a entidade. O Gapa/BS

atende atualmente mais de

400 famílias, 70 crianças -

estas, em situação de vulnerabilidade

social ou órfãs de

familiares com Aids - e distribui

65 cestas básicas para

famílias cadastradas. ■

Acervo: Gilson de Melo Barros

80 ■ Revista Terceiro Ato


Diário Cênico

7 de setembro de 2001

Liberdade sem Ruas

Zéllus Machado Plínio Marcos Maria Tornatore

Mais de 600 quilos de alimentos

não-perecíveis se

acumulavam no Centro Cultural

Patrícia Galvão em 7 de setembro

de 2001. O feriado nacional

marcava também a estreia do

espetáculo ‘Homens de Papel’,

ovacionado no teatro local por

reunir na ribalta 11 pessoas em

situação de rua. As cortinas de

invisibilidade se desfaziam a

cada cena sob a direção de Maria

Tornatore e a coordenação

de Zéllus Machado.

Há três décadas de diferença

de sua concepção, a nova

versão de ‘Homens de Papel’

continuava contemporânea. Os

catadores de papel existiam e

ainda persistem como personagens

urbanos mostrando sobre

a marginalização social em que

vivemos e notamos - ou evitamos

notar - em nosso dia a dia.

Num contexto de miséria perene

de migrantes que vão da roça

até os arranhas-céus, os personagens

enfrentam seus vícios e

seus traumas à medida que se

revoltam contra o Berrão. Este,

um patrão que a dureza capitalista

não permite valores nobres

de justiça ou solidariedade.

Plínio Marcos se consagrou

como autor das vozes de

uma parcela urbana que vive

silenciada até os dias atuais.

A prostituta e o cafetão, o viciado

e o detento são alguns

dos anônimos que só chegaram

aos palcos nas versões

do dramaturgo que observou

tão bem as noites e as manhãs

do Centro de Santos. À época,

a montagem também era uma

homenagem póstuma que a

Prefeitura organizava ao artista,

falecido em 1999. Por sua

vez, Zéllus morreu em 2012.

Anos mais tarde, em entrevista

ao CulturalMente Santista

(site de André Azenha), Zéllus

explicou a iniciativa. “Falei para

o [secretário de Cultura] Carlos

Pinto. Sempre meus projetos

com ele são aprovados. Plínio

Marcos na veia. Fui à Pastoral do

Valongo, falar com os caras”, em

proposta que reuniu também a

então Secretaria de Assistência

Social (Seas) e o Fundo Social

de Solidariedade. A peça findava

ao som da X-9 santista, ‘Quando

você ouvir a melodia...’.

A viúva de Plínio, Vera Artaxo,

chorou na estreia relacionando

a atuação do elenco à

mensagem principal do autor:

“que todo o ser humano tem um

cantinho no coração, por mais

que ele tenha sofrido e endurecido,

que é um cantinho extremamente

sensível que basta a

gente saber tocar”. O sucesso

da temporada deu sequência

em ‘Mancha Roxa’, projeto que

Zéllus convidou Dino Menezes

para direção atrás de elenco formado

inicialmente por mulheres

em situação de prostituição.

Já Maria Tornatore seria lembrada

pelo espetáculo mais de

uma década depois. Em 2013,

a Secult e a Seas a convidaram

para o projeto ‘Se essa rua fosse

deles...’, para coordenar oficinas

de canto (Diego Spósito),

percussão (com Márcio Barreto)

e teatro (Cícera Carmo) para

população em situação de rua

atendida no Centro Pop, resultando

numa temporada de cenas

e rodas de partilha.

Coliseu, Sesc Santos e Tescom

receberam as sessões da

iniciativa no ano seguinte, durante

mostra que revisitava os

15 anos do adeus de Plínio. “A

arte realmente transforma. E o

resultado serão instalações cênicas,

onde cada um interpretará

suas lembranças para o

público”, disse Maria à época.

“Se resgatarmos uma pessoa,

já valerá a pena”. ■

Revista Terceiro Ato ■ 81

Créditos das fotos: Adilson Félix

(esq.), Prefeitura de Santos (cto.) e

Canal Oito de Dança (Dir.)


Crédito da Foto: Maycon Soldan

Um celular, um crachá, um

desodorante, um DVD,

um gorro, uma parafina, uma

pistola de plástico, um simulacro

de tonfa, duas máscaras

de cão, duas máscaras de rato,

onze cartazes, utensílios domésticos

e crânios de plástico.

O conteúdo era parte da cenografia

de ‘Blitz - O Império

que nunca dorme’, montagem

contemplada pelo Governo

Estadual e que teve sessão

censurada pelo Governo Estadual

em 2016.

O boletim de ocorrência de

30 de outubro ainda elencava

um teste negativo para um

pó branco - provavelmente

sal - que, num copo de plástico,

simulava ser entorpecente

numa esquete, além de duas

bandeiras, a do Brasil e a de

São Paulo. Por estarem hasteadas

de cabeça para baixo,

com os esqueletos nas pontas,

foi a alegação escolhida pela

Polícia Militar para interromper

a peça em plena tarde de

um domingo ocioso na Praça

dos Andradas, a mini-Roosevelt

por ser rodeada de espaços

culturais.

A sessão foi às 18 horas,

mas o boletim no Palácio da

Polícia a quatro quadras de

distância foi concluído quase

às 23. No ínterim, o diretor

teatral da Trupe Olho da Rua,

Caio Martinez Pacheco, foi algemado

e levado à delegacia.

Do lado de fora, artistas e militantes,

advogados e jornalistas

faziam vigília à medida que

circulavam mensagens nas redes

sociais sobre a detenção

do membro do Conselho de

Cultura da Cidade e da Cooperativa

Paulista de Teatro.

‘Blitz’ foi concebida como

sátira sobre o histórico de repressão

do Estado, a militarização

da vida, o fetiche da

violência e a mídia - principalmente

de telejornais policialescos

da TV aberta. Raro não

ter risadas no decorrer das cenas,

menos ainda a interação.

Ainda mais, quando teatro-

-denúncia há reflexões desde

o mundo cão dos policiais até

chacinas por São Paulo e os

Crimes de Maio de 2006.

A censura dominical aderiu

à agenda pública nos dias

seguintes. A ouvidoria da PM,

o Gregório Duvivier, os secretários

de cultura, o Jean

Diário Cênico

30 de outubro de 2016

Bandeiras

contra a

Censura

Wyllys, a TV Cultura e os deputados

estaduais se dividiam

sobre a posição da ação policial

contra o teatro de rua.

A fala mais notória veio do

próprio governador à época,

Geraldo Alckmin, em 1º de

novembro: “Claro que a atitude

deles [atores] foi de muito

mau gosto. (...) Agora, liberdade

de expressão é liberdade de

expressão. Goste ou não goste,

é um direito das pessoas”.

Infelizmente a sessão não

se tornou excepcional anos

seguintes - desde então, é

cada vez mais comum ver

desde prefeito mandar lacrar

gibis até série da Netflix ser

censurada por juiz. Para reflexão

nos tempos atuais, com

a palavra, o próprio Caio um

dia após a fala do governador:

“Gostaríamos muito de dar

oportunidade dialética [com

a PM], para poder fazer um

debate público, onde colocassem

os agentes públicos em

um lugar que eles tivessem

que respeitar a expressão artística

e discordar dela, como

qualquer cidadão pode fazer,

sem se achar no direito de impedir

que ela aconteça”. ■

82 ■ Revista Terceiro Ato


CORTINAS CERRADAS

Crédito da foto: Sérgio Silva

Aquele feixe de luz que

os holofotes iluminam,

versam sobre a Arte

acendida atravessadamente

pela inspiração e exame dos

cenários políticos, sociais e

do dia a dia. Os escritores,

cineastas, diretores, artistas,

musicistas, dançantes

e andantes produzem para

“movimentar” nosso senso

crítico e emocional.

O que ocorre com nosso

Brasil e no nosso Brasil,

definitivamente não são os

holofotes da vida dos nossos

artistas da Baixada Santista,

não são o centro de tudo! A

luz interior destes que revelam

muito mais do que 100

holofotes e são totalidade.

Enquanto rotina, a Vida

é mesmo o clichê do Teatro

sem ensaio, e nós, reles mortais,

vamos reproduzindo

continuadamente as mesmas

cenas sem nos darmos

conta.

Será que estamos fazendo

o melhor roteiro possível

de nós mesmos e dos nossos

atos? Será nossa existência

apenas uma experiência

para o fim?

Luzes apagam-se e

cortinas abaixam-se ou

fecham-se. Penso que não

morremos quando a morte

se dá; ao menos não os

artistas e os que lutam,

pois estes deixam o legado

de si para a eternidade

afrontando a demolição

das instituições culturais,

incomodando nosso ser

para ação, promovendo a

arte brasileira e provocando

o debate.

Nossas peças, caráter e

ações continuam em cartaz

por muito tempo. Obrigada

a todos vocês e façam valer

sempre cada segundo. ■

Texto: Nina Gagli

Revista Terceiro Ato ■ 83


A Revista Terceiro Ato é uma publicação jornalística independente contemplada

pelo 7º Concurso de Apoio a Projetos Culturais Independentes de Santos.

Prefeitura Municipal de Santos

Secretaria de Cultura

Programa de Apoio Cultural

Facult 2017

Crédito da foto: Eduardo Amaro

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