PhysikUPDATE - edição especial
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Edição
Especial
Uma Breve História de
Stephen Hawking
Entrevista a
Prof. Orfeu Bertolami
Redação e Edição
Mafalda Matos
Bruno Mota
Martim Carvalho
Design
Irene Peixoto
EDITO-
RIAL-.
A PhysikUPDATE é a revista do Departamento de
Física e Astronomia (DFA) da Faculdade de Ciências
da Universidade do Porto (FCUP) feita pelos alunos
e para os alunos.
Todos os trimestres poderás encontrar uma nova
edição desta revista, preparada pela nossa equipa da
casa—Mafalda Matos (3º ano da Licenciatura em Física),
Martim Carvalho, Patrícia Vieira (2º ano do Mestrado
Integrado em Engenharia Física) e Bruna Dias
(2º ano da Licenciatura em Física).
No dia 14 de março de 2018 faleceu um dos físicos
mais influentes da História da Humanidade – Stephen
Hawking. Portanto, esta edição especial é em sua homenagem:
nela poderás encontrar tudo sobre o mesmo,
desde a sua biografia os seus feitos científicos, até
-
ao seu retrato pelos média; para além de um testemunho
em primeira mão de um dos seus antigos alunos.
Relembramos que a publicação desta revista teria
sido impossível sem o apoio do DFA (Departamento
de Física e Astronomia), da Irene Peixoto (designer),
da Carolina Silva (presidente do PhysikUP) e, claro, de
vocês – os nossos leitores.
A equipa PhysikUPDATE deseja-vos uma boa leitura!
-
-
índice
-
5.
8.
10.
12.
Uma Breve História de
Stephen Hawking
Génio: O Poder da Curiosidade
Entrevista ao Professor Orfeu
Bertolami
Artigo de Opinião
_Teoria de Tudo
4
-
Stephen Hawking
faleceu a 14 de
Março de 2018, 55
anos após ter sido
diagnosticado com
esclerose lateral
amiotrófica. Depois
de 2 casamentos,
3 filhos, inúmeras
publicações
científicas e mais
de 10 prémios e
títulos, leva
consigo uma
história de vida
e perseverança e,
acima de tudo,
a capacidade de
superar todas as
dificuldades que a
vida pode oferecer.
- .
Stephen
Uma breve
história de
Hawking
por
Bruno Mota
imagem via
Affinity Magazine
5
-“Um conhecido homem da ciência (segundo alguns, Bertrand Russel)
deu uma vez uma conferência sobre astronomia. Descreveu como a Terra
orbita em volta do Sol e como o Sol, por sua vez, orbita em redor do centro
de um vasto conjunto de estrelas que constitui a nossa galáxia. No fim da
conferência, uma senhora de idade, no fundo da sala, levantou-se e disse:
«O que o senhor nos disse é um disparate. O mundo não passa de um prato
achatado equilibrado nas costas por uma tartaruga gigante.» O cientista
sorriu com ar superior e retorquiu com outra pergunta: «E onde se apoia a
tartaruga? » A velhinha então exclamou: «Você é um jovem muito inteligente,
mas são tudo tartarugas por aí abaixo! ».
A maior parte das pessoas acharia bastante ridícula a imagem do
Universo como uma torre infinita de tartarugas. Mas o que nos leva a
concluir que sabemos mais? Que sabemos ao certo sobre o Universo e
como atingimos esse conhecimento? De onde veio e para onde vai? Teve
um
-
princípio e, nesse caso, que aconteceu “antes” dele? Qual é a natureza
.
do tempo? Acabará alguma vez? Descobertas recentes em física, tornadas
possíveis em parte pela fantástica tecnologia atual, sugerem respostas a
algumas destas antigas perguntas. Um dia, essas respostas poderão parecer
tão óbvias para nós como o facto de a Terra girar em redor do Sol; ou
talvez tão ridículas como uma torre de tartarugas. Só o tempo (seja ele o
que for) o dirá.”
É desta forma que Stephen Hawking abre o primeiro capítulo do seu
livro, “Uma breve história do tempo”, indubitavelmente umas das suas
obras mais conhecidas dentro e fora da comunidade científica.
Nascido a 8 de Janeiro de 1942, no aniversário dos 300 anos da morte
da Galileu, desde sempre teve contacto com o mundo académico uma
vez que os seus pais, Frank e Isabel Hawking, tinham sido ambos alunos
na conceituada universidade de Oxford.
Embora conhecido como “Einstein” no secundário, Hawking não
foi, inicialmente, bem sucedido no seu percurso de estudos. Contudo,
com o passar do tempo começou a mostrar grande aptidão para as áreas
científicas, acabando por se graduar em Física em 1962, contra a vontade
de seu pai, que insistia que se formasse em medicina.
-
imagem via
pcworld
6
-
-
Aos 21 anos, já a trabalhar no seu doutoramento, Hawking foi diagnosticado
com esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença degenerativa rara
que paralisa os músculos do corpo sem, no entanto, atingir as funções cerebrais.
Nos anos seguintes, Hawking continuou a sua investigação sobre buracos
negros e, em 1970, juntamente com Penrose, provou que se o universo obedecer
à teoria da relatividade geral e estiver de acordo com os modelos cosmológicos
de Alexander Friedmann, então terá tido início com uma singularidade.
A chamada radiação Hawking foi ainda outra das suas contribuições e
prevê que os buracos negros evaporam num processo em que pares de partículas
virtuais aparecem na borda do seu horizonte de eventos de um buraco
negro e, enquanto uma das partículas é atraída para dentro deles, a outra escapa,
sendo depois detetada sob a forma de radiação, explicando assim porque
é que conseguimos detetar buracos negros.
Em 1979, Stephen Hawking foi eleito Professor Lucasiano na universidade
de Cambridge onde se manteve por 30 anos, cargo este ocupado também
por Newton (de 1669 a 1702).
Em 1985, Hawking teve de se submeter a uma traqueostomia após a contração
de uma pneumonia ao visitar o CERN na Suíça - e desde então passou
a utilizar um sintetizador de voz para comunicar. Em 2005, usava os músculos
da bochecha para controlá-lo mas, em 2009 já não conseguia controlar a cadeira
de rodas elétrica. Quatro anos depois, a Intel cedia-lhe um sintetizador
que detetava o movimento dos olhos.
Em 2018, mais de 50 anos depois de ter sido diagnosticado com ELA,
Stephen William Hawking adormeceu pela última vez na sua casa em sua casa
em Cambridge, Inglaterra.
7
8
GÉNIO:
-
O Poder da Curiosidade
por Duarte Graça
Todo o ser humano que envereda pelo caminho da Física merece ser dignificado
pela sua contribuição, quer tenha maior ou menor impacto, para o
avanço do nosso conhecimento acerca do Universo, das leis da Natureza que
governam a sua dinâmica.
A Física avança com toda a gente que nela participa, com todo o artigo,
experiência, estudo, palestra, convívio que resultam na difusão e avanço do conhecimento
colectivo da Humanidade sobre a realidade física que nos rodeia.
Esta valorização implica reconhecer que, em Física, como em toda a
actividade humana, há as/os revolucionárias/os, também de dimensão e
intensidade variáveis.
Nas pegadas de Galileo Galilei, Johannes Kepler, Isaac Newton, James
Clerk Maxwell, Marie Skłodowska Curie, Albert Einstein, Erwin Schrödinger,
-.
seguiu Stephen Hawking. Como cosmólogo, a sua viagem pelo mundo da
investigação teórica começa com a tese de doutoramento, publicada em 1966,
intitulada Properties of Expanding Universes. Como aponta Hawking, um universo
estático, infinito no tempo, implicaria um fluxo infinito de energia, caso
a do universo fosse infinita, ou equilíbrio térmico, caso fosse finita; o facto
de nenhuma das condições se verificar, associado às observações de redshift
de nebulosas por Hubble, resultou na procura da descrição de um universo
em expansão. Nesta primeira publicação, Hawking parte da necessidade de
abandonar modelos baseados num universo estático - sugerido pelo próprio
Einstein - para estudar as implicações de um universo em expansão na gravitação,
nas perturbações num universo isotrópico e homogéneo, na radiação
gravitacional e nas singularidades em modelos cosmológicos, usando a métrica
de Robertson Walker e referenciando o trabalho de Roger Penrose, físico
com quem trabalharia mais tarde.
-
-
O estudo das singularidades, em particular, torna-se central no trabalho
de Hawking, seguindo-se vários artigos nos quais demonstra resultados relevantes
neste domínio e noutros: as equações de Einstein associadas a um
conjunto condições para o universo implicam o surgimento de singularidades;
a Relatividade Geral demonstra falhas na aproximação ao domínio quântico e
em campos gravíticos muito intensos; o levantamento da condição de homogeneidade
do universo não impossibilita a singularidade a que se chama Big
Bang; a formação de galáxias não é explicável pelo crescimento de pequenas
perturbações de densidade.
Com Roger Penrose, em 1970, Hawking mostra que, em resultado da
Relatividade Geral, o universo deverá ter originado no Big Bang, pelo que
se torna necessário o desenvolvimento de uma formulação quântica da gravidade
compatível com as previsões da Relatividade Geral nos domínios de
aplicabilidade desta.
Em 1972, com B. Carter e J. M. Bardeen, a par do trabalho de Bekenstein,
formula as 4 leis da mecânica de buracos negros, com as quais estabelecem
uma analogia relativamente às leis da Termodinâmica, em particular o paralelismo
entre a área do horizonte de eventos - fronteira a partir da qual a
matéria, mesmo a luz, cai inexoravelmente para a singularidade no centro do
buraco negro e a entropia, e entre a gravidade de superfície do buraco negro
e a temperatura. Nesta altura, não era ainda admitido que esta relação entre
grandezas físicas assumisse, mais que analogia, uma forma física e matemática,
como Bekenstein propunha.
- -
- -.
inter-relacionando vários aspectos de diferentes áreas.
.
Em 1974, isso muda com o lançamento, por Hawking, do prelúdio do
que ficaria na história da Física como um passo revolucionário em Cosmologia
- a radiação de Hawking - com a publicação de Black Hole Explosions, no
qual admite a emissão de radiação por buracos negros resultante da criação
de partículas nas proximidades do horizonte de eventos, exemplo de efeitos
quânticos anteriormente desprezados devido à curvatura do espaço-tempo
“influenciada pela concentração de massa-energia” no exterior de um horizonte
de eventos de um buraco negro ser bastante superior à escala de Planck,
em que se tornam dominantes efeitos gravíticos quânticos.
No seguimento desse artigo, Hawking publica Particle Creation by Black
Holes, em que descreve integralmente o processo do que ficaria conhecido
como radiação de Hawking. Numa abordagem semiclássica, Hawking descreve
o espaço-tempo pela Relatividade Geral e os campos de matéria pela
Mecânica Quântica. Assim, ele concilia a escala do raio de curvatura do espaço-tempo
perto do horizonte de eventos com a criação de pares de partículas
resultante de flutuações quânticas no vácuo. Como explica Hawking, estas
partículas virtuais, surgindo nas proximidades de um horizonte de eventos
em pares, separam-se aquando do atravessar do horizonte de eventos por uma
delas, o que conduz à sua queda para a singularidade do buraco negro a par
da libertação da outra partícula no exterior. Disto, resulta a emissão da radiação
de Hawking, que possibilita prever, por exemplo, a evaporação de buracos
negros - na ordem de uma massa solar, o tempo necessário para tal acontecer
excede enormemente o tempo de vida do universo. Consequentemente, os buracos
negros têm temperatura, proporcional à sua gravidade de superfície, e a
sua entropia está associada à mesma.
Perante aquela que se tornaria uma das suas maiores marcas no desenvolvimento
científico como combinação de RG e MQ, Hawking só pode continuar
o seu trabalho na expectativa de aprofundar o conhecimento das grandezas
físicas e a estruturação dos modelos descritivos da realidade, dos processos
físicos que presidem à dinâmica do Cosmos.
Nesse sentido, ele aborda, nos anos que se seguem, um conjunto de questões
em diversas áreas de estudo, desde Relatividade Geral a Teoria da Informação,
passando por Mecânica Quântica e Termodinâmica, muitas vezes
Entre as dezenas de publicações que definem o seu trabalho académico
e científico, desde artigos científicos a livros com o propósito de elevar a literacia
científica ao público em geral, como o famoso A Brief History of Time,
Hawking deu, ao longo da sua vida, importantes contributos quer ao nível do
conhecimento científico, quer da divulgação do mesmo, cometendo falhas -
insistiu durante mais de 20 anos que a informação da matéria e radiação que
atravessassem o horizonte de eventos era destruída - que, a par dos sucessos,
constituem a identidade e o percurso de um/uma físico/a.
Brilhante, curioso, teimoso: assim era o génio que, a par de tantos outros,
inspirou gerações de cientistas.
Brilhante,
curioso, teimoso:
assim era o génio
que, a par de
tantos outros,
inspirou gerações
de cientistas.
9
Entrevista
10
Prof.Orfeu
Bertolami
“Portanto, acho
que esse otimismo
é o maior legado
que ele deu à
sociedade como um
todo, para além do
legado científico.”
-Martim Carvalho (M.C.): Antes de mais, gostávamos de
agradecer por aceitar conversar connosco sobre a experiência
que teve com Stephen Hawking. Fale-nos um pouco sobre si e,
em especial,do contexto em que teve contacto com ele.
Orfeu Bertolami (O. B.): Eu iniciei o meu doutoramento em
Inglaterra, em Cambridge, que começou com um ano a fazer cadeiras.
O sistema inglês é dividido em termos, cada um com oito
semanas. Portanto, são seis meses de aulas. No final de um ano, é
preciso fazer um exame e escolher as unidades curriculares cujos
cursos se quer assistir para depois fazer a avaliação final. Há uma
lista de cerca de 80 cadeiras que vão desde Matéria Condensada
até Relatividade Geral Avançada, Cosmologia, etc. Há um leque
de cadeiras bastante impressionante.
Uma das cadeiras era Cosmologia Quântica, dada por
Hawking. Não era uma cadeira para exame, era apenas para apresentar
essa área de investigação. Já não era nova, no sentido em
-
que esteve em gestação no final dos anos 60, onde caiu por completo
esquecimento. Depois reapareceu nos anos 70, num contexto
muito restrito de pessoas que ainda achavam que o problema
da gravitação quântica tinha de ser resolvido de uma certa maneira.
Foi ressuscitada num artigo de Hawking, escrito com um
colaborador norte americano James Hartle.
Quando comecei o meu mestrado, em 1981, e me perguntaram
o que eu queria fazer, eu disse que queria estudar Cosmologia
e Gravitação, porque desde que descobri a Relatividade Geral
nunca mais consegui pensar noutra coisa. Depois, quando li o
artigo de Alan Guth sobre a inflação, soube que queria trabalhar
nesta área. Essa área era estudada nos Estados Unidos, no MIT,
e, na Europa, em Cambridge. Escolhi então as cadeiras: Teoria
Quântica de Campos, Relatividade Geral, Cosmologia, Teoria das
Interações Fracas, Galáxias, Física de Partículas e Teoria de Grupos,
às quais fiz exame.
Quando me inscrevi disseram-me que podia ser que Hawking
desse o seu curso de Cosmologia Quântica. Nos anos anteriores,
ele já tinha dado uma versão curso. Se o curso aparecesse, eu iria
.
frequentá-lo. Era um curso informal onde ele balbuciava as aulas.
Nessa altura, ele ainda falava. Esse curso foi extremamente interessante.
Começou com coisas muito simples e foi ficando muitíssimo
complexo. Tinha como objetivo encontrar as soluções da
equação de Schrödinger equivalente para o Universo. A solução
chamava-se Solução de Onda do Universo.
M.C.: Como se sentiu quando soube que ia ser seu professor?
O.B.: Claro que ir para Cambridge sem conhecer Hawking
fazia pouco sentido. Cambridge é um sítio muito especial, que
tinha tantos Prémios Nobel como toda a França, onde Dirac foi
professor, onde a estrutura do DNA foi descoberta, etc. É um sítio
muito particular, que tem uma intensidade e uma densidade científica
que é de facto inacreditável. O curso que eu fui fazer tinha
cento e poucos estudantes de imensos países, eram os melhores
estudantes. É um ambiente muitíssimo competitivo, mas passando
por cima de tudo isso, é um local muito especial.
Eu tive amigos que só foram ver a “criatura”, mas, no meu
caso, era exatamente o que queria frequentar. Do meu ponto de
vista foi muito interessante. Curiosamente, depois de ter assistido
ao curso, não fiquei convencido de que aquela era forma de tratar
o problema. Mas muitos anos depois, quando já estava em Lisboa
(1990 - 1991), escrevi vários artigos sobre a equação de onda do
Universo, alguns deles equivalentes ao de Hawking. Um deles foi
sobre a dependência da equação de onda em relação aos graus de
liberdade da radiação, por exemplo. Hawking falava em campos
escalares, nós falámos em radiação. Ainda uso este formalismo
em alguns problemas. No entanto, não é completamente consistente,
tem alguns problemas.
M.C.: Então diria que foi esse formalismo que retirou das
aulas de Hawking?
O.B.: Bem, eu acho que foi o que mais me marcou, porque
depois fui fazer o doutoramento em Oxford, em 1984, em que o
meu orientador Graham Ross propôs o primeiro modelo de inflação
completamente baseado em supergravidade (o modelo mais à
vanguarda que existia então).
Em 1984, quando estava a estudar a duras penas supergravidade,
pensei “Pronto, o meu cérebro não vai aguentar”. Era tão complexo...
foi então que Graham bateu à minha porta e disse “Já leste o artigo
que todo o mundo comenta agora? O artigo das super-cordas? Tens
de ler”. Li e não compreendi uma palavra. Era uma matemática muito
complexa, demorei muitos anos para a perceber. Isto tudo para que
percebam que na altura estavam-se a fazer imensas coisas interessantes...
era mesmo a crista da onda! Claro que nós estávamos atrás, enquanto
um senhor estava sempre a surfar, sempre muito à frente, chamado
Edd Witten (possivelmente o humano mais inteligente vivo).
Tudo isto para dizer que eu não continuei em Cambridge,
pois pareceu-me que havia muitas outras coisas interessantes para
fazer. Havia uma revolução, chamada
-
revolução das super-cordas,
que começou em 1984 e depois o Witten tomou a liderança.
Patrícia Vieira (P.V.): O que mais o marcou nas aulas
com Hawking?
O.B.: O que marcou... Bem, é uma ótima pergunta. Após já
ter lido muitos livros tanto de física como de filosofia, de facto
nunca tinha entendido num ponto de vista concreto que realmente
na natureza não há barreiras. Nós aprendemos coisas de
forma segmentada e exclusiva, mas a natureza não é assim. Para
um problema de física temos de usar vários conhecimentos, temáticas
e teorias. Há uma continuidade e na Cosmologia Quântica
de Hawking havia essa continuidade. Ele tratava o campo
gravítico exatamente como tratava os outros campos.
Enquanto nós dividimos os problemas físicos em caixas, tornando-os
assim mais acessíveis, na Cosmologia Quântica não era assim.
M.C.: Olhando agora mais numa perspetiva da vida de
Hawking, o que o fascina mais?
O.B.: Não diria a palavra fascinação, mas o que me surpreendeu
foi a sua resiliência, a capacidade de superação. É muito frequente
as pessoas vitimizarem-se dado as adversidades, enquanto
que ele nunca se privou de fazer nada. É um homem profundamente
limitado que teve uma vida absolutamente extraordinária
- fez física do mais alto nível, casou 2 vezes, teve filhos, participou
na vida científica do seu tempo e ia às conferências.
Um colega meu acompanhava-o, porque ele precisava sempre
de alguém para o auxiliar. Disse-me que estavam em Chicago,
se bem me recordo, e decidiram ir a uma discoteca ao que o
Hawking respondeu: “Eu também quero ir porque nunca fui a
uma discoteca”. Pronto, quando ele lá chegou meteu-se na pista
de dança a rodar com a cadeira de rodas. Ele era uma pessoa que
sentia que a vida tinha de ser vivida, e eu acho isso incrível.
Posso dizer que em 1984 ele teve uma pneumonia que o fez
perder as cordas vocais resultando num ano sem poder falar, na
verdade, balbuciar. Depois, instalaram-lhe o tal computador que
funcionava de uma maneira completamente primitiva. Era uma
coluna com os nomes, uma com os pronomes e outra com os verbos.
Ele clicava e fazia as suas frases, demorava um tempo incrível.
Nas conferências as pessoas faziam perguntas e ele respondia
construindo as suas respostas. Podia muito bem dizer que não,
que não respondia a perguntas (dado a sua condição), mas não
estava no espírito dele não responder. Eu achava notável a sua
capacidade de superação. Nunca vi um ser humano assim.
M.C.: Acha que foi esse o maior desafio que ele nos deixou,
essa ideia de superação constante? Ou considera outro aspeto
mais importante ainda?
O.B.: Possivelmente. Eu acho que ele é um exemplo notável.
Stephen Hawking é uma demonstração de que as desabilidades que
as pessoas têm não são um obstáculo. É preciso que haja condições
para as pessoas estudarem e seguir em suas carreiras, o que não
é nada líquido. Entrava no departamento, onde havia uma porta,
daquelas basculantes, e uma rampa. Todo o mundo sabia que era a
porta para ele entrar e que nunca podia estar obstruída.
O Hawking deu um impulso excecional: temos de ser necessariamente
inclusivos. Saímos muito rapidamente do século
XIX, onde a educação superior era só para as pessoas que tinham
dinheiro e do sexo masculino. Todos os outros estavam fora. Depois
houve um passo intermediário, chamado “integração”, onde
eu coloco essas pessoas dentro do meu conjunto. Mas elas ainda
estão fechadas no seu próprio espaço. Elas podem fazer parte da
sociedade desde que não chateiem. Hoje falamos em termos de
inclusividade. Hawking foi notável nesta direção.
M.C.: Num tom menos formal, o que acha que os olhos de
Stephen Hawking queriam transmitir?
O.B.: Os olhos, a pessoa... Falando na sua totalidade, acho
que ele era uma pessoa extraordinariamente otimista, todas as
declarações dele o são. Sempre o ouvi dizer muitas vezes que vivíamos
numa época fantástica onde é possível fazer descobertas
extraordinárias, que estavam ao alcance de qualquer pessoa que
quisesse estudar as coisas a fundo e trabalhar nessas matérias.
É um discurso de uma pessoa que entende que qualquer um
pode dar um contributo e essa é a essência da vida, essa é a beleza
da vida. Se não seria tudo absurdamente determinista, seria a
antítese da história da humanidade. Todas as pessoas dão contributos
fundamentais a qualquer momento e, às vezes, até de forma
inesperada e em situações impensáveis.
Portanto, acho que esse otimismo é o maior legado que ele
deu à sociedade como um todo, para além do legado científico.
Falava sobre o futuro da humanidade: poucos meses antes de falecer
falava sobre os perigos da inteligência artificial, não se abstinha
de opinar sobre temas do interesse de todos. Isso para nós,
físicos, obriga-nos a pensar. Temos uma responsabilidade muito
especial, somos observadores (não diria privilegiados) mas isentos
de coisas que nos afetam a todos, temos obrigação de opinar
sobre certas matérias sem nos comprometermos com ideologias
ou com outros constrangimentos.
Penso que, como Hawking nunca se comprometeu com a
política, teve muita credibilidade para discutir outros assuntos. É
um problema da nossa sociedade, as pessoas são muito assediadas
para falar sobre tudo e, quando isso acontece, colocam-se na posição
de um opinador. Acho que Hawking foi muito inteligente na
maneira como usava a credibilidade que tinha na comunicação
social. No nosso tempo, esta postura é muito importante.
11
Teoria
Tudo
Artigo Opinião por Martim Carvalho
-
12
- .
“A Teoria de Tudo” é um filme do realizador James Marsh
que conta a vida da brilhante pessoa que foi Stephen Hawking,
baseando-se no livro -“Travelling to Infinity: My life with Stephen”,
escrito por Jane Hawking (a mulher que mais teve a seu
lado e mãe dos seus filhos). Lançada em 2014 e minuciosamente
protagonizada por Eddie Redmayne e Felicity Jones, esta obra cinematográfica
foi nomeada para 5 Óscares e 4 Globos de Ouro,
tendo vencido na categoria de Melhor Ator Principal em ambos
e Melhor Banda Sonora nos Globos de Ouro. O fio condutor da
história, por se basear na perspetiva de Jane, vai mostrando os
avanços da carreira do ilustre físico sempre com um grande foco
na vida pessoal e humanidade do mesmo.
A narrativa inicia-se numa festa em 1962 em que o casal se
conhece através de amigos em comum. A construção de todo o
cenário e a vivacidade da interação tão maravilhosamente interpretada
pelos atores principais indicia na perfeição o nascimento
de um casal extremamente apaixonado. Pelas palavras da própria
Jane, o instante em que se conheceram foi o mais importante da
sua vida, daí também a importância que o realizador pretendeu
destacar nesta cena.
Um ano mais tarde enquanto Hawking desenvolvia já cálculos
para investigar
-
e descobrir uma equação única que explicasse
a origem e o equilíbrio de todo o Universo – surge como
suposto o momento do diagnóstico da doença neuronal motora:
de forma curta e grossa, a mensagem é impecavelmente passada
naquele que foi dos maiores choques para um génio ainda jovem
com a vida pela frente. Neste contexto, a força persistente de Jane
conduzida pelo amor profundo que sentia por Stephen é incrivelmente
retratada. Além disso, o imenso trabalho dos atores principais
em estudar os seus papéis deram frutos em acontecimentos
de enorme relevo como os anteriormente referidos. Desta forma,
deixou-se bem clara a profunda ligação amorosa intrínseca
a estas personagens. Olhando para a recriação das imagens do
casamento, o próprio casal revelou que foram remetidos a viver
aquela festa como se estivessem a voltar atrás no tempo.
de
-
A partir daí, nota-se cada vez mais a doença a ganhar força e as
dificuldades
-
motoras de Stephen Hawking a serem cada vez maiores. Em
.
todas as circunstâncias que se podem ver, o sentido de humor e força de
toda a família nunca deixou de estar presente. Para tal ser tão naturalmente
apresentado e observado, é inevitável considerar o magnífico ator
que Eddie Redmayne revelou ser. Eddie teve o máximo cuidado não só
na exposição de todo o carisma e determinação deste inimaginável físico,
como também em mover-se da mesma forma característica que Hawking
se ía movendo ao longo dos anos e que tanto foi mudando com o atrofio
cada vez maior dos seus músculos.
Excelente exemplo daquilo que era a mentalidade de Hawking em
encarar a vida (nunca deixou de fazer aquilo que os outros faziam mesmo
com todas as suas limitações, tal como o Professor Orfeu referiu em
entrevista) foi a palestra nos EUA e a forma como foi recriada. Para mim,
esta cena foi a mais marcante do filme, visto que - com tão pequenos
detalhes do seu pensamento - inundou de esperança e motivação toda
aquele público e muitos dos espetadores do filme.
Por isso, apesar de não apresentar tanto quanto gostaria da sua carreira,
o filme foi aprofundando nos momentos que mais o marcaram
-
e mostrando o motor emocional deste homem - sendo este de facto a
sua família que tanto o apoiou. Sem grandes alaridos, efeitos especiais
ou aprofundamentos científicos, os realizadores deste filme, juntamente
com um excelente elenco, contaram nesta obra cinematográfica a transformação
de um jovem inteligente e ambicioso num mítico e brilhante
pilar da Ciência, em especial da Física. Não passou despercebido e, agora
que celebramos um ano da sua morte, mais se intensifica a importância
de imortalizar a sua existência e o impacto que este senhor deixou no
mundo. Toda a sua maneira de encarar a vida e as limitações físicas que
tinha fizeram com que conseguisse “construir ideias na sua cabeça muito
diferentes do habitual, o que lhe permitiu desenvolver teorias que mais
ninguém conseguiu”, segundo Kip Thorne. Por isso, sugiro que façamos
um simples gesto em jeito de homenagem: olhar (mais uma vez, se for
o caso) para Stephen Hawking num bonito filme como este. Felizmente
está ao nosso dispor e podemos disfrutar do mesmo nesta quinta-feira,
dia 14 de março.
Pensem nisso: excelente maneira de dizer ‘Obrigado, Stephen Hawking’.
-
.
13
14
15