EXAME Abril 2020
Nesta edição analisamos o impacto da crise provocada pelo Covid 19 a nível global, no continente africano e em Moçambique, recorrendo à opinião de diversos especialistas. Mas não só. Procuramos também opiniões de como sair dela. A secção Inovação apresenta um conjunto de iniciativas que se estão a desenvolver para o ataque a este vírus. E a resposta só pode vir da inovação.
Nesta edição analisamos o impacto da crise provocada pelo Covid 19 a nível global, no continente africano e em Moçambique, recorrendo à opinião de diversos especialistas. Mas não só. Procuramos também opiniões de como sair dela.
A secção Inovação apresenta um conjunto de iniciativas que se estão a desenvolver para o ataque a este vírus. E a resposta só pode vir da inovação.
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CRISE ● Acentuou<br />
a competição global<br />
BAD ● Na vanguarda<br />
da resposta à recessão<br />
Nº 87 v <strong>Abril</strong> <strong>2020</strong> v 200Mt v 5<br />
Edição Moçambique<br />
PANDEMIA<br />
ATAQUE<br />
À ECONOMIA GLOBAL<br />
O coronavírus infectou e parou as economias mais desenvolvidas, tornando a crise<br />
de saúde pública inevitável uma terrível recessão global. Que impacto vão ter em<br />
Moçambique o possível alastramento da pandemia em África e o rombo causado<br />
pela COVID-19 na economia do planeta?<br />
INOVAÇÃO<br />
Corrida<br />
contra<br />
o vírus
REVISTA MENSAL — ANO 7 — N O 87 — ABRIL <strong>2020</strong><br />
TIRAGEM: 10 000 EXEMPLARES — CAPA: GETTY<br />
ECONOMIA<br />
44 Desnutrição O país perde anualmente cerca de 1,6 mil<br />
milhões de dólares devido à desnutrição crónica<br />
NEGÓCIOS<br />
50 Eventos Josefa Massinga aventurou-se em 2015 num<br />
negócio de venda de flores e actualmente faz a decoração<br />
de todo o tipo de eventos<br />
MOÇAMBIQUE<br />
54 Idai Um ano volvido sobre o ciclone, Myrta Kaulard,<br />
representante da ONU em Moçambique, faz o balanço<br />
da recuperação<br />
44<br />
DESNUTRIÇÃO:<br />
A patologia afecta<br />
o desenvolvimento<br />
da economia<br />
50<br />
JOSEFA MASSINGA:<br />
A ambição é crescer<br />
na área dos eventos<br />
D.R.<br />
58 Recomeçar Os realojados dos ciclones de 2019 fazem<br />
experiências com o apoio das Nações Unidas e ONG<br />
para tentar fazer crescer algo que os sustente<br />
GLOBAL<br />
62 Comércio Donald Trump, Presidente dos EUA, ameaça<br />
impor tarifas ao Brasil<br />
66 Desporto O super Flamengo pode tornar-se o primeiro<br />
bilionário do futebol brasileiro<br />
TECNOLOGIA<br />
7O Streaming Os serviços de streaming de música vão<br />
alcançar mil milhões de ouvintes em todo o mundo<br />
74 Saúde A tecnologia oferece soluções de qualidade<br />
para os mais idosos, mas o vírus não os poupa<br />
EDILSON TOMÁS<br />
88<br />
INOVAÇÃO:<br />
O coronavírus é um<br />
desafio para os<br />
inovadores em todo<br />
o mundo<br />
MARKETING<br />
78 Arte O calendário Pirelli de <strong>2020</strong> centra-se na visão<br />
contemporânea da personagem de Shakespeare<br />
GESTÃO<br />
84 Entrevista O presidente mundial do grupo de logística<br />
DHL, Frank Appel, explica como se comanda uma empresa<br />
num cenário de instabilidade<br />
86 Vendas A Embraco, o maior fabricante de compressores<br />
do mundo, melhorou o atendimento ao cliente<br />
GETTY<br />
ESPECIAL<br />
88 Inovação As soluções inovadoras surgem numa corrida<br />
contra-relógio com a pandemia<br />
SECÇÕES<br />
Editorial 6<br />
Primeiro Lugar 8<br />
Grandes Números 14<br />
Oil&Gas 48<br />
Bazarketing 76<br />
Mundo Plano 82<br />
Exame Final 98<br />
4 | Exame Moçambique
CAPA<br />
16 Da pandemia à recessão<br />
O novo coronavírus infectou brutalmente as<br />
economias mais desenvolvidas da Ásia, Europa, África<br />
e Estados Unidos, obrigando-as a quase parar, e alastra<br />
em África. Os prejuízos são astronómicos, os governos<br />
gastam milhares de milhões no combate à pandemia<br />
e socorro à economia. A recessão global, inevitável,<br />
causará um impacto devastador em todas as<br />
economias. Moçambique terá de enfrentá-lo.<br />
GETTY
CARTADODIRECTOR<br />
IRIS DE BRITO<br />
DIRECTORA<br />
O REGRESSO<br />
DA CONFIANÇA<br />
O<br />
mundo despertou este ano para uma pandemia<br />
que não escolhe credos, raças ou<br />
classes sociais, que a todos, do mais vulnerável<br />
ao mais saudável, vai afectar. Para lidar<br />
com ela, a vida vai ter que mudar. Em nome da<br />
defesa da vida. Mais do que pensarmos no que<br />
está para trás, temos de pensar no que podemos<br />
fazer para minimizar os seus impactos e<br />
TODOS TEREMOS<br />
prepararmo-nos para uma nova realidade. Esta<br />
crise passará por três fases: contenção, mitigação DE NOS<br />
e recuperação.<br />
REINVENTAR.<br />
Com maior ou menor celeridade, os países UMA VEZ MAIS<br />
tomaram medidas para conter uma ameaça para<br />
a qual não há ainda uma solução. Mas o conceito de responsabilidade social é<br />
agora cada vez mais importante, à medida que nos apercebemos que os estados<br />
não têm capacidade para lidar com esta crise sozinhos. Os empresários vencedores<br />
serão aqueles que, enfrentando um mar de desafios, como todos, se<br />
irão comportar como comandantes em tempos de guerra, fazendo tudo para<br />
defender as suas tropas, sem se esquecerem da importância de comunicar com<br />
os seus clientes, e pensando em novas alternativas de negócio quando possível.<br />
Uma destruição massiva dos postos de trabalho vai acontecer em muitos<br />
sectores. Os esforços no sentido da protecção do trabalho deverão eventualmente<br />
incidir nos sectores com maiores perspectivas de sobrevivência, havendo<br />
apoios para reconversão nos outros. Esta é uma escolha difícil mas que deve<br />
ser ponderada. Na guerra por vezes é necessário sacrificar um braço para salvar<br />
uma vida. Só depois se podem pensar em próteses.<br />
Os apoios económicos a nível global, de uma dimensão absolutamente inédita,<br />
irão ajudar no longo prazo a mitigar os impactos económicos da crise.<br />
Mas serão tanto mais eficientes quanto mais reduzida for a fase de contágio,<br />
ou seja, quanto menor o peso da destruição económica.<br />
Em épocas de incerteza, todas as previsões económicas são difíceis.<br />
No entanto, exceptuando para alguns economistas mais conservadores, como<br />
Nouriel Roubini, prevalece a ideia de que a recuperação irá trazer fases de crescimento<br />
acelerado em 2021, ou ainda no último trimestre de <strong>2020</strong>.<br />
A China apresentou em Março indicadores de produção acima da expectativa<br />
dos analistas, demonstrando o regresso a uma quase normalidade.<br />
No entanto, o lockdown cada vez mais global e a própria redução do consumo<br />
interno irão reflectir-se numa progressão lenta da actividade industrial que terá<br />
consequências ao nível do emprego, não só na China mas em todo o mundo.<br />
Numa economia global todos sofreremos os impactos da presente crise, mas<br />
devemos perceber que o mundo tenderá para um novo equilíbrio. Para isso<br />
todos teremos de nos reinventar. Uma vez mais.b<br />
Edifício Rovuma, Rua da Sé, n.º 114,<br />
Escritório 109<br />
MAPUTO, MOÇAMBIQUE<br />
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Directora: Iris de Brito<br />
Director Executivo: Luis Faria<br />
(luis.faria@luisfaria.com)<br />
Arte: Pedro Bénard<br />
Colaboradores Regulares:<br />
Valdo Mlhongo,<br />
Thiago Fonseca (crónica),<br />
Edilson Tomás (fotografia),<br />
e Pedro Pinguinha (arte final)<br />
Colaboraram nesta edição:<br />
Filipe Serrano, Ivan Padilla, Lucas Amorim,<br />
Lucas Agrela, Luís Fonseca, Paula Rocha, Rodrigo<br />
Caetano..<br />
Direitos Internacionais:<br />
<strong>EXAME</strong> Brasil (texto e imagens),<br />
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Coordenação Geral: Marta Cordeiro (projecto),<br />
Inês Reis (arte)<br />
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REDACÇÃO<br />
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Moçambique: Flotsan, Bairro Patrice Lumumba,<br />
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Impressão: Minerva Print<br />
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Maputo<br />
A revista <strong>EXAME</strong> (Moçambique) é um<br />
licenciamento internacional da revista <strong>EXAME</strong><br />
(Brasil), propriedade da Editora <strong>Abril</strong>.<br />
Sociedade Moçambicana<br />
de Edições, Lda.<br />
Director-Geral<br />
Miguel Lemos<br />
Conselho de gerência<br />
Luís Penha e Costa<br />
Rui Borges<br />
António Domingues<br />
6 | Exame Moçambique
PRIMEIRO<br />
LUGAR<br />
MOÇAMBIQUE ESSENCIAL. PEQUENAS NOTÍCIAS SOBRE UM GRANDE PAÍS<br />
BANCO DE MOÇAMBIQUE:<br />
Lançou medidas para<br />
mitigar o impacto da crise<br />
do novo coronavírus<br />
D.R.<br />
AS MEDIDAS DO BANCO DE MOÇAMBIQUE<br />
PARA MITIGAR EFEITOS DO VÍRUS<br />
O Banco de Moçambique (BM) “deliberou introduzir uma linha de<br />
financiamento de 500 milhões de dólares para instituições participantes<br />
no mercado cambial interbancário por um período de<br />
nove meses, a partir do mês de Março. Segundo um comunicado<br />
enviado à nossa redacção, o BM decidiu também autorizar a não<br />
constituição de previsões adicionais pelas instituições de crédito<br />
e sociedades financeiras nos casos de renegociações dos termos<br />
e condições de empréstimos antes do seu vencimento para os<br />
clientes afectados pela pandemia COVID-19. As medidas visam<br />
disponibilizar liquidez em moeda estrangeira e moeda nacional,<br />
permitindo que os empresários e as famílias honrem os seus compromissos,<br />
na sequência do agravamento dos riscos decorren-<br />
COVID-19<br />
tes dos impactos macroeconómicos do novo coronavírus. O BM<br />
promete continuar a tomar medidas correctivas adicionais sempre<br />
que for necessário.<br />
O banco central decidiu na semana passada reduzir em 150<br />
pontos base o coeficiente de reservas obrigatórias, de 13% para<br />
11,5% na moeda local, e de 36% para 34,5% na moeda estrangeira,<br />
com efeitos a partir do período de constituição que se inicia<br />
a 7 de <strong>Abril</strong> próximo.<br />
A decisão tomada pelo conselho de administração do Banco de<br />
Moçambique visa, segundo o comunicado, libertar liquidez para o<br />
sistema bancário enfrentar, com maior resistência, os riscos crescentes<br />
que resultam dos impactos macroeconómicos do COVID-19.<br />
8 | Exame Moçambique
A crise vai acelerar a decomposição e balcanização<br />
da economia mundial.<br />
Nouriel Roubini, economista.<br />
GÁS<br />
EXXONMOBIL ADIA A DECISÃO FINAL DE INVESTIMENTO<br />
O grupo norte-americano ExxonMobil<br />
deverá adiar a aprovação do projecto<br />
de gás natural na bacia do Rovuma,<br />
no Norte de Moçambique, devido ao<br />
impacto do novo coronavírus e ao<br />
ambiente que se vive nos mercados<br />
internacionais, escreve a agência financeira<br />
Reuters, citada pelo Macauhub.<br />
O grupo anunciou no mês passado que<br />
está a equacionar cortes “significativos<br />
na despesa de capital e nos custos<br />
operacionais, acompanhando outros<br />
grupos e empresas que têm estado a<br />
reduzir despesa devido à queda abrupta<br />
dos preços do petróleo, bem como da<br />
procura em resultado da contracção<br />
da actividade económica. “A pandemia<br />
está a afectar o investimento em<br />
Moçambique, bem como os financiadores<br />
chineses e coreanos”, disseram<br />
fontes citadas pela agência Reuters.<br />
Sabe-se que o investimento do projecto<br />
da Área 4 é estimado em 30 mil<br />
milhões de dólares. O bloco Área 4<br />
tem como participantes a Mozambique<br />
Rovuma Ventures, uma parceria detida<br />
pelos grupos ExxonMobil, ENI e China<br />
National Petroleum Corporation, que<br />
em conjunto controlam 70%, estando<br />
os restantes 30% divididos em partes<br />
iguais entre o grupo português Galp<br />
Energia, sul-coreano Kogas e a estatal<br />
moçambicana Empresa Nacional<br />
de Hidrocarbonetos.<br />
A província de Cabo Delgado tem sido<br />
alvo de ataques até aqui desconhecidos,<br />
sendo que o último aconteceu já<br />
no mês passado em Mocímboa da Praia,<br />
a norte da província, o que tem contribuído<br />
para o receio dos investidores.<br />
Fevereiro<br />
64,90<br />
Fevereiro<br />
1,91<br />
Fevereiro<br />
52,91<br />
SALA DE<br />
MERCADOS<br />
MOEDA<br />
(Meticais por USD)<br />
GÁS NATURAL<br />
(USD/MMBtu)*<br />
CRUDE<br />
(USD/barril)<br />
CARVÃO DE COQUE<br />
(USD/ton.)<br />
Março<br />
66,37<br />
Março<br />
1,60<br />
Março<br />
23,36<br />
ÁREA 4: ExxonMobil adia decisão final de investimento<br />
Fevereiro<br />
141,63<br />
Março<br />
139,89<br />
MILHO<br />
(USD/Bushel)**<br />
Fevereiro<br />
382,00<br />
D.R.<br />
Março<br />
343,50<br />
Fevereiro<br />
1645,00<br />
OURO<br />
(USD/t oz)***<br />
Março<br />
1572,00<br />
COTAÇÕES A 22/02/<strong>2020</strong> E A 23/03/<strong>2020</strong><br />
* MMBtu = milhões de British Thermal Unit<br />
(medida da capacidade térmica)<br />
** 1 bushel de milho = 25,4 Kg<br />
*** t oz = onças troy = 31,21 g.<br />
FONTES: BM, Bloomberg, CME Group.<br />
D.R.<br />
abril <strong>2020</strong> | 9
PRIMEIRO LUGAR<br />
GRAFITE<br />
SYRAH RESOURCES<br />
SUSPENDE ACTIVIDADE<br />
O grupo Syrah Resources suspendeu temporariamente<br />
a actividade na mina de grafite de<br />
Balama, na província de Cabo Delgado, no<br />
Norte de Moçambique, devido à pandemia<br />
de COVID-19. O grupo recorda, em comunicado,<br />
que o governo de Moçambique impôs<br />
um conjunto de medidas no sentido de impedir<br />
a propagação do novo coronavírus, que<br />
incluem a suspensão da concessão de vistos<br />
e quarentena de 14 dias para todas as pessoas<br />
que chegam ao país, “sendo que a combinação<br />
destas medidas limita a mobilidade<br />
de uma parte significativa do pessoal a laborar<br />
em Balama. A suspensão das operações<br />
teve lugar a 28 de Março, não tendo o grupo,<br />
que em Moçambique opera através da subsidiária<br />
Twigg Exploration and Mining, mencionado<br />
uma data para o reinício da extracção<br />
de grafite. O grupo informou igualmente que<br />
as encomendas respeitantes a produto já em<br />
armazém continuarão a ser processadas, mantendo<br />
a subsidiária capacidade para exportar<br />
grafite através do porto de Nacala, “se bem<br />
que esta situação possa alterar-se a qualquer<br />
momento”. A Syrah Resources anunciou recentemente<br />
que a operação de extracção de grafite<br />
em Moçambique, cujo produto abastece<br />
a fábrica de Vidalia, onde suspendeu a operação,<br />
se mantinha sem alteração. A empresa<br />
australiana suspendeu a laboração na fábrica<br />
de Vidalia, nos Estados Unidos, na sequência<br />
da ordem de “permanecer em casa” anunciada<br />
pelo governador do estado da Louisiana no<br />
dia 22 de Março, a fim de evitar a propagação<br />
do novo coronavírus.<br />
SYRAH RESOURCES: A sua subsidiária<br />
suspendeu a operação em Cabo Delgado<br />
devido ao COVID-19<br />
D.R.<br />
EVENTO<br />
FACIM <strong>2020</strong> ADIADA DEVIDO AO COVID-19<br />
A edição de <strong>2020</strong> da Feira Internacional de Maputo foi adiada para data a anunciar,<br />
informou em Maputo o porta-voz do Conselho de Ministros, Filimão Suazi. A 56ª<br />
edição da feira conhecida pela sigla FACIM — Feira Agrícola, Comercial e Industrial<br />
de Moçambique — deveria realizar-se de sábado, 1 de Agosto, a quarta-feira, 5 de<br />
Agosto, nas instalações de Ricatla, no distrito de Marracuene, província meridional<br />
de Maputo. Filimão Suazi, que anunciou igualmente o adiamento do 11.º Festival<br />
Nacional da Cultura, disse que a decisão decorre da pandemia de COVID-19.<br />
NUMERÁRIO<br />
BM E BANCOS ASSINAM MEMORANDO<br />
DE ENTENDIMENTO<br />
FACIM:<br />
Já não abrirá<br />
no início de<br />
Agosto<br />
A responsabilidade na gestão do ciclo de numerário vai passar a ser partilhada<br />
pelo Banco de Moçambique (BM) e as instituições de crédito, de acordo com um<br />
memorando de entendimento assinado entre as partes. Esta partilha de responsabilidades<br />
reveste-se de capital importância no processo de recirculação de<br />
numerário do país. O governador do BM, Rogério Zandamela, disse que o acordo<br />
ajudará a modernizar a gestão do ciclo de numerário, promovendo maior eficiência<br />
ao garantir que a selecção, a contagem, o transporte e a distribuição de notas e<br />
moedas de metical são realizadas correctamente e a baixo custo. Em breve, serão<br />
emitidas normativas apropriadas para a operacionalização da partilha de responsabilidade.<br />
Zandamela frisou ainda que o BM vai garantir a integridade das notas e<br />
moedas em circulação. “Enquanto banco emissor, cabe ao Banco de Moçambique<br />
assegurar a integridade das notas e moedas de metical em circulação e acompanhar<br />
o nível da sua qualidade, bem como educar o público em matéria de manuseamento<br />
e conservação de notas e moedas.” O acordo abrangeu 19 instituições<br />
de crédito que operam em Moçambique, como o Standarbank, Absa Bank, BCI,<br />
Socremo, Capital Bank, Banco Societé, Banco ABC, Eco Bank, FNB, Mozabanco,<br />
Banco Mais, UBA, Banco Letsego, BNI, Banco Único, Banco Bic e Bayport.<br />
D.R.<br />
10 | Exame Moçambique
PRIMEIRO LUGAR<br />
ABSA BANK:<br />
Um bom desempenho obtido num<br />
ano adverso<br />
BANCA<br />
ABSA BANK CRESCE ACIMA DO MERCADO<br />
O Absa Bank Moçambique obteve um resultado líquido superior a um bilião e<br />
quarenta e oito milhões de meticais, tendo os empréstimos a clientes aumentado<br />
32,5%, materialmente acima da média de mercado e depósitos de clientes 14,7%,<br />
também acima da média do mercado. “O rácio de liquidez é dos mais elevados<br />
do mercado, em linha com a estratégia alicerçada em níveis robustos de capital<br />
e liquidez e a abordagem prudente adoptada pela administração, mas com foco<br />
contínuo no desempenho financeiro e na satisfação dos clientes”, refere o banco<br />
em comunicado. O Absa assinala ainda que o crescimento do balanço acima do<br />
mercado resulta “da melhoria dos níveis de serviço e de uma oferta de produtos<br />
adequada às necessidades dos clientes, sendo que ambos potenciaram um<br />
aumento do envolvimento bancário por cliente”. Para Rui Barros, administrador<br />
delegado do banco, “o excelente desempenho do Absa Bank Moçambique, no<br />
exercício económico de 2019 deveu-se, em grande medida, aos programas implementados<br />
pela gestão para o aumento da eficiência e incremento do volume de<br />
negócios, contribuindo, assim, para o crescimento da receita e para o resultado<br />
líquido acima de um bilião de meticais.” O administrador delegado realçou o<br />
facto de este desempenho da instituição ter sido conseguido num ano adverso<br />
para o sector financeiro, marcado por desastres naturais, e em que Absa Bank<br />
Moçambique executou a mudança de marca e um complexo processo de separação<br />
tecnológica.<br />
D.R.<br />
FINANÇAS<br />
FINTECH.MZ QUER SER<br />
“VOZ ACTIVA”<br />
Um conjunto de 12 membros fundadores apresentou<br />
em Março, em Maputo, a Fintech.mz —<br />
Associação das Fintechs de Moçambique, uma<br />
entidade que agrega empresas tecnológicas ligadas<br />
ao sector financeiro e que pretende ser “uma<br />
voz activa, quer no processo de inclusão financeira,<br />
quer no diálogo com reguladores para ajudar<br />
a criar novas leis”, entre outras acções conjuntas,<br />
anunciou João Gaspar, presidente da direcção.<br />
A venda de seguros através de plataformas<br />
móveis, a criação de sistemas de pagamento electrónico<br />
(gateways) que podem ser usados, por<br />
exemplo, no comércio on-line ou aplicações de<br />
transferências de dinheiro internacionais, são<br />
algumas das áreas que as fintechs moçambicanas<br />
estão a desenvolver. O país conta com<br />
16 empresas que estão a começar a trabalhar<br />
na área, quatro numa plataforma de ensaios<br />
(denominada no meio pelo termo inglês sandbox)<br />
criada pelo Banco de Moçambique, outras<br />
em nichos de mercado ou sob regime piloto, “em<br />
busca de escala e impulso”, assinala João Gaspar.<br />
Num país onde só uma percentagem muito<br />
pequena da população tem conta bancária (entre<br />
9% a 10% de um total de 28 milhões de habitantes),<br />
estas empresas assumem especial importância,<br />
refere. A associação FSD Moçambique<br />
é uma organização de promoção de inclusão<br />
financeira que tem impulsionado a criação de<br />
fintechs no país. O Financial Sector Deepening<br />
Moçambique (FSD Moçambique) é um programa<br />
financiado pelo Departamento para o Desenvolvimento<br />
Internacional (DFID) do Reino Unido<br />
e pela Agência Sueca de Cooperação para o<br />
Desenvolvimento Internacional.<br />
TECNOLÓGICAS: Contribuir para a inclusão<br />
na área financeira<br />
D.R.<br />
12 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 13
GRANDES<br />
NÚMEROS<br />
PARA SABER LER OS SINAIS DE UMA ECONOMIA EM MUDANÇA<br />
GÉNERO<br />
QUE PODER<br />
É QUE ELAS TÊM?<br />
Ainda no último mês comemorou-se o Dia Internacional da<br />
Mulher. Como é que, actualmente, o mundo valoriza as mulheres,<br />
quer no que respeita ao seu contributo para a economia,<br />
quer quanto ao poder que efectivamente detêm?<br />
Vários estudos provam que um maior equilíbrio de género<br />
melhora o desempenho económico dos países e o bem-estar e<br />
qualidade de vida em geral. Quem estudou o tema garante que<br />
uma maior igualdade entre homens e mulheres trará maiores<br />
benefícios à sociedade, mas quando se olha para o panorama<br />
actual, e de acordo com o último relatório da Organização Internacional<br />
do Trabalho (OIT), verifica-se que se 75% dos homens<br />
encontram-se inseridos no mercado de trabalho, a participação<br />
feminina é bem menor: 45%.<br />
Outro estudo, realizado pelo Banco Mundial em 2018, calcula<br />
que a riqueza total no mundo aumentaria 14% se fosse alcançada<br />
a igualdade salarial entre homens e mulheres. O documento<br />
avança um número avassalador quantos aos benefícios<br />
económicos trazidos pela igualdade de género. Nos 141 países<br />
analisados a desigualdade de género traduz-se numa perda de<br />
160 triliões de dólares (milhões de milhões), valor que duplica<br />
o PIB global devido à perda de riqueza em capital humano.<br />
A organização norte-americana Council on Foreign Relations<br />
desenvolve o programa Mulheres e Política Externa, que<br />
criou o Índice do Poder das Mulheres, classificando 193 Estados-membros<br />
da ONU quanto ao seu grau de paridade na participação<br />
política, o que passa por saber quantas mulheres são<br />
chefes de Estado, lideram governos ou deles participam, quantas<br />
marcam presença nos parlamentos nacionais e nos órgãos<br />
de poder local. O número de mulheres na chefia do Estado<br />
aumentou. Moçambique recebe 40 pontos no que respeita à paridade<br />
política actual. Em 1 de Janeiro de 2019, 29% dos cargos<br />
ministeriais eram ocupados por mulheres. Entre os candidatos<br />
à Assembleia Nacional, 41% foram moçambicanas.<br />
As mulheres ocupam actualmente a presidência ou a chefia do<br />
governo em 19 países do mundo. Apenas um deles é africano,<br />
a Etiópia. A Costa Rica é o país que desde 1946 é liderado por<br />
um maior número de mulheres (74). Seguem-se a Islândia (69)<br />
e um país africano, o Ruanda (67), o único a figurar no top 10<br />
da paridade política.<br />
ACESSO AO MERCADO DE TRABALHO<br />
A percentagem de homens inseridos<br />
no mercado de trabalho em todo o mundo<br />
é muito superior à de mulheres<br />
Inseridos<br />
Mulheres<br />
Homens<br />
Fonte: CFR.<br />
Total<br />
45%<br />
100%<br />
75% 100%<br />
14 | Exame Moçambique
Nunca me considerei feminista, mas não acredito que se possa<br />
ser mulher neste mundo sem o ser.<br />
Oprah Winfrey, apresentadora de televisão dos EUA.<br />
19<br />
9<br />
dos 193 países, têm uma<br />
mulher como chefe de<br />
Estado ou de Governo<br />
dos 193 países têm, pelo<br />
menos, 50% de mulheres<br />
no governo<br />
Fonte: CFR.<br />
4<br />
parlamentos<br />
nacionais dos 193 países<br />
são constituídos em 50%<br />
por mulheres<br />
DISCRIMINAÇÃO SALARIAL<br />
Salários de médicos de cuidados primários<br />
no mundo em 2019 por género<br />
258<br />
207<br />
189<br />
em milhares de USD<br />
Homens<br />
Mulheres<br />
136<br />
108<br />
157<br />
111<br />
92<br />
49<br />
38<br />
16 13<br />
Fonte: Statista.<br />
EUA<br />
Reino<br />
Unido<br />
Alemanha França Brasil México<br />
abril <strong>2020</strong> | 15
CAPA PANDEMIA<br />
A ECONOMIA<br />
GLOBAL DE<br />
QUARENTENA<br />
A ameaça do novo coronavírus parou a Europa e os Estados Unidos depois de impor<br />
um cerco absoluto a 58 milhões de chineses. Afundou tudo: o preço das matérias-primas,<br />
as bolsas, a procura e a oferta. Uma recessão global é inevitável. Se o vírus alastrar<br />
em África e na Índia, o saldo ainda será pior. Depois de uma crise global de saúde pública<br />
colapsar os serviços de saúde dos países “mais avançados” e deixar um rasto, por enquanto,<br />
de dezenas de milhar de mortos, a economia vai retomar a normalidade, fazendo<br />
a recessão económica outras dezenas de milhar de vítimas, ou isto será contrariado<br />
por financiamentos internacionais e renascerá mudada? Uma pergunta cuja resposta vale<br />
muito mais do que um milhão de dólares, mas os cépticos levam vantagem<br />
LUÍS FARIA<br />
16 | Exame Moçambique
PANDEMIA:<br />
O novo coronavírus abateu-se sobre<br />
as economias mais desenvolvidas<br />
e gerou uma crise global<br />
GETTY<br />
A<br />
epidemia do novo coronavírus, com<br />
origem na China, onde deflagrou em<br />
Dezembro na província de Hubei, de<br />
58 milhões de habitantes, impedindo<br />
que os cidadãos pudessem sair de<br />
casa, alastrou-se aos outros continentes e converteu-se<br />
numa pandemia sem precedentes. A 11 de<br />
Março passado, a Organização Mundial de Saúde<br />
(OMS) reconheceu o surto como uma pandemia,<br />
com o número de infectados, de mortes e de países<br />
onde a infecção se manifesta a aumentar dia após<br />
dia. Se seguisse necessariamente a habitual rota<br />
dos surtos de gripe, a ameaça migraria agora em<br />
força para sul, em busca da época do tempo mais<br />
fresco, contagiando grandes massas populacionais<br />
em África, onde os serviços de saúde pública não<br />
têm a capacidade de resposta de que dispõem os da<br />
Ásia, Europa ou América do Norte. Seria uma catástrofe<br />
se a epidemia que começou na China, alastrou<br />
a outros países do Sudeste Asiático e atingiu severamente<br />
a Europa, em especial Itália e Espanha, e o<br />
Estados Unidos, engolisse África. As gripes têm um<br />
ciclo migratório, procuram as temperaturas mais<br />
baixas. Ora, acontece que o COVID-19 (assim foi<br />
baptizada a nova doença epidémica e como SARS-<br />
-CoV-2 o vírus que a causa) não é uma gripe. O seu<br />
ácido nucleico é completamente uniforme, o que significa<br />
que o seu núcleo é diferente do do vírus da<br />
gripe. Tem outra natureza, outro ADN. Dele pode<br />
esperar-se tudo, embora os seus antecessores, os<br />
outros coronavírus, tenham mostrado dar-se mal<br />
com temperaturas mais elevadas. Mas, ainda que,<br />
por agora, a sua força e velocidade de contágio pareçam<br />
muito menos virulentas a sul, nada garante<br />
que não se dê bem com o calor. A UNICEF chegou<br />
a admitir que não resistiria a uma temperatura de<br />
26º/27º. Mas o surgimento de casos de contaminação<br />
em quase todos os países do Hemisfério Sul, e<br />
o conhecimento laboratorial do vírus, leva a OMS<br />
a colocar muitas reservas a que a taxa de propagação<br />
da pandemia possa desacelerar em temperaturas<br />
mais quentes. No fundo, ainda resta a secreta<br />
esperança de que tal aconteça, pelo menos o Hemisfério<br />
Sul está muito menos infectado. Na África do<br />
Sul, onde se registaram os primeiros casos de infecção,<br />
quase em paralelo com os países da Europa<br />
que empilham hoje milhares de mortos, o contágio<br />
progrediu muito pouco, com pouco mais de um<br />
milhar de casos confirmados no final de Março, e<br />
a doença fez poucas vítimas mortais. Angola registou<br />
sete casos e duas mortes. Moçambique tem<br />
oito casos activos e nenhuma morte. Cabo Verde<br />
regista cinco casos, um dos quais fatal, e a Guiné-<br />
abril <strong>2020</strong> | 17
CAPA PANDEMIA<br />
-Bissau oito casos. São Tomé e Príncipe ainda não<br />
havia entrado, à data destes dados, último dia de<br />
Março, no mapa global da epidemia. Quando este<br />
texto chegar aos leitores os números serão mais<br />
elevados. Quanto? Uma progressão lenta e contida<br />
pode reforçar a esperança de que o vírus, que<br />
se propagou como lume em palha seca no Hemisfério<br />
Norte, não se dá bem nem com a humidade<br />
nem com temperaturas mais elevadas. A questão é<br />
que a África Austral vai entrar agora na estação do<br />
cacimbo, mais fresca, e a OMS já demonstrou uma<br />
grande preocupação com a disseminação da pandemia<br />
em África.<br />
A antecipação tem provado ser o melhor antídoto<br />
para a velocidade com que se propaga a pandemia.<br />
Moçambique, ainda antes de registar o primeiro<br />
caso, colocou as pessoas provenientes de países<br />
com mais de mil casos confirmados em quarentena<br />
de 48 horas. Também a LAM cancelou alguns<br />
voos internos, sobretudo os que têm ligação com o<br />
estrangeiro. Uma antecipação que poderá ter frutos<br />
na contenção da doença, pois este é um vírus<br />
que não descarta as boleias da aviação comercial<br />
para se espalhar pelo mundo. Poucos dias depois, a<br />
meio de Março, as autoridades elevaram o estado de<br />
alerta e reforçaram as medidas de prevenção, colocando<br />
de quarentena obrigatória de 14 dias todos<br />
os passageiros provenientes de países com transmissão<br />
activa. E, no final do mês, foi declarado o<br />
estado de emergência.<br />
VÍRUS INESPERADO<br />
Desde a década de 1980 duas endemias ceifaram<br />
25 milhões de vidas. Desde 1980 morreram<br />
3 milhões de pessoas anualmente de malária, a pior<br />
doença tropical e parasitária, e, desde 1981, o HIV/<br />
SIDA matou 22 milhões, mas nenhuma teve uma<br />
dimensão global, ao ritmo frenético de circulação<br />
de pessoas actual, paralisando, de infecção em<br />
infecção, a economia e a sociedade global. É como<br />
se se tratasse de uma infecção em rede com antivírus<br />
desconhecido que vai paralisando a vida social<br />
e, naturalmente, a actividade económica. Mas a<br />
infecção não se deu na rede, como muitos pressagiavam,<br />
não houve um vírus informático a neutralizar<br />
infra-estruturas básicas, não se tratou de um<br />
golpe demolidor das potências que mantêm uma<br />
guerra surda em matéria de intrusão informática.<br />
O vírus que contaminou o mundo não é digital, é<br />
real, é biológico. Surgiu na China, num mercado que<br />
transacciona animais vivos em Wuhan, a metrópole<br />
da China Central, com mais de 11 milhões<br />
de habitantes, implantada da província de Hubei,<br />
IMPACTO BRUTAL<br />
NOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO<br />
As Nações Unidas alertam que a pandemia COVID-19 vai atingir<br />
de forma desproporcionada os países em desenvolvimento,<br />
quer na saúde, quer na economia, antecipando perdas de 220 mil<br />
milhões de dólares. Em comunicado, a Conferência das Nações<br />
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD na sigla em<br />
inglês) avisa que a crescente crise da COVID-19 ameaça atingir desproporcionadamente<br />
os países em desenvolvimento, não apenas<br />
como uma crise de saúde a curto prazo, mas também como uma<br />
crise devastadora do ponto de vista económico e social nos próximos<br />
meses e anos”. “As perdas de rendimento podem exceder<br />
os 220 mil milhões de dólares”, acrescenta o comunicado divulgado<br />
em Nova Iorque, no qual se aponta que “com cerca de 55%<br />
da população global sem acesso a protecção social, estas perdas<br />
vão reverberar nas sociedades, impactando a educação, os direitos<br />
humanos e, nos casos mais severos, a segurança básica alimentar<br />
e a nutrição”. O défice em financiamento poderá atingir<br />
dois a três mil milhões de dólares durante os próximos dois anos.<br />
As Nações Unidas pedem ainda a anulação da dívida dos países<br />
em desenvolvimento este ano, o correspondente a um trilião de<br />
dólares, estimando que as consequências desta pandemia juntamente<br />
com uma recessão mundial serão catastróficas para numerosos<br />
países em desenvolvimento. A UNCTAD pede que seja criado<br />
um plano de apoio a esses países, que inclua a “injecção” de um<br />
trilião de dólares em dinheiro e a concessão de 500 mil milhões<br />
em subsídios para serviços de saúde de emergência e programas<br />
de ajuda social.<br />
D.R.<br />
18 | Exame Moçambique
onde vivem 58 milhões de almas. Reza a história,<br />
contada em directo na televisão enquanto o Ocidente<br />
celebrava o Ano Novo, que, por negligência<br />
das autoridades chinesas, o vírus foi deixado fora de<br />
controlo. A China conteve a epidemia em Wuhan<br />
pondo em prática uma espécie de “lei marcial” que<br />
garantia o isolamento total da população da cidade,<br />
vigiando-a porta a porta, não excluindo meios para<br />
isolar os infectados e exibindo uma grande capacidade<br />
de resposta, de que é exemplo a edificação<br />
de um novíssimo e amplo hospital em poucos dias.<br />
Os países próximos ou territórios autónomos infectados,<br />
designadamente o Japão, Coreia do Sul (onde<br />
o vírus ceifou muitas vidas), Singapura, Taiwan<br />
e Macau, controlaram a epidemia à sua maneira.<br />
Esta passou para a Europa, atingindo, com impiedosa<br />
brutalidade, a Itália, onde, na rica região da<br />
Lombardia, introduziu uma atmosfera de pavor.<br />
Em Bergano, o epicentro da epidemia no país, nas<br />
ruas desertas desfilam, numa procissão macabra,<br />
camiões militares que transportam caixões que o<br />
serviço local de cremação de corpos, lotado, já não<br />
aceita. Nas principais cidades europeias, em Milão,<br />
Paris, Londres, Madrid, o silêncio que envolve as<br />
ruas, agora com um ar mais respirável, é apenas perturbado<br />
pelo silvo das sirenes das ambulâncias e os<br />
megafones das patrulhas que pedem que as pessoas<br />
permaneçam em casa “pela sua saúde”. O Centro<br />
de Congressos de Madrid foi convertido em hospital<br />
de recurso, e o mítico Palácio do Gelo em morgue.<br />
Todos os dias, habitantes refugiados nas suas<br />
casas em cidades fantasmas acordam para o pavor<br />
da actualização dos boletins do número de mortos<br />
e infectados, que continua a aumentar. Os que<br />
morrem não têm direito a funeral para evitar ajuntamentos<br />
de pessoas. Os europeus estão proibidos<br />
de se juntarem, na felicidade e no drama.<br />
ECONOMIA DESABA<br />
Na Europa, a progressão do vírus foi parando a economia.<br />
Primeiro o turismo, o comércio e os serviços.<br />
Depois as unidades fabris. Algumas recorrem<br />
à imaginação e procuram conversões inovadoras<br />
e repentinas para passar a assegurar equipamento<br />
médico e de protecção pessoal para o mercado nacional,<br />
num momento em que a oferta internacional,<br />
sobretudo chinesa, é ferozmente disputada a preços<br />
especulativos. Com a escalada e o reforço das<br />
medidas de quarentena, as economias europeias vão,<br />
dia após dia, anúncio após anúncio de mais mortos<br />
e infectados, ficando cada vez mais confinadas<br />
aos serviços vitais. Os escritórios fecham e, quando<br />
é possível, as empresas recorrem ao teletrabalho.<br />
O QUE O<br />
OCIDENTE<br />
ESTÁ A<br />
FAZER<br />
PROTEGER<br />
O EMPREGO<br />
assumindo os<br />
governos, pelo menos<br />
em parte, os salários<br />
dos empregados<br />
menos necessários<br />
ou em isolamento<br />
APOIAR<br />
O RENDIMENTO<br />
libertando os cidadãos<br />
de obrigações fiscais<br />
imediatas, podendo<br />
estes ainda beneficiar<br />
de moratórias nas<br />
rendas de casa e<br />
compromissos com a<br />
banca. Os EUA apoiam<br />
mesmo directamente<br />
a população<br />
GARANTIR<br />
LIQUIDEZ<br />
desonerando as<br />
empresas das<br />
obrigações fiscais<br />
correntes e garantido<br />
linhas de crédito<br />
abertas pela banca<br />
às tesourarias<br />
REFORÇAR<br />
A SAÚDE<br />
comprando<br />
equipamentos<br />
e materiais de<br />
protecção, sobretudo<br />
à China, para<br />
aumentar a<br />
capacidade sanitária<br />
e reduzir os óbitos<br />
RESTRINGIR<br />
A CIRCULAÇÃO<br />
à medida que o<br />
contágio avança,<br />
tomando medidas<br />
cada vez mais<br />
restritivas, com<br />
controlos policiais,<br />
que colocam em casa<br />
à quase totalidade da<br />
população<br />
As companhias aéreas deixam os seus aviões em<br />
terra e acumulam prejuízos astronómicos. Milhões<br />
de pessoas deixaram de circular diariamente por via<br />
aérea e a vida passou a desenrolar-se na Internet.<br />
Às fábricas que encerram os governos procuram<br />
assegurar parte das remunerações e garantir que<br />
não se percam os postos de trabalho. Aos consumidores,<br />
que se retraem nas suas compras, limitando-<br />
-se a adquirir produtos básicos em supermercados<br />
e farmácias nas poucas vezes que quebram o isolamento,<br />
as autoridades concedem moratórias em<br />
alguns pagamentos. Como a distanciação social é a<br />
única defesa disponível, a vida colectiva, as relações<br />
sociais, alteram-se radicalmente, o que irá influenciar<br />
a recuperação económica no pós-crise. Todos<br />
os espectáculos estão suspensos, grandes eventos<br />
são sucessivamente desmarcados, o Campeonato<br />
Europeu de Futebol já foi adiado, na sequência da<br />
paragem dos torneios da UEFA e dos campeonatos<br />
nacionais, assim como a realização das próximas<br />
Olimpíadas de Tóquio, no próximo ano. Milhões<br />
de pessoas estão acantonadas em suas casas para<br />
tentarem fugir a um inimigo invisível, desconhecido<br />
e voraz. Ninguém já vai ao café, muito menos<br />
viajar. Os grandes eventos profissionais, os espectáculos<br />
musicais de Verão no Hemisfério Norte, um<br />
culto para milhares de jovens, estão cancelados. São<br />
obcessivamente vistos os canais de televisão entregues<br />
à cobertura da epidemia. Os restantes enchem<br />
as programações com reposições. Tudo o que existe,<br />
para quem vive o isolamento, é a pandemia e o passado.<br />
O presente está suspenso. Uma atmosfera que<br />
torna real a narrativa de várias ficções cinematográficas<br />
sobre o terror de pandemias que anteciparam.<br />
É interessante rever filmes como o premonitório<br />
Contágio, que Steven Soderbergh assinou em 2011,<br />
e Pandemia, de 2016. O isolamento é a única arma<br />
contra o contágio. Por todo o Hemisfério Norte,<br />
a sociedade e a economia estão de quarentena.<br />
EFEITOS IMEDIATOS<br />
Os efeitos económicos imediatos do novo coronavírus<br />
foram, com efeito, devastadores. No início de<br />
Março as bolsas caíram para os mínimos da crise<br />
de 2008 e o preço das matérias-primas energéticas<br />
tombou, com o gás a cair de 2,2 dólares para<br />
1,7 dólares por MMBtu (a unidade térmica utilizada<br />
no mercado) entre Dezembro e o princípio<br />
do mês de Março. O que aconteceu com o petróleo<br />
foi muito pior. Primeiro desceu para o nível de<br />
45 dólares por barril, o mesmo valor que sobressaltou<br />
os países produtores em 2017 e conduziu ao<br />
entendimento dos fornecedores da matéria-prima,<br />
abril <strong>2020</strong> | 19
CAPA PANDEMIA<br />
O VÍRUS QUE DEVOROU <strong>2020</strong><br />
O coronavírus deve o nome ao seu aspecto. Ao microscópio<br />
parece ser emoldurado por uma coroa. O novo vírus, que provoca<br />
a doença COVID-19, espalha-se a uma velocidade digital. Para se<br />
ter uma ideia, basta dizer que o vírus do SARS, o seu mais perigoso<br />
antecessor, demorou 130 dias a infectar as primeiras mil pessoas.<br />
O novo coronavírus só precisou de 48 dias para o fazer. Menos<br />
letal que os seus antecessores mais imediatos, é muito mais veloz<br />
e agressivo, contagiando muito mais pessoas e acabando por saldar-se<br />
num elevado número de mortos. Os sintomas da doença<br />
são idênticos aos da gripe comum, consistindo em febre elevada,<br />
dificuldades respiratórias e tosse seca. E vão-se acrescentando<br />
outros, como a perda de olfacto e paladar. Acontece que, até<br />
os sintomas se revelarem, tanto quanto se sabe podem passar-<br />
-se entre 2 a 14 dias. Ou seja, qualquer pessoa, ainda que “assintomática”<br />
pode contagiar, até se saber que é portadora do vírus,<br />
as outras com quem se cruza ao longo de…14 dias. A experiência<br />
dos países que mais recorreram a testes da doença mostram que<br />
70% dos infectados são contagiados por aqueles que não apresentam<br />
sintomas, os assintomáticos.<br />
Trata-se de uma infecção respiratória, em que o grau de mortalidade,<br />
a taxa de letalidade, aumenta com a idade, matando mesmo<br />
cerca de 15% dos infectados nas idades superiores a 70 anos. Pode<br />
alojar-se só no nariz e na garganta nos casos mais benignos, ou<br />
infiltrar-se também nos pulmões, gerando pneumonias, colapsos<br />
cardíacos e falência renal. Transmite-se directamente através de<br />
gotículas emitidas pela pessoa infectada e propaga-se também<br />
através das superfícies, mas ainda há muitas interrogações sobre<br />
a progressão do vírus. Dentro do corpo hospedeiro o vírus apodera-se<br />
do sistema natural das células para replicar-se. Já existem<br />
duas variantes do novo vírus e poderão vir a ocorrer novas mutações.<br />
Uma possibilidade terrível, notando os especialistas que a<br />
doença apresenta taxas de letalidade diferentes nas primeiras<br />
regiões mais atingidas: China, Itália e Irão.<br />
Sendo um vírus desconhecido, o organismo humano<br />
não possui anticorpos que se lhe oponham,<br />
ao contrário do que acontece com a<br />
gripe. Numa corrida sem precedentes<br />
a ciência já decifrou o genoma<br />
do vírus, descobriu como este<br />
invade o organismo (disfarçado<br />
de proteína) e anuncia-se que<br />
vai ser obtida uma vacina em<br />
tempo recorde. O último anúncio<br />
veio do potentado farmacêutico<br />
Johnson & Johnson, que estará<br />
em condições de disponibilizar uma<br />
vacina no início de 2021.<br />
sobretudo os dois maiores, Arábia Saudita e Rússia.<br />
Esperava-se, entretanto, que mais uma vez os<br />
dois grandes produtores da matéria-prima, a Arábia<br />
Saudita e a Rússia (desde a última crise petrolífera,<br />
esta e mais nove países passaram a conjugar esforços<br />
com a Organização dos Países Exportadores de<br />
Petróleo — OPEP), chegassem novamente a acordo.<br />
Os sauditas propunham que se retirassem do mercado<br />
mais 1,5 milhões de barris diariamente até ao<br />
final do ano. Surpreendentemente, ou não, os russos<br />
não estiveram pelos ajustes e a Arábia Saudita<br />
tomou a iniciativa de jorrar petróleo no mercado<br />
e fazer mesmo descontos nas vendas mais imediatas.<br />
O objectivo da Rússia será “levar ao tapete” a<br />
produção de petróleo extraído do xisto nos Estados<br />
Unidos, que garante ao país a sua autonomia energética,<br />
como Donald Trump não se cansa de repetir.<br />
A ironia é que, no passado recente, foi a Arábia Saudita<br />
a assumir a audácia de neutralizar a produção<br />
norte-americana e tudo acabou, face à persistente<br />
baixa do preço, na frente alargada constituída pela<br />
OPEP e outros dez grandes produtores não alinhados<br />
na organização. A 9 de Março, na abertura do<br />
mercado asiático, o nervosismo provocou, em poucas<br />
horas, uma queda de 30% na cotação da matéria-prima,<br />
só equiparável à verificada aquando da<br />
Guerra do Golfo. Dissiparam-se muitas nuvens de<br />
poluição no céu da China e o maior cliente mundial<br />
vai importar menos petróleo. No dia 9 de Março<br />
o preço do barril de Brent desceu ao patamar dos<br />
35 dólares, o que mostra como um vírus desconhecido<br />
e veloz amedronta os mercados e faz vir<br />
ao de cima as tensões nele existentes e mal resolvidas.<br />
Mas o pior ainda estava para vir, a expressão<br />
mais utilizada a propósito da progressão deste<br />
vírus, com os futuros de Brent a descerem para a<br />
casa dos 20 dólares por barril, o que constitui um<br />
rombo nos países exportadores da matéria-prima<br />
e que vivem das receitas que obtêm com esta para<br />
equilibrarem os balanços fiscais, assim como imobiliza<br />
a produção norte-americana de óleo e gás a<br />
partir da fragmentação do xisto, já de si altamente<br />
endividada, comprometendo a autonomia energética<br />
de que os Estados Unidos tanto se orgulham<br />
de ter alcançado.<br />
As bolsas entraram em pânico, evoluindo erraticamente,<br />
mas deixando sempre um lastro de<br />
enorme descapitalização das empresas cotadas e<br />
corrigindo, para muitos, numa visão que adopta o<br />
optimismo possível, a espiral especulativa em que<br />
se encontravam. A 9 de Março os principais índices<br />
de Wall Street caíram 7% e o Dow Jones caiu<br />
2 mil pontos, a que terá sido a sua maior quebra diá-
PIB A PIQUE<br />
A recessão originada pela crise global de saúde pública é uma consequência incontornável para instituições e analistas<br />
Antes da Pandemia<br />
Com a Pandemia<br />
6,6<br />
3,6<br />
2,9<br />
1,9<br />
4,8<br />
2,9<br />
2,3<br />
1,2<br />
5,8<br />
3,3<br />
2,0<br />
1,3<br />
6,5<br />
3,4<br />
1,7<br />
1,4<br />
6,6<br />
3,6<br />
2,9<br />
1,9<br />
4,8<br />
2,9<br />
2,3<br />
1,2<br />
5,8<br />
3,3<br />
2,0<br />
1,3<br />
-0,9<br />
-1,3<br />
-2,6<br />
-3,2<br />
2018 2019 <strong>2020</strong><br />
2021<br />
2018<br />
2019<br />
inicial<br />
<strong>2020</strong><br />
inicial<br />
<strong>2020</strong><br />
pandemia<br />
Zona Euro EUA Produção Mundial China<br />
Fonte: FMI, previsões de Janeiro de <strong>2020</strong> excepto a previsão para <strong>2020</strong> pós-pandemia da Oxford Economics.<br />
ria, após o colapso do preço do petróleo. O índice<br />
S&P 500 perdeu 6,59%, e o tecnológico Nasdaq<br />
6,19%. Wall Street viveu o pior dia desde a crise de<br />
2008/2009, com as quebras a levarem à interrupção<br />
da sessão, como acontecera então. Viveu-se o<br />
mesmo ambiente do cataclismo financeiro do final<br />
de 2008, com o novo coronavírus a garantir uma<br />
recessão internacional. Na Europa, as bolsas também<br />
foram ao fundo. “Foi um dos piores dias que<br />
vivi em bolsa”, disse à AFP Oliver Roth, analista do<br />
Oddo Seydler Bank, em Frankfurt, onde o índice<br />
Dax registou a maior queda desde 2001 (7,94%).<br />
As quebras sucederam-se a uma velocidade furiosa<br />
no mercado à medida que a contaminação progrediu.<br />
A Itália entrava em quarentena, uma situação<br />
sem precedentes, e os Estados Unidos fechavam as<br />
portas à Europa, interditando os voos provenientes<br />
do Velho Continente.<br />
O SURTO<br />
EPIDÉMICO<br />
PODERÁ<br />
CUSTAR 130 MIL<br />
MILHÕES DE<br />
DÓLARES ÀS<br />
COMPANHIAS<br />
DE AVIAÇÃO<br />
ESTE ANO,<br />
DE ACORDO<br />
COM<br />
A IATA<br />
AMEAÇA AOS EUA<br />
Nos Estados Unidos, o novo coronavírus pôs Nova<br />
Iorque em casa e os hospitais vivem o mesmo clima<br />
de horror de Itália ou Espanha, transmitido pela<br />
comunicação global a espectadores sedentos de<br />
informação no isolamento das suas casas. O Presidente<br />
norte-americano, Donald Trump, classificou<br />
o o vírus como uma ameaça externa. A FED, a<br />
reserva federal norte-americana, que funciona como<br />
banco central com poderes alargados, decidiu, a 3 de<br />
Março, baixar a taxa de juro de referência em meio<br />
ponto percentual, o maior corte efectuado desde a<br />
crise financeira de 2008, colocando a taxa de juro<br />
de referência num intervalo entre 1% e 1,25%. Com<br />
a progressão do vírus e os sucessivos anúncios das<br />
autoridades europeias e norte-americanas, os mercados<br />
de capitais passaram a viver numa montanha-<br />
-russa, espelhando tempos de incerteza profunda.<br />
As autoridades norte-americanas haviam começado<br />
por aprovar um plano de emergência de 8,3<br />
mil milhões de dólares destinado a combater a<br />
disseminação da infecção e acelerar o desenvolvimento<br />
de uma nova vacina, a que acrescentaram, a<br />
12 de Março, 50 mil milhões de dólares destinados<br />
a fornecer apoio ao capital e tesouraria das pequenas<br />
empresas. O que ainda não era nada face ao<br />
que estava para vir.<br />
New Rochelle é uma pequena cidade do Estado de<br />
Nova Iorque, um dos subúrbios do aglomerado mais<br />
cosmopolita do mundo. Foi a primeira dos Estados<br />
Unidos a ser atacada severamente pelo novo vírus.<br />
O medo sentiu-se na cidade, o álcool em gel evaporou-se<br />
rapidamente, os habitantes puseram más-<br />
abril <strong>2020</strong> | 21
CAPA PANDEMIA<br />
LONGEVIDADE VULNERÁVEL<br />
D.R.<br />
Quando a indústria da saúde ganhou lugar na primeira linha das<br />
notícias graças aos prodígios tecnológicos alcançados no domínio<br />
do bem-estar e dos cuidados dos mais velhos, irrompeu um vírus<br />
que contaminou o mundo inteiro e abalou os sistemas de saúde<br />
dos países mais desenvolvidos. Questionou a certeza quanto ao<br />
advento do bem-estar na velhice que a ciência, a tecnologia e a<br />
indústria pareciam prometer. As marcas vêm associando a tecnologia<br />
de saúde aos objectos com que mais lidamos, o vestuário,<br />
o calçado, o relógio. O desenvolvimento dos sistemas de saúde<br />
aumentou a longevidade para níveis inimagináveis há um século e<br />
cobriu-a de high-tech nos países mais ricos. Para que adianta viver<br />
mais se não se viver bem, com qualidade? Contudo, a panóplia<br />
de serviços e equipamentos dirigidos aos mais velhos só beneficia<br />
uns quantos, mesmo nos países ricos, e um vírus que os escolhe<br />
como o seu alvo mais letal trouxe ao de cima a invisibilidade para<br />
que são atirados pela mesma civilização que lhes prolonga a vida.<br />
O novo coronavírus instalou o pânico nos lares de idosos por toda<br />
a Europa, mostrando a vulnerabilidade da vida que se alongou.<br />
caras. O ambiente tenso estendeu-se a todo o país<br />
através da comunicação social e das redes sociais.<br />
Em New Rochelle foi convocada a Guarda Nacional<br />
para distribuir alimentos e atender a outras urgências.<br />
Uma imagem de estado de sítio semelhante à<br />
que era dada por Itália, com os seus monumentos,<br />
ruas e praças desertos. O alarme estava dado nos<br />
Estados Unidos, a primeira potência mundial teria<br />
de enfrentar a pandemia, que deslocara o seu epicentro<br />
para a Europa, com a martirizada Itália, e a<br />
seguir a Espanha, a superarem o número de mortes<br />
infligidas pela COVID-19 na China.<br />
Estão a ser gastas, nesta pandemia, pelos Estados<br />
Unidos, somas inimagináveis. O país praticamente<br />
fechou as fronteiras e endureceu a contenção interna<br />
do surto. A pandemia atingiu ferozmente Nova Iorque,<br />
cresce, de um modo muito preocupante, em<br />
Washington e na Califórnia, e espalha-se pelos diferentes<br />
estados, ameaçando desencadear uma situação<br />
caótica no Louisiana. Face a isto, menos de duas<br />
semanas depois de anunciar as primeiras medidas,<br />
Trump subiu muito a parada e propôs à aprovação<br />
do Congresso um pacote de medidas de emergência<br />
para aguentar a economia no valor astronómico<br />
de 2 triliões (milhões de milhões) de dólares.<br />
A COMPETIÇÃO<br />
GLOBAL<br />
INTENSIFICOU-<br />
-SE COM<br />
A PANDEMIA,<br />
COM A CHINA<br />
E OS ESTADOS<br />
A TROCAREM<br />
ACUSAÇÕES<br />
Os fundos anunciados pelos diferentes governos para<br />
combater a crise de saúde totalizam quase 5 triliões<br />
de dólares. O impacto na sociedade é demolidor.<br />
A factura económica vai ser uma das mais elevadas<br />
de sempre. Quando, e como, conseguirão os Estados<br />
Unidos estancar uma crise que os está a subalternizar<br />
face à China, onde nasceu o novo coronavírus<br />
que, por negligência, não foi logo contido, mas<br />
que exulta a rápida superação do surto e pratica<br />
uma política activa de marketing na ajuda à Europa?<br />
A Europa, por seu lado, anunciou um pacote<br />
financeiro de 25 mil milhões de euros, afinal uma<br />
mera reafectação de verbas já programadas em<br />
fundos europeus e o mesmo valor disponibilizado<br />
pelo governo de Itália, o país europeu mais atingido<br />
pela pandemia e abandonado à sua sorte pelos seus<br />
pares europeus. Se a Alemanha, na primeira reacção<br />
aos impactos sobre a economia, se dispunha a<br />
aplicar 12,4 mil milhões de euros na sua dinamização,<br />
subiu a parada para 550 mil milhões de euros.<br />
França liberta 345 mil milhões em garantias de crédito<br />
e apoio a trabalhadores e empresas, e Espanha<br />
200 mil milhões. Portugal, que começou por<br />
anunciar um programa de apoio de 200 milhões<br />
de euros, já se comprometeu com 9 mil milhões<br />
22 | Exame Moçambique
de euros, muito dirigidos ao turismo, introduziu<br />
o lay-off flexível, em que o governo se compromete<br />
a pagar dois terços dos salários dos trabalhadores de<br />
empresas que suspendam a actividade, moratórias<br />
fiscais, manutenção dos arrendamentos e apoio aos<br />
“isolados” (a esmagadora maioria da população) e<br />
às tesourarias das empresas. Só o lay-off flexível irá<br />
custar ao governo português mil milhões de euros<br />
por mês, havendo ainda outros choques sobre as<br />
contas públicas, como o aumento do desemprego<br />
e dos respectivos subsídios.<br />
Os apoios chovem por toda a Europa (serão,<br />
mesmo assim, suficientes?), mas a coordenação<br />
dos países do euro não tem sido a melhor nem a<br />
mais atempada e disciplinada, face ao exemplo da<br />
província chinesa de Hubei e aos avisos de cientistas<br />
e médicos. Quando o novo coronavírus atacou<br />
a União Europeia, esta estava a braços com uma<br />
nova crise migratória e a ameaça da abertura de<br />
fronteiras do líder turco Recep Erdogan. Antes de<br />
anunciar as medidas que o Banco Central Europeu<br />
(BCE) iria tomar, a sua presidente, Christine<br />
Lagarde, avisara: “Iremos ver um cenário que irá<br />
lembrar, a muitos de nós, a crise financeira de 2008.”<br />
A tensão irá acentuar-se ao ritmo, muito rápido,<br />
do crescimento da propagação da doença e obriga<br />
a acrescentar vários zeros às medidas de emergência.<br />
Lagarde, quando o BCE apresentou, a 12 de<br />
Março, as suas medidas para apoiar a economia,<br />
afirmou ser claro para todos “que a economia da<br />
Zona Euro está perante um enorme choque”, defendendo<br />
que tudo irá depender de quão prolongada<br />
a pandemia será e, por outro lado, de quão rapidamente<br />
a propagação irá ocorrer. Christine Lagarde<br />
deu a sua aprovação aos esforços dos diferentes<br />
governos europeus na área orçamental, sendo que,<br />
ao contrário da FED norte-americana, o BCE não<br />
tem qualquer influência na política fiscal. Embora,<br />
contra as expectativas, o BCE não tenha mexido<br />
nas suas taxas de juro de referência (com o actual<br />
nível de taxas de juro na Europa tem muito pouca<br />
margem de manobra), comprometeu-se a autorizar<br />
rácios de capital mais baixos por parte dos bancos<br />
e dar “descontos” nas taxas de juro cobradas<br />
em operações de financiamento (à banca) a longo<br />
prazo, numa tentativa de estimular a concessão<br />
de crédito às pequenas e médias empresas. O BCE<br />
procurou transmitir uma mensagem positiva aos<br />
mercados financeiros ao aumentar as compras de<br />
dívida em 120 mil milhões de euros até ao final do<br />
ano. Não foi suficiente e as bolsas reagiram mal.<br />
Uma semana depois, nas últimas horas de uma<br />
quarta-feira, o BCE, entretanto muito criticado,<br />
OS ESTADOS<br />
UNIDOS E, EM<br />
GERAL, OS<br />
PAÍSES DE<br />
TRADIÇÃO<br />
SAXÓNICA<br />
PARECEM<br />
PREFERIR OS<br />
ESTÍMULOS<br />
DIRECTOS,<br />
PONDO<br />
DINHEIRO NO<br />
BOLSO DAS<br />
PESSOAS<br />
rectificava, aumentando muito a “parada” e prevenindo<br />
que iria utilizar uma verdadeira “bazuca”<br />
financeira. O Banco Central Europeu aumentava<br />
para 750 mil milhões de euros o montante destinado<br />
à recompra de dívida emitida por governos<br />
e empresas da Zona Euro. O dinheiro irá passar<br />
pelos bancos e os empresários desconfiam que a<br />
intermediação bancária irá significar juros elevados,<br />
numa altura em que precisam de crédito para<br />
ocorrer a dificuldades de tesouraria.<br />
Após os sucessivos e enormes apoios anunciados<br />
pelos países da UE mais atingidos pela pandemia, a<br />
presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula<br />
von der Leyden, através do Twitter, veio formalizar<br />
o óbvio (uma vez que os orçamentos dos diferentes<br />
países haviam sido pulverizados) e comunicar<br />
aos governos europeus, alguns ainda sufocados em<br />
dívida e, até agora, a tentar equilibrar orçamentos<br />
com sacrifício de funções sociais, que estão suspensas<br />
as regras do défice (que, segundo as normas<br />
europeias, não pode superar 3% do produto)<br />
e que os diferentes membros do euro podem injectar<br />
o que for preciso nas suas economias para tentar<br />
travar a vaga epidémica. É a primeira vez que<br />
a Comissão Europeia acciona a chamada “cláusula<br />
de salvaguarda” que suspende as regras do défice.<br />
Um reconhecimento da dimensão da crise, para a<br />
qual os países do bloco monetário não encontram<br />
resposta conjunta, o que atira graves responsabilidades,<br />
uma vez mais, para as costas da Alemanha,<br />
estando em causa a defesa do euro. Em<br />
termos monetários, é disso que se trata. Só que a<br />
União Europeia está dividida e a pandemia poderá<br />
vir a precipitar a queda da moeda única. A maior<br />
parte dos países reclama que o dinheiro necessário<br />
para aguentar o emprego e relançar a economia<br />
provenha da emissão de dívida mutualizada entre<br />
todos os Estados-membros, ou seja, de títulos cujo<br />
risco é partilhado por todos, a que alguns já chamam<br />
“coronabonds”. Mas a oposição por parte de<br />
alguns estados do Norte da Europa, e sobretudo a<br />
posição da hesitante Alemanha, apesar do desespero<br />
da França, poderá fazer que o bloco monetário<br />
se venha a desfazer. A Comissão Europeia não<br />
tem margem orçamental para fazer mais do que<br />
admitir a reafectação de verbas desviadas de outros<br />
programas de apoio. A Europa tem de encontrar<br />
rapidamente uma solução para o financiamento<br />
dos défices impostos pela pandemia, mas mostra-<br />
-se atarantada, lenta e desunida face à catástrofe<br />
que enfrenta. Esta demonstrou que os laços de solidariedade<br />
entre os países que constituem a União<br />
Europeia são, como se suspeitava, muito frágeis.<br />
abril <strong>2020</strong> | 23
CAPA PANDEMIA<br />
CATADUPA DE APOIOS<br />
O Fundo Monetário Internacional (FMI) põe à<br />
disposição dos países mais atingidos pela pandemia<br />
um financiamento de emergência de 50 mil<br />
milhões de dólares. Os director e o vice-director<br />
dos Assuntos Orçamentais do FMI, Vítor Gaspar<br />
e Paolo Mauro, partilhando uma preocupação já<br />
manifestada pela OCDE, consideram que os governos<br />
devem “gastar dinheiro para prevenir, detectar,<br />
controlar, tratar e conter o vírus”. Escrevem,<br />
no blogue do FMI, que os governos devem “dar<br />
subsídios salariais às pessoas e empresas para ajudar<br />
a conter o contágio”. Em França, no Japão e na<br />
Coreia do Sul foram apoiados os funcionários em<br />
quarentena ou que precisem de dar apoio a crianças.<br />
Nos Estados Unidos, o Congresso aprovou<br />
um pacote financeiro de 8,3 mil milhões de dólares<br />
para o combate ao coronavírus no país. A mais<br />
poderosa economia europeia, a Alemanha, anunciou,<br />
no mesmo dia (9 de Março) em que o país<br />
registou as suas primeiras duas mortes entre cerca<br />
de mil infectados, medidas para tentar evitar uma<br />
derrapagem económica descontrolada. A produção<br />
industrial alemã está há seis meses deprimida,<br />
tendo caído 5,7% no último trimestre, reflectindo<br />
a maior recessão industrial desde a reunificação do<br />
país, em 1990. Primeiro, a 9 de Março, as autoridades<br />
alemãs anunciaram um plano de investimento<br />
público envolvendo 12,4 mil milhões de euros a ser<br />
implementado nos próximos quatro anos e ainda<br />
um envelope de 8 mil milhões de euros destinado<br />
a obras rodoviárias e ferroviárias e à construção<br />
civil. Além disso, o governo dispunha-se a garantir<br />
a tesouraria das empresas que registassem que-<br />
PARA A<br />
MAIORIA DOS<br />
ECONOMISTAS,<br />
A PRIORIDADE<br />
É PARAR<br />
RAPIDAMENTE<br />
A PANDEMIA<br />
E REABILITAR<br />
A ECONOMIA,<br />
COM POLÍTICAS<br />
FISCAIS<br />
EXCEPCIONAIS<br />
MUNDO VAZIO:<br />
Um homem passa pelos<br />
famosos degraus<br />
espanhóis de Roma<br />
bras bruscas na receita e estender a mais empresas<br />
o programa que permite às empresas reduzirem o<br />
número de horas trabalhadas. A iniciativa alemã<br />
foi de pronto considerada “unilateral” por muitos<br />
analistas na União Europeia. A economia alemã<br />
vem dando sinais de desaceleração e já ameaçava<br />
mesmo uma recessão, dispondo, no entanto, de<br />
uma confortável almofada orçamental. No último<br />
ano, as contas públicas alemãs apresentaram um<br />
excedente de 50 mil milhões de euros. A Alemanha<br />
tem imposto aos seus parceiros do euro uma<br />
convicção férrea nas virtudes da austeridade nas<br />
contas públicas. Uma boa parte das economias<br />
europeias continua muito endividada e os recursos<br />
que terão de ser aplicados na contenção da<br />
devastação provocada pelo surto epidémico irão<br />
arrasar o equilíbrio fiscal e agravar a situação de<br />
endividamento com que se debatem muitos países<br />
europeus, como a Itália, Espanha, Grécia e<br />
Portugal. Criticado no resto da Europa por avançar<br />
sozinho, o governo alemão também não escapou<br />
a críticas internas. A Deutsche Welle (DW), a<br />
emissora internacional da Alemanha, publicava a<br />
18 de Março um texto de opinião na sua página de<br />
Internet no qual se fazem duras críticas à chanceler<br />
Angela Merkel. A autora do texto, Cristina<br />
Burack, é peremptória a dizer que “Merkel desperdiçou<br />
uma oportunidade crucial e demonstrou<br />
falta de liderança face à crise”. Ora, passados<br />
dois dias, Merkel anunciava um fundo dotado de<br />
500 mil milhões de euros para conceder linhas<br />
de crédito e permitir injecções de capital nas empresas.<br />
Berlim prevê ajudas de Estado no montante de<br />
180 mil milhões de euros. Mas a Alemanha dis-<br />
D.R.<br />
24 | Exame Moçambique
põe-se a ir mais longe, contrariando todos os seus<br />
sacrossantos princípios sobre a dívida europeia. Preferirá,<br />
no entanto, não avalisar dívida em conjunto<br />
com parceiros endividados na União Europeia.<br />
A Itália, o país mais castigado pelo COVID-19, e<br />
também o mais responsável pela sua propagação na<br />
Europa, dado que as medidas de contenção andaram<br />
a reboque do fulminante processo de contágio<br />
e foram amplamente desrespeitadas pelos italianos,<br />
anunciara, uma semana antes, a 4 de Março, um<br />
pacote de estímulos de 7,5 mil milhões de euros<br />
destinado a apoiar formas de trabalho flexíveis,<br />
procurando garantir a preservação de empregos e a<br />
produção. Uma vez mais, a velocidade do contágio<br />
e a escalada de mortos tornou irrelevante a verba<br />
anunciada. A 11 de Março, o pacote de ajuda italiana<br />
disparou para 25 mil milhões de euros, um<br />
problema agudo para um país cuja dívida pública<br />
atinge 130% do produto interno (PIB). A Espanha,<br />
o segundo país europeu mais atingido, anunciou,<br />
seis dias depois, uma injecção de 200 mil milhões<br />
de euros na economia para fazer face à destruição<br />
operada pelo vírus. Na véspera, o governo francês<br />
anunciara que irá disponibilizar 345 mil milhões<br />
de euros, dos quais 300 mil milhões destinam-se<br />
à garantia de empréstimos e 45 mil milhões ao<br />
apoio de trabalhadores e empresas.<br />
O IMPACTO DA ECONOMIA GLOBAL<br />
É impossível prever os danos que serão causados<br />
à sociedade global pois é impossível antecipar<br />
a rota do vírus. O que se sabe é que se está<br />
perante um novo tipo de crise, não uma crise<br />
gerada no universo financeiro, mas uma crise de<br />
saúde pública que suspende a economia real, a<br />
oferta e a procura. Afundam-se tanto uma como<br />
a outra. As previsões, cada vez mais catastróficas,<br />
sucedem-se, procurando acompanhar a velocidade<br />
com que a doença epidémica se espalha.<br />
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento<br />
Económico (OCDE), que agrupa os países<br />
mais desenvolvidos, afirmou, no início de Março,<br />
que num cenário de pandemia causada pelo novo<br />
coronavírus o crescimento mundial poderá descer<br />
para metade (1,5%) em relação à sua previsão<br />
de há quatro meses. A OCDE traçara um cenário<br />
mais optimista, com o surto a ficar confinado<br />
à China e Hong Kong, em que o PIB global cairia<br />
apenas para 2,4%. Não foi, contudo, o que aconteceu,<br />
e a epidemia espalhou-se rapidamente aos<br />
outros continentes. Em qualquer dos cenários, a<br />
procura interna na economia chinesa, que corresponde<br />
a 17% do produto interno bruto (PIB)<br />
A ESCALA<br />
DOS GASTOS ESTATAIS<br />
Os Estados Unidos e os países anglófonos apostam nos apoios<br />
directos dos orçamentos nacionais como forma de proteger<br />
rendimentos e consumo<br />
Explosão Orçamental da COVID-19 (em milhões de dólares)<br />
1100000<br />
85000 79300 68000 50000 35300 27700 27500<br />
Estados<br />
Unidos<br />
Austrália<br />
Reino<br />
Unido<br />
Alemanha França Espanha Japão Itália<br />
Fonte: Goldman Sachs com valores convertidos em dólares ao câmbio corrente.<br />
mundial, cairá 4% no primeiro trimestre do ano e<br />
2% no segundo. No cenário mais severo, registar-<br />
-se-á uma diminuição de 2% na procura na maioria<br />
dos países da região da Ásia-Pacífico e nas economias<br />
mais desenvolvidas do Hemisfério Norte<br />
no segundo trimestre deste ano, uma quebra de<br />
20% no mercado de capitais e no preço das matérias-primas<br />
não alimentares e “um aumento de<br />
50 pontos base no prémio de risco no investimento<br />
em todos os países”. A OCDE, poucos dias após<br />
revelar as suas projecções, adiou, numa decisão<br />
inédita, a divulgação dos seus indicadores avançados.<br />
A formulação de previsões, um acto sempre<br />
arriscado, tornou-se agora impossível, dado<br />
o grau de incerteza que existe quanto à evolução<br />
do vírus e o seu impacto na economia mundial.<br />
A Organização Mundial do Turismo (OMT) prevê<br />
que o coronavírus provoque perdas entre 30 e<br />
50 mil milhões de dólares. O transporte aéreo é<br />
fortemente atingido. O surto epidémico poderá<br />
custar 130 mil milhões de dólares às companhias<br />
de aviação só este ano, de acordo com a IATA,<br />
a associação internacional de transporte aéreo.<br />
O sector prepara-se para enfrentar a pior crise<br />
desde 2008. As transportadoras vêem-se obrigadas<br />
a estabelecer planos de contingência e a cancelar<br />
rotas para os principais focos de propagação<br />
do vírus. A queda de passageiros, com que já se<br />
debatiam, tornou-se agora brutal. b<br />
abril <strong>2020</strong> | 25
CAPA PANDEMIA<br />
A RECESSÃO<br />
E COMO SAIR<br />
DELA<br />
Sair de uma crise global<br />
exige coordenação mundial<br />
LUÍS FARIA<br />
Até Junho, pelo menos, Europa e Estados<br />
Unidos vão manter-se parados.<br />
A China retoma, entretanto, a normalidade,<br />
vendendo freneticamente<br />
equipamento e material de protecção<br />
contra o vírus. Em África e na América Latina,<br />
a possibilidade de o vírus escalar a níveis insuportáveis<br />
ainda é uma interrogação. Em todo o caso, ainda<br />
SOLUÇÃO:<br />
A governação mundial<br />
tem de encontrar<br />
respostas para uma das<br />
maiores recessões<br />
de sempre<br />
JÁ NÃO<br />
RESTAM<br />
DÚVIDAS A<br />
NINGUÉM QUE<br />
A RECESSÃO<br />
MUNDIAL É<br />
INEVITÁVEL,<br />
FALTA SABER<br />
QUANTO CAIRÁ<br />
O PRODUTO<br />
GLOBAL<br />
D.R.<br />
que a um ritmo inicial mais lento (aliás, já observado<br />
noutras latitudes), vai alastrando. A pandemia<br />
escancara as portas à recessão da economia global,<br />
que oscilava com a moderação do crescimento chinês,<br />
e na Europa com os apuros da Itália e a desaceleração<br />
alemã. O primeiro e segundo trimestres<br />
do ano já estão marcados pela recessão. Poderá, na<br />
melhor das hipóteses, assistir-se a alguma recuperação<br />
já no terceiro trimestre.<br />
Já não restam dúvidas a ninguém que a recessão<br />
mundial é inevitável, falta saber com alguma aproximação<br />
quanto decairá o produto global, o que<br />
depende da duração da pandemia. A directora-geral<br />
do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina<br />
Georgieva, avisou, no final de Março, que a<br />
economia global já se encontrava em recessão. Paul<br />
Thomsen, encarregue da área europeia do FMI, num<br />
artigo publicado no blogue da instituição, lembra<br />
que os serviços fechados representam cerca de um<br />
terço da produção, o que “significa que cada mês<br />
de serviços fechados se traduz numa descida de 3%<br />
do produto interno bruto (PIB) anual europeu”. E a<br />
Europa estará fechada, pelo menos, por três meses.<br />
A consultora Oxford Economics prevê, para os<br />
Estados Unidos, uma recessão de apenas 0,2%, e para<br />
a Zona Euro uma recessão de 2,2%. A China crescerá<br />
apenas 1% (contra os 5,5% estimados na última<br />
revisão da estimativa do crescimento da potência<br />
asiática) e a economia mundial estagnará (a previsão<br />
anterior à pandemia era de 2,5%). A consultora<br />
é, no entanto, optimista para o período que se<br />
seguirá ao termo da crise sanitária. “A perspectiva<br />
de evolução a curto prazo é extremamente desafiante,<br />
mas a actividade vai recuperar depois das<br />
medidas de distanciamento social”, beneficiando<br />
também com a combinação dos estímulos monetários<br />
e orçamentais e da despesa discricionária”,<br />
diz. Antecipa um crescimento de 5,3% da economia<br />
mundial no último trimestre deste ano e uma<br />
média de 4,4% em 2021. No entanto, estas estimativas<br />
suaves da consultora são temperadas pelo pior<br />
cenário que coloca e que se está a verificar, com o<br />
agravamento da pandemia, que congela de todo os<br />
mercados ocidentais. Neste caso, a economia mundial<br />
poderá ter um crescimento negativo de 1,3%,<br />
com os Estados Unidos a caírem 2,6%, a Zona Euro<br />
3,2% e a China 0,9%.<br />
Por seu lado, o Instituto de Finanças Internacionais<br />
(IIF, na sigla em inglês) estima que o crescimento<br />
da economia global deve desacelerar para<br />
1% em <strong>2020</strong>, ritmo mais fraco desde a crise financeira<br />
de 2008, como efeito do choque causado pelo<br />
coronavírus. O relatório divulgado pelo IIF redu-<br />
26 | Exame Moçambique
ÁFRICA QUER PERDÃO DE DÍVIDA POR TRÊS ANOS<br />
O impacto da recessão originada pela pandemia vai prolongar-se<br />
em África por três anos, pelo que o continente pede<br />
que, nesse período, os países que o integram sejam libertados<br />
dos encargos da dívida. Esta a conclusão do segundo<br />
encontro dos ministros das Finanças africanos, liderado pela<br />
secretária-executiva da Comissão Económica das Nações<br />
Unidas para África (UNECA), realizada por videoconferência,<br />
com alguns dos ministros a usarem máscaras. Os governantes<br />
defenderam que o continente “está a enfrentar um<br />
profundo e sincronizado abrandamento económico e que<br />
a recuperação pode demorar até três anos”. O pedido de<br />
perdão de dívida, já formulado uma semana antes, mas só<br />
por um ano, foi alargado no início deste mês a todo o tipo<br />
de dívida e a todos os países do continente durante os próximos<br />
três anos. “Os ministros pediram um alívio da dívida<br />
por parte dos parceiros bilaterais, multilaterais e comerciais<br />
com o apoio de instituições financeiras multilaterais e bilaterais,<br />
como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial<br />
e a União Europeia, para garantir que os países africanos<br />
garantem a margem orçamental de que precisam para lidarem<br />
com a crise da COVID-19”, lê-se no comunicado divulgado<br />
no final da reunião. “Dado que a economia global entrou<br />
num período sincronizado de abrandamento, com a recuperação<br />
a só dever acontecer dentro de 24 a 36 meses, os parceiros<br />
para o desenvolvimento devem considerar um alívio<br />
financeiro e um perdão dos juros durante dois a três anos<br />
para todos os países africanos, sejam de baixo ou de médio<br />
rendimento”, escrevem os governantes. Os países africanos<br />
continuam a focar a despesa nas necessidades de saúde exigidas<br />
pela pandemia.<br />
A ideia do perdão da dívida foi lançada pelo Fundo Monetário<br />
Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM): “Com efeito<br />
imediato, e consistente com as leis nacionais dos países credores,<br />
o Grupo BM e o FMI apelam a todos os credores oficiais<br />
bilaterais que suspendam os pagamentos de dívida<br />
dos países [abrangidos pela] Associação para o Desenvolvimento<br />
Internacional (IDA, na sigla em inglês) que assim<br />
o solicitem”, lê-se num comunicado conjunto. “Isto vai ajudar<br />
os países com necessidades imediatas de liquidez a lidarem<br />
com os desafios colocados pela pandemia do novo coronavírus<br />
e dar tempo para uma análise do impacto da crise e<br />
sobre as necessidades de financiamento para cada país.”<br />
A IDA é uma instituição que funciona no âmbito do Banco<br />
Mundial com a missão de apoiar os 76 países mais pobres,<br />
entre os quais estão todos os países lusófonos africanos,<br />
à excepção de Angola e Guiné Equatorial.<br />
“O FMI e o BM acreditam que neste momento é imperativo<br />
fornecer um sentimento global de alívio aos países em<br />
desenvolvimento, bem como um forte sinal aos mercados<br />
financeiros”, conclui-se no comunicado, que incide apenas<br />
sobre a dívida bilateral e não sobre a dívida emitida nos<br />
mercados internacionais e detida por investidores privados<br />
ou institucionais.<br />
Tim Jones, economista-chefe da ONG Comité para o Jubileu<br />
da Dívida, argumenta que a pandemia da COVID-19 “torna<br />
ainda mais vital” que Moçambique não pague as dívidas<br />
ocultas, defendendo uma moratória sobre as outras dívidas.<br />
O dinheiro, vincou, “precisa de ficar em Moçambique para<br />
ajudar a financiar os serviços de saúde e lidar com a crise<br />
económica e a queda nos preços das matérias-primas”. Para<br />
o economista-chefe desta organização que defende a emissão<br />
de dívida de forma responsável, “também é preciso uma<br />
moratória nos pagamentos de dívida a outros credores externos”.<br />
Um estudo da ONG conclui que os juros de nova dívida<br />
pública para mercados emergentes subiu para uma taxa de<br />
10% desde o final de Fevereiro.<br />
D.R.<br />
abril <strong>2020</strong> | 27
CAPA PANDEMIA<br />
A PANDEMIA E O GÁS NATURAL<br />
Mesmo que o petróleo se mantenha em patamares muito baixos<br />
(o preço do barril já rondou os 20 dólares), os preços do<br />
gás natural liquefeito podem aumentar no final desta década.<br />
No entanto, o “efeito cascata” da quebra dos preços do petróleo<br />
pode contagiar o gás natural, pondo em causa as decisões<br />
finais de investimento em relação a novos projectos de exploração<br />
de gás, de acordo com a Bloomberg, que lembra que<br />
há quase 20 megaprojectos em busca de financiamento pelos<br />
investidores internacionais, depois de um número recorde ter<br />
atingido o marco crítico da Decisão Final de Investimento (FID,<br />
na sigla em inglês) no ano passado, e que já antes da queda dos<br />
preços do petróleo e das perturbações mundiais decorrentes<br />
da pandemia de COVID-19 “os promotores dos projectos estavam<br />
sob pressão devido à queda dos preços do gás, temperaturas<br />
quentes para o Inverno e restrições na procura”. “Com<br />
uma pressão para a descida dos preços no gás natural e com os<br />
preços do petróleo já baixos, alguns projectos podem começar<br />
a parecer realmente pouco rentáveis”, disse Jeff Moore, analista<br />
da consultora especializada em energia S&PGlobal Platts,<br />
em declarações à Bloomberg.<br />
O surto pandémico pode pressionar o preço do gás natural<br />
liquefeito no imediato, no entanto as perspectivas para o mercado<br />
do gás a longo prazo são bastante optimistas. Aliás, há,<br />
desde logo, um facto muito curioso a registar. O aumento de<br />
importações de commmodities energéticas subiu significativamente<br />
nos primeiros dois meses do ano, um dado que foi ofuscado<br />
pelo impacto do novo coronavírus. Informação alfandegária<br />
divulgada a 7 de Março mostra que as importações chinesas de<br />
petróleo bruto atingiram uma média de 10,48 milhões de barris<br />
por dia (bpd) nos dois primeiros meses, um aumento de 5,2% em<br />
relação ao mesmo período do ano passado. As importações de<br />
gás natural através de oleodutos e gás natural liquefeito (GNL)<br />
aumentaram 2,8%, para 17,8 milhões de toneladas — talvez o<br />
desempenho mais surpreendente dado o diferimento relatado<br />
de várias cargas de GNL em Fevereiro devido ao coronavírus,<br />
bem como a fraca procura de um Inverno mais quente do que o<br />
habitual. Durante uma reunião conjunta da Louisiana Mid-Continent<br />
Oil and Gas Association e Louisiana Oil & Gas Association<br />
que teve lugar na primeira semana de Março, altos executivos<br />
de grandes empresas de energia reafirmaram a sua convicção<br />
de que a procura por energia irá continuar a subir. A ExxonMobil<br />
Fuels & Lubricants espera que a procura por petróleo e gás<br />
aumente 8% e 6%, respectivamente, nos próximos 20 anos.<br />
“Mesmo com as mudanças introduzidas pelo Acordo Climático<br />
de Paris, haverá um enorme crescimento da procura por petróleo<br />
e gás”, disse Bryan Milton, presidente da empresa, acrescentando<br />
que esta espera investimentos da ordem de 21 triliões<br />
de dólares até 2040. Uma boa parte deve beneficiar a costa do<br />
Golfo. Frederic Phipps, presidente da Shell nos EUA, afirma que<br />
a procura a longo prazo de gás natural liquefeito permanece<br />
forte — apesar das perturbações decorrentes do coronavírus,<br />
já que o gás continua a ser o combustível de escolha para soluções<br />
de energia mais limpas. Para Phipps, “uma população crescente<br />
e padrões de vida crescentes continuarão a impulsionar<br />
a procura por energia com emissões mais baixas”.<br />
Mas a verdade é que, no imediato, a pandemia significa um<br />
duro golpe nos três maiores mercados de importação de gás<br />
natural liquefeito — Japão, China e Coreia do Sul. Os três principais<br />
importadores de LNG do mundo foram, inicialmente, os<br />
três países mais atingidos pelo surto de coronavírus, mas também<br />
aqueles que tiveram mais sucesso no combate à doença.<br />
O alastramento da pandemia à Europa e aos Estados Unidos<br />
teve muito menor impacto nos preços do gás do que no valor<br />
do petróleo.<br />
O presidente do Instituto Nacional de Petróleos (INP) de<br />
Moçambique, Carlos Zacarias, disse esperar que a queda do<br />
preço de petróleo no mercado internacional não tenha um<br />
impacto negativo nos investimentos no sector de gás natural<br />
no país. “Como regulador, espero que essa baixa de preço de<br />
petróleo não seja por muito tempo e não tenha impacto negativo<br />
no investimento”, declarou Carlos Zacarias. A queda de preços<br />
e o impacto da pandemia de COVID-19 coloca as empresas<br />
do sector energético em alerta, porque se trata de “situações<br />
sensíveis”, acrescentou Zacarias, que lembrou que “há compromissos<br />
[assumidos pelos investidores], mas há também desenvolvimentos<br />
que fogem do controlo dos actores do mercado”.<br />
Os investimentos da bacia do Rovuma poderão atingir 50 mil<br />
milhões de dólares e representam o maior investimento privado<br />
em curso em África.<br />
(com Lusa)<br />
D.R.<br />
28 | Exame Moçambique
TURISMO: As perdas<br />
deverão atingir 50 mil<br />
milhões de dólares<br />
D.R.<br />
ziu as previsões para o avanço do produto interno<br />
bruto (PIB) dos Estados Unidos (de 2% para 1,3%) e<br />
da China (de 5,6% para “pouco menos” de 4%). Para<br />
o IIF, “há claros abalos nas cadeias de fornecimento<br />
industriais, mas as potenciais consequências do vírus<br />
na economia incidem no sector dos serviços, no qual<br />
o impacto depende da escala da transmissão e do<br />
alcance das medidas de contenção”.<br />
As previsões para o desastre económico avançadas<br />
pelas entidades que ainda se arriscam a fazê-las<br />
conduzem todas para a queda brutal das expectativas<br />
anteriores ao tsunami sanitário, e quase todas apontam,<br />
a começar no FMI, para uma recessão pior que<br />
a de 2008. Os analistas do Morgan Stanley admitem<br />
uma queda de 30% no PIB dos Estados Unidos no<br />
segundo trimestre, o que abre as portas a uma recessão<br />
técnica na principal potência mundial. Também<br />
o Goldman Sachs, na sua última estimativa, projecta<br />
uma queda de 1% da economia norte-americana no<br />
final do ano. Mesmo assim, no meio do descalabro,<br />
o banco J P Morgan aproveita para ir às compras, já<br />
que a crise lhe oferece, confessa, a oportunidade de<br />
adquirir startups no sector tecnológico e financeiro<br />
para combater o avanço de concorrentes inesperados<br />
e fortíssimos como a Amazon e o Google.<br />
INCERTEZA ABSOLUTA<br />
O problema é que não se consegue prever com satisfatório<br />
rigor até onde irá a pandemia. Não há modelo<br />
económico para um pós-crise quando não se sabe<br />
ENFRENTAR<br />
A GIGANTESCA<br />
CRISE<br />
ECONÓMICA<br />
GLOBAL QUE<br />
AÍ VEM EXIGE<br />
COORDENAÇÃO<br />
E COOPERAÇÃO<br />
À ESCALA<br />
MUNDIAL,<br />
ALGO QUE<br />
DIFICILMENTE<br />
IRÁ<br />
ACONTECER<br />
quando esta acaba e qual a extensão do seu impacto<br />
na economia. Tal como o vírus, a recessão já se contabiliza<br />
ao trimestre e chegará à economia de todos os<br />
países. Só não se sabe quando e com que intensidade.<br />
À evidente crise da procura, com os consumidores<br />
encafuados nas suas casas a reduzirem muito as<br />
compras, junta-se, como referimos, a crise da oferta.<br />
E é a componente da oferta que pode tornar a próxima<br />
recessão global muito diferente das duas últimas<br />
(2001 e 2008), alerta Kenneth Rogoff, antigo<br />
economista-chefe do FMI e professor na Universidade<br />
de Harvard. Num texto divulgado a 8 de<br />
Março, Rogoff considera ser “demasiado cedo para<br />
prever o impacto de longo prazo do surto de coronavírus.<br />
Mas não é demasiado cedo para reconhecer<br />
que a próxima recessão global pode estar a chegar<br />
— e que pode ser muito diferente das que começaram<br />
em 2001 e 2008”. Nouriel Roubini, que antecipou<br />
a recessão de 2008, afirma que esta será muito<br />
pior. Para o economista, esta recessão não terá nem<br />
a configuração tradicional em “V”, a mais benigna,<br />
em que a um choque inicial se sucede uma rápida<br />
recuperação, nem em “U”, em que a recuperação se<br />
faz mais lentamente, nem em “L”, em que à quebra<br />
na economia se segue um período de “estagflação”.<br />
A pandemia vai gerar, para Roubini, um mergulho<br />
vertical da economia global, algo que se assemelha<br />
a uma inédita curva de recessão, em “I”. O abismo.<br />
Há quem aproveite para chamar a atenção para<br />
o que o surto traz à superfície quanto ao mau fun-<br />
abril <strong>2020</strong> | 29
CAPA PANDEMIA<br />
cionamento das sociedades e da economia. É o que<br />
faz Raghuram G. Rajan, ex-governador do Reserve<br />
Bank da Índia e professor de Finanças na Universidade<br />
de Chicago, ao assinalar que “o COVID-19 foi<br />
rápido a expor o amadorismo e a incompetência”,<br />
acrescentando que, “na arena política, um sistema<br />
profissional mais acreditado terá a oportunidade de<br />
promover políticas sensatas que abordem os problemas<br />
que os pobres enfrentam sem dar início à<br />
guerra de classes. Mas essas aberturas não durarão<br />
eternamente. Se os profissionais falharem em capitalizá-las,<br />
a pandemia não oferecerá oportunidades<br />
— apenas mais pavor, mais divisão, mais caos e mais<br />
miséria”. Para fazer face à pandemia, os países ou<br />
se isolam completamente ou integram um esforço<br />
global para erradicar o vírus. A questão é não haver<br />
uma entidade nem ninguém capazes de assumir<br />
essa convergência de esforços. Não se sabe do G7,<br />
o G20 desapareceu (fóruns que agrupam os países<br />
mais influentes), as Nações Unidas não têm poder<br />
efectivo, a própria União Europeia tem muita dificuldade<br />
em entender-se sobre fundos comuns que<br />
possam financiar os milhares de milhões de euros<br />
tirados dos orçamentos nacionais para cobrir as<br />
situações de calamidade e que conduzirão, no caso<br />
de países como Itália, Espanha e Portugal, se tiverem<br />
que recorrer ao mercado para se financiarem,<br />
à bancarrota. Parece, na esfera política, haver pouca<br />
coordenação. A competição aumentou, mesmo com<br />
a China e os Estados a trocarem acusações e a confirmar-se<br />
que vivemos num mundo fragmentado<br />
por diferentes poderes, como o dos Estados Unidos,<br />
China, Rússia, Irão.<br />
Como sair da inevitável e severa recessão que aí<br />
vem? O risco que correm muitos analistas é não perceber,<br />
como a maior parte dos actores, que uma crise<br />
destas dimensões acarreta uma mudança que não<br />
deixa “no dia seguinte” as coisas no mesmo sítio.<br />
É uma ilusão imaginar que basta retomar o que por<br />
ela foi interrompido. Os dirigentes políticos hesitaram<br />
muito em tomar medidas drásticas, tentando conciliar<br />
uma crise global de saúde pública com o menor<br />
prejuízo económico. Uma pretensão que se arrisca a<br />
permitir vários ciclos consecutivos da epidemia, o que<br />
ficará muito mais caro do que pôr, de uma vez por<br />
todas e no menor tempo possível, termo ao espectro<br />
do contágio. Bill Gates, numa entrevista à CNN,<br />
disse não acreditar que se consiga motivar alguém a<br />
comprar casa nova ou comemorar com amigos num<br />
restaurante, quando as pessoas estão preocupadas a<br />
defender a sua vida e dos seus próximos. Por outro<br />
lado, o colapso total dos sistemas de saúde poderia<br />
traduzir-se no aumento da taxa de letalidade da<br />
CONTAGEM:<br />
Isoladas, as pessoas<br />
vêem o vírus alastrar-<br />
-se de dia após dia<br />
doença pandémica. Na chamada Gripe Espanhola,<br />
que matou entre 50 e 100 milhões de pessoas, a taxa<br />
de contaminação era inferior mas a taxa de letalidade<br />
superior (agravada por outras condições). Caso<br />
alastrasse descontroladamente, o COVID-19 causaria<br />
o colapso total dos serviços de saúde ocidentais<br />
e, dado o enorme número de infectados, atingiria<br />
uma letalidade muito elevada, traduzindo-se numa<br />
catástrofe social e económica de dimensões aterradoras.<br />
Para Raghuram G. Rajan “dentro dos países,<br />
a acção imediata — após a implementação de medidas<br />
para conter o vírus — é apoiar os que operam na<br />
economia informal e os trabalhadores independentes,<br />
cujos meios de subsistência serão interrompidos<br />
por quarentenas e distanciamento social”. Os Estados<br />
Unidos e, em geral, os países de tradição saxónica,<br />
parecem preferir os estímulos directos, pondo<br />
dinheiro no bolso das pessoas, para impedir a quebra<br />
brutal de rendimentos e da procura, mas os países<br />
da União Europeia, fustigados pela epidemia, e<br />
alguns, como Itália, Espanha e França, com os sistemas<br />
de saúde implodidos, mostram grande vulnerabilidade<br />
financeira e terão grande dificuldade<br />
em financiar-se se não mudar o clima desavindo na<br />
União Europeia.<br />
Para Anatole Kaletsky, co-presidente da Gavekal<br />
Dragonomics e autor de Capitalism 4.0: The Birth of<br />
a New Economy in the Aftermath of Crisis (Capitalismo<br />
4.0: O Nascimento de Uma Nova Economia<br />
no Pós-Crise, numa tradução livre), caso se queira<br />
evitar uma catástrofe económica pior do que a de<br />
30 | Exame Moçambique
2008 “os governos das maiores economias devem<br />
garantir a remuneração ilimitada de todos os rendimentos<br />
e salários perdidos, em todas as empresas<br />
e funcionários afectados por quarentena e contenção<br />
— ou, se a compensação de 100% não for possível,<br />
dever-se-ão compensar perdas de pelo menos<br />
80-90%”. Kaletsky advoga também o crédito a longo<br />
prazo a taxa de juro zero, concedido a grandes<br />
empresas ou, então, a prestação de garantias. “Muito<br />
claramente, na actual situação a política monetária<br />
nada poderá fazer para estimular a actividade<br />
económica.” Kaletsky considera muito mais eficaz<br />
uma forte intervenção orçamental, equivalente a<br />
25% do PIB, que várias medidas fiscais espaçadas,<br />
que são menos eficazes e tornam-se mais caras, não<br />
se comprometendo assim tanto o equilíbrio orçamental<br />
a longo termo. Em segundo lugar, os bancos<br />
centrais, através do reforço do quantitative easing<br />
(compra de dívida), podem absorver a emissão de<br />
dívida suplementar. Em suma, a base monetária de<br />
cada uma das economias do G7 teria uma expansão<br />
equivalente a 25% do PIB. Kaletsky coloca uma<br />
outra opção para a saída da crise. É a do chamado<br />
“dinheiro atirado do helicóptero”, uma ideia inédita<br />
que o economista Milton Friedman lançou em 1969<br />
e que põe o banco central a entregar directamente<br />
dinheiro às pessoas. Contraria o receio da inflação,<br />
pois a queixa actual é da falta dela, e lembra que os<br />
agricultores já beneficiam do sistema de compensação<br />
integral quando as suas culturas são atingidas<br />
por catástrofes naturais. E sublinha que “desde<br />
O RISCO É NÃO<br />
PERCEBER<br />
QUE UMA<br />
CRISE DESTAS<br />
DIMENSÕES<br />
ACARRETA<br />
UMA<br />
MUDANÇA,<br />
NÃO SE VOLTA<br />
AO MESMO<br />
UNSPLASH<br />
2008, bancos, companhias de seguros e mercados<br />
financeiros beneficiam de transferências orçamentais<br />
efectivas em muitos países que totalizam bem<br />
mais do que 25% do PIB. A diferença, neste caso, é<br />
que o desastre afecta todos os seres humanos, o que<br />
justifica uma compensação ainda maior. A única<br />
razão pela qual os governos em todo o mundo ainda<br />
raciocinam em termos de garantias de empréstimos<br />
e créditos, e não em termos de compensação orçamental<br />
directa, é porque nenhum lobby com interesses<br />
especiais, como os lobbies agrícola e bancário,<br />
pede, desta vez, assistência específica”. É inevitável<br />
que a crise de saúde pública desencadeie uma profunda<br />
recessão. Transmitiu-se com um impacto<br />
brutal à economia real, com paralisação da maior<br />
parte da actividade na Europa, primeiro, e Estados<br />
Unidos, depois, e os bancos centrais têm de arranjar<br />
forma de impedir que a crise também contagie<br />
fortemente o sistema financeiro. Há políticas económicas<br />
inéditas para sair da recessão. Para a maioria<br />
dos economistas, a prioridade é parar rapidamente<br />
a pandemia e reabilitar a economia, com políticas<br />
fiscais excepcionais e intervenções dos bancos centrais<br />
que garantam ao sistema financeiro liquidez<br />
suficiente para ocorrer à tesouraria das empresas.<br />
Muitos esperam que a pandemia termine para retomar<br />
os negócios — business as usual — e que, mais<br />
cedo ou mais tarde, a sociedade esquecerá os constrangimentos<br />
e os dramas destapados pela crise.<br />
Alguma coisa, porém, mudará. As cadeias de valor,<br />
de produção, logística e serviços, disseminadas pelo<br />
mundo, tenderão a encurtar, reforçando as tendências<br />
mais proteccionistas, como as protagonizadas pelo<br />
Presidente da principal potência mundial, Donald<br />
Trump. Ironicamente, a saída económica desta crise<br />
aconselha que os Estados Unidos e a China suspendam<br />
a guerra comercial, flexibilizando mesmo<br />
algumas das tarifas em vigor. Nos países em desenvolvimento,<br />
se o vírus aí se propagar com a intensidade<br />
com que o fez na China, Coreia do Sul, Japão e<br />
outros países asiáticos, Europa e Estados Unidos, a<br />
crise de saúde pública trará uma catástrofe humanitária<br />
ainda maior e muito mais dificuldades em<br />
tomar as medidas necessárias para reactivar as economias.<br />
A limitada capacidade destes países para<br />
emitir dívida em moeda nacional, tendo de concorrer<br />
à emissão em divisas fortes, constituirá um obstáculo<br />
ao endividamento necessário para responder<br />
a uma crise de saúde pública de tamanha dimensão.<br />
Sobreviver ao vírus e à gigantesca crise económica<br />
global que aí vem exige coordenação e cooperação<br />
sem precedentes à escala mundial, algo que dificilmente<br />
irá acontecer.b<br />
abril <strong>2020</strong> | 31
32 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 33
CAPA PANDEMIA<br />
PIETRO TOIGO: Ainda<br />
é cedo para os detalhes<br />
do apoio à economia,<br />
mas as coisas decorrem<br />
com muita rapidez<br />
BAD NA VANGUARDA<br />
DO COMBATE<br />
O Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) estará na vanguarda da resposta<br />
a uma recessão cavada pelo vírus, que atingirá profundamente áreas vitais da economia<br />
do continente, garante Pietro Toigo, que representa a instituição em Moçambique<br />
LUÍS FARIA<br />
34 | Exame Moçambique
P<br />
ietro Toigo, representante residente do<br />
Banco Africano de Desenvolvimento em<br />
Moçambique, alerta que a infecção pode<br />
espalhar-se de uma forma muito insidiosa,<br />
tendo feito colapsar os sistemas<br />
de saúde dos países avançados. A menor conectividade<br />
de África e as lições aprendidas com os países<br />
mais atingidos pelo surto podem, no entanto,<br />
“abrandar o alastrar da doença”.<br />
A doença COVID-19 está a entrar em cada vez<br />
mais nos países africanos. Pode prever-se<br />
um contágio em larga escala como na<br />
Europa, China e Sudoeste Asiático?<br />
É muito difícil de prever. A conectividade no continente<br />
africano é menos densa que na Europa ou<br />
na Ásia, o que pode abrandar o alastrar da doença.<br />
Algumas das lições aprendidas na Europa e na<br />
Ásia podem ser usadas no continente africano,<br />
e um grande número de governos africanos agiu<br />
rapidamente no sentido de implementar medidas<br />
mais restritivas que as de outros países na<br />
mesma fase da infecção. Em todo o caso, podemos<br />
verificar que a infecção pode espalhar-se de<br />
uma forma muito insidiosa e ultrapassar mesmo<br />
os sistemas de saúde dos países mais avançados.<br />
Quais os sistemas de saúde africanos com<br />
mais capacidade para enfrentar um surto<br />
do vírus?<br />
Não estou em posição de fornecer esse tipo de<br />
análise do sector da saúde.<br />
Existe algum tipo de apoio previsto, do<br />
Banco Africano de Desenvolvimento (BAD)<br />
ou algum organismo internacional, para a<br />
área da saúde, para fazer face a esta situação<br />
em África?<br />
É prematuro identificar qual seria a resposta mais<br />
eficaz em cada país — depende da natureza do<br />
impacto. Mas vários parceiros de desenvolvimento,<br />
especialmente aqueles com um histórico<br />
de trabalho em sistemas de saúde, já estão a trabalhar<br />
com governos e outros actores nos países<br />
afectados. É muito provável que, além de apoiarem<br />
os sistemas de saúde, os governos e as instituições<br />
financeiras de desenvolvimento tenham<br />
de implementar medidas para apoiar a economia,<br />
restaurar as cadeias de fornecimento e fornecer<br />
liquidez. Ainda é cedo, no momento em<br />
que falamos, para descrever os detalhes de um<br />
pacote abrangente, mas as coisas acontecem muito<br />
rapidamente.<br />
Que consequências terá o avanço da<br />
pandemia no continente nas economias<br />
africanas? Compromete projectos, reduz o<br />
investimento externo, conduz a uma recessão<br />
em alguns países? Além do impacto directo<br />
da doença, África vai sofrer o impacto da<br />
crise mundial, já reflectida na queda do preço<br />
das matérias-primas. É possível avaliar esse<br />
impacto?<br />
O impacto da pandemia nas economias industrializadas<br />
já é evidente, com várias delas a entrarem<br />
em recessão. É possível que algumas das economias<br />
africanas sejam fortemente atingidas, principalmente<br />
em consequência de uma ruptura nas<br />
cadeias de valor globais e uma queda na procura de<br />
mercadorias e serviços exportados do continente<br />
(incluindo o turismo). É provável que o impacto da<br />
segunda vaga na economia, mais do que o impacto<br />
directo da doença, represente desafios maiores para<br />
África. Os exportadores líquidos de matéria-prima<br />
“É POSSÍVEL QUE ALGUMAS<br />
DAS ECONOMIAS AFRICANAS<br />
SEJAM FORTEMENTE<br />
ATINGIDAS, PRINCIPALMENTE<br />
EM CONSEQUÊNCIA DE<br />
UMA RUPTURA NAS CADEIAS<br />
DE VALOR GLOBAIS”<br />
e, especialmente, os recursos minerais, verão reduzir-se<br />
o espaço fiscal; as interrupções na cadeia de<br />
fornecimento afectarão as empresas privadas e os<br />
projectos que dependem de inputs dos países afectados<br />
poderão sofrer atrasos na implementação.<br />
O Banco Africano de Desenvolvimento<br />
irá lançar acções específicas para apoiar<br />
financeiramente os países do continente face<br />
a uma recessão mundial?<br />
O presidente do BAD, Akinwumi Adesina, deixou<br />
claro que o BAD estará na vanguarda da resposta<br />
em África e trabalharemos em estreita colaboração<br />
com os países membros para criar o pacote mais<br />
eficaz para apoiar o sector público e privado numa<br />
rápida recuperação. Temos um histórico consistente<br />
de resposta rápida e eficaz à recessão global<br />
em 2008-2009, à crise do ébola na África Ocidental<br />
em 2014 e a uma série de desastres naturais que<br />
atingiram o continente, incluindo os ciclones Idai e<br />
Kenneth em Moçambique, Zimbabwe e Malawi. b<br />
abril <strong>2020</strong> | 35
CAPA PANDEMIA<br />
QUAL O<br />
IMPACTO<br />
DA COVID-19<br />
NA ECONOMIA?<br />
O crescimento económico é revisto em baixa,<br />
mas ainda ninguém prevê uma recessão<br />
em Moçambique. Só que o pessimismo reina<br />
entre os patrões, que já pedem um pacote<br />
de apoio inicial de 355 milhões de dólares<br />
para minimizar os danos, numa altura em que<br />
o real impacto da crise ainda está por calcular<br />
ADRIANO MALEIANE,<br />
COM O PRIMEIRO-MINISTRO:<br />
Para o ministro da Economia<br />
e Finanças, a forma de manter<br />
a economia a funcionar passa<br />
pela concessão de linhas de crédito<br />
LUÍS FONSECA *<br />
H<br />
á dois números que delimitam as<br />
expectativas do governo, revistas em<br />
baixa, para o crescimento económico<br />
de Moçambique este ano. A previsão<br />
de subida do produto interno bruto<br />
(PIB) era de 4,8% para <strong>2020</strong>, mas foi revista para<br />
2,2% num cenário pessimista e 3,8% num cenário<br />
optimista. O anúncio foi feito pelo ministro<br />
da Economia e Finanças, Adriano Maleiane, na<br />
última semana de Março. Segundo o governante,<br />
o impacto do abrandamento mundial será transversal<br />
a todos os sectores, da indústria extractiva à<br />
agricultura. “Alguns dos nossos importadores de<br />
madeira, algodão e camarão vão reduzir” as encomendas<br />
a Moçambique, exemplificou. Já para não<br />
falar da indústria extractiva. O sector do turismo<br />
também será dos sectores mais afectados: previa-<br />
-se um crescimento de 3%, agora revisto para 0,5%<br />
— para o primeiro trimestre de <strong>2020</strong> estava prevista<br />
a entrada de 500 mil turistas em Moçambique,<br />
mas o número fixou-se em 23 mil.<br />
O que fazer perante esta situação para minimizar<br />
os danos numa economia debilitada? A única<br />
forma de manter a economia a funcionar será concedendo<br />
linhas de crédito, disse Adriano Maleiane.<br />
Em linha com essa ideia, a pandemia provocada<br />
pelo novo coronavírus já tinha levado, dia antes, o<br />
banco central moçambicano a tomar várias medidas.<br />
36 | Exame Moçambique
TURISMO COM<br />
IMPACTO PROFUNDO<br />
O estudo da CTA refere que o turismo é o<br />
sector que irá apresentar maior desaceleração<br />
em <strong>2020</strong>, perdendo até um terço do<br />
volume de negócios, num cenário macroeconómico<br />
de desaceleração em que o crescimento<br />
económico deverá fixar-se entre<br />
2% a 2,3% — em linha com as previsões do<br />
governo. “É evidente que esta pandemia<br />
irá afectar todos segmentos da economia<br />
moçambicana, principalmente pelo facto de<br />
a economia nacional ser consideravelmente<br />
aberta ao resto do mundo e bastante vulnerável<br />
a choques externos”, nota a CTA. Por<br />
outro lado, “espera-se que o volume de investimento<br />
venha a ser afectado pela redução do<br />
fluxo de investimento directo estrangeiro ou<br />
pelo adiamento de iniciativas empresariais”.<br />
O governo moçambicano pediu aos parceiros<br />
internacionais um total de 700 milhões<br />
de dólares (653 milhões de euros) para fazer<br />
face ao impacto causado pela pandemia<br />
de COVID-19, anunciou o primeiro-ministro,<br />
“para a componente de saúde, prevenção<br />
e tratamento” — e ainda antes de ser<br />
conhecido o estudo da CTA. O governante<br />
especificou que, entre outros objectivos, o<br />
valor foi calculado para construir hospitais<br />
e cobrir o défice no Orçamento Geral do<br />
Estado, que poderá resultar da baixa captação<br />
de receitas.<br />
LUSA<br />
Foi anunciada a introdução de linhas de crédito em<br />
moeda estrangeira para os bancos, o relaxamento<br />
das condições de reestruturação dos créditos dos<br />
clientes bancários e a redução das reservas obrigatórias<br />
exigidas ao sistema bancário em moeda<br />
nacional (metical) e estrangeira.<br />
PATRÕES QUEREM SUSPENDER CONTRATOS<br />
A Confederação das Associações Económicas de<br />
Moçambique (CTA) sugere medidas mais musculadas.<br />
Os patrões defendem a suspensão dos<br />
contratos de trabalho durante seis meses, com<br />
substituição dos salários por subsídios, como forma<br />
de apoiar as empresas mais afectadas com a pandemia<br />
de COVID-19. O turismo, a aviação civil<br />
(à semelhança do que acontece em todo o mundo)<br />
e a agricultura serão os sectores em maior perigo,<br />
antecipa um estudo da principal associação patronal<br />
moçambicana. “Propõe-se a suspensão dos contratos<br />
de trabalho nestes sectores por um período<br />
de seis meses, sujeito a prorrogação dependendo<br />
da evolução da pandemia nos próximos meses.”<br />
A medida de suspensão de contratos (lay-off ) está<br />
prevista na lei, mas a novidade é que a Confederação<br />
defende, desta vez, que as empresas deixem<br />
de pagar os salários a 100%. “Para evitar os<br />
impactos sociais que esta medida pode acarretar,<br />
propõe-se a aprovação de um pacote de subsídio<br />
abril <strong>2020</strong> | 37
CAPA PANDEMIA<br />
aos trabalhadores” cobrindo toda a despesa salarial,<br />
o que pode ascender a 49 milhões de dólares.<br />
A CTA sugere “a mobilização de fundos, junto dos<br />
parceiros de cooperação, para a cobertura deste<br />
volume da massa salarial durante os seis meses<br />
do lay-off, de modo a assegurar a sobrevivência<br />
das empresas e a manutenção dos postos de trabalho<br />
e das condições de vida dos trabalhadores”.<br />
A instituição defende ainda medidas fiscais, aduaneiras<br />
e financeiras “aplicáveis a todos sectores<br />
económicos e que devem ser implementadas em<br />
função dos alertas do nível de gravidade do risco<br />
da pandemia da COVID-19”. No total, o “pacote de<br />
medidas imediatas a serem implementadas para os<br />
sectores prioritários”, proposto pela CTA, tem um<br />
custo de 355 milhões de dólares. O valor encontra-<br />
-se no meio da previsão de perdas totais do sector<br />
empresarial moçambicano, que oscila entre 212<br />
a 340 milhões de euros. As perspectivas traçadas<br />
no estudo foram obtidas através de entrevistas a<br />
118 empresas.<br />
ANALISTAS ESTRANGEIROS OSCILAM<br />
As revisões em baixa do PIB por parte do governo<br />
surgiram vinte dias depois de o Conselho de<br />
Ministros ter aprovado o Plano Quinquenal do<br />
governo por forma a ser discutido pelo Parlamento.<br />
No documento, antes de se prever o impacto da<br />
pandemia de COVID-19, o Executivo previa que a<br />
economia do país chegasse a 2024 com uma taxa de<br />
crescimento médio de 5,5%, contra os 2,2% registados<br />
em 2019, o valor mais baixo da última década.<br />
Entre as consultoras também há perspectivas mais<br />
pessimistas, outras mais optimistas.<br />
A consultora Economist Intelligence Unit (EIU),<br />
mais pessimista, alerta que o orçamento de Moçambique<br />
para este ano terá de ter “alterações significativas”.<br />
A pandemia surge numa altura em que se<br />
esperava “que os esforços de reconstrução depois<br />
dos dois ciclones de 2019 continuassem a dominar<br />
as decisões de política este ano”. No entanto,<br />
acrescenta, “apesar de esses esforços se manterem, a<br />
reduzida colecta fiscal e o abrandamento da actividade<br />
económica vai travar o ritmo da recuperação”.<br />
Os analistas chamam ainda a atenção para os<br />
atrasos na discussão e aprovação dos gastos para<br />
este ano devido às eleições do ano passado, considerando<br />
que “as deficiências operacionais das<br />
entidades públicas em Moçambique são estruturais,<br />
limitando a definição das políticas e o rumo<br />
das decisões e a capacidade de implementar reformas<br />
que fortaleçam a gestão financeira e melhorem<br />
o ambiente operacional”.<br />
CRESCIMENTO<br />
EM <strong>2020</strong><br />
4,8%<br />
PREVISÃO INICIAL<br />
2,2%<br />
CENÁRIO PESSIMISTA<br />
3,8%<br />
CENÁRIO OPTIMISTA<br />
Entre os efeitos da pandemia de COVID-19,<br />
a EIU lembra que as restrições às exportações a<br />
nível mundial “parecem cada vez mais prováveis”<br />
e aponta que este abrandamento no fluxo de bens e<br />
mercadorias “pode criar cortes nas cadeias de abastecimento<br />
das empresas moçambicanas”. Isto, por<br />
sua vez, “criaria restrições às importações de bens<br />
intermédios e de bens de consumo”, o que prejudicaria<br />
ainda mais as previsões de crescimento económico<br />
e de receita fiscal.<br />
Do lado mais optimista, a consultora espanhola<br />
FocusEconomics cortou em 0,5 pontos percentuais<br />
o crescimento económico previsto para Moçambique,<br />
antevendo ainda assim uma expansão de<br />
4,2% este ano — mais optimista que a melhor previsão<br />
do governo —, considerando que os investimentos<br />
no gás natural vão manter-se inalterados<br />
de modo a compensar os efeitos da pandemia.<br />
“A actividade económica deverá recuperar este ano,<br />
com o país a recuperar dos estragos dos ciclones<br />
do ano passado; as despesas de capital no sector<br />
do gás natural liquefeito também devem suportar<br />
o crescimento”, dizem os analistas. A FocusEconomics<br />
prevê que a inflação em Moçambique suba<br />
até 4,7% este ano, aumentando para 5,4% em 2021.<br />
GESTÃO PRUDENTE DAS<br />
FINANÇAS PÚBLICAS<br />
Alguns analistas locais revelam sentimentos de<br />
precaução e alerta: “A gestão prudente das finanças<br />
públicas é fundamental neste momento. Temos<br />
de gastar naquilo que é estritamente importante e<br />
garantir transparência, um elemento que tem faltado<br />
nos últimos tempos nas estratégias do governo”,<br />
declarou Celeste Banze, economista da organização<br />
não-governamental Centro de Integridade Pública<br />
(CIP). Jorge Matine, do Fórum de Monitoria do<br />
Orçamento (FMO), entende que todas as previsões<br />
de crescimento estão sujeitas a revisão e que o foco<br />
deve ser a contenção da pandemia. “Temos de reduzir<br />
a propagação e, se há casos registados em Maputo,<br />
temos de garantir que outras províncias não sejam<br />
afectadas.” Para o académico moçambicano Calton<br />
Cadeado, o impacto do encerramento de fronteiras<br />
como medida de prevenção da COVID-19 será mais<br />
acentuado em países menos desenvolvidos, como é o<br />
caso de Moçambique. “Moçambique é mais importador<br />
do que exportador e, obviamente, isso vai ter<br />
um impacto penoso. É verdade que todos os países<br />
vão sofrer, mas para nós será mais pesado porque<br />
nós não somos um país altamente industrializado<br />
e produtor do que consome”, afirmou. b<br />
* Trabalho especial da agência Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />
38 | Exame Moçambique
AS MEDIDAS DO GOVERNO<br />
Paula Rocha*<br />
Com a economia moçambicana “estagnada” nos últimos<br />
cinco anos — com algum crescimento apenas em torno dos<br />
megaprojectos —, o impacto da situação epidemiológica<br />
provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador<br />
da doença COVID-19, prevêm-se efeitos a longo prazo,<br />
adiando, novamente, o crescimento económico do país.<br />
O sector do turismo, sempre tão dependente do exterior,<br />
é já o primeiro a ressentir-se. Com o lockdown de vinte e<br />
um dias anunciado pelo Presidente da África do Sul, Cyril<br />
Ramaphosa, no dia 23 de Março, prevê-se uma redução na<br />
circulação de produtos e bens para o mercado nacional, com<br />
impactos e efeitos em cascata na economia moçambicana.<br />
A par do reforço das medidas para controlar o surto da<br />
doença do COVID-19, por parte das autoridades governamentais,<br />
destacam-se, também, algumas medidas visando<br />
mitigar o impacto económico da “nova” crise, que se avizinha<br />
(e se adivinha duradoura).<br />
Neste contexto, o governo aprovou recentemente o<br />
decreto que aprova o perdão total de multas e a redução<br />
de juros de mora — para o caso do pagamento integral da<br />
dívida e para o pagamento em prestações — resultantes<br />
das dívidas e contribuições ao Instituto Nacional de Segurança<br />
Social (INSS) por parte dos empregadores. Esta iniciativa<br />
visa, essencialmente, permitir aos trabalhadores e<br />
respectivos familiares poderem aceder aos benefícios da<br />
Segurança Social sem privações resultantes do incumprimento<br />
das respectivas obrigações por parte das entidades<br />
empregadoras.<br />
Quase que em paralelo, o conselho de administração do<br />
Banco de Moçambique deliberou a “introdução de uma<br />
linha de financiamento em moeda estrangeira para as instituições<br />
participantes no Mercado Cambial Interbancário,<br />
no montante global de 500 milhões de dólares, por um<br />
período de nove meses”, a partir de 23 de Março de <strong>2020</strong>;<br />
foi ainda autorizada “a não constituição de provisões adicionais<br />
pelas instituições de crédito e sociedades financeiras<br />
nos casos de renegociação dos termos e condições<br />
dos empréstimos, antes do seu vencimento, para os clientes<br />
afectados pela pandemia”.<br />
O Banco de Moçambique justificou estas medidas com a<br />
necessidade de “disponibilizar liquidez em moeda estrangeira<br />
e em moeda nacional para apoiar as empresas e as<br />
famílias a honrarem os seus compromissos, na sequência<br />
do agravamento dos riscos decorrentes dos impactos<br />
macroeconómicos”.<br />
Ao nível migratório, numa comunicação à nação, o Presidente<br />
da República, Filipe Nyusi, anunciou a suspensão<br />
da emissão de vistos de entrada em Moçambique e o cancelamento<br />
de todos os vistos já emitidos.<br />
Entretanto, em comunicado datado de 26 de Março de<br />
<strong>2020</strong>, e em consequência do cancelamento de voos por<br />
diversas companhias aéreas, impossibilitando os cidadãos<br />
estrangeiros de cumprirem os deveres previstos no Regime<br />
Jurídico do Cidadão Estrangeiro em Moçambique, foram instadas<br />
todas as Direcções Provinciais de Migração a receberem,<br />
a título excepcional, pedidos de prorrogação de vistos,<br />
nas seguintes situações: estrangeiros com vistos de negócio,<br />
visitante e turismo que atingiram o limite máximo de<br />
prorrogação previsto na lei; estrangeiros com autorização<br />
de trabalho de curta duração, cujos vistos tenham expirado;<br />
estrangeiros que entraram no país mediante visto de<br />
fronteira, que se sabe é improrrogável, e que já atingiram<br />
os trinta dias de permanência no país.<br />
Aos cidadãos estrangeiros titulares de Autorização de<br />
Residência que se encontram fora do país será permitida a<br />
renovação dos vulgo “DIRE” quando regressarem, desde<br />
que provem que não conseguiram regressar ao país antes<br />
da caducidade daquele documento devido às restrições<br />
decorrentes da pandemia da COVID-19.<br />
A nível judiciário, o Tribunal Supremo também aprovou,<br />
a 23 de Março de <strong>2020</strong>, um conjunto de medidas, sendo<br />
de destacar as seguintes recomendações: a realização de<br />
audiências com a presença das partes, advogados, testemunhas,<br />
declarantes ou outros intervenientes processuais;<br />
a não marcação de julgamentos de vários processos para<br />
a mesma hora; a não entrada simultânea de partes processuais<br />
para as salas de audiência, para julgamentos marcados<br />
para momentos diferentes.<br />
No que respeita à situação migratória, que tantas questões<br />
tem levantado aos trabalhadores expatriados e às empresas,<br />
informação conflituante não permite à data confirmar<br />
as medidas para a renovação de vistos e autorizações de<br />
residência de estrangeiros que estejam em Moçambique.<br />
É expectável que, a breve trecho, esta situação venha a ser<br />
tratada, tendo em conta o actual contexto do encerramento<br />
de fronteiras e da indisponibilidade de voos face à pandemia,<br />
por período ainda imprevisível.<br />
A 1 de <strong>Abril</strong> o Presidente de Moçambique decretou o<br />
estado de emergência por trinta dias.<br />
*Partner da HRA — ADVOGADOS<br />
abril <strong>2020</strong> | 39
CAPA PANDEMIA<br />
GÁS NATURAL:<br />
As operadoras reduzem<br />
despesas de capital<br />
TOTAL<br />
CONFIANTE,<br />
ENI<br />
E EXXON<br />
ADIAM<br />
RESPOSTAS<br />
Operadoras da Área 4<br />
de Moçambique anunciam revisão<br />
de investimentos, numa altura<br />
em que ainda está por anunciar<br />
a decisão final de investimento<br />
no projecto onshore<br />
LUÍS FONSECA *<br />
A<br />
s expectativas de crescimento e desenvolvimento<br />
de Moçambique assentam,<br />
sobretudo, nos megaprojectos<br />
de gás natural da bacia do Rovuma,<br />
no Norte do país. Mas até que ponto<br />
estes poderão ser retardados ou mitigados devido<br />
à pandemia da COVID-19 e à guerra de preços do<br />
petróleo? As petrolíferas dão dois tipos de respostas.<br />
A francesa Total mantém 2024 como o ano<br />
de início da produção, apesar das incertezas que<br />
a COVID-19 e o baixo preço do petróleo estão a<br />
provocar. “É difícil prever o curso dos acontecimentos,<br />
mas até hoje continuamos dentro dos prazos<br />
para fazer a entrega do primeiro carregamento<br />
40 | Exame Moçambique
de GNL (gás natural liquefeito) em 2024”, referiu<br />
fonte oficial da Total em Moçambique. A declaração<br />
surge mesmo depois de o director executivo<br />
da empresa, Patrick Pouyanné, ter anunciado um<br />
corte de um quinto nas despesas de investimento<br />
para este ano, assim como reduções nos custos<br />
operacionais.<br />
Em Moçambique, a Total diz-se “muito empenhada<br />
em impedir que a COVID-19 chegue ao<br />
projecto na península de Afungi e às comunidades<br />
circunvizinhas” das obras de construção do megaprojecto<br />
de exploração da Área 1 de gás natural —<br />
várias infra-estruturas já estão edificadas ou em<br />
funcionamento, como é o caso da pista de aviação<br />
do complexo de obras.<br />
A ENI DARÁ ESTE MÊS DETALHES<br />
SOBRE A REVISÃO DO PLANO<br />
DE NEGÓCIOS E OS PROJECTOS<br />
AFECTADOS<br />
Por outro lado, as petrolíferas Eni e ExxonMobil<br />
adiam respostas. “Mais detalhes sobre a revisão<br />
do plano de negócios e os projectos afectados<br />
estarão disponíveis no final de <strong>Abril</strong>, na apresentação<br />
trimestral” sobre a actividade e resultados<br />
da empresa, disse fonte da petrolífera italiana Eni<br />
quando questionada sobre as implicações para<br />
Moçambique. Claudio Descalzi, director executivo<br />
da Eni, anunciou cortes nas despesas de capital<br />
de <strong>2020</strong> e 2021, menos um quarto do previsto<br />
este ano e um corte de um terço no próximo ano.<br />
Os projectos em causa “estão relacionados principalmente<br />
com as actividades a montante [upstream],<br />
em particular a produção, optimização<br />
e desenvolvimento de novos projectos programados<br />
para começar a curto prazo”, referiu o<br />
CEO, sem mais pormenores. Mas um dos projectos<br />
de upstream que está previsto para 2022 é<br />
o início da exploração das reservas de gás Coral<br />
Sul, através de uma plataforma flutuante offshore<br />
(em mar alto).<br />
O parceiro da Eni na Área 4 de exploração de<br />
gás natural em Moçambique tem uma posição<br />
semelhante. “Com base neste contexto sem precedentes,<br />
estamos a avaliar todas as medidas apropriadas<br />
para reduzir significativamente as despesas<br />
de capital e operacionais no curto prazo”, disse,<br />
na segunda quinzena de Março, Darren Woods,<br />
presidente e director executivo da ExxonMobil.<br />
Questionada sobre eventuais impactos nos prazos<br />
previstos para anunciar uma decisão final de<br />
investimento em Moçambique, que estava prevista<br />
para este ano, fonte da empresa disse que,<br />
por princípio, a firma “não especula sobre os prazos”.<br />
“O projecto Rovuma LNG é complexo e levará<br />
vários anos para ser desenvolvido”, referiu, acrescentando<br />
que a ExxonMobil “tem em vigor protocolos<br />
de emergência e segurança para mitigar<br />
riscos numa variedade de cenários, incluindo os<br />
desafios globais da COVID-19”. Neste momento,<br />
“o foco é a saúde e a segurança do pessoal”.<br />
ANALISTAS ALERTAM PARA<br />
TENSÕES ACRESCIDAS<br />
O departamento de estudos do banco sul-africano<br />
Standard Bank considera que, em relação a<br />
Moçambique, a pandemia vai provavelmente pressionar<br />
a balança de pagamentos devido aos baixos<br />
preços das matérias-primas e possivelmente<br />
adiar a implementação dos projectos de gás natural.<br />
A consultora Fitch Solutions acrescenta que há<br />
outros factores negativos a ter em conta, mesmo<br />
antes da COVID-19: a perspectiva de evolução dos<br />
investimentos no sector do gás natural liquefeito<br />
em Moçambique “começa a perder brilho” devido<br />
à corrupção e ao aumento dos ataques de militantes.<br />
Na nota, com o título “Clima de Investimento<br />
no GNL de Moçambique começa a ficar negro”,<br />
enviada aos investidores, escreve-se que “o aumento<br />
do número de ataques na província de Cabo Delgado<br />
aumenta o risco dos grandes investimentos<br />
no sector”, com 2019 a registar “uma subida significativa<br />
do número de ataques” por parte de grupos<br />
insurgentes.<br />
A FRANCESA TOTAL MANTÉM<br />
2024 COMO O ANO DE INÍCIO<br />
DA PRODUÇÃO<br />
Para a Fitch Solutions, esta não é uma situação<br />
decorrente da actual pandemia de coronavírus:<br />
“Mesmo antes dos impactos mundiais da COVID-<br />
19 e do colapso do acordo da Organização dos Países<br />
Exportadores de Petróleo (OPEP), os ataques<br />
no Norte de Moçambique já tinham vindo a progredir.”<br />
O problema, sublinha, é que, agora, com<br />
a descida do preço do petróleo e a perspectiva de<br />
manutenção dos preços baixos, os projectos ficam<br />
menos rentáveis, o que pode afectar as decisões<br />
finais de investimento que ainda não foram tomadas<br />
— no caso, do projecto onshore da Área 4. b<br />
* Rrabalho especial da agência Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />
abril <strong>2020</strong> | 41
CAPA PANDEMIA<br />
PANDEMIA<br />
ACENTUA<br />
COMPETIÇÃO<br />
GLOBAL<br />
Para Harold James, professor<br />
na Universidade de Princeton<br />
e especialista em História da<br />
Economia, a pandemia acentua<br />
a competição entre sistemas<br />
políticos rivais e poderá impor<br />
retrocessos ao processo<br />
de globalização<br />
FABIANE STEFANO<br />
O<br />
historiador económico britânico<br />
Harold James, professor na Universidade<br />
de Princeton, acredita que a<br />
fase mais aguda da crise do coronavírus<br />
apenas tem destacado uma competição<br />
entre sistemas políticos rivais. Países ricos,<br />
como a Itália e os Estados Unidos, têm falhado na<br />
contenção da propagação do vírus. A China tem<br />
obtido bons resultados em função justamente do<br />
regime autoritário. Para Harold James, por ora a<br />
Coreia do Sul é o país que tem dado a resposta mais<br />
efectiva no combate à pandemia.<br />
James também alerta para os riscos de retrocesso<br />
na globalização. “Estamos a ver um recuo no processo<br />
de globalização, o qual já ocorre há algum<br />
tempo. Com o surto, acredito que esse movimento<br />
se intensifique”, diz o historiador.<br />
HAROLD JAMES,<br />
DE PRINCENTON:<br />
“A crise também deve<br />
dar um forte impulso<br />
à tendência existente<br />
de maior recurso<br />
à telemedicina”<br />
42 | Exame Moçambique
O surto de coronavírus está a alimentar uma reacção<br />
contra a globalização? Quais são as possíveis<br />
consequências?<br />
Estamos, de facto, a assistir a um recuo no processo<br />
de globalização, o qual já ocorre há algum tempo.<br />
É óbvio para todos que a propagação do vírus está<br />
ligada à mobilidade, e os esforços iniciais de contenção<br />
limitam a mobilidade, com proibições de<br />
viagens nos países e entre países. Com o surto, acredito<br />
que esse movimento antiglobalização se intensifique.<br />
Mas os principais efeitos no longo prazo<br />
estão principalmente relacionados com a psicologia<br />
política: a epidemia já gerou uma discussão sobre<br />
se pode ter sido causada pelos governos. Circulam<br />
rumores de que os chineses — ou, noutra versão, os<br />
norte-americanos — estão a utilizar a doença para<br />
enfraquecer ou destruir os seus rivais. Não acredito<br />
que exista base factual para nenhuma dessas<br />
reivindicações, mas, quanto mais o vírus se espalhar,<br />
mais interpretações estranhas proliferarão.<br />
Agora que o coronavírus ganhou proporções verdadeiramente<br />
globais, como analisa o momento<br />
actual?<br />
A fase mais aguda da crise destacou a extensão da<br />
competição entre sistemas políticos rivais. A China,<br />
com uma abordagem mais autoritária, pode lidar<br />
melhor com a pandemia? Portanto, a resposta mais<br />
emblemática para os regimes democráticos é a da<br />
Coreia do Sul.<br />
Outros países, nomeadamente a Itália, mas também<br />
o Reino Unido e os Estados Unidos, têm visivelmente<br />
falhado na tentativa de fornecer simples<br />
testes, os quais, é cada vez mais evidente, constituem<br />
uma ferramenta importante para gerir a contenção<br />
e o isolamento.<br />
A estratégia da China para conter o surto de coronavírus<br />
impôs um forte controlo sobre a sociedade,<br />
fechando cidades e colocando cidadãos em<br />
quarentena. O mundo passou a ver a China como<br />
um poder organizado para enfrentar qualquer<br />
tipo de crise ou continua a vê-la como o mesmo<br />
velho país comunista e autoritário?<br />
As evidências dos últimos dias sugerem que a<br />
China teve bastante sucesso em conter o avanço da<br />
doença. Os extensos controlos e o sistema de monitorização<br />
da população (que cruza dados do histórico<br />
de saúde do cidadão e verifica se há infectados<br />
entre os seus conhecimentos) são notavelmente<br />
sofisticados e bem-sucedidos. Se mesmo assim a<br />
China for seriamente atingida a longo prazo e se<br />
houver a percepção de que as autoridades não responderam<br />
adequadamente, não é irrealista prever<br />
desafios muito maiores para o regime e a sua legitimidade.<br />
Mas até agora, pelo menos, os controlos<br />
sociais da China parecem mais eficazes do que os<br />
sistemas de saúde bastante caóticos e visivelmente<br />
sobrecarregados de outros países. Isto quase certamente<br />
levará muitos outros países a quererem<br />
imitar a China — embora, provavelmente, não na<br />
Europa, onde há preocupações muito maiores com<br />
a privacidade. Mas espero que a crise produza um<br />
debate bastante amplo sobre a recolha (e a utilização<br />
e disseminação) de dados respeitantes à saúde<br />
e outros dados pelos governos.<br />
As contracções da actividade industrial na China<br />
estão a ser sentidas em todo o mundo, reflectindo<br />
o papel crescente da China nas cadeias de<br />
fornecimento e commodities. A China pode perder<br />
a participação no comércio global devido à<br />
crise de saúde pública?<br />
O efeito do vírus é perturbador, mas de curta duração.<br />
No entanto, muitos fabricantes terão consequências:<br />
com o receio de aumentar a probabilidade de<br />
eventos semelhantes no futuro não querem depender<br />
de cadeias de fornecimento longas e distantes.<br />
Os danos no turismo podem ser de longo prazo<br />
— imagino que muitas pessoas não desejem correr<br />
o risco de serem confinadas obrigatoriamente<br />
em navios de cruzeiro de alto risco. Mas os hotéis<br />
e companhias aéreas também podem sofrer um<br />
longo impacto, porque o vírus muda a percepção<br />
de longo prazo do que é um risco aceitável.<br />
Já antes da crise do coronavírus o Presidente<br />
Donald Trump exigia que as empresas multinacionais<br />
abandonassem a China e produzissem<br />
os seus produtos em fábricas norte-americanas.<br />
Este movimento aumentará e mais países<br />
adoptarão a mesma iniciativa?<br />
Sim, os argumentos para encurtar as cadeias de<br />
fornecimento já existiam antes de Trump — o que<br />
também representa as possibilidades tecnológicas<br />
de processos de produção difusos. Admito que a<br />
tendência prossiga e se intensifique.<br />
Espera que os políticos e partidos populistas<br />
dêem mais ênfase aos argumentos contra a<br />
imigração?<br />
Certamente farão esse apelo. Até que ponto é politicamente<br />
atraente e bem-sucedido? Isso dependerá<br />
da bondade, maior ou menor, do julgamento que<br />
se fizer sobre o modo como as autoridades geriram<br />
a crise. b<br />
abril <strong>2020</strong> | 43
ECONOMIA DESNUTRIÇÃO<br />
UM ENTRAVE AO<br />
DESENVOLVIMENTO<br />
FAO<br />
Os resultados do estudo “Custo da Fome” revelam que 43,1%<br />
das crianças em Moçambique sofrem de desnutrição crónica,<br />
a qual representa para o país uma perda anual de cerca<br />
de 1,6 mil milhões de dólares<br />
VALDO MLHONGO<br />
Cerca de 1,6 mil milhões de dólares é<br />
o valor que o país perde anualmente<br />
devido à desnutrição crónica infantil,<br />
revela à <strong>EXAME</strong> Felicidade Panguene,<br />
especialista da Organização das Nações<br />
Unidas para Alimentação e Agricultura<br />
(FAO) para a área da nutrição. Ao nível da<br />
produtividade, a situação é preocupante.<br />
Um estudo recente, intitulado “Custo da<br />
Fome em Moçambique”, mostra que, só em<br />
2015, cerca de 62 mil milhões de meticais<br />
(10% do PIB) foram perdidos pela economia<br />
em resultado da desnutrição infantil.<br />
A maior fatia deste custo é a perda da<br />
produtividade potencial como resultado<br />
da mortalidade relacionada com a desnutrição<br />
(9,4% do PIB), seguindo-se a saúde<br />
(1,27%) e a educação (0,29%). O estudo<br />
“Custo da Fome em Moçambique”, que<br />
contou com o envolvimento de técnicos<br />
dos sectores da saúde, educação, agricultura,<br />
pesca, estatísticas (INE), protecção<br />
social, economia e finanças, coordenado<br />
pelo Secretariado Técnico de Segurança<br />
Alimentar e Nutricional (SETSAN), concluiu<br />
que cerca de 1 441 940 horas de trabalho<br />
foram perdidas em 2015 devido à<br />
ausência da força de trabalho em resultado<br />
do aumento da mortalidade infantil<br />
ligada à desnutrição crónica. “Isto representou<br />
29,6 mil milhões de meticais, 5,2%<br />
do PIB do país”, apontam os técnicos que<br />
efectuaram o estudo. “É muito dinheiro<br />
que o país perde para fazer frente às diferentes<br />
necessidades de desenvolvimento”,<br />
salienta a especialista da FAO para a área<br />
da nutrição. Em sectores como a agricultura,<br />
é ainda mais claro o enorme entrave<br />
que a desnutrição crónica representa para<br />
o seu desenvolvimento. “A força de trabalho<br />
é limitada e debilitada, obstruindo<br />
aumentos de produção e produtividade,<br />
comercialização e oferta competitiva de<br />
produtos nacionais.” Uma das soluções<br />
para reduzir a desnutrição crónica, refere<br />
a especialista da FAO, passa por adoptar<br />
políticas, regulamentos e padrões alimentares,<br />
que priorizam a disponibilidade e<br />
acessibilidade a alimentos seguros e nutritivos.<br />
“Precisamos de investigação para<br />
providenciar aconselhamento científico<br />
e novas tecnologias. Precisamos de um<br />
sector privado robusto que possa influenciar<br />
positivamente a indústria do sector<br />
alimentar, adaptando os seus produtos às<br />
recomendações nutricionais. Finalmente,<br />
e muito importante, todos nós, indivíduos<br />
e famílias, enquanto consumidores, devemos<br />
melhorar as nossas escolhas e adoptar<br />
padrões alimentares saudáveis.”<br />
FELICIDADE<br />
PANGUENE, DA FAO:<br />
A desnutrição infantil<br />
traduz-se numa perda<br />
anual muito elevada<br />
IMPACTO NA ECONOMIA<br />
Num país caracterizado por consecutivos<br />
choques, como a estiagem, ciclones, inundações<br />
e pragas, os desafios no que respeita<br />
ao acesso à alimentação são enormes.<br />
O estudo que temos vindo a citar revela<br />
que, dos quase 14 milhões de pessoas envolvidas<br />
em actividades manuais, 4 milhões<br />
sofreram de desnutrição crónica na infância.<br />
Um número que, segundo o estudo,<br />
representou uma perda anual no seu potencial<br />
rendimento devido à baixa produtividade,<br />
que ultrapassou os 5,2 mil milhões<br />
de meticais. Os resultados dos últimos<br />
cinco anos do estágio da fome em Moçambique,<br />
resumidos em mais de 60 páginas,<br />
indicam ainda que 612 816 pessoas envolvidas<br />
em actividades não manuais também<br />
sofreram de desnutrição crónica na<br />
infância. “As perdas anuais estimadas de<br />
produtividade para este grupo são de 18<br />
mil milhões de meticais.” A desnutrição<br />
44 | Exame Moçambique
crónica conduz a perdas significativas no<br />
potencial humano e económico. O Banco<br />
Mundial estima que as crianças desnutridas<br />
correm o risco de perderem cerca de 10%<br />
do seu potencial rendimento durante toda<br />
a vida, afectando assim a produtividade<br />
nacional. Katia Dias, directora nacional<br />
da Global Aliança de Nutrição (GAIN),<br />
não receia afirmar que o país está com o<br />
futuro hipotecado. “A nossa taxa de desnutrição<br />
crónica não mudou quase nada<br />
nos últimos vinte anos. Mexeu apenas<br />
1%”, argumentou a directora nacional da<br />
GAIN. O importante agora, refere Katia<br />
Dias, é cortar esta prevalência e garantir<br />
que as próximas gerações não sofram<br />
com a desnutrição crónica. Até porque<br />
as projecções demográficas indicam que<br />
nos próximos trinta anos Moçambique<br />
A DESNUTRIÇÃO<br />
CRÓNICA CONDUZ A<br />
PERDAS SIGNIFICATIVAS<br />
NO POTENCIAL HUMANO<br />
E ECONÓMICO<br />
irá passar dos actuais 29 milhões para 80<br />
milhões de habitantes. “Neste momento,<br />
os nossos sistemas alimentares ainda não<br />
estão afinados para responderem sequer às<br />
necessidades de 29 milhões de habitantes”,<br />
refere Katia Dias. “Se não investirmos na<br />
redução da desnutrição crónica continuaremos<br />
a ter mortes prematuras e elevadas<br />
percentagens da população que não estarão<br />
aptas para contribuir de forma plena<br />
para o desenvolvimento do país. Continuaremos<br />
a ter perdas acentuadas em termos<br />
económicos no potencial produtivo<br />
nacional”, advertiu Felicidade Panguene.<br />
UMA LUTA DE TODOS<br />
Para a especialista da FAO em nutrição,<br />
a insegurança alimentar deve ser atacada<br />
numa vertente multissectorial. “Todos os<br />
sectores têm uma contribuição a dar para<br />
que o alimento esteja disponível e acessível<br />
a todo o momento para todos os segmentos<br />
da população. A agricultura, a indústria,<br />
o comércio, a educação, a saúde, os<br />
transportes, as estradas... devem trabalhar<br />
de mãos dadas para alcançar a segurança<br />
alimentar e nutricional”, frisou. Dados<br />
abril <strong>2020</strong> | 45
ECONOMIA DESNUTRIÇÃO<br />
da Plataforma da Sociedade Civil para o<br />
Movimento Scaling Up, uma rede de ONG<br />
que luta para garantir a segurança alimentar<br />
e combate todas as formas de malnutrição,<br />
indicam que, entre 2010 e 2019, apenas<br />
0,013% do Orçamento do Estado foi afectado<br />
à implementação do Plano de Acção<br />
Multissectorial para a Redução da Desnutrição<br />
Crónica (PAMRDC). O Banco Mundial,<br />
por sua vez, recomenda o investimento<br />
de cerca de 10 dólares (620 meticais) por<br />
cada criança menor de 5 anos, um valor que<br />
corresponderia a 1,1% do Orçamento do<br />
Estado. O cenário é preocupante e implica<br />
grandes desafios. No capítulo dos passos a<br />
seguir, o estudo recomenda a “coordenação,<br />
financiamento e monitoria de programas<br />
de segurança alimentar e nutricional<br />
em áreas específicas, o que requer compromissos<br />
por parte do governo, dos parceiros<br />
do sector privado e da sociedade civil,<br />
e tomada de decisões em termos de planificação<br />
e acompanhamento de todas as<br />
intervenções de segurança alimentar nutricional<br />
em Moçambique”. Mas nem tudo<br />
está perdido neste combate à desnutrição.<br />
Da parte do governo existe um com-<br />
PERDAS<br />
1,6 MILHÕES DE DÓLARES<br />
O valor que o país perde anualmente<br />
devido à desnutrição crónica infantil<br />
62 MIL MILHÕES DE METICAIS<br />
Foram perdidos pela economia em 2015<br />
devido à desnutrição infantil<br />
5,2 MIL MILHÕES DE METICAIS<br />
Foi o que se perdeu em 2015 no potencial<br />
de rendimento de 4 milhões de pessoas<br />
envolvidas em trabalhos manuais devido<br />
a desnutrição crónica na infância<br />
18 MIL MILHÕES DE METICAIS<br />
Foi o que se perdeu em produtividade<br />
das pessoas envolvidas em actividades<br />
não manuais<br />
“A NOSSA TAXA DE<br />
DESNUTRIÇÃO CRÓNICA<br />
NÃO MUDOU QUASE<br />
NADA NOS ÚLTIMOS<br />
VINTE ANOS”<br />
Katia Dias, directora nacional do GAIN<br />
promisso grande para reduzir os índices<br />
elevados da desnutrição crónica ao nível<br />
do país, e tal é visto como alta prioridade.<br />
No seu discurso de posse, o Presidente da<br />
República, Filipe Jacinto Nyusi, foi categórico<br />
ao identificar o combate à pobreza<br />
como emergência nacional, e assumir a<br />
segurança alimentar e o combate à desnutrição<br />
crónica como pilares da sua governação.<br />
“Neste quinquénio iremos primar<br />
por um sector agrário diversificado, competitivo<br />
e sustentável, que contribua para a<br />
segurança alimentar e a redução dos índices<br />
de desnutrição crónica. Queremos dar<br />
passos decisivos rumo àquilo a que chamamos<br />
fome zero”, referiu o Presidente. b<br />
FAO<br />
ALIMENTAÇÃO:<br />
Padrões saudáveis são<br />
indispensáveis para<br />
combater a desnutrição<br />
crónica<br />
46 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 47
OIL<br />
& GAS<br />
LUÍS FARIA<br />
PUTIN E<br />
MOHAMMAD BIN<br />
SALMAN: Rússia<br />
e Arábia Saudita<br />
não se entendem<br />
PETRÓLEO<br />
PREÇOS COLAPSAM<br />
D.R<br />
Com a crise do coronavírus a alastrar pelo<br />
mundo e a contagiar os mercados, a Arábia<br />
Saudita e os restantes membros da OPEP<br />
propuseram ao seu maior aliado exterior à<br />
organização, a Rússia, que se retirassem do<br />
mercado, diariamente, mais 1,5 milhões de<br />
barris de petróleo. No início de 2017, a Organização<br />
dos Países Produtores de Petróleo e<br />
10 outros países produtores, com a Rússia,<br />
o segundo maior produtor a seguir à Arábia<br />
Saudita, à cabeça, já haviam decidido um<br />
corte na produção diária da matéria-prima<br />
de 1,2 milhões barris, que foi aumentado no<br />
passado mês de Dezembro em 500 mil barris,<br />
a que se acrescentaram ainda 400 mil<br />
retirados do mercado individualmente pela<br />
Arábia Saudita. Mas, mesmo com estes ajustamentos,<br />
a oferta continuava a ser excedentária,<br />
receando-se que o impacto no<br />
mercado da epidemia COVID-19 pudesse<br />
atirar o valor da matéria-prima para níveis<br />
muito baixos, com o mês de Janeiro a representar<br />
já um movimento de descida. Esperava-se<br />
um novo entendimento do grupo que<br />
reúne os 13 membros da OPEP e 10 produtores<br />
não alinhados. Pelo que o anúncio, a<br />
6 de Março, de que não havia acordo quanto<br />
a novo corte surpreendeu. De seguida,<br />
a Arábia Saudita optou por uma guerra<br />
de preços, já ensaiada entre 2014 e 2016.<br />
O preço do barril de Brent desabou dia<br />
9 de Março para o patamar dos 34 dólares,<br />
a maior queda diária em onze anos. A anterior<br />
tentativa para derrubar a produção de<br />
petróleo de xisto norte-americana não resultou<br />
e os orçamentos dos países produtores<br />
dependem muito da receita de exportação<br />
da matéria-prima.<br />
Tombo do Brent<br />
Arábia Saudita e Rússia não se entenderam<br />
66,25 65,37 64 63,21 53,96 57,75 51,9 34,36<br />
59,51 54,01 54,95 45,27 38,39<br />
2<br />
Jan<br />
9<br />
Jan<br />
15<br />
Jan<br />
USD/Barril<br />
Fonte: Investing.<br />
22<br />
Jan<br />
28<br />
Jan<br />
4<br />
Fev<br />
11<br />
Fev<br />
18<br />
Fev<br />
25<br />
Fev<br />
2<br />
Mar<br />
6<br />
Mar<br />
9<br />
Mar<br />
11<br />
Mar<br />
48 | Exame Moçambique
GÁS<br />
PROCURA DUPLICA ATÉ 2040<br />
A Shell prevê que a procura global<br />
por gás natural liquefeito duplique<br />
para 700 milhões de toneladas até<br />
2040. Para isso contribuirão dois factores:<br />
o aumento da procura asiática<br />
e a busca por energias mais limpas.<br />
Para a companhia, o gás terá um<br />
papel relevante numa economia de<br />
baixo carbono. A previsão é de que<br />
cerca de 80% do crescimento da<br />
procura global por energia se dirija<br />
para o gás e as fontes renováveis.<br />
A Shell acredita que o gás natural<br />
liquefeito será uma das respostas<br />
ao aumento da procura global por<br />
energia nas próximas décadas, com<br />
a China a duplicar a sua utilização<br />
desta fonte de energia.<br />
“O mercado global de LNG continuou<br />
a evoluir em 2019, com a<br />
procura crescente por LNG e gás<br />
natural nos sectores da energia<br />
e não energia”, disse Maarten Wetselaar,<br />
que lidera a área do gás e<br />
novas energias da Shell, citado pelo<br />
Financial Times. “Os investimentos<br />
recordes em suprimentos corresponderão<br />
às crescentes necessidades<br />
das pessoas pelo combustível fóssil<br />
mais flexível e de queima mais<br />
limpa”, acrescentou o responsável<br />
da Shell. A empresa investiu significativamente<br />
em infra-estruturas<br />
de gás natural nos últimos anos.<br />
Embora seja contestado por grupos<br />
ambientalistas, o gás liberta<br />
menos emissões que o petróleo e<br />
o carvão e a Shell está convencida<br />
que será uma fonte indispensável<br />
tendo em conta o aumento da procura<br />
induzido pela crescente electrificação.<br />
MERCADO: O preço do LNG russo conquista<br />
o mercado europeu<br />
Exportação Russa de LNG<br />
A Rússia já é a segunda maior exportadora<br />
para o mercado europeu<br />
(milhões/tons)<br />
Fonte: Platts.<br />
7<br />
2018 2019<br />
16<br />
Gás Desce<br />
Os futuros de gás natural só estremeceram com o abalo do preço do petróleo<br />
(USD/MMBtu)<br />
11<br />
Fev<br />
Fonte: Investing.<br />
19<br />
Fev<br />
28<br />
Fev<br />
LNG: A Shell prevê um<br />
grande crescimento da<br />
procura de gás natural<br />
1,768 1,955 1,684 1,708 1,934<br />
6<br />
Mar<br />
11<br />
Mar<br />
PREÇOS<br />
LNG RUSSO AVANÇA NA EUROPA<br />
A Rússia, que afirma ter fundos para aguentar uma guerra<br />
de preços no petróleo, avança decididamente no mercado<br />
europeu. O Petroleum Economist nota que, no último ano, a<br />
Rússia tornou-se a segunda fornecedora de LNG à Europa,<br />
ultrapassando a Nigéria e pressionando outros fornecedores-chave,<br />
como a Argélia. “O custo do LNG russo na Europa<br />
é dos mais baixos do mundo. Pode chegar à Europa abaixo<br />
de 2 dólares/mn Btu”, afirma Samer Mosis, analista sénior na<br />
área do LNG da S&P Global Platts, citado pelo Petroleum Economist.<br />
Em 2018 a Rússia exportou para a Europa 7 milhões<br />
de toneladas de LNG. No último ano as exportações russas<br />
atingiram os 16 milhões, valor que fica apenas atrás do registado<br />
pelo Qatar, que exportou 21 milhões, e à frente do gás<br />
não convencional norte-americano (12 milhões). A quota conseguida<br />
pelos norte-americanos preocupa a Rússia e outros<br />
fornecedores. Enquanto produtora de petróleo, a Rússia tem<br />
capacidade de actuar sobre o preço da matéria-prima, o qual,<br />
quando baixa de 50 dólares por barril, põe em causa a viabilidade<br />
da exploração não convencional de petróleo e gás<br />
dos Estados Unidos. Com o aperfeiçoamento da tecnologia<br />
de fracking a produção norte-americana mostra-se capaz<br />
de resistir a preços cada vez mais baixos.<br />
abril <strong>2020</strong> | 49
NEGÓCIOS EMPREENDEDORISMO<br />
ENTRE DUAS<br />
ACTIVIDADES CRIATIVAS<br />
Em 2015 aventurou-se num negócio de venda de flores. Hoje, Josefa Massinga<br />
faz a decoração de todo o tipo de eventos e só pensa em crescer<br />
VALDO MLHONGO<br />
Foi por influência da madrinha<br />
que Josefa Massinga ganhou o<br />
gosto pelo negócio das flores.<br />
“Sim, foi com ela que ganhei o<br />
interesse por este tipo de negócio.<br />
E em 2015 decidi abrir a florista”,<br />
conta a empreendedora, hoje com 42 anos.<br />
“Em Dezembro de 2013 perdi a minha<br />
sobrinha, que se afogou numa piscina<br />
da casa da minha mãe, a Khyathu”, lembra.<br />
Está também explicado o nome da<br />
loja, localizada num rés-do-chão de um<br />
prédio baixo, na Avenida Sebastião Marcos<br />
Mabote, para quem vai ao Albazine,<br />
antes de entrar na estrada circular: Florista<br />
Flor Khyathu. O início do negócio<br />
não foi nada fácil. “Decidi abrir a loja no<br />
mês dos namorados e pensei que muita<br />
gente iria comprar, mas não consegui<br />
ter muito retorno face ao que esperava”,<br />
revela. “Os dias subsequentes foram de<br />
muito elogio mas pouca procura, porque<br />
estava a abrir um negócio que aqui<br />
na zona não era muito conhecido, mas<br />
“QUERIA SER PIONEIRA<br />
NUMA ÁREA DE NEGÓCIO<br />
QUE AQUI NÃO<br />
EXISTISSE”<br />
queria ser pioneira numa área de negócio<br />
que fosse diferente, que aqui não existisse.<br />
Eu queria que as pessoas conseguissem<br />
encontrar uma flor, uma rosa, um artigo<br />
de decoração. A ideia era trazer o que está<br />
na cidade mais para junto das pessoas e<br />
fazer a diferença”, conta.<br />
Se dantes era apenas uma loja de venda<br />
de flores, a persistência e a criatividade<br />
fizeram com que, com o tempo, a Flor<br />
Khyathu se transformasse numa empresa<br />
de prestação de diversos tipos de serviços.<br />
“Sim, hoje os nossos serviços alargaram-se.<br />
Tivemos de começar a fazer<br />
serviços de decoração de viaturas, ornamentação<br />
de eventos e igrejas, aluguer de<br />
louça” explica Josefa, acrescentando que<br />
“também fazemos o trabalho de assessoria<br />
de eventos, aluguer de material de<br />
decoração e convites para casamentos.<br />
Foi ficando acoplado dentro da florista”.<br />
O seu primeiro grande trabalho consistiu<br />
em fazer convites e a decoração<br />
para um casamento. “A cliente mandou-<br />
-nos fazer 100 convites para o casamento<br />
e o trabalho de decoração”, confidencia<br />
a empresária. “Levámos duas semanas<br />
nesse trabalho e facturámos, na altura,<br />
cerca de 50 mil meticais.” Em termos de<br />
rendimento, Massinga refere que é no trabalho<br />
de assessoria de eventos que tem<br />
mais ganhos. “Verdade, pois trata-se de<br />
um trabalho mais abrangente, mais completo,<br />
por isso dá-nos mais dinheiro”,<br />
adianta. A carteira de clientes também<br />
cresceu. “Temos uma carteira de clientes<br />
muito grande. Clientes fixos, podemos<br />
falar de cerca de cinco dezenas que<br />
regularmente solicitam os nossos serviços.<br />
Temos a sorte de cada cliente recomendar<br />
EDILSON TOMÁS<br />
50 | Exame Moçambique
JOSEFA<br />
MASSINGA<br />
IDADE: 42 ANOS<br />
NATURALIDADE:<br />
MAPUTO<br />
NOME DA EMPRESA:<br />
FLORISTA FLOR KHYATHU<br />
NEGÓCIO: VENDA DE<br />
FLORES E DECORAÇÃO DE<br />
TODO O TIPO DE EVENTOS<br />
INÍCIO DE ACTIVIDADE: 2015<br />
JOSEFA MASSINGA:<br />
O gosto pelo negócio<br />
das flores
NEGÓCIOS EMPREENDEDORISMO<br />
DIVERSIFICAR:<br />
A Flor Khyathu<br />
passou a prestar<br />
outros serviços<br />
EDILSON TOMÁS<br />
sempre os nossos serviços e, actualmente,<br />
temos feito trabalho na Matola, Maputo.”<br />
DE OLHOS NO FUTURO<br />
Na abertura da loja Massinga investiu<br />
cerca de 155 mil meticais, através de um<br />
empréstimo bancário. A empreendedora<br />
confessa que os primeiros dois anos não<br />
foram fáceis. “Sabe, comecei a ter um<br />
bom retorno daquilo que é o nosso trabalho<br />
só a partir do terceiro ano”, precisa.<br />
“Eu dou férias colectivas em Janeiro, mas<br />
sempre que reabro tento mudar um pouco<br />
a imagem da florista, não só para minha<br />
satisfação, mas também para a satisfação<br />
do cliente, para perceber que, de alguma<br />
forma, está a haver alguma evolução neste<br />
trabalho.” Inovar sempre numa perspectiva<br />
de crescimento. “Começar a vender<br />
NA REABERTURA DE<br />
FÉRIAS “TENTO SEMPRE<br />
MUDAR UM POUCO A<br />
IMAGEM DA FLORISTA”<br />
flores artificiais foi uma boa estratégia<br />
e ajudou-nos muito.” Trouxe uma dinâmica<br />
diferente à loja. “Começámos também<br />
a entrar num ritmo de trabalho<br />
muito grande.” No que respeita à ornamentação<br />
de viaturas, os preços variam<br />
entre os 2500 meticais os 7 mil meticais.<br />
A empreendedora refere que num<br />
ano chegou a registar acima de 500 mil<br />
meticais de facturação. “Principalmente<br />
quando começámos a introduzir os serviços<br />
complementares”, refere. De início<br />
Massinga só tinha três trabalhadores, mas<br />
agora a empreendedora conta com uma<br />
equipa de 12 elementos de protocolo que<br />
colabora em função do nível do trabalho.<br />
No mesmo prédio, no primeiro andar,<br />
uma outra loja foi inaugurada no dia 14<br />
de Fevereiro. “Lá em cima o atendimento<br />
é mais personalizado. Estamos a vender<br />
acessórios para noivas, aluguer de roupa<br />
para casamento”, esclarece.<br />
No futuro, Massinga sonha ser grande<br />
no seu ramo da actividade. “Sabe, quando<br />
comecei a fazer esse trabalho sempre me<br />
espelhei na Esperança Mangaze. Para<br />
mim ela está no topo a nível da cidade<br />
de Maputo”, revela. “E eu acho que posso<br />
chegar acima dela”, refere, não deixando<br />
escapar um sorriso de satisfação. b<br />
52 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 53
ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />
“RECONSTRUIR<br />
DE FORMA MAIS<br />
RESILIENTE PRECISA<br />
DE TEMPO”<br />
O subfinanciamento do sistema das Nações Unidas para apoiar Moçambique,<br />
diz Myrta Kaulard, é uma das dificuldades que se colocam à implantação de métodos<br />
resilientes na reconstrução e na agricultura, num país onde os desastres naturais têm<br />
ocorrido com frequência<br />
LUÍS FONSECA *<br />
MYRTA KAULARD,<br />
COORDENADORA RESIDENTE DA<br />
ONU EM MOÇAMBIQUE:<br />
“O impacto destes desastres<br />
naturais nas pessoas mais<br />
pobres é muito, muito forte”<br />
54 | Exame Moçambique
D<br />
urante as suas intervenções<br />
tem destacado o desafio<br />
que as mudanças climáticas<br />
significam para<br />
Moçambique. Porquê?<br />
Porque o ciclo dos desastres naturais em<br />
Moçambique é muito breve e o impacto<br />
é muito forte. Só há nove meses, entre o<br />
final de uma temporada de ciclones e o<br />
começo da outra. E o país ainda tem de<br />
completar o seu caminho até ao desenvolvimento<br />
sustentável. Por isso, é preciso<br />
pôr no centro das prioridades do país<br />
e da comunidade internacional os esforços<br />
de resiliência e de criação de capacidades<br />
de adaptação às mudanças climáticas. Isso<br />
é muito importante para assegurar o desenvolvimento<br />
sustentável de Moçambique.<br />
É uma missão de todos em Moçambique e<br />
da comunidade internacional. O impacto<br />
destes desastres naturais nas pessoas mais<br />
pobres é muito, muito forte, e quando não<br />
têm apoio as pessoas passam a mecanismos<br />
negativos de resposta — como o abandono<br />
escolar ou casamentos precoces para<br />
sustentar a família — e isso é contrário ao<br />
desenvolvimento sustentável.<br />
“O CICLO DOS<br />
DESASTRES NATURAIS<br />
EM MOÇAMBIQUE É<br />
MUITO BREVE E O<br />
IMPACTO É MUITO FORTE”<br />
KAREL PRINSLOO<br />
Então não seria de esperar que as vítimas<br />
dos ciclones de 2019 já tivessem<br />
casas e edifícios públicos resilientes?<br />
Reconstruir melhor, de forma mais resiliente,<br />
precisa de tempo. Não podemos<br />
esquecer o nível dos danos: cerca de 300<br />
mil habitações foram destruídas e 140 mil<br />
famílias têm uma casa temporária ou tendas.<br />
Agora temos de reconstruir melhor,<br />
porque estamos certos de que vai haver<br />
outros ciclones em Moçambique. Se chegarem<br />
outros, as casas vão ter de resistir.<br />
Mas isso precisa de tempo para estudos.<br />
Para verificar que não podemos pôr um<br />
tecto mais forte se o resto da estrutura não<br />
aguentar. Não podemos pensar construir<br />
abril <strong>2020</strong> | 55
ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />
capacidade de resiliência em poucos meses<br />
ou um ano. Isto tem de estar integrado nos<br />
planos de desenvolvimento do país. Mas foi<br />
feito muito trabalho que não podemos ver,<br />
muita preparação para esta reconstrução<br />
melhor. A partir do final deste ano, vamos<br />
ver mais casas, mais bem reconstruídas,<br />
e vamos ver mais infra-estruturas.<br />
De quanto dinheiro precisa a Organização<br />
das Nações Unidas para apoiar<br />
Moçambique?<br />
No ano passado, o plano de resposta humanitária<br />
das Nações Unidas precisava de 600<br />
milhões de dólares e recebemos cerca de<br />
metade. Agora precisamos de 120 milhões<br />
de dólares para podermos completar, em<br />
parte, essas necessidades e porque a situação<br />
evoluiu. Estamos numa nova temporada<br />
ciclónica e não temos como responder<br />
se houver outro ciclone porque todos os<br />
COMUNIDADES:<br />
Já se reconstruíram<br />
e adaptaram ao novo<br />
ambiente para onde<br />
tiveram de se mudar<br />
recursos recebidos já foram utilizados.<br />
O Instituto Nacional de Gestão de Calamidades<br />
(INGC) de Moçambique está a<br />
fazer agora muito trabalho de prevenção,<br />
de proteger vidas, com recursos do país. Os<br />
120 milhões de dólares são urgentes, para<br />
300 mil pessoas em zonas onde houve ciclones.<br />
O problema das secas, insegurança alimentar<br />
e mundo agrícola precisa de outros<br />
40 milhões, e isso é muito importante para<br />
as famílias que já vimos que não vão ter<br />
a produção que se esperava.<br />
E além desses valores, há as verbas prometidas<br />
numa conferência de doadores<br />
na Beira, em 2019...<br />
Do lado da reconstrução ainda faltam<br />
verbas. O comprometimento da comunidade<br />
internacional foi de 1,5 mil milhões<br />
de dólares face à necessidade de 3,2 mil<br />
milhões [calculada por Moçambique].<br />
KAREL PRINSLOO<br />
CIMEIRA<br />
CLIMÁTICA<br />
Face à prioridade que deve ser<br />
dada às mudanças climáticas,<br />
Myrta Kaulard destaca a importância<br />
da COP 26 — Cimeira do Clima,<br />
agendada para 9 a 19 de Novembro<br />
em Glasgow, na Escócia. Líderes<br />
globais de diferentes países e<br />
empresas, delegações da ONU e<br />
activistas deverão juntar-se para<br />
discutir os próximos passos na<br />
estratégia global de combate às<br />
mudanças climáticas, um encontro<br />
promovido pelas Nações Unidas<br />
— depois de não ter havido<br />
acordo no encontro de Dezembro<br />
de 2019. No discurso de encerramento<br />
da COP25, Carolina Schmidt,<br />
que é também ministra do<br />
Meio Ambiente chileno, apelou à<br />
necessidade de “uma resposta<br />
mais sólida, urgente e ambiciosa”<br />
para enfrentar a crise climática. A<br />
cimeira de Madrid, na qual participaram<br />
cerca de 200 países, terminou<br />
com a aprovação de um<br />
documento com poucas decisões<br />
no que toca aos assuntos concretos,<br />
como por exemplo as regras<br />
dos mercados internacionais de<br />
carbono. “Não estamos satisfeitos”,<br />
queixou-se Schmidt.<br />
Na reconstrução há que fazer planos, terminar<br />
os estudos e o desembolso vem<br />
etapa por etapa. É este o caminho e, por<br />
isso, o trabalho do gabinete de reconstrução<br />
é muito importante na planificação<br />
e mobilização de recursos.<br />
Será possível chegar aos 3,2 mil milhões?<br />
Temos de fazer o esforço possível, mas também<br />
não podemos ver estes números como<br />
estáticos porque podemos ter outras ameaças,<br />
outros problemas. Por exemplo, a seca,<br />
as cheias deste ano, tudo isto são novos elementos,<br />
pelo que a situação é dinâmica.<br />
56 | Exame Moçambique
Devia haver outra conferência de doadores?<br />
Essa é uma decisão das autoridades nacionais,<br />
não são as Nações Unidas que podem<br />
decidir fazer uma conferência de parceiros,<br />
mas o que estamos a fazer é muita advocacia<br />
e trabalhar de forma muito colaborativa,<br />
com parceiros internacionais, que<br />
têm feito um esforço muito importante.<br />
Tudo o que temos visto até agora tem sido<br />
ajuda dos parceiros internacionais.<br />
Em suma, um ano após o ciclone Idai<br />
ficou satisfeita com o que encontrou<br />
no terreno?<br />
Muitas vezes esse progresso não é tão visível<br />
ou compreensível para quem não acompanha<br />
estas situações. Eu estive nestas<br />
zonas em Julho de 2019 e então tudo era<br />
devastação, estava tudo por fazer. Agora<br />
podemos ver comunidades que se estão a<br />
reconstruir e que já se adaptaram a um<br />
novo ambiente, para o qual tiveram de se<br />
mudar. Quero felicitar e dar os parabéns<br />
às instituições e comunidades por terem<br />
sido tão resilientes e terem feito tantos progressos.<br />
Vimos comunidades que estão a<br />
criar formas de rendimento, meninos que<br />
continuaram nas escolas, vimos ajuda alimentar<br />
distribuída a 2,3 dos 2,5 milhões<br />
de pessoas afectadas, portanto uma preocupação<br />
a menos para as famílias, que assim<br />
puderam pensar na recuperação da sua<br />
vida. Vimos muitas coisas positivas, mas<br />
também muitas necessidades, como a de<br />
reconstrução das casas, mais resilientes.<br />
Confia na capacidade instalada para responder<br />
às necessidades?<br />
Eu penso que, no meio de todas as dificuldades,<br />
o país aprendeu também muitas<br />
coisas neste último ano sobre como responder,<br />
como se adaptar, e isso é algo que<br />
a comunidade internacional tem de continuar<br />
a apoiar. Vimos uma capacidade institucional<br />
no ano passado na resposta ao<br />
Idai e a forma como Moçambique coordenou<br />
a resposta internacional é um exemplo<br />
para muitos países. É muito bom que,<br />
agora que temos um gabinete de reconstrução,<br />
se desenvolvam as suas capacidades.<br />
Tal como vimos a capacidade de<br />
coordenação da resposta humanitária pelo<br />
Instituto Nacional de Gestão de Calamidades<br />
(INGC) e por parte das organizações<br />
moçambicanas, extremamente rápida.<br />
Agora, com o gabinete de reconstrução, é<br />
importante também ter uma capacidade<br />
muito forte de desenvolver e de articular<br />
todas as instituições para impulsionar um<br />
ciclo positivo que contrarie o ciclo negativo<br />
das mudanças climáticas.<br />
Mas já este ano houve população afetada<br />
por cheias, nas mesmas regiões,<br />
embora com menores danos...<br />
Há pessoas que perderam o cultivo o ano<br />
passado com os ciclones Idai e Kenneth e<br />
que agora o estão a perder com as cheias.<br />
Isto é um ciclo frequente em Moçambique<br />
e requer ajuda humanitária, adaptação,<br />
inovação, uma agricultura mais resiliente.<br />
O maior desafio são mesmo as mudanças<br />
climáticas. Como disse, os desastres<br />
naturais são muito fortes e o ciclo é muito<br />
breve: há só nove meses entre o final de<br />
uma temporada de ciclones e o começo<br />
da outra, então saber quanto tempo estas<br />
pessoas terão de esperar para terem casa<br />
nova depende da severidade da temporada.<br />
Se não se passar nada de greve, no<br />
próximo ano há melhorias. Mas se passar<br />
outro ciclone (e ainda temos um mês pela<br />
frente), isto vai levar mais tempo.<br />
DE NOVO, AS CHEIAS<br />
Um ano após os ciclones, acha que o<br />
cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento<br />
Sustentável (ODS) fica comprometido?<br />
É muito importante acelerar o caminho<br />
até aos ODS. No ano passado, todos os<br />
países membros da ONU assinaram, em<br />
Setembro, um compromisso para acelerar<br />
o caminho até ao desenvolvimento sustentável<br />
até 2030. Não há um país no mundo<br />
que esteja a cumprir o cronograma. Naturalmente,<br />
há países que têm mais dificuldades<br />
de desenvolvimento, precisam de<br />
fazer mais esforços para alcançarem estas<br />
metas e as mudanças climáticas são uma<br />
dificuldade enorme. Por isso, importa priorizar<br />
o investimento na resiliência como<br />
uma das maneiras de acelerar o caminho<br />
até aos ODS.<br />
Quase todos os relatórios mostram também<br />
que a insegurança alimentar é uma<br />
das heranças agravadas dos ciclones<br />
de 2019...<br />
O problema da insegurança alimentar<br />
está ligado a vários factores: por um lado,<br />
as cheias, por outro, a seca, e os dois estão<br />
relacionados com as mudanças climáticas.<br />
Já há uma transformação, que é complicada<br />
para as pessoas que vivem da agricultura.<br />
É há a situação em que se encontra<br />
toda a região da África Austral, não apenas<br />
Moçambique. É uma situação que precisa<br />
de respostas imediatas em termos de<br />
ajuda alimentar nutricional para as pessoas<br />
e respostas ao nível de desenvolvimento.<br />
Há que fazer uma adaptação, inovar nas<br />
práticas agrícolas e no uso da água. É preciso<br />
inovar e aumentar a capacidade tecnológica<br />
na previsão de desastres.<br />
Tudo somado, quantas pessoas precisam<br />
de ajuda em Moçambique?<br />
De uma maneira geral, um milhão de pessoas<br />
precisa de ajuda humanitária, e isto é<br />
para poderem seguir até que a reconstrução<br />
pós-ciclones esteja feita e também para responderem<br />
aos novos desafios das cheias e da<br />
seca, numa visão geral para todo o país. b<br />
* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />
Várias inundações assolaram o Centro de Moçambique na segunda quinzena de<br />
Fevereiro, provocando a retirada de 70 mil pessoas, o correspondente a 15 755<br />
famílias, para centros de acomodação ou casas de familiares situadas em locais<br />
seguros, anunciaram as autoridades. As cheias afectaram sobretudo a província<br />
de Sofala, atingindo 4565 hectares de campos de cultivo, o que afectou 3400<br />
camponeses que já tinham sido prejudicados pelo ciclone Idai em 2019.<br />
abril <strong>2020</strong> | 57
ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />
PAINÉIS SOLARES,<br />
FOGAREIROS E OUTRAS<br />
FORMAS DE RECOMEÇAR<br />
A vida ainda é difícil para os realojados dos ciclones de 2019. Perderam tudo e agora fazem<br />
experiências com o apoio das Nações Unidas e ONG para tentarem fazer crescer algo que<br />
os sustente. Os recursos disponíveis ainda não são os ideais mas há sempre esperança<br />
LUÍS FONSECA *<br />
ENERGIA SOLAR:<br />
Eugénio António utiliza-a no seu<br />
negócio de carregar telemóveis<br />
MYRTA KAULARD,<br />
COORDENADORA RESIDENTE DA<br />
ONU EM MOÇAMBIQUE:<br />
“O impacto destes desastres<br />
naturais nas pessoas mais<br />
pobres é muito, muito forte”<br />
58 | Exame Moçambique
Eugénio António, 40 anos, está<br />
sentado à beira de uma geringonça<br />
que salta à vista: uma<br />
espécie de pequena banca de<br />
madeira, pintada de verde e<br />
com um painel solar por cima. “É um sistema<br />
de carregamento de telemóveis com<br />
energia solar”, explica. Bastam 10 meticais<br />
para carregar cada um a 100%. É assim que<br />
Eugénio está a tentar recomeçar depois<br />
de o ciclone Idai o ter levado ao tapete.<br />
Morava na Praia Nova, o bairro de lata da<br />
cidade da Beira mais exposto à destruição<br />
por estar colado ao mar. Diabético,<br />
vivia a cortar o cabelo. Com a tempestade<br />
a casa desabou, a saúde degradou-<br />
-se e a retenção de líquidos causada pela<br />
diabetes obrigou-o a amputar uma perna.<br />
Foram dias difíceis? “Sim, mas hoje estou<br />
um bocado melhor.”<br />
De uma forma ou de outra, os ciclones<br />
afectaram cerca de 2 milhões de pessoas<br />
em Moçambique e há 100 mil que<br />
foram realojadas em áreas de reassentamento<br />
onde ainda permanecem — espaços<br />
longe das zonas de cheias, onde receberam<br />
tendas, abrigos provisórios, e onde<br />
ONG garantem serviços básicos de saúde,<br />
apoio alimentar e outros de âmbito social.<br />
Eugénio António vive na área de reassentamento<br />
de Mutua, a cerca de 60 quilómetros<br />
da cidade da Beira. Um terreno onde<br />
não havia nada. Agora, há 72 áreas como<br />
esta onde o governo doou parcelas de terreno<br />
aos sobreviventes dos ciclones, para<br />
poderem transformar a tenda provisória<br />
em habitação fixa (ainda com materiais<br />
precários) com “machamba” (horta) que<br />
garanta produção agrícola de subsistência.<br />
Com o seu lote e o posto de carregamento<br />
solar, no local onde nasce o mercado da<br />
nova aldeia, alimenta a esperança de um<br />
novo recomeço para a sua vida. “Gostaria<br />
de voltar a ter um salão” de corte de<br />
cabelo. Para já, mostra um aparador de<br />
cabelo junto às fichas triplas onde carrega<br />
os telemóveis. “Às vezes, quando me pendem,<br />
ainda ‘descabelo’ algumas pessoas.”<br />
Mais abaixo, outro exemplo de empreendedorismo:<br />
Estrela Yuba, 24 anos, mostra<br />
um fogareiro de barro como uma obra de<br />
arte: fazer fogo requer três paus de lenha,<br />
mas com esta nova peça “basta acender<br />
um e já está”. Um grupo de 20 mulheres<br />
realojadas em Mutua passou a ganhar a<br />
vida a fabricar “fogões melhorados”, fogareiros<br />
aliados do combate às mudanças<br />
climáticas para prevenir novos ciclones.<br />
Consomem menos floresta, são mais eficientes<br />
e, mais importante para Estrela,<br />
“dão dinheiro” para comprar comida<br />
e o que mais for preciso para a família.<br />
A ideia de negócio, tal como a de Eugénio,<br />
teve o impulso do Programa das Nações<br />
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).<br />
“Ajudamos a criar algum emprego,<br />
fazer com que a população faça crescer<br />
algo”, refere Ghulam Sherani, dirigente do<br />
PNUD. O programa apoia-se em organizações<br />
locais para tentar virar a página:<br />
dá dinheiro e treino, ouve o que os residentes<br />
querem fazer e indica os projectos<br />
mais seguros, por exemplo recomendando<br />
a criação de patos em vez de galinhas, por<br />
serem mais resilientes e mais bem pagos<br />
no mercado local. A ideia era de Joaquim<br />
Tom, 32 anos, casado com seis filhos em<br />
casa, aficcionado das aves que trocou<br />
de bom grado a banca de comerciante,<br />
no bairro da Praia Nova, pela criação<br />
de patos. “Eu antes já estava a processar<br />
isso no meu coração, mas lá onde vivia<br />
era uma zona insegura”, confidencia. Por<br />
muito precário que ainda seja o bairro de<br />
Mutua, Ghulam Sherani acredita que será<br />
TER COMIDA AINDA É UMA BATALHA<br />
A desnutrição está quase sempre presente<br />
em Moçambique: a falta de alimentos<br />
diversificados faz com que<br />
metade da população moçambicana<br />
sofra de desnutrição crónica. Mas o<br />
ciclone Idai agravou o cenário no Centro<br />
do país, com perda de campos e<br />
mantimentos, e a desnutrição crónica<br />
passou a desnutrição moderada ou<br />
severa, um nível que reflecte carências<br />
maiores. “Já tenho muitos casos<br />
que estão curados”, conta Madalena<br />
Chuarira, 26 anos, técnica dos Médicos<br />
do Mundo que trabalha em conjunto<br />
com a UNICEF nos cuidados de<br />
saúde prestados aos cerca de 2300<br />
habitantes da área de reassentamento<br />
de Ndeja. O segredo é um suplemento<br />
alimentar entregue às mães em pequenos<br />
pacotes.<br />
Um ano depois do Idai, ter comida<br />
continua a ser uma batalha diária que<br />
quase todos os moçambicanos dizem<br />
que só pode ser vencida com uma<br />
“machamba” — o nome dado às hortas<br />
para produção de alimentos. Há ajuda<br />
humanitária (em géneros ou cheques<br />
alimentares), mas essa chega a cada<br />
vez menos pessoas. A falta de fundos<br />
já obrigou o PAM a reduzir o apoio: em<br />
vez dos habituais 40 quilos de milho ou<br />
arroz entregues por mês a cada família<br />
como produto base para agregados<br />
vulneráveis, desde Fevereiro passaram<br />
a ser distribuídos 20 quilos para cada,<br />
especificou Espinola Caribe, chefe do<br />
PAM na cidade da Beira. “Temos problemas<br />
sérios de fundos. Temos uma<br />
necessidade de 48 milhões de dólares<br />
para podermos continuar a assistir<br />
1,3 milhões de pessoas.” “Estamos<br />
a bater às portas”, acrescentou, uma<br />
vez que, sem essa verba, 525 mil pessoas<br />
“estarão fora do programa, por<br />
falta de fundos”, desde Março. Apesar<br />
de os ciclones já terem acontecido há<br />
um ano, é pouco tempo para as famílias<br />
recuperarem os seus rendimentos<br />
e recuperarem o acesso a comida, referiu<br />
Espinola Caribe.<br />
Há um grupo específico a apoiar: 10<br />
mil crianças com subnutrição severa a<br />
moderada que o Programa Alimentar<br />
Mundial (PAM) e o Fundo para a Infância<br />
das Nações Unidas (UNICEF) contam<br />
apoiar este ano com suplementos<br />
alimentares em Moçambique, a par de<br />
15 mil grávidas e lactantes.<br />
abril <strong>2020</strong> | 59
ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />
CONSTRUIR MELHOR:<br />
A habitação de Bill<br />
Malissane é um exemplo<br />
de construção mais<br />
resiliente<br />
sempre melhor que os locais de origem<br />
de quem acolhe, oriundos de bairros de<br />
lata e zonas de risco.<br />
AINDA NÃO É O CENÁRIO IDEAL<br />
“Estou melhor, aqui é o meu espaço, não<br />
estou a pagar renda”, conta Rabica Andrade<br />
no reassentamento de Mandruzi, onde<br />
integra um grupo de mulheres que produzem<br />
tapetes — uma das actividades<br />
de rendimento dinamizadas pelas organizações<br />
que estão a apoiar a consolidação<br />
destas novas aldeias. Mas são espaço<br />
aonde ainda há muito por fazer, diz Mira<br />
Vilanculo em Mutua. “Estamos a chorar<br />
por energia e por um mercado” onde se<br />
possa ter “outro caril”, ou seja, produtos<br />
e ingredientes que complementem a ajuda<br />
alimentar humanitária, baseada em arroz<br />
e milho. “Com um mercado podíamos<br />
ter um repolho ou uma banana, laranja<br />
ou tangerina”, que para já ficam só na<br />
ementa de sonho.<br />
Nas áreas de reassentamento é comum<br />
haver a ambição de construir uma boa<br />
casa porque as actuais, quando já não são<br />
tendas, ainda misturam lonas e caniço,<br />
barro e pedaços de madeira, finas coberturas<br />
de zinco, à vista, nada que imponha<br />
respeito a uma tempestade. Já se fazem<br />
testes e divulgação de técnicas de construção<br />
resilientes. A habitação de Bill Malissane,<br />
na vila de Dondo, ficou a céu aberto<br />
durante o ciclone Idai é uma das casas-<br />
-piloto da ONU-Habitat para demonstrar<br />
técnicas de reconstrução resiliente.<br />
“Aqui vivem oito pessoas”, refere, ao mostrar<br />
as técnicas de construção usadas para<br />
reforçar a cobertura. O título numa das<br />
paredes, “Casa Amor de God”, também<br />
reflecte esperança nos princípios de Building<br />
Back Better (BBB), ou seja, voltar a<br />
construir melhor. Mas ainda é uma excepção<br />
e a maioria das que se fazem continua<br />
a ser precária.<br />
Num “cenário ideal” todos deviam ter<br />
“uma boa casa, mas estamos em Moçambique,<br />
um dos países mais pobres em<br />
África. São necessários muitos recursos”<br />
que não estão disponíveis, resume Ghulam<br />
Sherani. “Por isso, tentamos fazer o<br />
melhor possível com os recursos disponíveis<br />
para estas pessoas recomeçarem<br />
as suas vidas”, conclui. Um ano depois,<br />
estar longe de zonas de risco de inundação<br />
e fixar residência em zonas seguras é<br />
o primeiro (e único) passo, a reconstrução<br />
de sonho poderá vir a seguir.<br />
O período chuvoso de 2018/2019 foi<br />
dos mais severos de que há memória em<br />
Moçambique: 714 pessoas morreram,<br />
incluindo 648 vítimas de dois ciclones (Idai<br />
e Kenneth) que se abateram sobre Moçambique.<br />
O ciclone Idai atingiu o Centro de<br />
Moçambique em Março, provocou 603<br />
mortos e a cidade da Beira, uma das principais<br />
do país, foi severamente afectada.<br />
O ciclone Kenneth, que se abateu sobre o<br />
Norte do país em <strong>Abril</strong>, matou 45 pessoas. b<br />
* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />
60 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 61
GLOBAL COMÉRCIO<br />
TRUMP<br />
ADMITE TARIFAS<br />
AO BRASIL<br />
A ameaça de Donald Trump de impor tarifas ao Brasil<br />
abre uma nova frente de disputas comerciais.<br />
O proteccionismo tenta compensar o dólar alto.<br />
E satisfazer a base eleitoral de Trump<br />
FILIPE SERRANO<br />
P<br />
ode ter sido apenas mais<br />
uma jogada do Presidente<br />
Donald Trump para obter<br />
vantagens para os Estados<br />
Unidos, como já o fez com<br />
diversos países para forçar a assinatura<br />
de acordos. Mas o anúncio feito através<br />
da sua conta no Twitter, em Dezembro,<br />
de que o governo norte-americano deve<br />
impor tarifas de importação sobre o aço<br />
e o alumínio brasileiro e argentino, colocou<br />
definitivamente o Brasil na rota das<br />
políticas comerciais proteccionistas que<br />
são a marca do governo Trump. Se de<br />
facto forem impostas pelos Estados Unidos<br />
(o que não havia acontecido até este<br />
texto ser concluído), as tarifas serão um<br />
duro golpe tanto para o sector siderúrgico<br />
quanto para o governo do Presidente Jair<br />
Bolsonaro. Desde que assumiu a Presidência,<br />
Bolsonaro julgava ter acesso privilegiado<br />
à Casa Branca, e o Brasil, inclusive,<br />
abriu mão do status preferencial de país<br />
emergente na Organização Mundial do<br />
Comércio a pedido dos Estados Unidos,<br />
em troca de uma promessa de apoio americano<br />
à sua entrada na Organização para<br />
a Cooperação e Desenvolvimento Económico<br />
— algo que ainda não ocorreu.<br />
Não é a primeira vez que Trump ameaça<br />
o Brasil. Em 2018, o país já havia sido prejudicado<br />
quando o governo norte-americano<br />
decidiu impor tarifas de importação<br />
de 25% sobre o aço e de 10% sobre o alumínio,<br />
com o argumento de que a dependência<br />
das importações desses produtos<br />
era uma ameaça à segurança nacional<br />
devido à sua relação com a indústria de<br />
armamento. Mas o efeito das tarifas foi<br />
minimizado porque o Brasil, bem como<br />
a maioria dos países que exportam aço e<br />
alumínio para os Estados Unidos, conseguiu<br />
negociar uma isenção da tarifa em<br />
troca de uma quota para as importações.<br />
Também no ano passado, Trump mencionou<br />
numa entrevista que o Brasil e a<br />
Índia tinham impostos de importação<br />
elevados que prejudicavam as empresas<br />
americanas, e sugeriu que fosse feito algo<br />
para modificar a situação. A ameaça, no<br />
entanto, não se confirmou e foi esquecida.<br />
O que surpreende agora no anúncio<br />
de Trump pelo Twitter é não só o modo<br />
inesperado como foi feito, mas o facto<br />
62 | Exame Moçambique
UM CONSUMIDOR VORAZ<br />
Os Estados Unidos dependem das<br />
importações de aço para suprir a sua procura<br />
interna, e o Brasil é o seu maior fornecedor<br />
Produção, consumo e importação de aço<br />
nos Estados Unidos (em milhões de metros cúbicos<br />
por ano)<br />
120<br />
100<br />
80<br />
60<br />
40<br />
20<br />
Produção Consumo Importações<br />
2009 2011 2013 2015 2017 2019 (1)<br />
Importações de aço dos Estados Unidos,<br />
por país de origem (em milhões de metros cúbicos<br />
por ano)<br />
Outros<br />
24 19<br />
Brasil<br />
GETTY<br />
Itália<br />
3<br />
Vietnam 3<br />
Taiwan 3<br />
Alemanha 4<br />
Japão<br />
4<br />
5<br />
Rússia<br />
9<br />
10<br />
15 Canadá<br />
México<br />
Coreia do Sul<br />
BOLSONARO E TRUMP:<br />
A imposição de tarifas seria um<br />
revés para o Presidente brasileiro<br />
REUTERS<br />
39% é quanto cresceram<br />
as importações de aço brasileiro<br />
pelos Estados Unidos em 2019 (1)<br />
(1)<br />
Até Junho Fonte: Global Steel Trade Monitor<br />
(International Trade Administration)<br />
de o Presidente apontar o dedo directamente<br />
ao Brasil como um culpado pelo<br />
mau desempenho das empresas norte-<br />
-americanas no comércio mundial.<br />
O Presidente alega que o Brasil manipula<br />
o câmbio para manter o real desvalorizado<br />
e as suas exportações competitivas — prática<br />
que não é verdadeira. De acordo com<br />
as palavras de Trump, tal isso dificulta aos<br />
agricultores e às indústrias dos Estados<br />
Unidos a exportação dos seus produtos.<br />
Na tentativa, no início, de agradar aos<br />
produtores rurais — uma das suas bases<br />
eleitorais — que perderam mercado para<br />
o Brasil desde que os Estados Unidos<br />
entraram numa guerra comercial com a<br />
China, Trump pode acabar por prejudicar<br />
a indústria de aço brasileira e também<br />
a norte-americana. O Brasil é um<br />
importante fornecedor de aço aos Estados<br />
Unidos, especialmente de produtos<br />
semiacabados. A indústria de siderurgia<br />
norte-americana depende das importações<br />
para suprir a procura interna, que<br />
é maior do que a sua produção. E o Brasil<br />
tem nisso um papel importante. De<br />
todo o aço importado pelos americanos<br />
em 2019, quase um quinto tem origem<br />
no Brasil, segundo dados do Departamento<br />
de Comércio dos Estados Unidos.<br />
É a maior participação entre os países que<br />
vendem aço aos norte-americanos, um<br />
comércio que somou 2,5 mil milhões de<br />
dólares até Outubro de 2019.<br />
Agora, um ponto no qual Trump tem<br />
razão é que a valorização do dólar prejudica<br />
as exportações norte-americanas.<br />
No entanto, a cotação da moeda está elevada<br />
não por causa de uma suposta manipulação<br />
do câmbio nos outros países, mas<br />
pelo facto de a própria economia norte-<br />
-americana estar a crescer. Os Estados<br />
Unidos estão a viver a mais longa expansão<br />
económica de que se tem registo. São<br />
quase onze anos consecutivos de crescimento<br />
ininterrupto, um recorde. E, ao<br />
contrário das previsões de um arrefecimento<br />
em 2019, os números do terceiro<br />
trimestre de 2019 mostram que o produto<br />
interno bruto americano prossegue uma<br />
expansão em torno de 2% ao ano. Isto<br />
não significa que o temor de uma desaceleração<br />
norte-americana tenha ficado<br />
para trás. Mas num momento em que<br />
abril <strong>2020</strong> | 63
GLOBAL COMÉRCIO<br />
METALURGIA:<br />
O Brasil é hoje o maior<br />
exportador de aço para<br />
os Estados Unidos<br />
ECONOMIA EM ALTA, DÓLAR EM ALTA<br />
O bom momento da economia norte-americana tem feito o dólar valorizar no mundo. Mas, no Brasil, a taxa já foi mais alta, considerando a inflação<br />
Variação do PIB dos Estados Unidos<br />
(em %, sobre o mesmo trimestre do ano anterior)<br />
Previsão 4ºTrim<br />
4,0 350<br />
3,0<br />
2,0<br />
1,0<br />
0<br />
Empregos criados nos Estados Unidos<br />
(em milhares por mês)<br />
250<br />
150<br />
50<br />
0<br />
Cotação do dólar no Brasil ajustada à inflação 1<br />
(em reais)<br />
Jan<br />
Out<br />
2016 2017 2018 2019 2018 2019<br />
1994 2007 2019<br />
(1)<br />
Dólar Ptax do Banco Central. Ajustado ao IPCA Fontes: U.S. Bureau of Economic Analysis e Economatica.<br />
12<br />
8<br />
4<br />
0<br />
2,42 reais | 26/7/2011<br />
10,82 reais | 22/10/2002<br />
4,25 reais<br />
a economia mundial desacelera, e os países<br />
ricos da Europa Ocidental e o Japão<br />
continuam com um crescimento muito<br />
baixo, os Estados Unidos tornaram-se uma<br />
espécie de ilha de prosperidade. Para os<br />
investidores internacionais, que procuram<br />
um lugar seguro e com bons retornos,<br />
os Estados Unidos acabam por ser o<br />
destino mais natural para os investimentos.<br />
“Nas últimas semanas assistimos a<br />
um novo optimismo para com a economia<br />
norte-americana, depois da confirmação<br />
de que não estamos a caminhar<br />
rumo a uma recessão e de que o crescimento<br />
pode continuar. Isto tem levado<br />
ao reforço do dólar”, diz Gregory Daco,<br />
economista-chefe para os Estados Unidos<br />
da consultora britânica Oxford Economics.<br />
Daí que o dólar tenha valorizado<br />
não só em relação ao real, mas também<br />
a uma série de moedas pelo mundo fora.<br />
É um novo cenário que, segundo os especialistas,<br />
tende a estender-se. “Bem ou<br />
mal, neste mundo em desaceleração os<br />
Estados Unidos ainda têm um crescimento<br />
melhor. Pelo que o dólar ganha<br />
valor globalmente face a outras moedas e<br />
o real está no mesmo barco das que desvalorizam”,<br />
diz o economista Alexandre<br />
Schwartsman, ex-director de assuntos<br />
internacionais do Banco Central.<br />
Num ano em que o Presidente Trump<br />
vai disputar a reeleição, o dólar valorizado<br />
prejudica uma das suas principais<br />
promessas: reduzir o défice da balança<br />
comercial dos Estados Unidos. No Twitter,<br />
Trump tem aumentado as críticas ao<br />
presidente do Banco Central norte-americano,<br />
Jerome Powell, devido ao dólar<br />
valorizado. Contra Powell, Trump não<br />
pode fazer muito, além de tweetar. Já em<br />
relação ao Brasil... b<br />
64 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 65
GLOBAL DESPORTO<br />
FLAMENGO<br />
SEMPRE?<br />
Campeão brasileiro<br />
e vencedor da Taça<br />
Libertadores, o clube<br />
rubro-negro do Rio de Janeiro<br />
pode ser o primeiro bilionário<br />
do futebol brasileiro.<br />
A questão (para as outras<br />
equipas): haverá um domínio<br />
financeiro e desportivo do<br />
clube mais popular do Brasil<br />
nos próximos anos?<br />
LUCAS AMORIM<br />
Já deve ter ouvido falar no<br />
avançado Gabigol ou no técnico<br />
português Jorge Jesus.<br />
Os dois são os maiores nomes<br />
do Flamengo, campeão brasileiro<br />
de futebol com um recorde de pontos<br />
e também da Libertadores da América,<br />
principal torneio de futebol do continente.<br />
Jesus e Gabigol são símbolos do<br />
bem que a boa gestão pode fazer. Clube<br />
mais bem administrado do país e campeão<br />
em facturação e lucros, o Flamengo<br />
é também agora o melhor em campo.<br />
O capitalismo salvou o Flamengo. Agora<br />
falta salvar o futebol brasileiro. A guinada<br />
no Flamengo começou em 2013, quando<br />
uma equipa formada por executivos com<br />
experiência em grandes empresas assumiu<br />
a gestão do clube. A meta era reduzir<br />
a dívida, então a maior entre os clubes de<br />
futebol do país, acima dos 700 milhões<br />
de reais (cerca de 144 milhões de dólares),<br />
e impulsionar o marketing para fazer<br />
da equipa mais popular do Brasil a campeã<br />
em receitas.<br />
A receita passou de 273 milhões de reais<br />
(56 milhões de dólares), em 2013, para 652<br />
milhões (134 milhões de dólares), nos primeiros<br />
nove meses de 2019 — um valor<br />
que, alavancado pelos títulos, pode alcançar<br />
a emblemática marca de mil milhões<br />
de reais (mais de 200 milhões de dólares).<br />
Os sistemáticos prejuízos converteram-se<br />
num superavit acumulado de 630<br />
milhões de reais (perto de 130 milhões<br />
de dólares) no período, segundo dados<br />
de Amir Somoggi, sócio da consultora<br />
Sports Value, especializada em finanças<br />
do desporto. São números que farão<br />
o Flamengo fechar 2019 como a equipa<br />
que mais factura no Brasil, à frente do<br />
Palmeiras, que facturou 688 milhões de<br />
reais (142 milhões de dólares) em 2018.<br />
A distância para os maiores clubes europeus<br />
continua grande: Barcelona e Real<br />
Madrid facturam mais de 700 milhões<br />
de euros. Mas o Flamengo já está mais<br />
perto de clubes tradicionais na Europa,<br />
como o Atlético de Madrid e o Borussia<br />
Dortmund, que facturam na casa dos 300<br />
milhões de euros. O que falta para o Flamengo<br />
entrar de vez nesse grupo? Claudio<br />
Pracownik, presidente da corretora Genial<br />
Investimentos e presidente da comissão<br />
66 | Exame Moçambique
GABIBOL, ÍDOLO<br />
DO FLAMENGO: Mais de<br />
129 milhões de dólares<br />
de superavit desde 2013<br />
de finanças do clube, resume o dilema<br />
rubro-negro. “Para o Flamengo tornar-<br />
-se o Barcelona, o Vasco precisa tornar-<br />
-se o Real Madrid”, diz. É uma referência<br />
aos dois rivais espanhóis que disputam<br />
tanto os títulos dentro de campo quanto<br />
o troféu de mais rico do mundo. “Temos<br />
de trabalhar para melhorar o futebol brasileiro.<br />
Ninguém paga para ver um mau<br />
espectáculo”, afirma Pracownik. “E sem<br />
grandes espectáculos não vamos atrair<br />
os maiores jogadores da Europa.”<br />
Apesar de o Brasil ser o berço de alguns<br />
dos maiores jogadores em actividade, os<br />
20 clubes da primeira divisão facturaram,<br />
juntos, apenas mil milhões de euros em<br />
2018, face a 5,4 mil milhões de euros do<br />
campeonato inglês, 3,2 mil milhões do<br />
alemão e 3,1 mil milhões do espanhol.<br />
D.R.<br />
O Brasil tem um trunfo em relação às<br />
principais ligas europeias: a competitividade.<br />
Neste século, Palmeiras, Santos,<br />
Corinthians, São Paulo, Flamengo,<br />
Cruzeiro, Fluminense e Athletico Paranaense<br />
foram campeões, uma rotatividade<br />
sem precedentes entre os grandes<br />
torneios do mundo. O desafio agora —<br />
para as demais equipas — é evitar que o<br />
sucesso de Flamengo e Palmeiras, campeão<br />
em 2018, faça esses clubes descolarem<br />
da concorrência, algo que poderia<br />
fazer do Brasil uma combinação perigosa<br />
de baixo orçamento com baixa competitividade.<br />
Segundo um estudo da Sports Value, as<br />
receitas dos 20 principais clubes do país<br />
estão entre as mais bem distribuídas do<br />
mundo. Palmeiras e Flamengo facturam,<br />
em conjunto, o equivalente a 24% do total<br />
dos clubes da primeira divisão. Em Inglaterra,<br />
a parcela dos dois principais é de<br />
23%, o que faz com que o país tenha não<br />
só o campeonato mais rico como também<br />
o mais disputado da Europa. Manchester<br />
United, Manchester City, Chelsea, Arsenal<br />
e Leicester já foram campeões neste<br />
século e o Liverpool lidera actualmente<br />
o campeonato inglês. Em França, por sua<br />
vez, o Paris Saint-Germain, dono de um<br />
terço da receita, ganhou seis dos últimos<br />
sete campeonatos. Em Itália, a Juventus,<br />
com um quarto da receita, é octacampeã.<br />
O sucesso financeiro não garante bons<br />
resultados em campo. O Palmeiras, depois<br />
de ser campeão em 2018, afundou-se em<br />
problemas em 2019 e demitiu o técnico<br />
Mano Menezes e o director de futebol<br />
Alexandre Mattos no início de Dezembro<br />
do último ano. Em Inglaterra, o campeão<br />
de receitas, o Manchester United,<br />
não vence um campeonato desde 2012.<br />
O Arsenal, equipa mais rentável do país<br />
neste século, não ergue uma taça desde<br />
2003. Mas, quando uma boa gestão financeira<br />
consegue formar uma equipa acima<br />
da média, o campo pode retroalimentar<br />
as receitas, dando origem a um círculo<br />
virtuoso difícil de ser batido. Depois de<br />
contratar o técnico espanhol Josep Guardiola<br />
em 2013, por exemplo, o Bayern de<br />
Munique não voltou a perder o campeonato<br />
nacional e duplicou as receitas, para<br />
DE FORA PARA DENTRO<br />
A boa gestão financeira permitiu<br />
ao Flamengo investir mais em futebol<br />
Receita total (em milhões de reais)<br />
273<br />
2013<br />
Custo do Departamento de Futebol<br />
(em milhões de reais)<br />
180<br />
2013<br />
170 147 201 352 351 439<br />
Superavits<br />
(em milhões de reais)<br />
-20 64 130 153 159 46 75<br />
2013<br />
Dívida<br />
(em milhões de reais)<br />
757 698 579 461 335 470 567<br />
2013<br />
347<br />
Fontes: Sports Value.<br />
356<br />
510<br />
2016<br />
2016<br />
2016<br />
2016<br />
649 652<br />
543<br />
Set/2019<br />
Set/2019<br />
Set/2019<br />
Set/2019<br />
690 milhões de euros. É o sonho dos adeptos<br />
do Flamengo — mas não é necessariamente<br />
o melhor para o clube.<br />
Campeonatos que são vencidos sempre<br />
pela mesma equipa acabam por perder o<br />
interesse, não só por parte dos adeptos,<br />
mas também dos patrocinadores. A forma<br />
mais simples de impulsionar a competição<br />
é dividindo mais igualitariamente<br />
abril <strong>2020</strong> | 67
GLOBAL DESPORTO<br />
as receitas. As ligas norte-americanas de<br />
futebol americano, de basquete e de basebol<br />
são modelos globais. Os contratos de<br />
transmissão são negociados em conjunto<br />
e divididos igualitariamente, e todos as<br />
equipas recebem mesmo percentagens<br />
das vendas de produtos dos adversários<br />
em lojas oficiais. Os campeonatos ainda<br />
estabelecem limites de salários a serem<br />
pagos por uma mesma equipa e distribuem<br />
igualmente os direitos de contratação dos<br />
jovens universitários mais promissores.<br />
São artifícios que permitiram, por exemplo,<br />
à equipa canadiana Toronto Raptors<br />
ser campeã da última temporada da liga<br />
de basquetebol NBA pela primeira vez<br />
na História.<br />
Nos mais importantes campeonatos de<br />
futebol do mundo, a principal ferramenta<br />
para fomentar o equilíbrio são as negociações<br />
de direitos de transmissão. Para<br />
tentar quebrar o domínio do Real Madrid<br />
e Barcelona, a liga espanhola reformulou<br />
os seus critérios em 2015 mantendo fixa<br />
a parcela anual de 140 milhões de euros<br />
dos gigantes e elevando as parcelas dos clubes<br />
menores de 15 milhões de euros para<br />
60 milhões. Outra medida eficaz é a adopção,<br />
pela UEFA, entidade que rege o futebol<br />
europeu, de instrumentos de fair-play<br />
financeiro, limitando as despesas e dificultando<br />
a injecção artificial de dinheiro<br />
por grandes investidores. A adopção formal<br />
de um modelo empresarial, como o<br />
empregado pelo campeão da Série B do<br />
Campeonato Brasileiro, o Bragantino, e<br />
defendido por um projecto de lei do deputado<br />
Pedro Paulo (DEM-RJ), é apontada<br />
por especialistas em gestão como salutar,<br />
mas não obrigatória. Entre os maiores<br />
clubes do mundo, há os cotados em<br />
bolsa, como a italiana Juventus, mas há<br />
também os que são geridos à moda tradicional,<br />
como o Barcelona. O segredo está<br />
mais na gestão do que no modelo societário<br />
do clube.<br />
Independentemente do modelo, o futebol<br />
vive uma fase de ouro nas finanças.<br />
O Manchester City, actual campeão<br />
inglês, vendeu, no final de Novembro de<br />
2019, pouco mais de 10% das suas acções<br />
ao fundo de investimento norte-americano<br />
Silver Lake, um negócio que avaliou<br />
o clube em 4,8 mil milhões de dólares.<br />
É um valor recorde na história do desporto.<br />
Em 2008, o City foi comprado<br />
por um fundo de investimento ligado<br />
ao xeque Mansour bin Zayed al Nahyan,<br />
de Abu Dhabi, por cerca de 300 milhões<br />
de dólares. Desde então, a receita aumentou<br />
seis vezes, para 500 milhões de libras.<br />
O clube ainda gastou quase 1,5 mil milhões<br />
de libras em contratações e conseguiu quatro<br />
títulos ingleses. Na sua investida para<br />
ganhar a Libertadores, o Flamengo impulsionou<br />
as despesas com o futebol — de 180<br />
milhões de reais (37 milhões de dólares),<br />
em 2013, para 351 milhões (72 milhões de<br />
dólares), em 2019. Ser campeão fica caro. b<br />
GETTY<br />
AL NAHYAN, DONO<br />
DO MANCHESTER CITY:<br />
O clube inglês valorizou<br />
16 vezes em onze anos<br />
68 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 69
TECNOLOGIA STREAMING<br />
MÚSICA:<br />
O DIGITAL<br />
DÁ LUCRO<br />
Pela primeira vez os serviços de streaming de música<br />
terá alcançado mil milhões de ouvintes em todo o mundo.<br />
E o seu crescimento deve fazer a indústria fonográfica<br />
duplicar de tamanho na próxima década. É uma viragem<br />
e tanto num sector que se encontrava em declínio<br />
LUCAS AGRELA<br />
ESCRITÓRIO<br />
DO SPOTIFY,<br />
NA SUÉCIA: Os serviços<br />
de streaming já representam<br />
quase metade da facturação<br />
do mercado da música<br />
No final do último milénio<br />
a imagem da indústria da<br />
música era a de um mercado<br />
em decadência. As vendas<br />
de álbuns — o pilar do seu<br />
modelo de negócios — perderam sentido<br />
depois do surgimento da música digital,<br />
distribuída e partilhada pela Internet (muitas<br />
vezes ilegalmente). Na época, poucos<br />
investidores de consciência sã colocariam<br />
as suas fichas neste segmento apostando<br />
numa recuperação. Passados mais<br />
de dez anos, o que se vê é exactamente o<br />
oposto. A receita da indústria fonográfica<br />
não apenas parou de diminuir como<br />
tem vindo a aumentar a um ritmo que<br />
não se via há muito tempo. No ano passado,<br />
as vendas globais do sector somaram<br />
19 mil milhões de dólares — quase<br />
10% mais do que em 2017 — e a tendência<br />
é para aumentarem. Até os analistas<br />
do mercado mudaram de ideias. Em 2019,<br />
o banco Goldman Sachs reviu a sua previsão<br />
e agora estima que a indústria musical<br />
terá uma facturação de 45 mil milhões<br />
de dólares em 2030, mais do dobro da que<br />
regista actualmente.<br />
A viragem é puxada pelo crescimento<br />
das aplicações de música por streaming,<br />
que oferecem um amplo acervo pelo preço<br />
de um único álbum por mês. Enquanto as<br />
vendas de CD continuaram a cair, a facturação<br />
com os serviços de streaming explodiu<br />
nos últimos anos e atingiu os 9 mil<br />
milhões de dólares em 2018, quase metade<br />
do total. Segundo um estudo recente da<br />
consultora de mercado alemã Statista,<br />
em 2019, pela primeira vez, o mercado<br />
de streaming de música terá alcançado<br />
mil milhões de ouvintes, entre assinantes<br />
e pessoas que acedem aos seus serviços<br />
gratuitamente. É um marco para um<br />
sector que vendeu uns míseros 52 milhões<br />
de CD em 2018 nos Estados Unidos, 94%<br />
menos do que os 943 milhões comercializados<br />
em 2000, segundo a associação<br />
americana que representa o sector, a Riaa.<br />
Fundada em 2008, a empresa sueca<br />
Spotify é o grande expoente e líder entre<br />
os serviços de música. Está presente em<br />
79 países e parte do segredo do seu sucesso<br />
é o modelo de negócios, que mistura<br />
assinaturas que permitem fazer o download<br />
e aceder a um acervo de mais de<br />
50 milhões de músicas, e receitas com<br />
publicidade, veiculada para os ouvintes<br />
que preferem não pagar. Os planos custam<br />
70 | Exame Moçambique
D.R.<br />
A DIGITALIZAÇÃO DÁ O TOM<br />
Em 2019, o mercado de transmissão de música<br />
via Internet chegará aos mil milhões de ouvintes<br />
no mundo<br />
Ouvintes de serviços de música on-line no mundo<br />
(em mil milhões)<br />
2017 0,9<br />
2018<br />
0,96<br />
2019<br />
1,02<br />
<strong>2020</strong><br />
1,07 (1)<br />
2021<br />
1,11 (1)<br />
2022<br />
1,14 (1)<br />
2023<br />
1,16 (1)<br />
A receita global da indústria da música gravada<br />
provinha de media física, mas o streaming de<br />
música assumiu a liderança do sector em 2017<br />
Facturação global da indústria fonográfica<br />
(em mil milhões de dólares)<br />
Media Física<br />
Streaming de Música Música Digital (2)<br />
Direitos autorais espéctaculos<br />
Outros<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
2001 2018<br />
0,4<br />
2,7<br />
2,3<br />
9<br />
4,7<br />
(1)<br />
Previsão (2) Excluindo streaming.<br />
Fontes: Statista e IFPI.<br />
cerca de 4 dólares. A empresa não pára<br />
de crescer. No terceiro trimestre de 2019,<br />
o número global de utilizadores atingiu<br />
os 248 milhões, 30% mais do que um ano<br />
antes. Dessa base, 113 milhões são assinantes<br />
— pouco menos do que os 158<br />
milhões de clientes do serviço de vídeos<br />
da Netfix. Os resultados financeiros do<br />
Spotify acompanharam a multiplicação<br />
dos ouvintes. A facturação foi de 1,9 mil<br />
milhões de dólares no terceiro trimestre,<br />
um aumento anual de 28%. O lucro também<br />
for maior, atingindo os 490 milhões<br />
no trimestre.<br />
Grandes empresas tecnológicas não<br />
perdem de vista uma fatia do bilionário<br />
mercado da música. A Amazon e a Apple<br />
têm aplicações de música on-line. O Apple<br />
Music foi lançado em 2015 e tem 60 milhões<br />
de utilizadores graças à força da marca<br />
e do mais de mil milhões de iPhones utilizados<br />
no mundo. Já a Amazon oferece<br />
acesso ao Amazon Music aos clientes do<br />
programa de fidelidade, o Prime. O plano<br />
de benefícios também inclui um serviço<br />
de vídeo e vantagens como entrega grátis.<br />
O acervo da Amazon é pequeno face<br />
às rivais, com 2 milhões de músicas. Por<br />
isso, a empresa tem uma segunda app,<br />
mais cara, com uma biblioteca musical<br />
parecida com a do Spotify. Para Matteo<br />
Ceurvels, analista de pesquisa da consultora<br />
eMarketer para a América Latina,<br />
o crescimento das aplicações de música<br />
acompanha a tendência dos serviços de<br />
vídeo, puxada pela Netflix. “Com o surgimento<br />
de grandes plataformas, como<br />
o Spotify, as empresas digitalizaram um<br />
amplo acervo e recomendam músicas que<br />
o utilizador tem boas hipóteses de gostar<br />
de ouvir. Vivemos hoje uma ascensão<br />
do mercado da música via Internet”,<br />
diz Ceurvels.<br />
DIRECTO AO REFRÃO<br />
A preponderância do streaming no sector<br />
musical causou impacto até na forma<br />
de compor as canções: estas têm ficado<br />
mais curtas. Cada vez que alguém ouve<br />
uma música, é gerado um valor pequeno,<br />
inferior a 1 centavo de dólar, para gravadoras<br />
e artistas. Uma música precisa de<br />
milhões de reproduções para ser lucrativa.<br />
Por isso, as músicas pop perderam<br />
as introduções longas.<br />
A banda irlandesa U2 adaptou-se ao<br />
novo modelo. Na música Where Streets<br />
abril <strong>2020</strong> | 71
TECNOLOGIA STREAMING<br />
HANS-HOLGER ALBRECHT:<br />
Lidera o maior concorrente<br />
do Spotify<br />
O executivo alemão Hans-Holger<br />
Albrecht é presidente mundial da<br />
francesa Deezer, que rivaliza com o<br />
Spotify. Com 56 milhões de músicas,<br />
a Deezer aposta em parcerias e artistas<br />
locais para crescer.<br />
Como é que as aplicações<br />
mudaram<br />
a música nos últimos anos?<br />
Foram uma das maiores revoluções<br />
do mercado. O sector voltou a crescer<br />
por sua causa. Para o consumidor,<br />
a experiência de ouvir música<br />
tornou-se mais personalizada.<br />
Qual foi o impacto das aplicações<br />
na pirataria?<br />
As aplicações surgiram das ruínas<br />
da indústria, abalada pela pirataria.<br />
Ajudaram a formalizar alguns mercados.<br />
A Suécia tinha altos índices<br />
de pirataria. Hoje tem um grande<br />
número de assinantes.<br />
D.R.<br />
UMA SAÍDA<br />
CONTRA A<br />
PIRATARIA<br />
Para o presidente da<br />
francesa Deezer, os serviços<br />
de streaming ajudaram a<br />
combater a partilha ilegal<br />
de música na Internet<br />
Porque assistimos a um aumento<br />
de interesse por podcasts?<br />
A qualidade das produções aumentou<br />
com o investimento das empresas<br />
de streaming de música. Hoje<br />
há mais espaço para os podcasts.<br />
No último ano, no Brasil, o consumo<br />
aumentou 67% na Deezer.<br />
Qual é a estratégia de expansão<br />
global da Deezer?<br />
Oferecer músicas locais. No Brasil,<br />
somos fortes com o sertanejo. Organizamos<br />
eventos e temos ainda um<br />
sistema de pagamento diferenciado<br />
para os artistas regionais. Se alguém<br />
ouve música sertaneja o dia todo em<br />
São Paulo, o dinheiro gerado [por<br />
esse assinante] vai para esses artistas.<br />
Como é feita a partição da receita<br />
com as gravadoras?<br />
Antes, pagávamos 100% da receita<br />
gerada pela reprodução de músicas.<br />
Em 2017 esse valor diminuiu para<br />
os 80%. Actualmente, está entre os<br />
60% e os 70%.<br />
Qual é o grau de importância do<br />
Brasil<br />
na estratégia da Deezer?<br />
O país está entre os três maiores mercados.<br />
Temos uma parceria de gratuidade<br />
com a operadora TIM que é<br />
Have no Name, de 1987, o vocalista Bono<br />
Vox só começa a cantar perto dos 2 minutos,<br />
entre os quase 6 de duração. Numa<br />
música deste ano dos U2, Ahimsa, com<br />
menos de 4 minutos, a introdução tem<br />
pouco mais de 10 segundos. Segundo a<br />
Associação Americana de Editores Musicais,<br />
13% do valor das reproduções de<br />
uma canção vai para o bolso do artista.<br />
Em busca de diferenciação, a francesa<br />
Deezer, uma das maiores rivais do Spotify,<br />
segue um modelo de pagamento<br />
que contempla os artistas que não têm<br />
milhões de reproduções. “Se alguém<br />
ouve música sertaneja o dia todo em São<br />
Paulo, o dinheiro gerado [por esse assinante]<br />
vai para esses artistas”, explica o<br />
executivo alemão Hans-Holger Albrecht,<br />
presidente mundial da Deezer (entrevista<br />
ao lado). Noutras plataformas, o dinheiro<br />
das assinaturas é somado, para depois<br />
ser dividido entre os artistas de todo o<br />
mundo com base no número de reproduções.<br />
O Brasil não tem empresas relevantes<br />
no mercado global de streaming<br />
de música. A de maior renome é a gaúcha<br />
Superplayer, que oferece um serviço<br />
baseado em listas temáticas. Para Robson<br />
Del Fiol, sócio da consultora KPMG,<br />
as empresas que saíram à frente no mercado<br />
global têm grande vantagem. “É um<br />
mercado consolidado e dominado pelas<br />
plataformas estrangeiras, já têm grandes<br />
bases de utilizadores e dificilmente<br />
serão vencidas por startups”, diz Del Fiol.<br />
Para ele, até o Google tem dificuldade em<br />
fazer crescer o serviço YouTube Music,<br />
que tem 15 milhões de assinantes, uma<br />
vez que as pessoas preferem ouvir músicas<br />
nos vídeos do YouTube, de graça.<br />
No novo cenário da indústria da música,<br />
o papel das aplicações é posicionarem-<br />
-se como emissoras de rádio particulares<br />
para cada utilizador, tarefa que só<br />
pode ser realizada com a ajuda da tecnologia.<br />
“Quem conseguir entender o comportamento<br />
do consumidor e oferecer as<br />
melhores experiências vai diferenciar-se”,<br />
diz Clarissa Gaiatto, directora de transformação<br />
digital da consultora Deloitte.<br />
Na música, a media física tornou-se um<br />
nicho, e a receita, agora, vem das aplicações,<br />
cada vez mais personalizadas.b<br />
72 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 73
TECNOLOGIA SAÚDE<br />
MAIS DIGITAL<br />
PARA SER MAIS<br />
SAUDÁVEL<br />
A tecnologia oferece sofisticação na atenção à saúde<br />
dos mais idosos, cuja quota na população aumenta.<br />
O bem-estar prometido foi, súbita e ironicamente, abalado<br />
por um vírus desconhecido que derruba os mais velhos<br />
A<br />
população mundial nunca<br />
envelheceu tão rapidamente<br />
quanto hoje. De acordo com<br />
a Organização das Nações<br />
Unidas, a percentagem de<br />
pessoas com 65 anos será de uma para cada<br />
seis em 2050. Actualmente, é de uma para<br />
cada 11. Esta faixa etária está na mira das<br />
empresas de tecnologia, um público que<br />
procura manter-se saudável mesmo com o<br />
avanço da idade. A americana Apple transformou<br />
o relógio Apple Watch numa verdadeira<br />
central de saúde. Emite alertas em<br />
caso de queda de idosos, monitoriza exercícios<br />
físicos e oferece recursos para caminhada,<br />
como uma bússola independente do<br />
iPhone. A sul-coreana Samsung, por sua vez,<br />
conta com o relógio Galaxy Watch, compatível<br />
com telemóveis do sistema Android<br />
e com iPhones. Pode monitorizar actividades<br />
físicas e a movimentação do utilizador<br />
durante o sono. Neste novo contexto,<br />
aumenta a preocupação com a pele, e aparelhos<br />
conectados, como o Foreo UFO Mini,<br />
destacam-se. “Nos próximos cinco anos, estimamos<br />
que os dispositivos inteligentes de<br />
saúde serão cada vez mais utilizados. Assim,<br />
caminharemos para um serviço de saúde<br />
conectado”, afirma Mike Jones, analista e<br />
vice-presidente da consultora Gartner. b<br />
GALAXY WATCH<br />
O Galaxy Watch, da Samsung, é um relógio<br />
inteligente compatível com telemóveis<br />
do sistema Android e com iPhones. Permite<br />
monitorizar exercícios físicos, mostra<br />
notificações de aplicações, mede a qualidade<br />
do sono e é resistente à água.<br />
APPLE WATCH SERIES 5<br />
A nova versão do Apple Watch<br />
é uma central de saúde de pulso.<br />
Detecta o nível de ruído do<br />
ambiente, monitoriza os batimentos<br />
cardíacos e estima as calorias<br />
gastas com exercício físico. Tem<br />
um sistema de alerta de queda para<br />
os idosos, que acciona, sozinho,<br />
um contacto de emergência.<br />
74 | Exame Moçambique
FOREO UFO MINI<br />
O Foreo UFO Mini é um aplicador de máscara facial<br />
que tem uma aplicação para ajudar o utilizador<br />
a fazer o procedimento correctamente. Requer<br />
máscaras especiais, para de dia ou de noite, que<br />
são aplicadas em apenas 90 segundos.<br />
NIKE ZOOM<br />
O Nike Zoom pegasus Turbo Shield foi projectado para<br />
ser leve e confortável. Ao mesmo tempo, conta com<br />
um design resistente a diferentes situações climáticas.<br />
A sola de borracha melhora a aderência. Daí ser possível<br />
correr ou caminhar mesmo em meses chuvosos.<br />
BPM CONNECT<br />
O BPM Connect, da Nokia,<br />
é um dispositivo que mede<br />
a pressão arterial e reúne os<br />
dados numa aplicação para<br />
smartphone, facilitando a<br />
visualização dos resultados<br />
e o histórico da pressão da<br />
pessoa. Durante a medição,<br />
uma luz verde indica se<br />
a pressão está boa.<br />
THE DEWY SKIN CREAM<br />
O creme à base de arroz The Dewy Skin Cream,<br />
da japonesa Tatcha, tem efeito antioxidante<br />
e hidratante para a pele. Em alta em países como<br />
os Estados Unidos, este tipo de produto atraiu<br />
a atenção do gigante Unilever, que comprou<br />
a Tatcha por 500 milhões de dólares em 2019.<br />
abril <strong>2020</strong> | 75
BAZARKETING<br />
THIAGO FONSECA<br />
Sócio e director de Criação da Agência GOLO.<br />
PCA Grupo LOCAL de Comunicação SGPS, Lda<br />
UM ANÚNCIO<br />
PARA TODAS<br />
AS MARCAS<br />
Numa situação normal, são as<br />
marcas, as empresas, que fazem<br />
anúncios para o público. Mas este<br />
não é um momento normal. É o<br />
momento de o público fazer um<br />
anúncio para as marcas. Um briefing<br />
invertido: o que as empresas devem<br />
fazer durante esta crise. Esse briefing<br />
parece óbvio: as marcas devem comunicar<br />
as mensagens relevantes. Porque<br />
neste momento não se aplica a lógica das<br />
vendas. É um momento mais do que especial.<br />
E as marcas que entenderem isso<br />
mais rapidamente serão as que também<br />
se tornarão especiais.<br />
Sempre acreditei que o trabalho de<br />
brand building não é publicidade. É construção<br />
de percepções. E isso faz-se a médio<br />
e longo prazo. Diz-se na gíria popular<br />
que é fácil ter amigos quando tudo está<br />
bem. Mas a verdadeira amizade é testada<br />
quando há dificuldades.<br />
MARCAS VIVEM DE RELAÇÕES<br />
Como é que as marcas se devem relacionar<br />
connosco agora?<br />
A crise económica global, que já chegou<br />
devido à pandemia do novo coronavírus,<br />
é real. E já está a colocar todas as<br />
empresas, sem excepção, à prova.<br />
O que fazer? Reagir à situação imediata<br />
olhando apenas para o impacto nas<br />
vendas, ou olhar a médio prazo e ver<br />
para lá da crise?<br />
A atitude e o comportamento que as<br />
empresas tiverem agora vai ditar o futuro<br />
das suas marcas. As marcas devem<br />
vender mais do que produtos ou bens.<br />
Mais do que vender bem, devem vender<br />
o bem.<br />
São essas as marcas que sempre se tornaram<br />
as favoritas dos consumidores —<br />
as que conseguem criar laços emocionais<br />
mais fortes e ter um propósito maior.<br />
Neste momento, é preciso uma grande<br />
capacidade de adaptação rápida para<br />
ajustar, mudar as mensagens pelo bem<br />
comum.<br />
A essência do marketing é a comunicação.<br />
As marcas fazem parte do nosso<br />
dia-a-dia, não apenas nas prateleiras das<br />
lojas mas nas nossas vidas. Falam connosco<br />
desde que acordamos até irmos<br />
dormir.<br />
As marcas estão na rádio, nos jornais,<br />
nos outdoors, nas redes sociais, nos bill-<br />
76 | Exame Moçambique
oards, na televisão, em todo o lado. Estão<br />
sempre presentes. É o momento de<br />
essa presença ser usada para dar algo em<br />
troca à sociedade.<br />
A comunicação deve mudar para mensagens<br />
de prevenção em primeiro lugar.<br />
E, dependendo de quanto tempo durar<br />
este período, também devem fazer o que<br />
MAIS DO QUE VENDER<br />
BEM, AS MARCAS<br />
DEVEM VENDER O BEM<br />
sempre fizeram, vender o optimismo<br />
através dos conteúdos que têm de ser<br />
criados.<br />
Vai ser colocado a teste o futuro das<br />
empresas que afinal só estavam presentes<br />
com o único propósito de vender.<br />
As marcas mais fortes do mundo têm um<br />
propósito maior.<br />
As empresas de sucesso terão de se<br />
adaptar. Manter-se presentes nas nossas<br />
vidas de outras formas.<br />
Mais do que nunca, esta é a altura de<br />
investir.<br />
As marcas que irão crescer após a<br />
COVID-19 serão as que perceberem<br />
que este é um momento único e que vai<br />
transformar o mundo. E é por esse motivo<br />
que devem transformar a crise numa<br />
oportunidade para revelarem o seu propósito<br />
e aproximarem-se dos consumidores.<br />
Porque, afinal, os consumidores<br />
são pessoas. Seres humanos.<br />
A IMPORTÂNCIA DA COMUNICAÇÃO<br />
É tempo de investir. De usar o poder da<br />
comunicação para veicular mensagens<br />
adaptadas ao momento que estamos a<br />
enfrentar.<br />
Esta não é a altura de competirmos<br />
uns com os outros mas de ganharmos<br />
esta guerra.<br />
E, por isso, partilho, com a devida<br />
autorização, um texto de um escritor<br />
moçambicano que também é um amigo<br />
muito especial:<br />
“As grandes marcas não são as que<br />
vendem mais. São aquelas que são as<br />
mais relevantes. E a relevância vem de<br />
várias formas. Inspirem-nos e mostrem-<br />
-nos do que são capazes. Precisamos<br />
como sociedade das vossas melhores<br />
ideias e, acreditem, saberemos como vos<br />
retribuir financeiramente, quando a tormenta<br />
passar. Depois da privação, virá<br />
uma poderosa e descontrolada onda de<br />
consumo.<br />
O público saberá reconhecer quem esteve<br />
ao seu lado quando a tormenta tiver<br />
passado e for hora de matar a sede de<br />
consumo.<br />
As crises fazem parte da vida. Aprendam<br />
também vocês a fazerem parte da<br />
nossa.”<br />
As empresas que mantiverem o seu<br />
investimento em comunicação com as<br />
mensagens certas durante tempos difíceis<br />
são as que se tornam mais fortes e<br />
lucrativas. Foi a História que nos ensinou<br />
isso.<br />
Esta não é a primeira crise do mundo.<br />
Uma coisa é certa: esta crise, como<br />
qualquer outra, vai acabar.<br />
Não deixe que ela acabe com a sua<br />
marca. b<br />
abril <strong>2020</strong> | 77
MARKETING ARTE<br />
UMA JULIETA<br />
FEMINISTA<br />
IVAN PADILLA, EM VERONA<br />
A ACTRIZ TRANS INDYA<br />
MOORE: Depoimento<br />
sobre a diversidade de<br />
raça e género no filme<br />
do calendário<br />
A visão contemporânea da personagem de William<br />
Shakespeare é o tema do Calendário Pirelli de <strong>2020</strong><br />
Na trama de William Shakespeare,<br />
Julieta, a mais romântica<br />
das personagens da<br />
literatura, começa a sua trajectória<br />
como uma adolescente<br />
ingénua e termina como uma mulher<br />
independente, corajosa, que desafia convenções<br />
e morre por convicções. Este foi<br />
o tema escolhido pelo fotógrafo italiano<br />
Paolo Roversi para o Calendário Pirelli<br />
de <strong>2020</strong>. “Quis retratar a procura de um<br />
ideal, de um sonho”, explica Roversi na<br />
entrevista concedida no Teatro Filarmónico<br />
de Verona, durante o lançamento do<br />
anuário, no início de Dezembro. “Julieta<br />
é uma mulher que junta a fragilidade à<br />
força, e timidez à rebeldia.”<br />
O nome do calendário é “À Procura de<br />
Julieta”. E Roversi, fotógrafo reconhecido<br />
pelas campanhas publicitárias de moda,<br />
procurou a sua Julieta em cada uma das<br />
nove artistas convidadas, de diferentes<br />
perfis e nacionalidades, a participar.<br />
HOJE<br />
JULIETA<br />
SERIA FEMINISTA<br />
A fragilidade está mais presente no olhar<br />
e no gesto da actriz britânica Claire Foy.<br />
A cantora chinesa Chris Lee, a actriz britânica<br />
Mia Goth e a actriz italiana Stella<br />
Roversi, filha de Paolo, parecem mais contemplativas.<br />
A cantora espanhola Rosalía<br />
e a actriz americana Emma Thompson<br />
interpretam uma Julieta mais sensual.<br />
E a força está na atitude das actrizes americanas<br />
Kristen Stewart, Yara Shahidi<br />
e Indya Moore.<br />
“Acho que sim, Julieta seria feminista<br />
hoje”, responde Yara à pergunta na conferência<br />
de imprensa do lançamento do<br />
calendário. “O feminismo é uma expressão<br />
individual, e essa é a beleza do feminismo.<br />
Cada mulher é uma. E cada uma<br />
de nós interpretou a sua Julieta.” Com 19<br />
anos, Yara é conhecida pela actuação na<br />
série Black-Ish e pelo activismo a favor da<br />
diversidade e da educação das mulheres.<br />
Quando questionada sobre o significado<br />
do amor para a sua geração, afirma: “Acho<br />
78 | Exame Moçambique
interessante ver como o poder do sentimento<br />
muda à medida que crescemos,<br />
passa de platónico a outros níveis. Os conceitos<br />
estão a redefinir-se, falamos hoje<br />
de identidade e fluidez no género, o amor<br />
está a transformar-se com isso. Vamos ver<br />
como lidaremos com a mudança.”<br />
A Pirelli conseguiu realizar um caso<br />
de marketing ao transformar uma folhinha<br />
de borracharia em obra de arte, com<br />
uma tiragem limitada — este ano foram<br />
impressos 12 mil exemplares, distribuídos<br />
apenas aos convidados. Lançado em<br />
1964, o anuário só deixou de ser publicado<br />
A PIRELLI REALIZOU<br />
UM CASO<br />
DE MARKETING<br />
de 1975 a 1983 devido à crise do petróleo.<br />
Os melhores fotógrafos do mundo são<br />
convidados a encabeçarem o projecto e<br />
têm liberdade na escolha do tema e das<br />
personagens. Apesar de a Pirelli ser uma<br />
empresa fundada em Milão, Roversi, nascido<br />
em Ravena, é o primeiro fotógrafo<br />
italiano a fotografar o calendário.<br />
Até há pouco tempo, a sensualidade<br />
dava o tom dos retratos. Nos últimos<br />
cinco anos, os temas passaram a variar.<br />
Este ano ocorreram outras duas mudanças.<br />
A primeira foi o formato. Em vez de<br />
uma folhinha para pendurar na parede,<br />
o calendário inspirou-se nos libretos de<br />
ópera — Roversi é um apaixonado por<br />
música lírica. A versão deste ano tem 132<br />
páginas, com trechos de Romeu e Julieta<br />
e 58 fotografias a cores e a preto e branco<br />
das nove artistas. A segunda novidade é<br />
que, juntamente com a versão impressa,<br />
foi lançada uma curta-metragem de 18<br />
minutos. As convidadas dão depoimentos<br />
sobre a construção da personagem<br />
para o ensaio e aparecem a posar, declamar<br />
e cantar durante as sessões de fotos.<br />
Especialmente comovente no filme é a<br />
fala da actriz Indya Moore: “Eu sou negra<br />
e sou trans. Eu sou negra de pele clara,<br />
e muita gente acha isso bonito. Eu acho<br />
bonita a pele escura. Da mesma forma, sou<br />
uma trans que não parece trans, e para<br />
CLAIRE FOY: Depoimentos<br />
sobre o amor não idealizado<br />
abril <strong>2020</strong> | 79
MARKETING ARTE<br />
A actriz norte-americana Emma Watson<br />
interpreta uma Julieta mais sensual<br />
algumas pessoas isso é ser bonito. Esse<br />
não é meu tipo de beleza.” A atriz Claire<br />
Foy, a rainha Elizabeth nas duas primeiras<br />
temporadas da série The Crown, discorre<br />
com extrema sinceridade sobre as<br />
suas decepções amorosas. “Quando era<br />
menina, tive um amor não correspondido,<br />
e isso transformou-se num hábito”, diz.<br />
A primeira experiência “foi um desastre<br />
e uma tragédia, e destroçou-me o coração.”<br />
E conclui: “Acho que tenho muitas<br />
cicatrizes para me entregar por completo.”<br />
O lançamento do Calendário Pirelli<br />
encerra sempre com uma festa black tie.<br />
Desta feita, o evento aconteceu no Giardino<br />
Giusti, um belíssimo jardim renascentista<br />
de Verona cercado por ciprestes.<br />
Na pista de dança, em contraste com o<br />
supostamente triste depoimento no documentário,<br />
Claire Foy era uma das mais<br />
animadas. Ficou até ao fim do evento<br />
com um grupo de amigas. No trabalho<br />
de Roversi com as nove actrizes e cantoras,<br />
nem Romeu faltou. Kristen Stewart<br />
aparece no filme a recitar discursos<br />
tanto de Julieta como do jovem Montecchio.<br />
“Jamais faria um papel que não estivesse<br />
escondido em algum lugar dentro<br />
de mim”, diz Kristen. “Nunca poderia<br />
encenar alguém que não fosse eu, porque<br />
tal seria uma mentira.” b<br />
A cantora chinesa Chris Lee<br />
80 | Exame Moçambique
abril <strong>2020</strong> | 81
MUNDO<br />
PLANO<br />
GABRIELA RUIC<br />
PORTO DE LOS ANGELES,<br />
NOS ESTADOS UNIDOS: O comércio<br />
dos países do G20 recuou e caminha para<br />
atingir o pior desempenho desde 2017<br />
D.R.<br />
ECONOMIA MUNDIAL<br />
MAIS UMA QUEDA NO COMÉRCIO GLOBAL<br />
O ano de 2019 foi mau para as transacções<br />
comerciais dos países do G20, que reúne<br />
as vinte maiores economias do mundo.<br />
No seu último relatório do ano sobre o<br />
comércio exterior, a Organização para a<br />
Cooperação e Desenvolvimento Económico<br />
(OCDE) ressalta que a troca de mercadorias<br />
dos países do G20 registou o terceiro<br />
trimestre consecutivo de queda. As exportações<br />
recuaram 0,7%, e as importações<br />
0,9%. A fragilidade atingiu todas as regiões,<br />
mas a retracção no terceiro trimestre foi<br />
maior na União Europeia, onde as exportações<br />
caíram 1,8% e as importações 0,4%.<br />
O fraco desempenho do bloco foi puxado<br />
pelo recuo da actividade comercial nas três<br />
maiores economias europeias: Alemanha,<br />
França e Itália. O mais recente acordo entre<br />
os Estados Unidos e a China, que reduziu<br />
parte das tarifas sobre os produtos chineses<br />
e evitou a imposição de novas barreiras<br />
entre os dois países, deverá aliviar a situação<br />
em <strong>2020</strong>. Mas a OCDE alerta que, se<br />
no quarto trimestre de 2019 for registada<br />
a quarta queda, o comércio do G20 atingirá<br />
o nível mais baixo desde 2017.<br />
O comércio teve variação negativa até ao<br />
terceiro trimestre de 2019 no bloco G20<br />
Variação trimestral do comércio Exportações<br />
nos países do G20 (em %)<br />
8<br />
6<br />
4<br />
2<br />
0<br />
-2<br />
-4<br />
-6<br />
-8<br />
-10<br />
Fonte: OCDE.<br />
Exportações<br />
Importações<br />
2012 2015 2019<br />
82 | Exame Moçambique
CHINA<br />
BEM-VISTA NA AMÉRICA<br />
LATINA<br />
A maioria da população nos principais países<br />
da América Latina avalia que os laços<br />
com a economia chinesa são positivos<br />
para os interesses locais. O resultado faz<br />
parte de um estudo do instituto americano<br />
Pew Research Center, que aferiu a opinião<br />
do público sobre a China em diversos países.<br />
Já entre os vizinhos da Ásia há mais<br />
desconfiança quanto à crescente influência<br />
chinesa.<br />
Nos emergentes, a maioria da população<br />
considera positiva a influência da China<br />
na economia<br />
Como as pessoas vêem a relação económica<br />
com a China (em %)<br />
Boa<br />
México<br />
África do Sul<br />
Argentina<br />
Brasil<br />
Turquia<br />
Japão<br />
Índia<br />
Coreia do Sul<br />
Má<br />
Fonte: Pew Research Center.<br />
76%<br />
15%<br />
70%<br />
23%<br />
66%<br />
17%<br />
58%<br />
22%<br />
49%<br />
33%<br />
43%<br />
51%<br />
39%<br />
41%<br />
32%<br />
66%<br />
BOLSONARO E TRUMP:<br />
O enfraquecimento<br />
das instituições no<br />
mundo é preocupante<br />
POLÍTICA<br />
DEMOCRACIA ENFRAQUECE NO MUNDO<br />
Ameaçada pela ascensão de governos<br />
nacionalistas apoiados por milhões de<br />
eleitores, a democracia não vive um<br />
bom momento no mundo. Devido a<br />
isso, um número maior de países está<br />
a passar por um processo de “autocratização”,<br />
quando se verifica o enfraquecimento<br />
das instituições que<br />
sustentam a democracia e limitam o<br />
poder dos governos. Pela primeira vez<br />
em quarenta anos, o número de países<br />
em processo de autocratização é<br />
maior do que o de países que estão<br />
a democratizar-se: 24 contra 21. Em<br />
2016, 415 milhões de pessoas viviam<br />
em nações em processo de autocratização.<br />
Actualmente o número é de 2,3<br />
mil milhões. Os dados são retirados de<br />
um estudo recente da Universidade de<br />
Gotemburgo, na Suécia. Os investigadores<br />
consideram que países populosos,<br />
como a Índia, os Estados Unidos e<br />
o Brasil, figuram agora no grupo das<br />
nações em “autocratização”. Por outro<br />
lado, o estudo salienta que, embora<br />
combalida, a democracia continua a<br />
ser o regime político mais difundido,<br />
presente em 99 países.<br />
Pela primeira vez em quarenta anos, há menos países a tornarem-se democracias do que<br />
autocracias<br />
Número de nações em processo de democratização ou autocratização (ano a ano)<br />
Países em democratização<br />
Países em autocratização<br />
REUTERS<br />
CHINA: Boa avaliação na América<br />
Latina e desconfiança na Ásia<br />
D.R.<br />
75<br />
70<br />
65<br />
60<br />
55<br />
50<br />
45<br />
40<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
1972 1980 1990 2000 2010 2018<br />
Fonte: Universidade de Gotemburgo.<br />
abril <strong>2020</strong> | 83
GESTÃO ENTREVISTA<br />
“O MAIOR RISCO<br />
É A INCERTEZA”<br />
Para o presidente mundial do grupo de logística DHL, Frank Appel, gerir uma empresa<br />
num cenário de instabilidade exige manter-se atento aos resultados e às estratégias<br />
de longo prazo<br />
RODRIGO CAETANO<br />
Aos primeiros sinais da guerra<br />
comercial entre os Estados<br />
Unidos e a China, os analistas<br />
passaram a monitorizar<br />
de perto indicadores dos<br />
seus impactos na economia. Para abastecer<br />
a procura por informação, em Janeiro<br />
de 2018 o grupo alemão de logística DHL<br />
lançou o Barómetro do Comércio Global,<br />
um índice baseado em dados da própria<br />
operação, a maior do mundo em segmentos<br />
como o de entrega expressa. Até<br />
Novembro, o índice acumulava uma série<br />
consecutiva de quedas ao longo do ano.<br />
Com 500 mil funcionários distribuídos<br />
por 220 países, a DHL também sente os<br />
efeitos da turbulência no comércio mundial.<br />
As receitas têm-se mantido quase<br />
estagnadas. Em 2015, as vendas anuais<br />
do grupo somavam pouco mais de 59 mil<br />
milhões de euros. De lá para cá, o avanço<br />
foi pequeno. No ano passado, a facturação<br />
atingiu os 60 mil milhões de euros.<br />
Há mais de dez anos como presidente<br />
mundial do grupo DHL, o alemão Frank<br />
Appel mantém o optimismo na crença de<br />
que as fronteiras continuarão a ser apagadas.<br />
Numa visita recente a São Paulo, no<br />
Brasil, Appel falou à <strong>EXAME</strong>.<br />
SEM CERTEZAS<br />
QUANTO AO FUTURO,<br />
AS EMPRESAS ADIAM<br />
INVESTIMENTOS<br />
O comércio global tem vindo a<br />
encolher. Até que ponto isso<br />
representa uma ameaça para os<br />
resultados da DHL?<br />
O maior risco é o cenário de incerteza,<br />
tanto no caso da guerra comercial entre os<br />
Estados Unidos e a China como na indefinição<br />
acerca do Brexit. Sem clareza sobre<br />
o que virá, as empresas adiam investimentos.<br />
Veremos a economia global desacelerar<br />
pelo facto de as empresas adiarem projectos,<br />
tanto na China como no Reino Unido.<br />
Se a China e os Estados Unidos decidirem<br />
que não gostam um do outro e instituírem<br />
mais taxas, o mercado vai adaptar-se.<br />
A conta irá para os consumidores, porque<br />
alguém tem de pagá-la. Mas a dúvida que<br />
a desaceleração gera terá passado. Não<br />
vejo um retrocesso na globalização, pelo<br />
contrário. O Mercosul e a União Europeia<br />
acabaram de assinar um acordo, só falta<br />
ratificá-lo. Claramente, observamos que<br />
os países mais desenvolvidos são também<br />
os mais ligados ao comércio global. Singapura<br />
é o melhor exemplo disso. É um<br />
país sem recursos naturais, com poucas<br />
infra-estruturas, sem educação, mas é um<br />
dos mais ricos, justamente por ser um dos<br />
mais conectados. Não conheço nenhum<br />
caso de proteccionismo que seja bem-sucedido.<br />
Fechar-se para o mundo talvez traga<br />
benefícios a curto prazo mas, com o tempo,<br />
a possibilidade de sucesso é zero.<br />
Mesmo num cenário de<br />
desaceleração, aumenta a pressão por<br />
investimentos em tecnologia no<br />
sector da logística. Como lidar com<br />
este dilema?<br />
Sou um cientista. Na altura em que me tornei<br />
Ph.D. em Neurobiologia, vi a revolução<br />
proporcionada pelo sequenciamento do<br />
ADN. Foram tempos emocionantes. Estamos<br />
a vivenciar um momento como esse<br />
na nossa indústria. Se for a uma construtora,<br />
verá um monte de robots. Mas num<br />
dos nossos depósitos ainda há, em grande<br />
parte, pessoas a trabalharem manual-<br />
84 | Exame Moçambique
FRANK APPEL,<br />
PRESIDENTE<br />
DO GRUPO DHL:<br />
“Não vejo retrocesso<br />
na globalização”<br />
GETTY<br />
mente. À medida que a tecnologia se for<br />
tornando mais barata, o nosso sector<br />
transformar-se-á. Teremos robots, drones,<br />
inteligência artificial, blockchain e por aí<br />
fora. Custa muito dinheiro pôr esses projectos<br />
em funcionamento e o nosso negócio<br />
tem margens pequenas, por isso antes<br />
não podíamos pensar em adoptar essas<br />
tecnologias. Mas esse custo está a baixar.<br />
As pessoas que hoje realizam esses<br />
trabalhos perderão o emprego?<br />
Não. Existe o mito de que a digitalização<br />
destrói empregos. É um disparate. Não sou<br />
economista, mas entendo que há apenas<br />
duas maneiras de gerar crescimento económico.<br />
Uma é ter mais pessoas a fazerem<br />
o mesmo trabalho — só que o mundo<br />
não precisa de mais pessoas. Outra é ter<br />
a mesma quantidade de pessoas a realizarem<br />
mais trabalho. A isso chama-se produtividade.<br />
Com a tecnologia, o nosso sector<br />
vai ter mais produtividade, que resultará<br />
em crescimento económico e, em consequência,<br />
mais emprego. Desde a Revolução<br />
Industrial, o mundo nunca teve tantos<br />
empregos. O que a automação faz é libertar<br />
os trabalhadores de tarefas repetitivas<br />
e permitir que produzam mais em trabalhos<br />
mais relevantes.<br />
Está há uma década à frente da DHL,<br />
mais do dobro do tempo médio de<br />
permanência de presidentes de<br />
empresas globais. Qual é o segredo?<br />
Um líder não é como um técnico de futebol,<br />
que dispõe de 90 minutos para ganhar<br />
o jogo. É preciso evoluir continuamente.<br />
Actualmente, estamos a implementar na<br />
DHL a estratégia para 2025. Um dos pontos<br />
dessa estratégia consiste justamente em<br />
investir 2 mil milhões de euros em digitalização.<br />
Pensar no longo prazo corresponde<br />
a uma das três necessidades básicas<br />
dos seres humanos. Primeiro, queremos<br />
alguém para amar e formar uma família.<br />
Segundo, queremos ser relevantes para o<br />
mundo. E, por fim, queremos ter a expectativa<br />
de que amanhã será melhor do que<br />
hoje. Precisamos dar às pessoas uma perspectiva,<br />
por isso trabalhamos com planos de<br />
seis anos. Deste modo, todos sabem aonde<br />
queremos chegar e qual é o papel que cada<br />
um desempenha nesse processo. b<br />
abril <strong>2020</strong> | 85
GESTÃO VENDAS<br />
MAIS GLOBAL<br />
MAS ACESSÍVEL<br />
A Embraco, o maior fabricante de compressores do mundo,<br />
actualizou a sua plataforma de atendimento aos clientes<br />
RODRIGO CAETANO<br />
E<br />
m 2017, os executivos da<br />
Embraco, a maior fabricante de<br />
compressores do mundo, concluíram<br />
que o sistema de atendimento<br />
ao cliente não tinha<br />
acompanhado a globalização do negócio.<br />
A expansão internacional da empresa, fundada<br />
em Joinville há 48 anos, começou na<br />
década de 1990, quando ainda fazia parte<br />
do grupo Brasmotor, na época também<br />
dono da Brastemp e da Consul. A actualização<br />
mais recente da plataforma que<br />
serve oito fábricas em cinco países havia<br />
sido feita em 1999, dois anos depois da<br />
aquisição do grupo pela americana Whirlpool.<br />
O principal ajustamento consistiu<br />
na substituição do e-mail por formulários<br />
electrónicos. No entanto, o acesso remoto<br />
continuou limitado e dependia da ligação<br />
a servidores da empresa. Estas dificuldades<br />
atrasavam o trabalho dos engenheiros<br />
que visitam os clientes, boa parte deles<br />
A EMPRESA REDUZIU<br />
O TEMPO DE RESPOSTA<br />
A RECLAMAÇÕES<br />
fabricantes de refrigeradores, para resolver<br />
problemas. O tempo entre o registo<br />
de uma reclamação e o início do atendimento<br />
era, em média, de cinco dias. Para<br />
os clientes, dependentes dos compressores<br />
para a sua produção, era uma eternidade.<br />
Em 2017, ao remodelar o sistema, o tempo<br />
de espera diminuiu para 24 horas. Veja<br />
as mudanças e os resultados da empresa,<br />
que desde Julho de 2019 está nas mãos da<br />
japonesa Nidec. b<br />
INVESTIGADORES<br />
DA EMBRACO NO<br />
BRASIL: Sistema na<br />
nuvem e integração<br />
das fábricas<br />
86 | Exame Moçambique
1<br />
UTILIZAR A NUVEM<br />
O primeiro passo do projecto para<br />
melhorar o serviço ao cliente foi<br />
a criação de uma plataforma on-line<br />
na nuvem. Os engenheiros de qualidade<br />
e as equipas de vendas acedem<br />
ao sistema através de aparelhos portáteis<br />
e adicionam fotos e vídeos do problema<br />
para facilitar o trabalho das equipas<br />
de atendimento. A cada etapa,<br />
o sistema indica os próximos<br />
passos e quem é o responsável.<br />
2<br />
COLHER IDEIAS EM TODO O MUNDO<br />
Todas as fábricas da empresa<br />
participaram no projecto, liderado<br />
pela equipa global de qualidade.<br />
Essa diversidade possibilitou o<br />
desenvolvimento de um sistema<br />
já adaptado às necessidades reais<br />
das operações. Diferentes áreas<br />
das empresas envolvidas no<br />
contacto directo com os clientes<br />
participaram no processo.<br />
É possível utilizar o sistema<br />
no idioma local.<br />
3<br />
COMBATER AS CAUSAS DOS PROBLEMAS<br />
Com a unificação de dados numa<br />
só plataforma, foi possível analisar<br />
quais eram os problemas mais<br />
recorrentes. O passo seguinte<br />
foi descobrir as causas desses<br />
problemas, de modo a permitir<br />
ajustes preventivos em diversas<br />
áreas, como design, manufactura<br />
e logística. Com estas medidas<br />
e acções de melhoria contínua,<br />
o índice de rejeição de itens<br />
nas linhas de produção<br />
dos clientes também baixou.<br />
RESULTADOS (1)<br />
• O tempo de resposta às reclamações<br />
diminuiu de cinco dias para apenas um<br />
• A percepção positiva dos clientes<br />
aumentou de 91% para 95%<br />
• O índice de rejeição de produtos<br />
nas linhas de produção caiu 30%<br />
(1)<br />
Referentes ao período de 2016 a 2019.<br />
abril <strong>2020</strong> | 87
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
88 | Exame Moçambique
COM O APOIO DE:<br />
INOVAR<br />
CONTRA<br />
O VÍRUS<br />
Milhares de iniciativas em todo mundo,<br />
conduzidas por todo o tipo de empresas<br />
e empreendedores, desde startups aos<br />
colossos da tecnologia, reinventam-se<br />
e inventam soluções para combater<br />
a pandemia global<br />
90<br />
96<br />
CORRIDA POR SOLUÇÕES<br />
Criatividade faz frente à pandemia<br />
CAMIÕES SEM CONDUTOR<br />
Já circulam nas estradas dos EUA<br />
GETTY<br />
abril <strong>2020</strong> | 89
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
As grandes crises funcionam<br />
sempre como um<br />
estímulo para que surjam<br />
ideias francamente inovadoras.<br />
Um vírus desconhecido<br />
e assassino que afecta quase<br />
todos os países do mundo é um problema<br />
a precisar de solução. Antes: de várias<br />
soluções. Como conseguir os testes mais<br />
eficazes e rápidos que permitam rastear<br />
a doença infecciosa? Como obter celeremente<br />
um medicamento específico para<br />
a combater? Como encurtar o período<br />
que normalmente a descoberta e utilização<br />
de uma vacina exige? Como fabricar<br />
mais ventiladores, indispensáveis na<br />
assistência hospitalar a doentes que atingem<br />
um estado crítico? Em suma, a prevenção,<br />
diagnóstico e combate ao novo<br />
coronavírus mobiliza cientistas de diferentes<br />
áreas do conhecimento, desde biólogos,<br />
epidemiologistas, bioinformáticos<br />
a matemáticos, em todo o mundo, que<br />
comunicam entre si através de uma rede<br />
imensa. Também a população, colocada<br />
em “distanciamento social”, isolamento ou<br />
mesmo quarentena, precisa de comunicar.<br />
Ao avançar, a COVID-19 isola as pessoas<br />
em casa, a única forma de conter a progressão<br />
do contágio, e aquelas cuja profissão<br />
o permite passam ao regime de teletrabalho.<br />
Por quanto tempo é possível manter<br />
as empresas com a esmagadora maioria<br />
dos colaboradores a funcionarem através<br />
da Internet? Ou será que a pandemia<br />
veio demonstrar que, em muitos casos, o<br />
teletrabalho não só substitui o trabalho<br />
presencial como até consegue ser mais produtivo?<br />
Não será a própria reorganização<br />
das empresas em teletrabalho, ditada pela<br />
contenção de contágio da epidemia, com<br />
simplificação de métodos e optimização,<br />
um outro caso inovador no meio do pânico<br />
do COVID-19? Em todo o caso, com o trabalho<br />
a migrar para a videoconferência, os<br />
gigantes da tecnologia colocaram já à disposição<br />
dos utilizadores ferramentas que<br />
facilitam o trabalho à distância.<br />
O CHEIRO A APOCALIPSE QUE<br />
COBRE OS DIAS QUE PASSAM<br />
NÃO TRAVOU OS PRODÍGIOS<br />
INOVADORES<br />
O cheiro a apocalipse que cobre os dias<br />
que passam não coibiu que se multiplicassem<br />
os prodígios inovadores que a tecnologia<br />
permite. Vimos a China construir<br />
em apenas 10 dias um gigantesco hospital,<br />
dezenas de startups a criarem testes<br />
rápidos de rasteio da doença ou mesmo<br />
a mapearem o seu avanço no mundo,<br />
robots a desinfectarem carruagens do<br />
metro em Hong Kong, o e-commerce a disparar,<br />
pacientes a serem tratados em casa<br />
através de vídeo, um exemplo de telemedicina.<br />
Vimos as inovações mais simples<br />
e mais criativas, como a do improvisador<br />
que espeta um clip no isqueiro para<br />
tocar nas superfícies sem se contaminar.<br />
A chama do isqueiro derrete, após cada<br />
contacto, qualquer possível contaminação,<br />
como mostra um dos muitos vídeos<br />
que correm no WhatsApp e noutros sistemas<br />
de comunicação típicos da Internet.<br />
90 | Exame Moçambique
NOVO CORONAVÍRUS:<br />
A necessidade de<br />
inovar a vida face a um<br />
inimigo invisível<br />
Diz-se que a necessidade é a força do<br />
engenho. E é. Por toda a Europa faltam<br />
máquinas de ventilação nos hospitais, uma<br />
falha que pode ditar a morte dos doentes<br />
em estado mais crítico. Também por<br />
todo o lado, empreendedores e criativos<br />
procuram a solução com a tecnologia de<br />
que dispõem. Em Portugal, uma unidade<br />
que trabalha moldes de plástico para eventos<br />
pôs-se a produzir viseiras completas<br />
para o pessoal sanitário com a ajuda<br />
de trabalhadores domésticos. Em Itália,<br />
uma pequena empresa produziu válvulas<br />
para máquinas respiratórias através<br />
de uma impressora 3D. O know-how<br />
de uma equipa de engenheiros foi essencial<br />
para responder aos apelos desesperados<br />
das equipas médicas e para salvar<br />
vidas. Os materiais de protecção esgotam-se<br />
e o mercado torna-se fortemente<br />
especulativo. Na Catalunha, em Espanha,<br />
os habitantes de uma pequena localidade<br />
começaram a produzir em casa<br />
máscaras protectoras com tecidos disponibilizados<br />
por fábricas das redondezas.<br />
Há ideias inovadoras em todos os sectores.<br />
Na Alemanha, um estabelecimento<br />
perto de Leipzing, no Leste do país, inven-<br />
GETTY<br />
AJUDAS<br />
INOVADORAS<br />
“Quero Ajudar” é o nome de uma<br />
aplicação que reúne uma equipa de<br />
voluntários prontos a prestar serviços<br />
a quem estiver de quarentena. A crise<br />
sanitária trouxe muitos exemplos<br />
de inovação que aproveitam as<br />
possibilidades tecnológicas para lançar<br />
cadeias de entreajuda. Em “Quero<br />
Ajudar”, profissionais portugueses e<br />
brasileiros juntaram-se ao programa<br />
de aceleração de “E-commerce<br />
Experience” para criar a aplicação,<br />
uma iniciativa de uma associação<br />
sem fins lucrativos. O projecto assenta<br />
no conceito de entreajuda comunitária<br />
e tem como objectivo superar as<br />
dificuldades causadas pelo COVID-19<br />
através da união entre os grupos de<br />
risco e quem pode prestar a ajuda<br />
necessária. Trata-se de superar as<br />
dificuldades causadas pela COVID-19<br />
no dia-a-dia. Graças à iniciativa, uma<br />
equipa de voluntários presta serviços,<br />
como tomar conta de crianças<br />
ou animais de estimação, fazer<br />
deslocações necessárias, como ir<br />
à farmácia ou ao supermercado,<br />
alojamento dos que estão longe de<br />
casa, o auxílio a animais de estimação<br />
ou ainda dar apoio psicológico.<br />
abril <strong>2020</strong> | 91
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
tou uma maneira de os clientes irem ao<br />
bar sem saírem de casa. Estes encomendam<br />
bebidas e acompanham através de<br />
vídeo a sua preparação e distribuição.<br />
Também a indústria, parada e sem possibilidade<br />
de colocar os stocks, reconverte-<br />
-se, como acontece numa economia de<br />
OS ASSINTOMÁTICOS SÃO<br />
RESPONSÁVEIS PELA<br />
TRANSMISSÃO DA DOENÇA<br />
EM 70% DOS CASOS<br />
guerra. Fábricas nos Estados Unidos vão<br />
passar a produzir material de protecção.<br />
Na Europa, a Ferrari vai produzir ventiladores<br />
e inúmeras indústrias têxteis adaptam-<br />
-se à nova procura de máscaras cirúrgicas.<br />
Na Escócia, uma fábrica de gin produz<br />
agora álcool para higienização das mãos.<br />
TESTES MAIS RÁPIDOS<br />
A detecção de pessoas infectadas pelo<br />
vírus é fundamental para conter a sua propagação.<br />
Um estudo da Universidade de<br />
Colúmbia, nos Estados Unidos, revela que<br />
as pessoas que não apresentam sintomas<br />
— os assintomáticos — são responsáveis<br />
pela transmissão da doença em cerca de<br />
75% dos casos confirmados. No Brasil, um<br />
grupo de empreendedores decidiu reunir<br />
as principais iniciativas de startups para<br />
mitigar o impacto da doença no país. Em<br />
poucas horas foram identificadas 30 iniciativas<br />
e contactadas mais de 500 pessoas,<br />
que passaram a reunir-se no WhatsApp, no<br />
Telegram e outras redes sociais através da<br />
hashtag #StartupsVsCovid19. A Gazeta do<br />
Povo, do Brasil, relata que “uma das startups<br />
presentes no mapa é a Hi Technologies,<br />
que diagnostica o COVID-19 através<br />
de um teste sorológico que demora cerca<br />
de 10 minutos. O teste custará 25 dólares.<br />
Os aparelhos serão comercializados a partir<br />
de <strong>Abril</strong> e o teste já está disponível nas<br />
farmácias que já possuem o Hilab, um<br />
aparelho de exame de sangue instantâneo.<br />
Outra iniciativa parte da Triágil, startup<br />
de triagem médica on-line. Uma simples<br />
conversa com o chatbot ajuda a classificar<br />
as probabilidades de infecção do paciente<br />
e a gravidade da infecção pelo novo vírus.<br />
A triagem é gratuita”. A iniciativa é apoiada<br />
pela Associação Brasileira de Startups, que<br />
utilizará a sua base de 13 mil startups para<br />
procurar soluções que possam integrar a<br />
próxima versão do mapa.<br />
Também no Brasil, o Serviço Nacional de<br />
Aprendizagem Industrial (SENAI) arrancou<br />
com projectos que actuam na prevenção,<br />
no diagnóstico e no combate ao novo coronavírus.<br />
O SENAI pretende seleccionar<br />
iniciativas que possam, em até 40 dias a<br />
partir do início dos projectos, auxiliar o<br />
Brasil a enfrentar a pandemia da COVID-<br />
-19. Serão destinados 2 milhões de dólares<br />
às propostas seleccionadas. Por todo<br />
o mundo, plataformas de startups trabalham<br />
em respostas inovadoras a situações<br />
novas criadas pela pandemia, com<br />
relevo para as necessidades da medicina<br />
em temos de diagnóstico, tratamento e<br />
cura da doença (medicamentos, tecnologia<br />
em vacinas, monitorização de sintomas<br />
à distância e de grupos de risco, entre<br />
outros), cadeias de valor na Internet, para<br />
onde se mudou a quase totalidade do consumo,<br />
e sistemas de entrega, bem como o<br />
ensino à distância, informação, entretenimento<br />
e soluções de higienização para<br />
a mobilidade urbana.<br />
A GUERRA DA VACINA<br />
O tratamento provavelmente chegará primeiro,<br />
mas a existência de uma vacina é<br />
fundamental para imunizar as populações<br />
de prováveis réplicas do surto, o que<br />
se admite possa acontecer na Europa a<br />
seguir ao Verão. Enquanto a maioria das<br />
comunidades não criar anticorpos que bloqueiem<br />
a transmissão do vírus não haverá<br />
qualquer garantia de que este não volta a<br />
atacar quando retomada a vida normal<br />
ou mesmo conservando novos comportamentos<br />
de prevenção da doença. Foram<br />
as vacinas que praticamente eliminaram, ao<br />
introduzir no corpo ano versões frágeis do<br />
vírus envoltas em adjuvantes e convocar os<br />
glóbulos brancos para o combate ao intruso,<br />
epidemias que custaram milhões de vidas<br />
no passado e ainda são uma ameaça letal<br />
em boa parte do mundo, em que África se<br />
inclui, no presente. Segundo a Organização<br />
Mundial de Saúde (OMS) já existem<br />
em todo o mundo pelo menos 41 iniciativas<br />
para criar uma vacina contra o novo<br />
coronavírus. A OMS acrescenta que, no<br />
entanto, apenas uma já chegou ao estágio<br />
de testes em humanos e apresenta alguma<br />
esperança, ainda que limitada, de chegar a<br />
um produto aprovado em menos de dois<br />
anos. A OMS explica que a disputa pela<br />
vacina envolve oito estratégias diferentes<br />
de atacar o vírus.<br />
A corrida pela vacina encerra centenas<br />
de médicos e cientistas em laboratórios<br />
por todo o mundo, enquanto quase<br />
mil milhões de pessoas se encontram<br />
enfiadas em casa para se protegerem da<br />
epidemia, muitas delas em teletrabalho.<br />
Já se anunciam resultados num tempo<br />
meteórico face ao que dura normalmente<br />
VACINA: Já há testes<br />
em humanos mas<br />
deverá demorar,<br />
pelo menos, 12 meses<br />
a estar no mercado<br />
92 | Exame Moçambique
RAPIDEZ<br />
As actuais tecnologias<br />
de vacinação permitem<br />
que se saltem etapas<br />
no desenvolvimento de<br />
uma vacina, que irá surgir<br />
em tempo recorde<br />
ENTREAJUDA<br />
O isolamento social levou<br />
muitas empresas<br />
a inventarem modelos<br />
de entreajuda social<br />
para acorrer aos mais<br />
necessitados<br />
RESPOSTAS À CRISE<br />
COOPERAÇÃO<br />
Centenas de cientistas,<br />
médicos e especialistas<br />
trabalham em laboratórios<br />
de todo o mundo<br />
em contacto uns com<br />
os outros<br />
COMUNICAÇÃO<br />
Os gigantes da Internet<br />
alargam a mais utilizadores<br />
a videoconferência e<br />
serviços essenciais como<br />
a telemedicina<br />
GETTY<br />
FOI DESENVOLVIDA UMA<br />
VACINA EM TEMPO RECORDE<br />
QUE JÁ ESTÁ A SER TESTADA<br />
EM HUMANOS<br />
o processo de criação de um antídoto eficaz<br />
contra um vírus. Em dias sucessivos,<br />
16 e 17 de Março, a China e os Estados Unidos<br />
anunciaram que já dispunham de uma<br />
vacina contra o vírus SARS-CoV-2, pronta<br />
a ser testada em seres humanos. Os Estados<br />
Unidos já iniciaram mesmo os testes<br />
da vacina que desenvolveram num tempo<br />
recorde (42 dias) em 45 voluntários saudáveis.<br />
Os testes estão a ser efectuados na<br />
cidade de Seattle pela organização Kaiser<br />
Permanente, que garante não existir<br />
o risco de a vacina originar a COVID-19,<br />
pois contém um código genético inofensivo<br />
copiado do vírus que provoca a doença.<br />
A investigação, que dispensou a verificação<br />
da capacidade imunológica da vacina em<br />
animais, é financiada pelo National Institute<br />
of Health e conduzida pela empresa<br />
Moderna Therapeutics, cuja cotação deu<br />
um salto na Bolsa. Trata-se de “uma corrida<br />
contra o vírus e não contra outros<br />
investigadores”, salientou o médico John<br />
Tregoning, especialista em doenças infecciosas<br />
no Imperial College de Londres.<br />
Na China, foi o próprio Ministério da<br />
Defesa a anunciar ter desenvolvido “com<br />
êxito” uma vacina contra o novo coronavírus,<br />
estando a realizar ensaios clínicos em<br />
humanos. A vacina foi desenvolvida pela<br />
Academia Militar de Ciências e a equipa<br />
de investigação liderada pela epidemiologista<br />
Chen Wei, garantindo as autoridades<br />
chinesas que é possível avançar “com<br />
uma produção a grande escala, segura e<br />
efectiva”. Por outro lado, várias instituições<br />
chinesas estão a avançar com vários<br />
ensaios clínicos para comprovar mais<br />
vacinas que estão a ser desenvolvidas.<br />
Uma delas assenta em vectores virais da<br />
gripe e está na fase de testes em animais.<br />
abril <strong>2020</strong> | 93
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
DESAFIOS<br />
À INOVAÇÃO<br />
Este é um tempo para gerar soluções<br />
para um período longo de<br />
distanciamento social. A crise global de<br />
saúde pública convoca a inovação para:<br />
▸Disponibilizar uma vacina<br />
em tempo recorde<br />
▸Conseguir rapidamente testes<br />
mais rápidos e eficazes<br />
▸Arranjar maneira de aumentar<br />
a produção de ventiladores<br />
▸Propor novos métodos<br />
e organização do trabalho<br />
▸Criar cadeias de produção<br />
científica<br />
▸Criar cadeias de entreajuda social<br />
▸Aperfeiçoar a videoconferência<br />
▸Reinventar as cadeias de logística<br />
no e-commerce<br />
SUPERCOMPUTADOR:<br />
O Summit identificou<br />
substâncias que<br />
o vírus utiliza para<br />
contagiar e deixa<br />
a ciência mais perto<br />
de uma solução<br />
▸Popularizar a telemedicina<br />
▸Inventar respostas para as novas<br />
necessidades da indústria<br />
Na Alemanha, o laboratório CureVac também<br />
está a desenvolver uma vacina, que<br />
os alemães acusam os Estados Unidos de<br />
tentar comprar por uma soma avultada.<br />
No Brasil, uma investigação financiada<br />
por uma fundação é liderada pelo imunologista<br />
Jorge Kalil, que, por se encontrar<br />
em isolamento, acompanha o trabalho à<br />
distância. Na Índia, o Serum Institute tem<br />
uma vacina de vírus atenuado já em testes<br />
de segurança em animais. A inoculação<br />
de uma versão enfraquecida do vírus<br />
corresponde a um método tradicional e<br />
de eficácia comprovada, levando, contudo,<br />
o seu desenvolvimento muito mais<br />
tempo. A vacina contra o SARS-CoV-2 só<br />
deverá estar disponível dentro de um ano,<br />
constituindo os testes iniciais o primeiro<br />
de muitos procedimentos. Não chegará a<br />
tempo de travar a actual vaga pandémica,<br />
mas traduzirá uma rapidez sem precedentes<br />
na resposta a um vírus.<br />
MAIS COMUNICAÇÃO<br />
O aumento inusitado da procura conduz,<br />
invariavelmente, a ideias inovadoras.<br />
Os mais poderosos da comunicação on-line<br />
põem à disposição dos profissionais que<br />
estão, por força da pandemia, a trabalhar<br />
a partir de casa, ferramentas mais sofisticadas<br />
de comunicação. A Google decidiu<br />
disponibilizar, até 1 de Julho, a categoria<br />
avançada das videoconferências do “Hangouts<br />
Meet” a todos os clientes do “G Suite<br />
94 | Exame Moçambique
D.R.<br />
PROMESSA<br />
DE REMÉDIOS<br />
A investigação científica indica que alguns medicamentos<br />
mostraram-se eficazes no combate ao vírus pandémico<br />
LUCAS AGRELA<br />
e G Suite Education”. A chinesa Alibaba,<br />
que pontifica nos negócios on-line, abriu<br />
aos residentes na província de Hubei, onde<br />
começou o tsunami sanitário que invadiu<br />
o planeta, a utilização gratuita dos seus<br />
serviços de telemedicina. Ainda na China,<br />
outra gigante da Internet, a Baidu, estabeleceu<br />
um fundo de 35 milhões de dólares<br />
para pesquisa e desenvolvimento de cura<br />
do coronavírus, bem como para medidas<br />
de prevenção a longo prazo.b<br />
Hidroxicloroquina, cloroquina e<br />
remdesivir. São estes os medicamentos<br />
que, segundo estudos<br />
científicos, podem ser<br />
eficazes no combate ao novo<br />
coronavírus. A hidroxicloroquina é a mais<br />
promissora. O remédio é utilizado no tratamento<br />
da malária desde a década de 1930,<br />
mas também já foi usado para combater<br />
doenças como a artrite reumatóide e o lúpus.<br />
Chegou a ser substituído recentemente por<br />
outros porque o protozoário parasita plasmodium<br />
falciparum, causador da malária,<br />
tornou-se resistente à sua acção. A hidroxicloroquina<br />
podia ser utilizada para prevenir<br />
ou combater a malária. O medicamento<br />
já se havia revelado eficaz contra a SARS,<br />
uma doença respiratória aguda que surgiu<br />
na China em 2002 e pertencente ao grupo<br />
coronavírus, assim como o vírus causador<br />
da actual pandemia de COVID-19. Num<br />
estudo publicado por cientistas chineses<br />
a 18 de Março na revista científica Nature,<br />
as drogas hidroxicloroquina e remdesivir<br />
mostraram-se capazes de inibir a infecção<br />
do SARS-CoV-2 (nome do novo coronavírus)<br />
em simulação in vitro. Outro estudo<br />
realizado em França, pelo Instituto Mediterrâneo<br />
de Infecção de Marselha, publicado<br />
no periódico científico International<br />
Journal of Antimicrobial Agents, mostra<br />
que a hidroxicloroquina teve um desempenho<br />
positivo. Em alguns casos, foi utilizado<br />
também um antibiótico chamado<br />
azitromicina, que combate infecções pulmonares<br />
causadas por bactérias.<br />
Numa experiência efectuada com dois<br />
grupos, tendo um recebido o medicamento<br />
e outro não, o resultado da droga no combate<br />
ao novo coronavírus foi eficaz. O antibiótico<br />
azitromicina foi usado em conjunto<br />
com a cloroquina, como no estudo frealizado<br />
em França.<br />
Gregory Rigano é orientador de pesquisa<br />
na Universidade de Stanford, nos Estados<br />
Unidos, e co-autor de um estudo sobre o<br />
uso de hidroxicloroquina em humanos para<br />
combater o coronavírus. O estudo ainda<br />
não foi publicado, mas Rigano já concedeu<br />
uma entrevista a uma rádio americana<br />
sobre o tema. “Este será o estudo<br />
mais importante a ser lançado sobre o<br />
tema. Ponto”, disse Rigano. O bilionário<br />
Elon Musk também admite que o medicamento<br />
poderia ser eficaz contra o COVID-<br />
-19. Apesar de promissor, o medicamento<br />
ainda carece de mais testes clínicos antes<br />
de ser distribuído amplamente à população<br />
de forma segura. Por isso, Donald Trump,<br />
Presidente dos Estados Unidos, pediu que<br />
a Food and Drug Administration seja ágil<br />
com o processo de testes e aprovação do<br />
medicamento. Face à falta de aprovações<br />
clínicas do uso da hidroxicloroquina, a<br />
automedicação não é recomendada pelos<br />
médicos e investigadores. b<br />
abril <strong>2020</strong> | 95
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
TÊNDENCIAS GLOBAIS<br />
Em Março, com a ameaça do novo coronavírus<br />
a espalhar-se no Ocidente e os camionistas muito<br />
expostos ao risco de contágio, a TuSimple, startup que<br />
desenvolve a condução autónoma de veículos, anunciava<br />
estar a expandir o seu programa-piloto de transporte<br />
de mercadorias com a UPS para 20 viagens semanais.<br />
30%<br />
É a redução dos custos de<br />
remessas de mercadorias<br />
com a aplicação da<br />
tecnologia de condução<br />
autónoma assente em<br />
inteligência artificial da<br />
TuSimple. Um estudo da<br />
Universidade da Califórnia,<br />
da Jacobs School of<br />
Engineering e da TuSimple,<br />
com base em informações<br />
recolhidas em 122<br />
percursos, totalizando mais<br />
de 15 mil quilómetros,<br />
apurou que a condução<br />
autónoma poupa ainda 10%<br />
de combustível<br />
200m<br />
É a faixa de visão obtida<br />
pelos sensores de luz<br />
dos camiões autónomos<br />
300m<br />
É o alcance da tecnologia<br />
de radar utilizada pelo<br />
camião autónomo para<br />
classificar objectos, mesmo<br />
em condições adversas<br />
1000m<br />
É a distância coberta pelas<br />
câmaras da plataforma<br />
tecnológica dos camiões<br />
autónomos<br />
360 o<br />
É o reconhecimento<br />
do driver virtual<br />
do camião autónomo,<br />
o que permite planear<br />
com uma antecedência<br />
de 30 minutos<br />
É MUITO DIFÍCIL<br />
DIZER ÀS<br />
PESSOAS: VÁ A<br />
RESTAURANTES E<br />
IGNORE A PILHA<br />
DE CORPOS ALI AO<br />
CANTO, QUEREMOS<br />
QUE CONTINUE A<br />
GASTAR PORQUE<br />
TALVEZ HAJA UM<br />
POLÍTICO QUE<br />
PENSA QUE O<br />
CRESCIMENTO<br />
DO PIB É O QUE<br />
IMPORTA”<br />
Bill Gates<br />
LUÍS FARIA<br />
Director Executivo Exame Moçambique<br />
AS SOLUÇÕES<br />
Se não for controlada, a primeira crise global<br />
de saúde pública, transmitida por médias<br />
globais, matará milhões de pessoas. A taxa<br />
de letalidade da pandemia não é grande e é<br />
bastante selectiva, mas a doença é causada<br />
por um vírus extremamente contagioso que<br />
infectará mais de 70% da população mundial<br />
se não for contido.<br />
Crises agudas, e esta é a mais grave desde<br />
a depressão de 1919 e as duas guerras mundiais<br />
que se seguiram, obrigam a que a inovação<br />
encontre soluções para o que antes era,<br />
quanto muito, um cenário apocalíptico saído<br />
da ficção — o filme Contágio, de Steven Soderbergh,<br />
de 2011, descreve uma situação de que<br />
esta, real, poderia ter sido tirada a papel químico.<br />
Alguma força malévola inspirou-se nele?<br />
Face à pandemia terão de ser encontradas<br />
novas soluções para a nova realidade que o<br />
vírus impôs, tirar as lições devidas do impacto<br />
que está a ter na sociedade e na economia globais<br />
e fazer os necessários reajustamentos. Não<br />
houve quem deixasse de avisar. Bill Gates aproveitou<br />
o convite que lhe foi feito em 2014, pelo<br />
programa de inovação TED, para alertar para<br />
que a grande ameaça que se colocava no horizonte<br />
era a de um vírus que atingiria vastas<br />
camadas da população, chamando a atenção<br />
para a incapacidade dos sistemas de saúde para<br />
enfrentarem a catástrofe anunciada. O que se<br />
confirmou. A única saída é inovar, encontrar<br />
subitamente as soluções contra o vírus que nos<br />
persegue e que os vários sistemas instalados<br />
não foram capazes de travar. b<br />
96 | Exame Moçambique
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<strong>EXAME</strong> FINAL<br />
CELSO AMORIM<br />
EX-MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL<br />
“NINGUÉM QUER OUVIR<br />
O BRASIL”<br />
Para o ex-ministro das Relações Exteriores<br />
do Brasil, a comunidade internacional deixou<br />
de ver o país como um aliado mas<br />
como um problema<br />
D.R.<br />
Celso Amorim conhece a política externa do Brasil como<br />
poucos. Diplomata desde a década de 1960, foi ministro<br />
das Relações Exteriores nos governos de Itamar Franco<br />
(1993-1995) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011).<br />
Em entrevista à <strong>EXAME</strong>, o ex-chanceler faz um balanço crítico<br />
do primeiro ano da política externa de Jair Bolsonaro. “Nunca<br />
dantes havíamos rejeitado os valores básicos do multilateralismo<br />
e das normas internacionais”, diz.<br />
Como avalia a política externa do actual governo?<br />
É a política externa mais desastrosa que já vi na história do Brasil.<br />
Nunca dantes havíamos rejeitado os valores básicos do multilateralismo<br />
e das normas internacionais nos mais variados campos.<br />
Também nunca vi um alinhamento automático, absoluto e declarado<br />
com os Estados Unidos como agora.<br />
Quais os benefícios desse alinhamento automático?<br />
Não vejo benefício algum. Até mesmo as pessoas mais conservadoras<br />
do Itamaraty estão horrorizadas, pois isso nunca foi feito.<br />
Os Estados Unidos não respeitam um país que não se respeita.<br />
E o que vemos hoje na relação entre o Brasil e os Estados Unidos<br />
são cenas de paternalismo e desprezo.<br />
O governo Bolsonaro rompeu com a tradição diplomática?<br />
É evidente que sim. Os princípios da não intervenção e da autodeterminação<br />
dos povos, listados na Constituição como princípios<br />
básicos, sempre foram fundamentais para nós. Esses são apenas<br />
dois dos aspectos mais graves dessa ruptura.<br />
Como vê a polémica entre o governo e outros chefes de Estado<br />
quanto às queimadas na Amazónia?<br />
O problema não é a polémica, mas ser ofensivo com um chefe de<br />
Estado. Não concordo com Emmanuel Macron [Presidente de<br />
França] sobre o estatuto internacional da Amazónia. A soberania é<br />
nossa e ninguém o discute, mas, com esta, vem a responsabilidade.<br />
O nosso Presidente teve uma atitude que jamais vi nas relações internacionais.<br />
Nesse episódio, ele ultrapassou os limites da civilidade.<br />
Na sua opinião, como está a imagem do Brasil perante a comunidade<br />
internacional?<br />
As pessoas estão perplexas. O Brasil sempre foi considerado um<br />
país simpático. Só que hoje somos vistos como um problema.<br />
A Amazónia foi o caso mais gritante, mas o que fizemos noutras<br />
áreas, como as atitudes belicosas em relação à Venezuela, acabou<br />
por fazer do Brasil um país que cria problemas.<br />
Qual é, hoje, o papel do Brasil na América Latina?<br />
É pequeno. Há ventos de mudança na região e temos assistido<br />
a uma reacção popular às políticas neoliberais, como no Chile. O<br />
Brasil é um país grande e não será ignorado, mas já ninguém nos<br />
quer nos ouvir. O ministro actual quer aproximar-se de países de<br />
extrema-direita, como a Hungria, e tem atitudes hostis face a outros<br />
países, como a França. É um desvio da nossa política, baseada em<br />
pluralismo e tolerância, sem fanatismo.<br />
A América Latina está a ser palco de várias crises políticas. O<br />
que está a acontecer?<br />
As pessoas acham que podem impor uma doutrina económica e<br />
desconhecem um facto fundamental: estamos a lidar com seres<br />
humanos, não com números ou máquinas. A implementação de<br />
políticas chamadas neoliberais atingiu o limite em muitos países.<br />
Ninguém esperava a recente explosão popular no Chile. E acredito<br />
que esse sentimento chegará ao Brasil. Não sei quando, mas<br />
vai chegar. b<br />
98 | Exame Moçambique