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A Lenda do Lagarto Azul, por Jonas Reis

Imagine o lagarto da Pedra Azul movendo-se naquele magnífico monumento natural capixaba e fazendo de tudo para defender seu território. Este é o enredo do livro infantojuvenil A lenda do lagarto azul, do jornalista e escritor capixaba Jonas Reis. O livro foi premiado no Edital 007/2018 da Secretaria de Cultura do Espírito Santo e publicado agora com recursos do Fundo de Cultura do Estado, o Funcultura. O escritor criou uma lenda que pode se inserir definitivamente na cultura capixaba e principalmente no imaginário da população que vive na região montanhosa do Espírito Santo. O livro apresenta a “origem” do lagarto da Pedra Azul e dá vida ao animal.

Imagine o lagarto da Pedra Azul movendo-se naquele magnífico monumento natural capixaba e fazendo de tudo para defender seu território. Este é o enredo do livro infantojuvenil A lenda do lagarto azul, do jornalista e escritor capixaba Jonas Reis. O livro foi premiado no Edital 007/2018 da Secretaria de Cultura do Espírito Santo e publicado agora com recursos do Fundo de Cultura do Estado, o Funcultura.

O escritor criou uma lenda que pode se inserir definitivamente na cultura capixaba e principalmente no imaginário da população que vive na região montanhosa do Espírito Santo. O livro apresenta a “origem” do lagarto da Pedra Azul e dá vida ao animal.

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Jonas Reis

com ilustrações

de Valter Ferrari


Jonas Reis

com ilustrações

de Valter Ferrari



_ Quem acorda cedo

vê o passarinho branco.

(Da avó Mariana para

os heróis desta história)

As lendas são a poesia do povo;

elas correm de tribo em tribo,

de lar em lar...,

o povo crê,

e não convém destruir

as fábulas do povo…

Este cultivo dos mitos,

não é, talvez, o guardar laborioso

das verdades eternas?

(Machado de Assis)



Copyright © 2019 Jonas Rosa dos Reis

Projeto gráfico

OCA Oficina de Criações Artísticas

Brena Ferrari

Ananda Miranda

Ilustrações

Valter Ferrari

Músicas

Partituras: Bruno Santos

‘Vento Caxinguelê’: Folclore brasileiro

‘Lagarto Azul’: Adaptação do folclore brasileiro

‘Ele vem’: Jonas Reis

Contato

jonas.rr@gmail.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971

R375

Reis, Jonas Rosa dos.

A lenda do lagarto azul / Jonas Rosa dos Reis ; [ilustração

Valter Ferrari]. — Vitória : Spirito Sancto, 2019.

104 p. : il. ; 21 cm.

ISBN 978-85-93801-10-5

1. Literatura infantojuvenil brasileira. 2. Lendas.

I. Ferrari, Valter. II. Título.

CDD 808.899282

Obra selecionada no Edital 007/2018 da Secretaria de Estado da Cultura do

Estado do Espírito Santo e publicada com recursos do Fundo Estadual de

Cultura – Funcultura.

Para David e Levi.

Para Bernardo e Brunella.

Para Pedro Henrique, o Riquinho.



1

Conheça um velho circo e saiba

o que deixou o seu corcunda apavorado

Esta que eu vou contar é a história de dois garotos e

um lagarto. Uma história tão espantosa que até hoje você

pode visitar o lugar onde tudo aconteceu e ainda ver o

grande lagarto, que continua no mesmo lugar. É isso mesmo,

o lagarto continua lá, isso eu não estou inventando.

E o lagarto dessa aventura não é nenhuma lagartixa,

essa coisa pegajosa que anda pelas paredes capturando

insetos. Nem um calanguinho qualquer, que vive pelo

chão procurando vermes para comer.

7



É um lagarto grande de verdade. Tão grande que só

dá pra saber se você for do Espírito Santo para Minas

Gerais, pegando o caminho das montanhas. No km 89

olhe para a Pedra Azul, que está do lado esquerdo da

estrada. Você vai entender do que estou falando.

Quando tudo aconteceu o Espírito Santo já não era um

monte de mato com duas casinhas no meio, como antigamente.

Aqui, de um lado fica o mar; do outro, as montanhas.

Para o Norte e o Sul... bem, isso você aprende na escola. O

que eu quero dizer é que Ojoim vivia numa pequena cidade,

perto do mar. Mas ele achava tudo muito chato, não acontecia

nada naquele lugar desde que o pai dele foi embora.

Eu disse Ojoim? Ah, eu ainda não contei que

Ojoim é um dos garotos da história do lagarto.

Na verdade, ele já estava bem crescido. Era até maior

que seu amigo Mayadu, o outro garoto. Mayadu era um

pouco mais velho, vivia na rua e dormia na velha casa do

Correio. O Correio mudou e agora tinha sede nova, com

um balcão grande e máquinas vindas de longe. Mayadu

aproveitou e ficou morando na casa velha.

Um dia os dois apostavam corrida nas trilhas do

Monte Mochuara quando passou a caravana que

trazia as primeiras notícias do grande lagarto azul.

Mayadu, que se esforçava para alcançar Ojoim, parou

de repente e começou a chamar o amigo com insistência.

É claro que Ojoim não parou, só podia ser um

truque de Mayadu para ultrapassá-lo na corrida. Mas

não era truque, não.

Ojoim começou a ouvir a voz de seu amigo cada vez

mais longe.

– Ojoiiiiiimmmm!

Então ele resolveu parar. Ojoim já havia feito algumas

curvas na trilha do morro, por isso Mayadu estava

fora do alcance de sua vista. Ele voltou, assim desconfiado,

mas quando avistou o amigo ele estava abaixado

atrás de uma pedra e lhe fazia sinais para voltar. Ojoim

correu para junto dele e Mayadu apontou para a estrada

lá embaixão, ao pé do morro.

– Olha pra você ver!

Quando viu a caravana Ojoim ficou logo agitado,

numa inquietação só. Parece que enfim alguma coisa

nova está acontecendo neste lugar! A estrada era de

chão, muito poeirenta e estreita, e as carroças seguiam

devagarinho para a cidade. Vinham uma atrás da outra,

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como bois movendo-se no morro à tardinha, voltando em

fila para o curral.

– Eita sô, quê isso?

Até parecia uma caravana de ciganos procurando lugar

para montar acampamento. Os ciganos costumavam

aparecer assim, pra comprar e vender cavalos, mostrar

os dentes de ouro e ler o futuro na mão das pessoas. Mas

não era uma caravana de ciganos coisa nenhuma. Caravana

de ciganos tem aquelas mulheres vestidas de muitas

cores, com longos cabelos emaranhados ou amarrados

atrás num rabo de cavalo. De verdade mesmo era um

circo. Um circo e um parque de diversões.

Um circo e um parque. Coisa grande!

Ojoim e Mayadu desceram o morro de qualquer jeito.

Largaram da trilha e escorregaram pela encosta, no

meio do mato. Deslizaram pelo barranco e em pouco

tempo chegaram à estrada, com poeira até nas orelhas.

Então eles viram quando um rapaz bem montado a cavalo

voltava da cidade depois de se adiantar à caravana.

Ele chegou galopando junto da primeira carroça da fila.

– É logo ali na frente! – o rapaz disse, falando com o

homem que ia no banco da primeira carroça.

O coração de Ojoim se sacudiu todo quando ele viu o

homem. Mas não era para tanto, não era o pai dele. E ele

devia deixar essa mania de pensar que todo estranho que

aparecia podia ser o seu pai voltando pra casa. O homem

da carroça não era alto e forte como o pai de Ojoim. Era

assim que o garoto se lembrava dele.

A carroça da frente parou e as que vinham atrás foram

parando também. Pararam uma depois da outra,

como os vagões de um trem que chega à plataforma

da estação.

Ojoim e Mayadu estavam agora ao lado da carroça

principal, que tinha alto-falante preso numa vara apontando

para o céu. O homem ligou alguma coisa no banco

em que estava sentado. Ouviu-se o estalido do alto-falante,

e um chiiiiiiado, e outro chiiiiiiiiiiiiiiiiiiado. Aí o

homem testou o microfone.

– Alô, alô, um, dois, três…

Depois o homem começou a falar das atrações do circo.

A carroça se jogou pra frente e foi indo, puxando de

novo a caravana.

Parados à beira da estrada, Ojoim e Mayadu viram

passar cada uma das carroças do circo. Eles ouviram a voz

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do homem garantir ao respeitável público do Espírito Santo

o maior espetáculo da Terra. Ele disse que as atrações eram

da China e vinham de rodar por esse mundo de Deus há

cinco mil anos.

O homem dizia:

– ... conhecer o feroz leão que engoliu o palhaço

Magricela. Não percam o show dos melhores malabaristas

do mundo. Vejam com seus próprios olhos a

transformação da mais bela donzela na assustadora

Mulher Gorila…

Depois de ouvir isso Ojoim e Mayadu não conseguiram

despregar os olhos da caravana. As carroças estavam

cobertas e eles pensavam nas aventuras que deviam

estar escondidas debaixo de cada lona que passava.

Numa carroça aberta dois palhaços preparavam

compridas pernas de pau. E uma mulher tirava o vestido

pela cabeça, deixando de fora umas pernas muito

brancas e depois um maiô preto com fitas coloridas que

brilhavam ao sol.

Quando passava a última carroça, que tinha uma

grade aparecendo na ponta da lona, Ojoim e Mayadu

ouviram o urro.

– Grraurrr!

Só podia ser o leão. Mas era um urro fraco, parecia

mais um bocejo de abrir boca do que um rugido de verdade.

Ainda mais de um leão que tinha engolido um palhaço!

A caravana agora já ia longe em direção à cidade,

mas demorou muito tempo para a voz do alto-falante sumir

na lonjura. E aí voltaram os ruídos do mato junto à

estrada. Um bem-te-vi chamou lá de cima do Mochuara:

“Bem-te-vi!” Uma cigarra respondeu ciciando de um

tronco à beira do caminho e então voltou-se a ouvir, do

fundo do vale, o ruído das águas do rio que descia no

meio das pedras.

Quando chegou à cidade a caravana causou um corre-corre

de crianças. Os trabalhadores do circo tiveram

de armar uma cerca na praça em frente à igreja, para

afastar os curiosos. E tinha gente grande também. Então

os homens começaram a armar a lona do circo. Foi

montado um picadeiro redondo de sete metros e em volta

armaram as arquibancadas.

Do lado de fora do circo foi montada uma tenda fechada

que parecia o camarim dos artistas. Mas nas paredes

de lona estava pintada, em tamanho certo, uma moça

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muito bonita e sorridente. Ao lado dela estava a figura de

um gorila grandão, que olhava a gente de um jeito que parecia

dizer assim: “Vou te engolir!” Ele tinha a boca aberta,

com quatro dentes pontudos, e dava medo só de olhar.

Do outro lado da lona maior foi montado um túnel

que engolia os trilhos do trem fantasma.

Enquanto os homens trabalhavam desse jeito, os dois

palhaços da perna de pau assanhavam a criançada em

volta, andando ao redor da praça. Um palhaço da perna

de pau chamou o outro palhaço da perna de pau pra

rezar na igreja. Eles foram pra lá. Mas era tudo de brincadeira,

porque as pernas de pau eram mais altas que a

porta e eles não podiam entrar na igreja. Então os dois

ficaram encostados na parede da igreja. Um deles juntou

as mãos na frente do seu nariz vermelho de palhaço e

fazia que rezava:

– Ave, ave, aaaaaave...

Mas o outro chorava alto, dizendo que queria entrar

na igreja:

– Buááá, eu quero entrar...

Uma menininha gritou lá de baixo:

– Para de chorar!

No dia da estreia a praça estava assim de gente.

Tinha uma fila pra comprar ingressos e outras

para as atrações. Ojoim e Mayadu ficaram junto

ao túnel do trem fantasma. Eles só riam das caras

assustadas da gente que chegava no trenzinho.

As pessoas falavam das caveiras e dos fantasmas que

viam lá dentro. Outros até imitavam o boneco que aparecia

agachado no final dos trilhos. Ele tinha as calças

arriadas e fazia força junto da linha do trem.

Da tenda da Mulher Gorila vinham muitos gritos.

Muita gente corria para fora quando os pelos cobriam o

corpo da mulher. Transformada em gorila, ela tentava arrebentar

as grades para atacar a gente.

Mas os dois amigos só tinham dinheiro para o espetáculo

do circo, debaixo da grande lona.

Ojoim gostou de ver os malabaristas. Eles jogavam

garrafinhas para o alto e depois pegavam tudo outra vez,

e nada caía no chão. Ele também gostou do cachorrinho

que saltava no meio de uma roda de fogo. Você tinha de ver

aquilo: era um cachorrinho de nada, pequenininho, com

metade do corpo pelado e o resto com um pelo cinzento, como

os cabelos pretos de uma pessoa que começa a envelhecer.

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Eu queria saber se na metade pelada do cachorrinho os

pelos tinham sido queimados naquela roda de fogo, coitado.

Mas o bom mesmo foi o palhaço Ventania.

Ele tinha um cavalo, mas não sabia montar. Então ele

montava de costas para a cabeça do cavalo e o cavalo

dava voltas doidas pelo picadeiro. Aí o palhaço Ventania

caía, depois montava de um lado e caía do outro lado, e

todo mundo ria dele.

No meio do show dos trapezistas Ojoim se esqueceu disso

tudo, porque foi nessa hora que sua aventura começou.

Como todo mundo, Ojoim parecia que tinha parado

de respirar. Haviam tocado uns tambores e um trapezista

pulou no ar sem nada pra segurar. Na verdade, ele ia

agarrar as mãos do trapezista que vinha do outro lado.

Esse outro trapezista tinha as pernas presas no balanço

e vinha de cabeça pra baixo, com os braços assim, estendidos.

Parecia que o trapezista que vinha voando ia cair.

Então todo mundo gritou:

– Ooooh!

Mas nessa hora alguém mexeu nas cortinas do fundo do

picadeiro. Pela fresta que se abriu, um tantinho só de arredamento

das cortinas, Ojoim avistou uma cena estranha.

Um corcunda baixinho e um pequeno artista

do circo estavam sentados em bancos de madeira,

um de frente para o outro. O corcunda tinha a

cabeça baixa e escondia o rosto com as mãos. Ele parecia

desesperado e o pequeno artista o consolava.

Será que o corcunda não queria entrar em cena para fazer

seu número no espetáculo? Será que ele se sentia ruim

da barriga, ou sei lá o quê?

Assim agarrado pelo drama no fundo do circo, Ojoim

escapuliu de seu lugar e saltou da arquibancada para

o chão. Meio escondido, ele se mandou para os fundos,

dando a volta no picadeiro. Mayadu ficou branco quando

viu seu amigo desaparecer lá atrás. Misturado com

o pessoal do circo, que sempre vai embora, Ojoim podia

até se perder para sempre de sua família e Mayadu sabia

muito bem que isso não é nada bom.

Ojoim se espremeu por detrás de alguns caixotes e cenários

amontoados até ficar escondido muito perto do corcunda

e do pequeno artista do circo. O corcunda continuava

com as mãos tapando o rosto, e soluçava. O pequeno

artista do circo estava dizendo:

– ... todos vão rir de você, é melhor não contar.

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– Mas eu vi, eu juro. Era um lagarto gigante...

Olha só o que Ojoim ouviu da conversa: era ainda

madrugada quando a caravana passava pelas montanhas

do Espírito Santo, vindo pelo caminho de Minas

Gerais. Os homens que conduziam as carroças estavam

acordados lá na frente. Dentro das carroças todo mundo

dormia debaixo das lonas, só o corcunda não dormia.

Ele estava enrolado nos cobertores, mas com o rosto de

fora pra olhar a noite passar na estrada.

Com os olhos bem abertos o corcunda olhava a paisagem

que passava devagar pelas carroças naquela noite,

e era noite de lua cheia. Às vezes passavam umas árvores

tão próximas da carroça que o corcunda se assustava.

As sombras das árvores pareciam até fantasmas, uns

fantasmas perseguindo outros. E o corcunda pensava:

“Ainda bem que vão na outra direção. Já pensou essas

sombras, todos esses fantasmas caminhando ao lado das

carroças? E olhando aqui pra dentro? Talvez até se metessem

por debaixo da lona pra me pegar aqui”.

Mas então a estrada fez uma curva para a direita

e começou a subir. Logo à frente havia um trecho

sem árvores à beira da estrada e o corcunda avistou

uma grande pedra iluminada pela lua e com uma nuvem

em volta. Na tarde anterior, quando pararam

para o lanche na beira da estrada, um homem havia

dito que antes do amanhecer eles passariam pela

Pedra Azul, e então não faltaria muito pra chegar.

Aquela devia ser a Pedra Azul, e foi quando aconteceu:

o corcunda viu um grande lagarto subindo, arrastando-se

devagarinho pela pedra.

Mas tudo aconteceu muito depressa, porque na hora

em que o corcunda viu o lagarto ele estava chegando à

altura da nuvem que escondia a pedra. E logo o bicho

desapareceu dentro da nuvem. Primeiro desapareceu sua

cabeça achatada, depois o resto do corpo. E o corcunda,

de tão apavorado que ficou, não se lembrava de ter visto

o rabo do lagarto. Mas nunca mais se esqueceria de uns

homenzinhos que corriam na trilha junto à pedra.

Impressionado com a história, Ojoim deu um jeito

de sair dos bastidores do circo antes que alguém o visse.

Ah, pelo menos ele achou que não tinha sido visto.

Se vissem, talvez até o prendessem numa jaula e o levassem

ao deixar a cidade. Ele voltou pra junto de Mayadu a

tempo de ver o último número do espetáculo: um homem

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com uma cadeira na mão esquerda usava a mão direita

pra estalar um chicote bem na frente do leão. O leão

reclamava e urrava e abria muito a bocarra com a cabeça

virada de lado:

– Grraurrr!

Esse era o leão que tinha engolido o palhaço Magricela.

E para provar que a história era verdadeira o domador

mostrou o que sobrou do palhaço: uma calça curta

de cor amarela, uma camisa xadrez em vermelho, azul e

branco, toda rasgada, e um par de botas pretas de cano

meio longo. Um pé da bota tinha a sola descolada na

frente, e parecia que a bota tinha a boca aberta. O outro

pé tinha dois furos na sola. O homem explicou que isso

não queria dizer que o palhaço Magricela fosse pobre,

mas sim que as presas do leão tinham feito aqueles buracos.

E todo mundo disse outra vez:

– Ooooh!

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2

Que estranho, a sombra ficou

gravada na parede!

Passaram-se algumas semanas, mas Ojoim não parava

de pensar no caso do lagarto. Ele pensava: “Será

que o povo da montanha está em perigo?”

Mas enfim chegou a última noite do circo na cidade e

terminou o último espetáculo. Os carrinhos do trem fantasma

pararam, os palhaços descansaram suas pernas de

pau, os trapezistas desceram lá do alto e a mulher já não

se transformava em gorila. Naquela noite, Ojoim estava

23



deitado em sua cama quando levou um baita susto: ele

percebeu de repente, dentro do quarto, a sombra do corcunda

olhando-o da parede em frente à janela.

Já não entrava pela janela o som da música no alto-falante

e as vozes das pessoas que voltavam do circo também

haviam silenciado. Ojoim via a sombra do corcunda

na parede, no meio de um raio de luz que entrava pela janela.

A sombra na parede era de assustar, mas Ojoim não

podia nem imaginar o que ia acontecer com ela.

Depois de se assustar com a sombra Ojoim olhou

para a janela e viu o corcunda. O corpo do corcunda era

banhado pela luz que vinha de fora, por isso a sombra

aparecia na parede. Ojoim ficou preocupado. E se sua

avó aparecesse agora no quarto e visse o corcunda? Ia se

assustar de verdade e podia até morrer de susto!

Ojoim se sentou na cama.

– Você sabe – o corcunda disse lá da janela

Ojoim não tirava os olhos do corcunda.

– O lag...gar...to... – ele gaguejou.

– Sim, você sabe. Eu vi você sair escondido naquela

noite no circo.

Eles ficaram se olhando no escurinho do quarto.

Ojoim não sabia como o corcunda tinha chegado ali.

Havia alguma coisa muito séria naquilo. Alguma coisa

de que ele não podia fugir, um destino traçado. Coisa antiga.

Como as atrações do circo, que vinham da China e

andavam pelo mundo há cinco mil anos.

Então o corcunda pulou a janela e caminhou devagar

até a cama de Ojoim, mas sua sombra ficou onde estava,

sem se mover.

O corcunda chegou mais perto. Ojoim estava sentado

na cama e os dois ficaram à mesma altura. O corcunda

segurou o ombro de Ojoim e seu rosto quase tocava o

rosto do rapaz quando ele falou.

– Você tem que ir lá. O povo da montanha está esperando

por você...

Ojoim não se mexeu. Depois de algum tempo o corcunda

começou a se afastar de costas, sem tirar os olhos

dele. Então o corcunda pulou outra vez a janela e desapareceu

lá fora. Ele foi embora, mas sua sombra ficou.

A sombra ficou gravada na parede! Quando acordou

na manhã seguinte Ojoim saltou da cama e correu

para a velha casa do Correio. E se o circo tivesse levado

Mayadu? Mas ele encontrou seu amigo dormindo

25



tranquilamente. Isso acontecia muito desde que o pai

de Ojoim foi embora. Essa coisa de Ojoim achar que ia

perder a avó ou o amigo, que eram tudo que ele tinha.

Ojoim voltou pra casa, viu que a sombra continuava

lá, mas soube que nunca mais veria o corcunda. Muitos

anos depois ele ouviria falar de um circo que tinha como

grande atração um velho corcunda sem sombra.

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3

Uma pedra mágica que muda de cor

Pense em todos os anos que você consegue pensar.

Provavelmente você pensou muito pouco, porque a Pedra

Azul existe há muito, muito tempo.

Dizem que ela foi formada e surgiu nas montanhas

há cerca de 500 milhões de anos. E que ela era a ponta

de um vulcão preguiçoso, que de tanta preguiça preferiu

não lançar para fora suas lavas de fogo. As lavas do vulcão

esfriaram com o tempo, viraram pedra e essa pedra

ficou enterrada por muitos séculos.

29



Depois, aos poucos a terra em volta foi escorregando

e a pedra apareceu em toda sua beleza. Até hoje ela pode

ser vista, bonita demais, escondida do mundo naquele

cantinho gostoso das montanhas do Espírito Santo.

Ali foi criado o Parque Estadual da Pedra Azul e é

possível passear por trilhas em volta da pedra. A Trilha

do Lagarto, de onde se vê a Serra do Caparaó e Forno

Grande; a Trilha das Piscinas, onde se pode pular sentado

em piscinas escavadas pelas águas que nascem do

chão esponjoso e deslizam pela pedra; e a Trilha da Pedra

Azul. Nesta trilha é possível tocar a Pedra Azul com

as mãos, olhando de baixo o paredão rochoso de 500

metros de altura.

A Pedra Azul é mágica, de verdade. Quando banhada

pela luz do sol ela pode mudar de cor. Além de azul ela

pode ficar verde e até amarela. A maior parte do tempo

ela parece coberta de um branco acinzentado, mas quem

vigiar de longe pode vê-la mudar de cor até 30 vezes no

mesmo dia.

A maioria das pessoas só vê pássaros e plantas em volta

da Pedra Azul, mas sabe-se que ali por perto há também

macaco-prego, preguiça, tatu, tamanduá-de-colete,

veado-catingueiro, mão-pelada, sagui-da-serra, paca,

cachorro-do-mato, cuíca e gambá. É muita coisa! Ah, e

dizem que tem até onça suçuarana e jaguatirica. Essas

duas são de dar medo, mas que são bonitas, isso são.

A araponga enche o ar das montanhas com seu grito

alto e estridente. Mais parece o som de um martelo batendo

em ferro:

– Téin! Téin! Téin, téin, téin...

Outras aves piam longe ou perto e outras respondem,

como se vigiassem a gente escondidas por orquídeas, bromélias,

ingás, cedros, cássias e ipês.

Mas olha só: havia na região da Pedra Azul uma espécie

de cedro-rosa. Essa árvore entrou em processo de

extinção porque se descobriu que com ela era possível

fabricar móveis muito bonitos. Além disso, conta-se que

a madeira do cedro-rosa tinha um cheiro bom demais.

Esse cheiro fazia os homens voltarem correndo do trabalho,

com saudade de suas mulheres. E fazia as mulheres

correrem ao encontro dos maridos, também com saudades.

Conta-se que, assim, cada família do povo da montanha

tinha muitos filhos.

30

31



4

Epa, o lagarto sequestra crianças!

Agora, vamos voltar pra nossa história. Há muito

tempo vivia naquela região um lagarto gigante que tinha

a mesma cor azul da pedra. Mas o ovo em que ele

se desenvolveu tinha demorado tanto a rachar e abrir

que até a mamãe lagarto abandonou o ovo no ninho.

Assim, quando o lagartinho saiu do ovo aquela espécie

de lagartos gigantes já nem existia mais, tinha

sido extinta. Mas o ovo tinha ficado debaixo da terra,

no lugar onde a mamãe lagarto construiu sua toca.

33



Quando afinal o filhote quebrou a casca do ovo e saiu,

deu logo um jeito de procurar pequenos animais para

se alimentar. Ainda bem que os lagartos não precisam

de sua mãe para cuidar deles, como as crianças.

E então o lagarto começou a crescer. Cresceu tanto

que parecia um dragão. Mas muito maior que o dragão-

-de-komodo, da Indonésia, e maior que os lagartos da

Índia, da África, do México ou da Austrália.

O lagarto fez da Pedra Azul a sua casa e o povo da

montanha morava do outro lado do caminho para Minas.

No início não havia problemas entre o lagarto e o povo da

montanha. Mas então o povo da montanha descobriu o

cedro-rosa que faria as famílias terem muitos filhos.

O lagarto não gostou quando começou a aparecer

tanta criança na região. Imagina quando essas crianças

crescessem! Em busca de espaço para viver, talvez esse

monte de gente até resolvesse invadir as terras em que o

lagarto vivia, em volta da pedra.

Então começou o sumiço das crianças. Sumia uma

aqui e outra ali, até que um velhinho ficou vigiando

de longe e viu quando o lagarto pegava uma criança

com a boca e a levava pendurada pelas roupas.

O lagarto subiu a Pedra Azul e escondeu a criança

numa caverna da pedra. Era um buraco redondo que

surgiu na própria formação da rocha nas bolhas de

fogo do vulcão preguiçoso.

Mas o lagarto não era mau. Ele não comia as crianças

e até as alimentava com insetos e frutas que encontrava

em volta da pedra.

Houve então uma reunião de emergência do Conselho

dos Velhos do Povo da Montanha. E aí começou a luta

para recuperar as crianças e evitar que o lagarto levasse

outras para a pedra.

Quando a caravana do circo passava por ali e o corcunda

viu o lagarto, o povo da montanha corria ao pé

da pedra. Os homenzinhos saíam de seu esconderijo e se

preparavam para escalar a Pedra Azul. Eles queriam recuperar

as crianças enquanto o lagarto estava distraído,

mas isso era muito arriscado.

Há algum tempo o lagarto havia descoberto que o

povo da montanha roubava as crianças que ele capturava.

Ele ficou tão bravo que começou a perseguir as pessoas

mais velhas do povo da montanha. Ele levava as

crianças e perseguia as pessoas mais velhas.

34

35



O Conselho dos Velhos do Povo da Montanha decidiu

alargar o caminho para Minas. Era para separar

ainda mais as terras do povo da montanha dos domínios

do grande lagarto. Talvez assim impedissem que outras

crianças fossem levadas.

Mas depois os velhos do Conselho chegaram à conclusão

de que sozinhos não conseguiam evitar que o lagarto

levasse as crianças. No máximo eles podiam recuperar

algumas crianças. Eles escalavam a pedra com escadas

feitas de bambu e amarradas com cipós. E desmontavam

tudo às pressas quando o lagarto aparecia, mas o pesadelo

nunca terminava.

Assim, o povo da montanha decidiu procurar alguém

corajoso para entrar nas terras do lagarto. Alguém que

impedisse o lagarto de roubar crianças e de perseguir os

velhos do povo da montanha.

Foi assim que o corcunda descobriu a história do

grande lagarto azul e do povo da montanha. E foi por

isso que ele disse a Ojoim: “Você tem que ir lá; o povo da

montanha está esperando...”

E o povo da montanha soube de Ojoim e achou que

ele fosse grande e forte, como aqueles heróis das histórias

de aventuras. Não era bem assim, mas o povo da montanha

não sabia disso.

Então o povo da montanha tocou seus tambores durante

uma noite inteira. E houve danças em volta da

fogueira. E todos cantavam canções enquanto o fogo

queimava e fagulhas subiam no ar como vagalumes cintilantes

e apressados. No escuro da noite vagalumes de

verdade também piscavam e piscavam, voavam em volta,

dançavam também.

6

&

E todos cantavam:

& 4 2 œ œ

œ œ œ œ

œ ‰ j œ

œ œ œ œ

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œ ‰ j œ

E - le vem en - quan - to to - dos fo - gem e - le vem he - rói

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Œ

œ

œ

œ œ œ œ

ar - mas e - le vem com co - ra - gem e - le vem e - le vem e - le

E logo começou a arrumação para esperar aquele que

viria libertar as crianças capturadas pelo lagarto e dar

tranquilidade ao povo da montanha. Os velhos iniciaram

uma vigília permanente, sozinhos na Sala do Conselho.

Os homens reforçaram as provisões de comidas e bebidas.

œ

œ œ

œ

œ œ

œ

œ

vem

œ

sem

Œ

37



Os jovens limparam os caminhos de chegada, desde a

Porteira Maior até o Pátio das Celebrações. Eles também

pintaram com tintas novas as casas da montanha.

As mulheres encarregaram-se dos enfeites e vestiram

as crianças com novas vestes. E cuidaram para que

Lila, a garota mais bonita da montanha, Rainha dos

Corações Vermelhos, estivesse ainda mais linda para

receber o visitante.

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5

Uma viagem com muitos sustos:

Ouaiêee, aiêee, aiêee...

Ojoim não tinha muito o que preparar. Ele vestiu

uma calça com bolsos grandes, vestiu uma camiseta

comum e pegou casacos de frio. Depois foi até o

armário, evitando olhar para a sombra do corcunda

que o vigiava da parede. No armário ele pegou a

mochila e a jogou na cama. Então enfiou na mochila

mais algumas camisetas, outra calça, meias grossas

e gorros para a cabeça. Na cozinha ele pegou frutas

e outros alimentos e encheu de água o antigo cantil

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de seu pai. Depois, calçou um velho par de tênis, com

cadarços que não amarrava nunca.

A última coisa que Ojoim fez foi dar um beijo na

avó, que ainda dormia. Ele deixou um bilhete para ela

prometendo que voltaria em poucos dias. Não era muito

certo sair assim, mas ele precisava ajudar aquela

gente da montanha. No bilhete ele pediu que sua avó

avisasse a Mayadu quando ele aparecesse. Ojoim não

queria meter Mayadu numa encrenca, por isso decidiu

ir sozinho para as montanhas.

Eram seis horas da manhã quando Ojoim, meio distraído,

abriu a porta de casa para sair. Então ele ouviu

uma voz:

– Vai, vai logo!

O garoto se virou rapidamente, mas não viu ninguém

por perto.

– Quem falou aí?

Na parede, a sombra do corcunda não respondeu. Ficou

quieta, fingindo que não havia dito nada. Ojoim saiu,

fechou a porta de casa e seguiu em direção às montanhas.

A cidade estava tranquila àquela hora da manhã e o

garoto gostou disso. Se alguém o parasse pra perguntar

aonde ia, como podia explicar? Ele deixou a cidade e subiu

a estrada margeando o rio. Logo alcançou o Mochuara e

viu que uma névoa ainda escondia o topo do monte. Era

a mesma visão que tiveram uns franceses que passaram

por aqui. Achando que aquela névoa parecia um lenço, os

franceses chamaram o monte de mouchoir e disso resultou

o nome atual.

Ao passar pela estradinha ao pé do Mochuara Ojoim

teve a impressão de ver arbustos balançando na beira

do caminho, embora não soprasse vento algum. Ele não

deu maior importância a isso. Continuou seu caminho e

chegou a Roda Dágua.

Devia ser época de festa na região, porque Ojoim

identificou lá longe o som de tambores do congo, tradição

que vinha de negros escravos. Em volta de uma casinha

à beira do caminho havia máscaras penduradas

na parede junto a enfeites fabricados com folhas secas de

bananeira e grãos de feijão. Ojoim se lembrou da última

festa do congo que vira na cidade, quando se encantou

com o João Bananeira. Esse personagem lembra os escravos

que se fantasiavam para não serem reconhecidos

por seus senhores durante os festejos.

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Não muito tempo depois, um arbusto se mexeu ao

lado do caminho e perguntou:

– Não está na hora do nosso lanche?

Ojoim virou-se a tempo de ver quando Mayadu saía

do mato. Ele não estava vestido para a viagem, porque

não tinha muitas roupas. Mas levava às costas um velho

saco, que era a sua mochila. Eles já estavam bem longe da

cidade e Ojoim nem pensou em brigar com seu amigo por

ter vindo escondido. Ele teria de compartilhar sua roupa

de frio com Mayadu, mas no fundo Ojoim até gostou que

ele tivesse vindo, pra não ficar sozinho naquela aventura.

Os dois seguiram caminho muito animados e, sem parar,

comeram bananas que Mayadu tinha trazido.

Quando entraram nas terras da lagoa Jabaeté, que

no passado tinham sido habitadas pelos índios Puris, os

dois amigos logo avistaram a rampa do urubu. Eles continuaram

caminhando e chegaram ao trevo onde uma

divisão da estrada levava, à esquerda, para o Sul, e à

direita para o caminho de Minas. Eles tomaram o caminho

para Minas.

Depois dos índios aquelas terras tinham sido ocupadas

por estrangeiros vindo da Europa. E era uma das

poucas regiões do Espírito Santo que receberam a gente

açoriana, que vinha daquelas ilhas do mar azul de Portugal.

Logo depois do trevo havia uma árvore na margem

direita do caminho e seus galhos folhudos faziam uma

boa sombra na grama. Ojoim decidiu que eles fariam ali

a primeira pausa da viagem, aproveitando o tempo para

um pequeno almoço.

Os garotos comeram aipim cozido e linguiça defumada

com farinha, depois cortaram com canivete laranjas

que haviam colhido à beira da estrada. Mas não se demoraram

muito. Ojoim queria alcançar o rio das corredeiras

a tempo de preparar um local pra passarem a

noite. Assim, no dia seguinte começariam descansados

a subida da parte mais alta da serra. Mayadu também

queria retomar a caminhada. Ele nunca havia participado

de uma aventura e só queria seguir em frente.

Já era tardezinha quando chegaram no alto da colina

do ABC e ouviram o barulho das águas correndo entre as

pedras lá embaixo. Antes de começarem a descer na direção

do rio eles passaram pela bica dos viajantes e aproveitaram

para encher os cantis de água. Os dois chegaram ao

rio logo depois e ficaram impressionados com o volume de

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água que passava sob a ponte. Eles deixaram suas coisas

na margem, tiraram a roupa, mergulharam pelados num

remanso do rio e brincaram na água para se refrescar.

– Eita vontade de descer o rio numa jangada boa, daquelas

de árvore pita…

– Eita, se não!

A primeira parte da viagem estava concluída. Os garotos

resolveram passar a noite do outro lado da ponte,

onde havia algumas pedras altas. Uma delas era achatada

em cima, como se tivesse sido nivelada com uma

plaina. O topo da pedra ficava meio escondido pela copa

de uma árvore e ali eles podiam dormir em segurança.

Ojoim e Mayadu armaram sua barraca improvisada

no alto da pedra, usando barbantes para prender uma

lona aos galhos da árvore. Depois de tudo pronto, desceram,

acenderam uma pequena fogueira com galhos secos

e assaram milho verde. Eles comeram e conversaram

até que a claridade da lua era a única que tinham.

– Você tem alguma lembrança de sua família, Mayadu?

– Ojoim perguntou.

– Não. Tudo que me lembro é de morar sozinho na

velha casa do Correio.

– E você, nunca mais soube do seu pai? – perguntou

Mayadu.

– Não. Mas sinto falta dele.

A conversa deixou os dois meio tristes, mas logo retomaram

a alegria da viagem e parecia bem tarde quando

resolveram descansar.

Mas quando os dois se acomodaram pra dormir começaram

a ouvir um barulho. No início era um sussurro distante

que podia ser o vento soprando árvores ao longe. Mas

logo o barulho se tornou mais cheio. Em seguida era um

som alto e contínuo, que parecia engolir a mata próxima ao

rio. Já não se ouvia o canto das águas nas corredeiras.

Ojoim e Mayadu saltaram de sob suas mantas e sentaram-se

quase ao mesmo tempo na pedra. Então eles

apuraram os ouvidos e até olharam para o céu em busca

de algum sinal. Mas o céu continuava silencioso e bonito,

cheio de estrelas, e parecia dizer: “Não tenho nada a ver

com isso”.

Os garotos queriam se levantar para saltar da pedra

e fugir, mas estavam paralisados. Eles ainda pensaram

que podia ser a aproximação de uma tempestade, mas

isso não combinava com o céu claro e o brilho piscante

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dos vagalumes em volta. Era vento? Vento da noite na

mata, muito forte? Soprava só a cabeça das árvores mais

altas, sem incomodar as moitas e a capoeira no chão?

Os dois amigos nunca saberiam dizer quanto tempo

durou aquilo. Mas depois o ruído começou a diminuir.

Foi baixando e se distanciando, baixando e se distanciando.

Virou um fio de som, depois sumiu lá longe deixando

que o silêncio voltasse à mata. Logo a cantoria das

águas no rio tomou seu lugar na noite, encheu o ambiente

e acalmou os viajantes. Mas por algum tempo Ojoim

e Mayadu ainda ficaram alertas, olhando o escurão da

mata em volta.

– O que foi isso tudo? – Mayadu sussurrou enfim,

assustado, os olhos muito abertos.

– Como eu vou saber? – Ojoim respondeu da mesma

forma, falando baixinho.

Em silêncio, os dois voltaram a se acomodar sob as

mantas e dormiram. Acordaram quando um solzinho

bom acordava o dia. Olhando em volta, perceberam que

tudo estava como no dia anterior: os morros cobertos de

mata, o ruído da água nas corredeiras e, nas árvores,

passarinhos conversando na língua cantata deles.

Eles prepararam o que comer e se apressaram a seguir

caminho, sem comentar o caso da noite. Quando se afastavam,

iniciando a subida da serra, Ojoim percebeu que lá

em cima as árvores mais altas estavam inclinadas numa

mesma direção, como se ainda estivessem dormindo,

abraçadas. Não, era como se tivesse passado um vendaval.

Ojoim não mostrou isso a Mayadu, que agora parecia

não querer mais saber daquilo. E retomou a caminhada

cantando baixinho um canto encantado de sua infância.

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œ

Vem ven - to ca - xin - gue - lê ca-chor - ro do ma - to quer me mor - der

A serra subia fazendo curvas, ora para a direita, ora

para a esquerda. E isso aumentava a distância até lá

em cima. Depois de cada trecho ladeirento os dois amigos

paravam pra respirar, cercados pela mata. A partir

do meio da subida começaram a sentir aquela estranha

sensação de que eram seguidos. Por duas vezes Mayadu

puxou Ojoim pra fora do caminho e os dois ficaram em

silêncio por algum tempo em meio à folhagem. Mas nada

acontecia e eles retomavam a viagem.

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A essa altura eles perceberam que o piado de um pássaro

que ouviam desde a tarde anterior os acompanhava

de longe. Algumas vezes, quando já estavam muito perto

de alcançar a parte mais alta da serra, ocorreram revoadas

de pássaros quando passavam, embora não incomodassem

as coisas e os bichos do mato.

Terminar a subida da serra deixou os amigos satisfeitos

e eles esqueceram a noite anterior e as preocupações

do caminho. Voltaram a conversar animados enquanto

seguiam em frente. Agora só tinham pela frente

pequenas descidas e algumas colinas tão leves que eles

só percebiam quando começavam a subir. Estavam em

Domingos Martins. O almoço foi rápido porque eles

pretendiam dormir apenas mais uma noite no caminho.

Queriam era chegar à vila do povo da montanha

antes do anoitecer seguinte. A tarde passou rápida e

quando começaram a sentir o cansaço da subida da

serra decidiram acampar.

Como tinham tempo antes que a noite caísse, e lembrando

do estranho acontecimento da noite anterior, decidiram

construir a cama numa árvore. Escolheram uma

jaqueira baixa de galhos grossos e deitados no ar a uns

três metros do chão. Os dois cortaram varas de bambu

e usaram cipós para prendê-las aos galhos da jaqueira.

Depois, forraram tudo com folhas de bananeira, o que

prometia uma cama mais confortável do que a pedra da

noite anterior.

– É um jirau – disse Mayadu quando viu o bom trabalho

que tinham feito.

– Sim – respondeu Ojoim. – Os caçadores faziam isso

para surpreender a caça à noite, mas agora quem mata

animais pode ser preso.

Naquela noite eles não quiseram acender fogueira e jantaram

farofa de carne seca e frutas colhidas no caminho.

Eles adormeceram logo, sem sobressaltos, mas antes que

o dia amanhecesse foram surpreendidos por vozes fortes e

graves que subiam em cadência da trilha junto à jaqueira.

– Ouaiêee, aiêee, aiêee. Ouaiêee, aiêee, aiêee. Ouaiêee,

aiêee, aiêee...

De novo os amigos saltaram de debaixo de suas mantas

e ficaram sentados de olhos arregalados. Sob a luz

fraca da lua viram os guerreiros de uma tribo indígena

passarem na trilha em fila indiana, com pés descalços

que batiam ritmados na terra nua.

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– Ouaiêee, aiêee, aiêee. Ouaiêee, aiêee, aiêee. Ouaiêee,

aiêee, aiêee...

A passagem dos guerreiros durou pouco tempo. E depois

que o último deles passou, com uma lança na mão

esquerda, os garotos conseguiram falar, agradecidos por

não serem vistos.

– Índios!

– Parece uma tribo esquecida de índios Puris?

Agora sim, Ojoim temeu perder de verdade o amigo.

A única coisa que se sabia de Mayadu é que havia se

perdido de sua família. Mas ele tinha traços indígenas

e se fosse visto pela tribo poderia ser levado embora. No

entanto, nada aconteceu e os dois ficaram sentados no jirau,

embrulhados em suas mantas, até o dia amanhecer.

Depois retomaram a caminhada e seguiram em direção

ao seu destino. Pararam mais tarde para o almoço e depois

para encherem os cantis numa fonte.

A tarde caía lenta por trás de uma serra distante quando

avistaram o vale lá embaixo. No fundo do vale havia uma

porteira à direita do caminho para Minas Gerais. Dali partia

uma estradinha estreita que fazia duas curvas antes de

se ocultar sob as árvores, rumo à vila do povo da montanha.

Só então Ojoim percebeu que estavam no alto de uma pedra.

Ela terminava num susto ao lado da estrada e despencava

por uma ribanceira que parecia ter 200 metros de altura.

Um pontinho de nada que eles viam no alto da porteira lá

embaixo era na verdade um menino sentado sobre a passagem.

Quando enfim os avistou o garoto desceu da Porteira

Maior e correu em desabalada pra levar a notícia à vila.

Ojoim e Mayadu desceram uma encosta mais à frente

e seguiram em direção à porteira. Logo avistaram a

comitiva da vila vindo pela estradinha em sua direção.

Dois velhos de longos cabelos brancos amarrados

atrás representavam o Conselho e se adiantaram para

receber os visitantes. Caminhavam rápido, apoiando-se

com a mão direita nos cajados que tocavam o chão ao

mesmo tempo que seu pé esquerdo. Calçavam sandálias

de couro e vestiam mantas grossas abertas na frente. Debaixo

das mantas, as camisas tinham duas carreiras de

ilhoses juntadas por tira de couro que subia até o pescoço.

– Bem-vindos – os velhos saudaram sorrindo.

Os velhos trocaram olhares entre eles. Esperavam um

herói e agora estavam diante de dois garotos. Apenas dois

garotos! Mas era o que tinham e não iam abrir mão disso.

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– Nós vamos contar o que aconteceu no caminho? –

Mayadu sussurrou no ouvido de Ojoim.

– Não, melhor não contar.

Dois rapazes livraram Ojoim e Mayadu de suas mochilas,

enquanto outro fazia girar na estradinha o carro

de boi que o grupo tinha trazido. Os amigos foram conduzidos

até o carro, uma plataforma de madeira em forma

de U, fechada em volta por esteira de palha. Acomodaram-se

na plataforma um tanto inclinada para trás e os

velhos se juntaram a eles. O carreiro, um dos rapazes do

grupo, levava uma vara na mão e gritou algo para a junta

de bois. O carro se pôs em movimento com um lamentoso

nhéinnn… nhéinnn… nhéinnn. E esse canto da roça foi se

derramando das rodas e do eixo pela estrada afora.

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6

Argh, duas velhas cabeças cortadas!

A vila do povo da montanha tinha uma única rua que

terminava em amplo pátio de chão batido, e tudo estava

deserto. Nas casas, embora com suas portas e janelas abertas,

não se via os moradores. Ojoim e Mayadu foram instalados

numa pequena e confortável casa do final da rua,

ao lado do espaço onde funcionava a Sala do Conselho.

Eles encontraram um banho quente preparado com ervas.

E quase se esqueceram da vida naquelas banheiras

redondas construídas com finas tábuas de madeira

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encaixadas umas nas outras. Depois de se vestirem

ouviram bater à porta.

Uma senhora idosa de sorriso acolhedor se apresentou

como avó Mariana. Era uma avó bonita, vestia saia longa

e tinha os cabelos presos por um lenço branco. A avó fez

uma reverência e pediu licença para que duas mulheres

mais jovens entrassem para servir o jantar. Os dois rapazes

tomaram sopa e comeram com polenta um embutido

chamado socol, produzido na região. Mais tarde, quando

fazia retirar a mesa do jantar, a avó Mariana informou

que eles estavam sendo aguardados na Sala do Conselho.

Era noite quando Ojoim e Mayadu saíram. A rua e o

pátio continuavam desertos, mas estavam bem iluminados.

E já se percebia nas casas vozes e movimentos que

afastavam para longe a solidão da noite. A noite estava

fria e os garotos vestiam casacos fechados até o pescoço.

Ojoim caminhava à frente, conduzido por um dos rapazes

da vila. Mayadu vinha um pouco atrás, as mãos

metidas fundo nos bolsos e os ombros encolhidos para

concentrar o calor do corpo.

Os dois pararam à porta e foram anunciados no salão

redondo coberto de palha. Quando entraram na sala os

velhos do Conselho estavam de pé em volta de uma mesa

comprida. Uma cadeira vazia havia sido colocada junto

ao velho que parecia coordenar a reunião. Ojoim foi convidado

a se acomodar ali. Mayadu se instalou junto dele,

em outra cadeira, um pouco recuada. Na outra ponta da

mesa havia duas cadeiras vazias. Ojoim teve a estranha

impressão de que seus ocupantes iriam chegar, o que se

confirmou mais rápido do que imaginava.

Todos já estavam sentados quando o velho que dirigia

a reunião voltou-se para o fundo da sala.

– Tragam os conselheiros ausentes – ele ordenou.

Uma cortina se moveu lá atrás. Dois homens vestindo

túnicas de cor cinza passaram por ela e entraram

na sala, dirigindo-se às cadeiras vazias. Cada um

trazia uma bandeja com um volume coberto por pano

preto. Eles depositaram as bandejas na mesa, à frente

das cadeiras vazias.

Mayadu mexeu-se inquieto. Ojoim sentiu o coração

acelerar, tuc, tuc, tuc-tuc-tuc....

A sala estava em completo silêncio quando o presidente

se levantou. Ele se levantou, um velhote baixinho, de

gestos firmes. Caminhou lentamente em direção às duas

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cadeiras vazias, as mãos cruzadas nas costas. Passou por

trás das pessoas que estavam sentadas à mesa e parou

entre as duas cadeiras vazias, apoiando-se nelas. Então

falou olhando para Ojoim.

– Vivemos aqui na montanha há tantos anos que não

se podem contar. Em outras regiões do Espírito Santo

pouca gente sabe de nossa existência. Esses poucos que

sabem evitam falar de nós. Acham que somos magos,

por isso têm medo e nos deixam em paz. Sabemos que

há magos nas montanhas, mas não somos nós e nunca

os vimos.

Mayadu mostrou-se ainda mais inquieto e Ojoim encarava

o velho sem pestanejar.

O velho continuou:

– Vocês só estão aqui hoje por causa do circo. Sabemos

de tudo. Fomos vistos pelo corcunda e mandamos

um jovem da montanha seguir a caravana. Tínhamos

alguém lá naquela noite em que você – ele apontou Ojoim

– ficou sabendo sobre nós. Não sabíamos que era tão jovem,

mas descobrimos que você era a pessoa que procurávamos

pelo interesse que você demonstrou naquela noite.

Por isso o esperamos e agradecemos que tenha vindo.

Os dois amigos sentiram um certo alívio. Olhando em

volta Ojoim percebeu que os membros do Conselho continuavam

imóveis em suas cadeiras. Voltando-se para o

lado viu que Mayadu não tirava os olhos do presidente.

Ojoim encarou o Conselho.

– Fui mandado aqui por causa do grande lagarto

azul, mas não sei como posso ajudá-los.

Do outro lado da mesa, um velho falou:

– Nem os mais velhos de nós haviam nascido quando

surgiu o grande lagarto. É possível que nossos antepassados

tenham assistido ao que parecia a extinção da espécie.

Mas o ovo em que esse grande lagarto se desenvolveu

não foi descoberto.

O velho fez uma pausa, depois continuou:

– O lagarto nunca havia incomodado nossa vila,

mas depois começou a roubar nossas crianças e hoje

ainda tem algumas presas na pedra. E quando descobriu

que recuperávamos algumas crianças ele ficou furioso.

Agora, quando nós os mais velhos saímos de casa

somos perseguidos por ele. Perdemos há pouco tempo

dois membros deste Conselho e não sabemos muito bem

como isso aconteceu.

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O velho parou de falar, contendo a emoção. Ele respirou

fundo e então continuou.

– Os conselheiros que perdemos foram encontrados

sem vida no campo. Não sabemos se partiram naturalmente,

por sua idade avançada, ou se o grande lagarto

teve algo a ver com isso. Mas promovemos grandes cerimônias

em sua homenagem.

Então, num gesto rápido o presidente do Conselho retirou

os panos que cobriam as bandejas sobre a mesa

e duas cabeças velhas surgiram como se fossem fantasmas

de corpo decepado. Mayadu quase soltou um grito e

Ojoim agarrou com mais força os braços da cadeira em

que estava sentado.

As cabeças tinham cabelos ralos e grisalhos. Tinham

as faces encovadas, mas sua aparência era de paz, como

quem contempla um pôr do sol. Os dois amigos só relaxaram

quando o presidente explicou que aquelas não eram

cabeças de verdade, mas esculturas feitas pelo povo da

montanha para imortalizar seus conselheiros.

O presidente voltou ao seu lugar na cabeceira da

mesa. Somente então parecia que a reunião ia começar.

O Conselho estava completo.

A duas cadeiras de onde estava Ojoim um velho de

olhos sorridentes não parecia preocupado com a possibilidade

de um dia ser apenas uma cabeça sobre a mesa.

Quando o presidente se sentou esse velho falou ao Conselho,

sem olhar para o jovem visitante.

– Muito bem. Temos um lagarto que rouba nossas

crianças e persegue nossos velhos. Temos também, finalmente

– ele voltou-se para Ojoim –, alguém que pode nos

ajudar a vencer o lagarto. Mas você precisa saber que

não queremos matar o lagarto.

Ojoim ficou aliviado pois sabia que não se deve matar

os animais. Mesmo assim ele quis que o velho se explicasse.

– Não querem matar o lagarto?

– Não – o velho respondeu. – O lagarto integra a mesma

natureza de que fazemos parte. Assim, de alguma forma

ele é parte do povo da montanha, um grande irmão ancestral.

Se o matamos, matamos um pouco a nós mesmos.

A sala do Conselho ainda ficou em silêncio durante

alguns instantes.

– Tudo que precisamos – o presidente voltou a falar – é

encontrar um meio de impedir o lagarto de nos atacar,

até encontrarmos uma solução para o problema.

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– E isso quem vai descobrir é você – outro velho falou,

dirigindo-se a Ojoim.

O presidente retomou a palavra.

– Você partirá amanhã, depois da cerimônia de despedida

no Pátio das Celebrações. Mas não poderá sair

daqui direto para a Pedra Azul. Deverá seguir um caminho

que contorna a pedra e retorna a ela pela face sul.

Com isso ganhará tempo para pensar em sua missão e

ainda poderá surpreender o grande lagarto.

Depois disso parecia não haver mais nada a dizer.

Mayadu achou que essa era a hora de Ojoim encher o

Conselho de perguntas. Esse caminho é perigoso? Como

vou descobrir a forma de vencer o lagarto? E como não

queremos matar o bicho, o que vou fazer para vencê-lo? E,

acima de tudo, moro longe desse lagarto, o que leva o povo

da montanha a pensar que vou arriscar minha vida quando

posso simplesmente pegar a estrada e voltar para casa?

Mas, para desespero de Mayadu, Ojoim não disse

nada e o Conselho achou que estava tudo acertado.

– A reunião está encerrada – o presidente disse.

Um rapaz que se encontrava no fundo da sala saiu

rapidamente, dirigindo-se ao Pátio das Celebrações.

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7

A bela Rainha dos corações vermelhos

Como por encantamento, a noite da vila foi animada

pelos sons da festa mais alegre que Ojoim e Mayadu já

tinham visto. Quando se levantaram de seus lugares eles

foram abraçados pelos velhos do Conselho e levados para

fora. Assim que apareceram na porta começaram as danças

no pátio varrido com vassoura de mato. A rua, que era

aquela coisa vazia desde sua chegada, estava agora tomada

pelo povo da montanha. O povo da montanha cantava,

dançava e dava muitos vivas cercando Ojoim e Mayadu.

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Os dois olharam em volta. A vila do povo da montanha

parecia uma constelação. Era um clarão no meio

da mata, como um monte de estrelas no céu. Uma Via

Láctea iluminando esse cantinho de floresta escura. Eles

foram levados para a mesa de honra para onde os jovens

da montanha se dirigiam dançando. Cercando todo o

pátio havia uma grande roda de crianças saltitantes, dezenas

delas. De mãos dadas, as crianças giravam sem

parar, cantando as canções do povo da montanha e a

saudade dos amigos que ainda estavam com o lagarto.

Havia muita gente à porta de casa e nas janelas, ou

amontoada sob árvores próximas. Todos batiam palmas

animadamente, e riam, brincando uns com os outros. Então

um grupo saiu da casa onde funcionava a cozinha comunitária

e começou a servir a mesa de honra. Ojoim e Mayadu

experimentaram sucos e comeram como príncipes.

De repente, no meio da festa formou-se no pátio um

longo corredor humano. Crianças passaram correndo

levando, cada uma, uma sacola de pano. Enquanto

passavam pelo corredor elas enfiavam a mão na sacola.

Tiravam dali pétalas de rosas que deixavam cair para

enfeitar o chão. O chão ficou como um tapete de flores.

E então cessou todo o movimento. Todos olharam

para o fim do corredor florido e Ojoim e Mayadu fizeram

o mesmo. Foi quando, no fim do corredor, apareceu a

garota mais bonita do mundo, acho que foi assim que os

dois rapazes pensaram. Ela entrou sorrindo no corredor,

meio tímida no começo, e desfilou em direção à mesa de

honra. Todo mundo aplaudiu. A garota vestia um longo

vestido branco com fitas coloridas marcando a cintura e

tinha uma coroa brilhante na cabeça. Nas mãos, levava

um pequeno cesto de bambu coberto por lenço vermelho.

– É Lila, a Rainha dos Corações Vermelhos – um velho

que estava sentado atrás sussurrou, debruçando-se

no espaço entre Ojoim e Mayadu.

A Rainha chegou junto à mesa e os dois amigos puderam

constatar que ela era ainda mais bonita de perto.

Bem, ela era agora a moça mais bonita do Universo,

acho que foi isso que eles pensaram. Ela retirou o lenço do

cesto e serviu aos rapazes pequenos corações vermelhos,

na verdade morangos frescos colhidos na manhã daquele

dia. Os dois amigos saborearam os corações vermelhos e

depois a Rainha os tomou pelas mãos e os três bailaram

numa roda formada no pátio. Quando a Rainha os libe-

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rou e se misturou aos outros jovens numa roda maior, os

dois voltaram à mesa e Mayadu não resistiu.

– Quanto a você não sei, mas eu acabei de me apaixonar

– ele disse sussurrando ao ouvido de Ojoim. Ojoim

sorriu e Mayadu emendou: – Por ela eu enfrentaria dez

lagartos: azuis, amarelos, vermelhos...

A festa se estendeu até muito tarde na noite cada vez

mais fria. Quando todos se dispersavam os dois foram

levados para a casa de hóspedes. Ojoim sabia que precisavam

descansar, pois quando acordassem na manhã

seguinte ainda teriam uma celebração de despedida. Eles

se recolheram e quando parecia que acabavam de adormecer

Ojoim ouviu muito próximo de seu ouvido:

– Quem acorda cedo vê o passarinho branco.

Com muito custo ele abriu os olhos e viu a avó Mariana

parada junto à cama, envolta pela penumbra do quarto.

– Já amanheceu? – Ele perguntou cheio de sono.

– Não, mas quem precisa que amanheça? Quem tem

muito que fazer não pode esperar a luz do dia. É com o

trabalho da manhãzinha que florescem os campos ao Sol.

– Mas eles falaram de uma celebração, uma festa de

despedida... o Conselho...

– Esqueça! O que vocês tinham de ouvir já ouviram.

Agora precisam se apressar, pois nenhum deles poderá

fazer o que cabe a vocês nessa missão.

A essa altura Ojoim já estava sentado na cama. A avó

Mariana lhe entregou duas mantas, mais grossas do que as

que tinham trazido, e sugeriu que jogassem sobre os ombros

quando saíssem, pois a madrugada era fria nas montanhas.

Ela se dirigiu à mesa da sala, onde havia depositado uma

bandeja de mingau bem quente, queijo e pão das montanhas.

A avó terminou de arrumar os pratos e se dirigiu à porta.

– Não percam tempo – disse, e saiu.

Ojoim acordou Mayadu e lhe disse que precisavam

partir. Mayadu parecia ter tanto sono que nem estranhou

a pressa do amigo. Eles prepararam as mochilas,

onde guardaram os alimentos embalados para viagem.

Depois se aqueceram tomando o mingau quente, experimentaram

o queijo e fartaram-se do pão da montanha.

Quando saíram de casa ainda estava escuro lá fora. Mas

viram com satisfação que de uma porta do outro lado

da rua a avó Mariana lhes acenava. Ela envolvia num

abraço a sorridente Rainha Lila, cheia de preguiça, embrulhada

numa manta de algodão.

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Os dois acenaram para elas, começaram a caminhar

e a avó Mariana apertou ainda mais o abraço em torno

de sua Rainha.

Duas horas depois a avó Mariana contou aos velhos

do Conselho que os dois rapazes saíram mais cedo para

ganhar tempo na estrada. Os velhos sorriram e souberam

que melhor sorte o povo da montanha não podia

ter. A avó Mariana também sorriu. Estava acostumada

a decidir muita coisa, embora os homens do Conselho

achassem que decidiam tudo nas montanhas.

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8

O mago que falava como um sapo:

croac, croac!

Assim que deixaram a vila do povo da montanha Ojoim

e Mayadu mergulharam na neblina que escondia tudo à

frente. Orientavam-se pela beira do caminho. Caminharam

por algum tempo, depois tomaram uma trilha para

o Sul, deixando a estrada que levava para a Venda Nova,

para o Limoeiro e para Forno Grande. Então a vegetação

mais baixa começou a dar lugar a árvores muito altas,

como um jequitibá-rosa com um tronco que precisava de

muita gente junta para abraçar. Logo, os dois amigos se

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viram no meio da mata fechada, trançada de cipós. Havia

na mata pequenos animais que corriam escondidos em

meio às folhas molhadas de orvalho no chão.

No meio da tarde, quando o cansaço da longa caminhada

já encurtava seus passos, os rapazes estancaram de

repente. No caminho apareceu do nada o ser mais estranho

que já tinham visto. Parecia um bruxo. Não, era um mago.

Um mago comprido como um cabo de vassoura e de rosto

enrugado como o de uma bruxa. Ele vestia uma capa que

espelhava a mata em volta e sua capa chegava ao chão. E se

a capa não fosse tão comprida os dois amigos ficariam ainda

mais assustados, pois assim veriam que os pés do mago

não tocavam o chão. Ele simplesmente flutuava no meio da

trilha, impedindo a passagem dos dois aventureiros:

– Onde vocês croac pensam que vão?

Croac? O mago tinha uma voz que não era de trovão

como às vezes contam as histórias fantásticas. Parecia

até a voz de um homem comum, só que meio coaxante,

como se ele tivesse engolido um sapo.

Os dois amigos se entreolharam assombrados. Mas

logo compreenderam que o mago fazia parte do caminho,

precisavam passar por ele.

– Vamos em busca do grande lagarto – Mayadu finalmente

respondeu.

– Vão enfrentar o croac grande lagarto azul? Então

talvez precisem começar a croac se exercitar.

O mago tocou o chão com o bastão que segurava e um

pequeno lagarto de um palmo de comprimento caiu de

uma árvore ao lado dos garotos. Logo caiu outro lagarto

da árvore e então de todas as árvores começou a chover lagartos.

Os dois amigos se viram cercados por um exército

de pequenos lagartos. Os bichos os olhavam do chão movendo

às vezes apenas a cabeça em movimentos rápidos.

De repente um pequeno lagarto saltou do chão, agarrou-se

à perna da calça de Mayadu e começou a escalar

o corpo dele. O lagarto chegou rapidamente ao peito de

Mayadu e parecia disposto a atacá-lo no pescoço. Refeito

da surpresa, o garoto acertou o lagarto com a vara

que levava e o bicho caiu longe.

Antes que outros lagartos atacassem, Ojoim saltou de

onde estava e tomou o bastão que o mago tinha nas mãos.

No mesmo instante o mago despencou da altura em que

pairava no ar, pisou o chão e sua túnica ficou comprida

demais, embolando a seus pés. Ojoim bateu duas vezes

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com o bastão mágico no chão. Com isso os lagartos se dispersaram

correndo para a mata, levantando poeira entre

as folhas que já estavam secas à beira do caminho.

– Devolva-me o croac bastão! – o mago coaxou, irritado.

– Devolvo se você nos ajudar a derrotar o grande lagarto

azul – respondeu Ojoim.

O mago partiu para cima de Ojoim, mas Mayadu estava

atento. Num movimento rápido, Mayadu se lançou

sobre o mago. Ele o derrubou e abraçou bem apertado as

pernas do mago, prendendo-o.

– Solte-me croac ou vou transformá-los em duas croac

minhocas nojentas! – ameaçou o mago coaxando ainda

mais irritado.

– Você não vai fazer nada, porque está preso pelas

pernas e não tem o bastão – disse Ojoim.

– Está bem, soltem-me e devolvam o croac bastão que

vou ensiná-los a derrotar o croac grande lagarto azul.

– Solte-o, Mayadu – pediu Ojoim.

– Mas…

– Solte-o, vamos ver o que acontece.

– Está bem.

Mayadu soltou as pernas do mago. Ele se levantou,

bateu a poeira da capa e as árvores que estavam refletidas

na capa se sacudiram, limpando-se também.

– Dê-me o croac bastão.

– Não faça isso, Ojoim – Mayadu gritou.

Mas Ojoim se aproximou do mago e lhe entregou o

bastão com um gesto de respeito.

– Ojoim!

Assim que tocou o bastão o mago voltou a elevar-se

do chão. E, apesar da desconfiança de Mayadu, o mago

não os atacou.

– Não há como vencer a croac força do croac grande

lagarto – disse o mago. – Mas há muitos anos descobriu-se

que ele é vulnerável ao croac poder dos Ditos Contrários.

– E o que é isso?

– Quando o croac lagarto o atacar você deverá gritar

com toda força o croac dito contrário “Luza Otragal”,

que é croac lagarto azul de trás para a frente. Ele poderá

virar pedra e ficar petrificado por muito tempo, dependendo

da croac força com que você pronunciar o Dito.

Mayadu não se conteve.

– Ojoim, você vai acreditar nele?

Ojoim se aproximou mais do mago.

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– Como posso saber se isso é verdade e se vai mesmo

funcionar para nós?

O mago então contou uma história muito antiga, dos

tempos da infância do grande lagarto.

– Num croac passado distante, meninos magos meus

ancestrais brincavam de hipnotizar o croac lagarto, que

era pequeno naquela época. Um dia, quando usaram o

croac Dito Contrário referente a lagarto azul o croac bicho

virou pedra na frente deles. Eles passaram a brincar

assim, mas como estavam apenas brincando, o croac lagarto

logo voltava à vida. Eles descobriram depois que o

lagarto ficava mais tempo como pedra quando recitavam

o croac dito com mais força.

O mago continuou a história:

– Tomando conhecimento da experiência, croac magos

mais velhos concluíram que se o Dito Contrário fosse pronunciado

com mais força e, principalmente, numa situação

dramática, seria possível que o croac lagarto ficasse petrificado

por muitos anos e talvez até por croac séculos. Mas

eles não precisavam fazer isso e deixaram o croac bicho em

paz. Então, se vocês pronunciarem o croac Dito com força

suficiente, numa situação desesperadora… croac!

– E por que nos dias atuais ninguém usou isso para

imobilizar o lagarto? – indagou Mayadu.

– Porque este é um croac segredo dos magos da montanha

e eu sou o último deles. Se não contasse isso a vocês é

possível que o croac segredo nunca fosse descoberto.

– Está certo, mas de que forma devemos usar o Dito

contra o lagarto?

– Você deverá estar muito próximo dele, junto à sua

croac cabeça, olhando-o nos olhos.

– Ah, ótimo, muito obrigado! E acontece que não sou

mago, então o Dito pode não funcionar.

– Tudo depende de você acreditar. Lembre-se que você

me tomou o croac bastão e expulsou os croac pequenos

lagartos para a mata...

Ojoim ficou pensativo. Depois fez uma reverência e

murmurou um agradecimento diante do mago, que então

tocou levemente a cabeça do garoto com seu bastão:

– Vão pela croac trilha da terra escura, só tem capim-gordura.

Não vão pela croac trilha do mato, só tem

arranha-gato.

Ojoim se afastou do mago com a cabeça inclinada e

muito respeito. Ele pegou Mayadu pelo braço e os dois

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retomaram a caminhada pela trilha indicada. Mayadu

ainda olhou para trás, mas onde estava o mago ele viu

apenas uma nuvenzinha branca elevando-se no ar.

– Você acha mesmo que isso vai croac funcionar, Ojoim?

Ojoim riu da imitação que Mayadu fez do mago.

Ojoim não era dado a mágicas e feitiços, mas lembrava-

-se das ciganas que liam o futuro nas mãos das pessoas

e da mulher que virava gorila no circo, sem falar no corcunda

que deixou sua sombra na parede. Por que não?

– Não temos como saber, Mayadu. Mas precisamos

tentar qualquer coisa para ajudar o povo da montanha.

Os dois amigos iam dormir mais uma noite sob um

céu pontilhado de estrelas, como costuma ser o céu

das montanhas, que não têm as luzes da cidade. Eles

armaram outra cama suspensa e cobriram-se com as

mantas. Deitados de costas e voltados para o céu, contaram

estrelas cadentes que riscavam o azul lá no alto.

Quando veem uma estrela cadente as pessoas costumam

formular secretamente um desejo. Então Ojoim

se lembrou de seu pai, enquanto Mayadu pensava em

Lila, a Rainha dos Corações Vermelhos. E foi assim

que adormeceram.

Quando o dia amanhecia os rapazes voltaram à trilha.

O caminho agora subia levemente e logo no início

da caminhada eles ouviram um riacho que corria perto

dali. Os garotos reabasteceram seus cantis de água e seguiram

em frente. No final da manhã foram surpreendidos

ao encontrar uma manada de cavalos de pelos claros

seguindo na mesma direção.

Eram os belos cavalos Fjord, de origem norueguesa,

trazidos por imigrantes para a região da Pedra Azul.

Como eram fortes, mansos e cavalgavam na direção que

os dois seguiam, os garotos resolveram montar dois deles

para descansar da caminhada. Não foi tarefa fácil montar.

Os animais tinham quase um metro e meio de altura e

era bom que fossem mansos mesmo, porque pesavam perto

de meia tonelada cada um. Mas tudo deu certo e os dois

amigos cavalgaram por quase duas horas, até perceberem

que a manada tomava outro rumo e então desmontaram.

À tardinha Mayadu parou de repente e apurou os

ouvidos, com a mão em concha junto à orelha.

– Você também ouviu? – perguntou Ojoim parando ao

seu lado, muito atento.

– Sim, o que foi aquilo?

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– Sinto lhe dizer, mas parecia o gecar distante do

nosso amigo lagarto.

– Gecar?

– Sim, esta é a voz dos lagartos.

Depois da voz do lagarto os dois ouviram um barulho

que vinha do alto, como trovoada. Então uma nuvem

negra cobriu a trilha e escureceu tudo em volta. Os dois

perceberam que era uma revoada de andorinhas causada

pela movimentação do lagarto. Ojoim e Mayadu correram

para junto de uma grande pedra.

– Há uma caverna aqui!

– Vamos nos abrigar nela e torcer para que as andorinhas

não tenham a mesma ideia e nos atropelem na entrada.

Eles se encolheram junto à pedra, na boca da caverna.

Quando viram que as andorinhas estavam longe decidiram

que apenas no dia seguinte continuariam a caminhada.

Os dois não queriam correr o risco de chegar

aos domínios do lagarto no início da noite. Assim, acenderam

uma pequena fogueira e acamparam na entrada

da caverna.

Sentindo-se seguros com o abrigo e o fogo, os garotos

acenderam tochas para explorar a gruta, mas logo se arrependeram.

Começavam a se aprofundar na escuridão

quando descobriram esqueletos humanos junto às paredes.

Os dois pensaram em voltar rapidamente à entrada

e desistir do lugar. Mas onde pernoitar depois? E esqueletos

não costumam fazer mal a ninguém!

Assim, continuaram a explorar o local e encontraram

outros esqueletos pelo caminho, como mais tarde pesquisadores

descobririam ali perto, na Gruta do Limoeiro.

– Parece que este local foi utilizado pelos índios como

cemitério ou lugar de celebrações.

– Sim. Mas já provamos que somos corajosos vindo

até aqui. Vamos sair deste buraco e dormir na entrada

da caverna.

Os dois amigos dormiram sobre mantas estendidas no

chão junto à fogueira, enquanto no interior da caverna

os esqueletos continuavam seu sono eterno. Apenas uma

vez, no meio da madrugada, Mayadu teve a impressão

de ouvir do fundo da caverna um lamento distante. Era

um canto triste e ao mesmo tempo bonito de ouvir. Mas o

garoto ficou em dúvida se aquilo era real ou se já estava

sonhando. Ele decidiu não acordar Ojoim, cobriu a cabeça

e voltou a dormir.

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9

Uma caverna cheia de crianças

e a luta com o grande lagarto azul!

O dia amanheceu assim de nuvens e trouxe para os

aventureiros uma tensão maior. Era o dia de enfrentar o

grande lagarto azul.

Uma hora depois de retomarem a caminhada pela

trilha eles avistaram a Pedra Azul. Assim, tão de perto,

viram como ela é ainda mais bonita e grandiosa. Os garotos

foram chegando devagar, escondendo-se atrás das

árvores e protegidos por pedras à margem do caminho.

Mas, de repente tudo escureceu com uma pancada seca.

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Quando o mundo começou a clarear outra vez Ojoim

estava caído junto às árvores, à beira da estradinha de

chão que subia para a Pedra Azul. Demorou algum tempo

até que se desse conta de que ele e Mayadu tinham

sido atingidos por uma chicotada do rabo do lagarto.

Suas pernas tinham manchas vermelhas que pareciam

marcas de escamas.

– Mayadu!

Agora completamente consciente do inesperado contato

com o grande lagarto, Ojoim se preocupou com o

amigo, que podia ter sido levado pelo bicho.

– Mayadu!

Mayadu estava caído entre uns arbustos, ainda desacordado,

e Ojoim correu para ele. Ele arrastou o amigo

para um local seguro entre uma pedra e o barranco.

Num exame rápido, viu que Mayadu não parecia ferido.

Tinha apenas perdido os sentidos pela força do golpe que

os dois receberam de surpresa.

Só então Ojoim percebeu que eles estavam perto demais

da Pedra Azul. Ele ainda tentava organizar os pensamentos

quando o chão tremeu sob seus pés depois que soou o

ruído surdo da pisada do lagarto. Nem bem Ojoim se recuperou

desse novo susto, outra passada voltou a fazer o

chão tremer, jogando-o de novo no chão. Foi quando ouviu

o grande chiado que finalmente o deixou alerta para a luta.

Não dava mais tempo pra nada. Ojoim só quis saber

se seu amigo estava bem escondido, levantou-se num salto

e entrou correndo na mata à beira da trilha. Precisava

encontrar um lugar de onde pudesse encarar o lagarto

nos olhos sem risco de ser engolido por ele. Ojoim corria

o mais rápido que lhe permitiam as pernas, desviava-se

das árvores e subia na direção da Pedra Azul. Tomava

o cuidado de se manter em passagens estreitas junto ao

barranco, onde a língua comprida e pegajosa do lagarto

não poderia alcançá-lo.

Ojoim continuou a correr. O lagarto o via do alto, por

cima das árvores, e o perseguia com um chiado agudo,

cada passada suspendendo Ojoim do chão. Atravessando

sem perceber um espaço aberto entre as árvores, Ojoim

tropeçou num tronco e caiu. Só por isso não foi capturado

pela língua grudenta que varreu o ar sobre sua cabeça.

Ele rolou para o lado por puro instinto, saiu da

clareira e voltou a correr até chegar ao pé da Pedra Azul.

Lá no alto, sobre sua cabeça, viu os buracos da pedra.

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Os buracos tinham sido esculpidos naturalmente na rocha

quando ela se formou no vulcão.

Ojoim começou a escalar a pedra usando a habilidade

de suas aventuras com Mayadu no Monte Mochuara.

Queria entrar num dos buracos, onde certamente o lagarto

não poderia penetrar com aquele tamanho todo.

Mas havia o risco de a língua do lagarto alcançá-lo.

Enquanto escalava Ojoim olhou para baixo. Teve assim

a primeira visão completa do grande lagarto azul e

se assombrou com seu tamanho e sua assustadora cabeça

achatada. Mas o que mais o apavorou é que Mayadu

havia acordado e, para não deixá-lo sozinho na luta contra

o lagarto, escalava a pedra logo atrás dele.

Os dois subiam cada vez mais rápido, apoiando os pés

em saliências da pedra e tomando impulso enfiando os

dedos em pequenas fendas da superfície. Enquanto isso,

o lagarto começou a escalar a pedra atrás deles e movia-se

nela muito mais rápido do que os dois. Mas nossos

heróis conseguiram atingir um buraco na rocha antes de

serem alcançados.

Ali eles tiveram a maior de todas as surpresas de sua

aventura. No fundo da caverna havia um grupo de crian-

ças do povo da montanha. Estavam encolhidas, muito

juntas, e pareciam assustadas. Mas logo as crianças se

mostraram felizes com a chegada dos dois, pois agora

poderiam ser resgatadas. Passada a surpresa, Ojoim

e Mayadu correram para junto das crianças no fundo

da caverna. As crianças os abraçaram e estavam todos

assim, agarradinhos, quando a cara do grande lagarto

apareceu junto à entrada do buraco.

O grande lagarto chiava muito bravo com a cara junto

ao buraco, mas sua cabeçorra não entrava ali. Quando

Ojoim percebeu que o lagarto não poderia alcançá-los,

explicou a situação às crianças e pediu que elas ajudassem

a combatê-lo. Ele falou sobre o Dito Contrário e disse

que com a sua voz, a voz de Mayadu e as vozes das

crianças juntas eles podiam imobilizar o bicho. Assim, os

dois deixaram as crianças protegidas no fundo e voltaram

para a entrada da caverna.

Então o hálito do lagarto os atingiu em cheio. Ojoim

caiu, mas Mayadu lhe deu a mão e o ajudou a se levantar.

E os dois se comprimiram à parede da caverna

para escapar da língua do animal. A poucos metros dos

olhos brilhantes do lagarto, Ojoim soube que era hora de

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usar o Dito Contrário que ouvira do mago da montanha.

Ele encarou o grande lagarto nos olhos e fez um sinal a

Mayadu. Mayadu avisou às crianças e todos gritaram

juntos, o mais forte que podiam:

– LUZA OTRAGAL!!!

Regidas por Mayadu, as vozes das crianças no fundo

da caverna geraram eco que amplificou a voz de

Ojoim, explodiu na cara do grande lagarto, passou por

ele e ecoou no vale lá embaixo. O grande lagarto emitiu

um último chiado ensurdecedor, arrastou-se lentamente

pela pedra, tentou virar-se para voltar à caverna, mas

enfim parou. Ouviu-se um estalido metálico assustador

e todos tiveram de proteger os ouvidos com as mãos.

Quando voltaram a olhar para o lagarto ele estava petrificado,

incorporado à Pedra Azul.

Ojoim ouviu a voz de Mayadu ao seu lado, mas era

como se a voz viesse de muito longe. Depois ouviu uma

cigarra chamando chuva e viu as copas das árvores movendo-se

com a força do vento lá embaixo. Por fim, constatou

que o grande lagarto azul permanecia transformado

em pedra, era agora parte da Pedra Azul.

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10

Quando os amigos dizem adeus

Ojoim e Mayadu se apressaram a ajudar as crianças

a descerem da Pedra Azul, pois sabiam que o grande lagarto

poderia voltar à vida a qualquer momento. Mas,

com a força do eco gerado na caverna, quem sabe o lagarto

ficasse ainda muitos anos transformado em pedra?

Chegando à base da pedra eles começaram a descer a

colina e tomaram a direção da vila do povo da montanha.

A pedra agora já podia ser vista de longe, com o lagarto

petrificado, exatamente como ainda pode ser visto hoje.

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Os dois aventureiros pararam com as crianças junto a uma

plantação de pequenos corações vermelhos – ah!, sim, eram

morangos – e colheram alguns, pois estavam todos famintos.

O povo da montanha já sabia do resultado da aventura

e esperava por suas crianças. Naquela noite houve outra

festa e antes que terminassem as comemorações um

velho do Conselho pediu silêncio. Ele disse que o povo da

montanha estava feliz também porque um dia o grande

lagarto poderia voltar à vida. Todos aplaudiram.

O presidente do Conselho saudou os dois rapazes e pediu

que eles falassem ao seu povo. Mas, para não ter que escrever

discursos aqui, vou só contar o que Ojoim disse: ele anunciou

que no dia seguinte voltaria para casa. Como no circo, todos

disseram ooooh!, mas aplaudiram por muito tempo.

Quando chegou sua vez de falar, Mayadu comunicou

que ficaria com o povo da montanha. E isso não foi

novidade para Ojoim porque os dois haviam conversado

sobre o assunto antes da festa.

Ojoim entendeu a decisão do amigo. Toda aquela

aventura havia feito Ojoim amadurecer. Ele pensou em

seu pai e na persistência do povo da montanha em viver

naquelas terras mesmo diante do perigo que o lagarto

representava. Agora Ojoim podia aceitar que as pessoas

fazem escolhas. Ir embora ou ficar. Cada um escolhe seu

caminho, ele pensou, e o importante é ser feliz.

E Mayadu enfim tinha uma família, não voltaria a

morar na velha casa do Correio, não estaria mais sozinho,

teria muito mais amigos e até uma... bem, isso ele ainda

não sabia. Mas ao ouvir que ele ficaria todos voltaram a

aplaudir, felizes. À porta de casa a avó Mariana sorriu e

seus olhos procuraram a Rainha Lila no meio da festa.

Enquanto isso, numa roda as crianças brincavam de

Dito Contrário com os nomes de Ojoim e Mayadu:

– Miojo! Udayam! Miojo! Udayam!

E depois cantavam, e dançavam, batendo as mãos,

rindo e divertindo-se como nunca antes:

3

& b

6

& b

& b 4 4

œ

La

j

œ œ œ œ œ œ œ

œ œ œ œ œ

œ œ

foi que te pin tou foi a

- gar - to,a - zul pin - ta - do quem

-

œ œ œ œ œ œ œ

œ

œ œ œ ‰ j œ

œ œ œ œ œ

œ œ

ve - lha ca - chim - bei - ra por a qui pas - sou No tem- po de a rei - a fa -

œ œ œ œ œ

œ œ œ œ œ œ

œ œ œ œ œ

zi - a po - ei - ra ti - ra,o la - gar - to da mi - nha o - re - lha

96

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Na manhã seguinte Ojoim se despediu, estava ansioso

para voltar pra sua avó e cuidar dela. Mayadu, a Rainha

Lila e as crianças resgatadas na Pedra Azul o acompanharam

à saída da vila. Os dois amigos se abraçaram.

Depois, todos acenaram para Ojoim até que ele desaparecesse

numa curva do caminho. Ojoim partia contente,

Mayadu mais contente ainda ficava. Mas da beira da estrada

todos ouviram o canto triste de um sabiá plantador

de árvores. Pássaros e animais são assim mesmo, sentem

até o que a gente nem vê.

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11

É bom vigiar esse lagarto!

Ninguém sabe ao certo quanto tempo se passou até

que essa história chegasse a nós. Mas da mesma forma

que acabei de contá-la para você, esta aventura pode ser

narrada a qualquer criança e até a adultos. No fundo do

coração os adultos sabem que essas coisas são verdadeiras

na imaginação. Lembre-se que eles foram crianças

um dia, e muitos ainda têm coração de criança.

Também não se esqueça: a Pedra Azul e o grande

lagarto são reais, e continuam à beira da estrada no

101



Espírito Santo. São de verdade sim, mas ao mesmo tempo

fazem parte do mundo mágico em que viverão para

sempre Ojoim, Mayadu, a Rainha Lila, o povo da montanha

e suas crianças.

Mas a história não termina aqui, porque ainda hoje

as crianças vigiam o grande lagarto azul quando passam

de carro com a família por aquelas montanhas do

Espírito Santo.

– Sabiam que ele pode virar lagarto vivo a qualquer

momento? – as crianças perguntam aos pais, que às vezes

sabem muito pouco de algumas coisas.

– Ooooh! – os pais se surpreendem.

– Pode sim. É por isso que a gente vigia quando

passa por aqui, pra ver se ele não mexe a cabeça.

E vocês querem saber o que aconteceu com ele?

– Claro! – os pais respondem.

– Está bem.

E as crianças começam tudo de novo:

– Esta que eu vou contar é a história de dois garotos e

um lagarto...

102



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